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A DUPLA NOÇÃO JURÍDICA DE INTERESSE PÚBLICO EM DIREITO

ADMINISTRATIVO

AUTOR: DANIEL WUNDER HACHEM

Inicialmente o trabalho tratará de analisar a noção jurídica do interesse público


no Direito Administrativo, através das lições de Hachem (2011). Segundo o autor, a
expressão em comento possui dupla noção.
Entretanto, alerta o autor que o uso do termo é utilizado em situações diversas,
utilizando-se a mesma expressão em fenômenos jurídicos diversos. Dessa forma,
percebe-se que o significado do termo não está unificado. É considerada uma expressão
fluida, vaga e imprecisa. (HACHEM, 2001, p. 59).
Ainda nas lições de Hachem (2011, p. 60), o uso da expressão encontra-se
ligado necessariamente ao Direito Administrativo, sendo considerada a “espinha dorsal”
do Direito Público em geral. Apesar disso, tal locução tem sido atacada atualmente,
tendo em vista essa alta abstração, sendo ainda questionada a sua adequação na
atualidade – isto será notado quando forem abordados os autores que pregam pela
desconstrução do interesse público.
Além das noções que o interesse público possui, as quais serão debatidas na
presente sessão desta dissertação, o autor afirma que a expressão possui uma função
ideológica de legitimação do poder que “constitui a matriz do discurso de legitimação
das formas sociais instituídas na modernidade”. (HACHEM, 2011, p. 61).

Essa ideologia, contemporaneamente, juridicizou-se, de modo que a


referência ao interesse público por parte da Administração não se trata mais
de uma invocação genérica, mas sim da aplicação de uma norma jurídica que
define esse interesse geral, atribuindo competências, precisando o seu alcance
e limitando-as. Com isso, permite-se o seu controle a posteriori por parte dos
tribunais. Ter consciência da função ideológica desempenhada pela noção de
interesse público pode ser um instrumento a favor do jurista: basta
instrumentalizá-la em benefício da própria ideologia democrática.
(HACHEM, 2011, p. 62).

Assim, percebe-se que utilizar a noção ideológica do interesse público é tarefa


que pode trazer benefícios ou malefícios para a democracia, pois é utilizada
constantemente pelos operadores do Direito e por quem está na gerencia do Poder
Estatal. Desta forma, analisar as noções que o interesse público possui é tarefa que situa
cidadão e expõe sua realidade perante o Poder Público.
Neste sentido, Hachem (2011, p. 62) atribui dupla noção ao interesse público,
podendo este ser fundamento e limite do estatal. É fundamento porque garante que o
Estado amplie o seu poder para a consecução do bem comum; é limite porque impede o
agir estatal além do que é exigido pela lei. Desta forma, o autor afirma que é possível
reconhecer o sentido amplo e o sentido estrito da locução em comento.
Hachem (2011, p. 62) afirma que a noção mais propagada do interesse público
é a ensinada pelo autor Celso Antonio Bandeira de Mello, conceito explicado a partir de
sua estrutura. Mello (_________) conceitua o interesse público da seguinte forma:

CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO DE CABM

A partir deste conceito, é possível verificar que o interesse público não é


conceito autônomo, abstrato e inatingível, ele depende dos interesses dos indivíduos.
Explica-se: o cidadão apresenta dois tipos de interesse, um de expressão privada – que
representa as conveniências individuais – e outra de expressão pública, considerada pelo
interesse do individuo membro de uma coletividade. Desta forma, o interesse público
não é contrário aos interesses dos indivíduos – e nem se confunde com o interesse do
aparato estatal. Para se conceituar o interesse público é necessário que seu conteúdo
jurídico seja positivado, ou seja, determinado objetivamente pelo ordenamento jurídico.
(HACHEM, 2011, p. 63).

De acordo com essa compreensão, é possível identificar uma estrutura do


conceito de interesse público, uma noção categórica geral do que se deve
entender como tal, aplicável a qualquer sistema jurídico-político, despida de
todo elemento contingente e variável, mas carente de um conteúdo objetivo.
Num segundo momento, essa estrutura deve ser mergulhada na ordem
jurídica sob exame, dotando-a de um conteúdo concreto a partir do sistema
valorativo plasmado no ordenamento normativo analisado. (HACHEM, 2011,
p. 66-67).

Hachem (2011, p. 67) afirma que esta concepção é adequada sob o ponto de
vista lógico e sociológico, entretanto não consegue explicar – juridicamente – as
diferentes noções que o interesse público é utilizado pelo Direito Administrativo e
exemplifica:
Sob o prisma jurídico, ela não esclarece a diferença, v.g., entre a anulação de
um ato administrativo que tenha sido praticado para atender a uma finalidade
diversa do interesse público previsto pelo ordenamento jurídico, e a
legitimidade jurídica do ato de revogação de uma licitação em virtude da
existência, no caso concreto, de motivos de interesse público aptos a
justificar a prática do ato. São dois modos diversos de manifestação jurídica
dessa categoria. (HACHEM, 2011, p. 67).

Dessas premissas, o autor propõe classificar o interesse público pautado na


dupla noção: interesse público em sentido amplo e interesse público em sentido estrito,
que serão abordados ao longo desta sessão.
A priori o autor conceitua interesse público em sentido amplo como:

Interesse público em sentido amplo: trata-se do interesse público


genericamente considerado, que compreende todos os interesses
juridicamente protegidos, englobando tanto o interesse da coletividade em si
mesma considerada (interesse geral) quanto interesses individuais e coletivos
(interesses específicos), quando albergados pelo Direito positivo. Consiste
num pressuposto negativo de validade da atuação administrativa, pois proíbe
a prática de qualquer ato que contrariar tais interesses, bem como a expedição
de um ato com o fito de atender a uma finalidade diversa daquela que o
ordenamento jurídico prevê; (HACHEM, 2011, p. 68-69).

Já o interesse público em sentido estrito é conceituado como:

Interesse público em sentido estrito: cuida-se do interesse da coletividade em


si mesma considerada (interesse geral), a ser identificado no caso concreto
pela Administração Pública, em razão de uma competência que lhe tenha sido
outorgada expressa ou implicitamente pelo ordenamento jurídico. Pode se
manifestar na forma de um conceito legal ou de uma competência
discricionária. Consiste num pressuposto positivo de validade da atuação
administrativa, eis que o ordenamento jurídico só autorizará a prática do ato
quando presente esse interesse público em sentido estrito, hipótese em que
estará autorizada a sua prevalência sobre interesses individuais e coletivos
(interesses específicos) também protegidos pelo sistema normativo.
(HACHEM, 2011, p.69).

I.1 O Interesse Público em Sentido Amplo

Hachem (2011, p. 69) ensina que o interesse público possui uma conotação
ampla, conceito que abarca todo interesse protegido pelo ordenamento jurídico, que
deva ser satisfeito por parte do Estado – direta e indiretamente. Neste caso o interesse
público funciona como uma barreira negativa de atuação do Estado e dos particulares,
impedindo o agir de maneira contrária ao que está posto no sistema normativo. É
satisfeito diretamente através do cumprimento das normas jurídicas feitas para sua
competência; indiretamente é satisfeito quando constrange os indivíduos a cumprirem
as determinações das leis.
Ainda nas lições do autor, o interesse público em sentido amplo tem forte
ligação com a juridicidade administrativa: é conceito que controla a atividade
administrativa, vinculada aos prescritos do ordenamento jurídico. (HACHEM, 2011, p.
71).
A definição do que vem a ser interesse público em sentido amplo está
delineada pela lei em sentido material, através do processo de avaliação realizado em
sede constitucional, legislativa e regulamentar.

Contando com a ampla participação dos diversos segmentos da sociedade na


sua formação, a Constituição, ao proclamar os objetivos e princípios
fundamentais do Estado, enunciar os direitos fundamentais do cidadão e fixar
os programas de ação do Poder Público, qualifica quais interesses devem ser
protegidos como públicos. (HACHEM, 2011, p. 73).

Não só a Constituição qualifica o interesse com o status público: a legislação


infraconstitucional também pode qualificá-los desta maneira, visto que o legislador –
representante da vontade popular – manifesta o interesse dos cidadãos através de
procedimentos jurídico-democráticos e debates públicos. Além do Poder Legislativo, o
Poder Executivo também pode disciplinar o interesse público em sentido amplo, através
de atos normativos, fruto do poder regulamentar, que disciplinarão as variantes do
interesse definido pela legislação constitucional e infraconstitucional. (HACHEM,
2011, p. 75).
Atendidos esses pressupostos que validam o conceito de interesse público em
sentido amplo, cabe a Administração Pública satisfazer no caso concreto os interesses
postos através do sistema normativo criado. Percebe-se que, em regra, a Administração
não define o que é o interesse público, ela apenas o comanda e o persegue no caso
concreto. Estas são as lições de Hachem. Vejamos:

[...] Não é a Administração Pública que qualifica originariamente um


interesse como público (salvo no exercício do poder regulamentar, mas que
detém, de todo modo, natureza secundária). Via de regra, a ela compete
apenas persegui-lo e identificá-lo no caso concreto. [...] Assim, quando as
normas constitucionais, legais e regulamentares estipularem de forma
objetiva quais interesses estão sendo por ela protegidos, que vincularão a
atividade administrativa na sua efetivação, está-se diante do interesse público
em sentido amplo: interesses juridicamente tutelados pelo ordenamento
jurídico. (HACHEM, 2011, p. 75-76).
Outro aspecto que diz respeito ao interesse público em sentido amplo é a
ligação que este tem com o princípio da finalidade – esta estrutura seu conteúdo básico.
Explica-se: para que se obtenha o interesse público em sentido amplo é necessário que o
Estado aplique as normas conforme a finalidade prevista para tal ato, caracterizando
verdadeira condição de legalidade da ação administrativa. Os efeitos desta íntima
ligação (interesse público e princípio da finalidade) residem na proibição de atos que
sejam alheios a finalidade pública, condicionando a atuação do Estado ao Direito
positivo; e reside também na vedação de atos que, mesmo com fundamento da lei, são
apresentados com finalidade diversa prevista pela norma. (HACHEM, 2011, p. 77).

Logo, a concretização da finalidade que a norma jurídica pretende atingir é


uma condição de legalidade da ação administrativa,81 uma vez que o manejo
das competências legais pelo administrador com vistas a um fim diverso
daquele que as justifica significa afronta ao interesse público. Quando a lei
atribui uma competência a uma autoridade administrativa, ela o faz com a
finalidade de realizar um determinado interesse público, pelo que lhe é defeso
aplicá-la com outros objetivos. (HACHEM, 2011, p. 77).

Como comentado alhures, o interesse público em sentido amplo é condição


negativa de atuação do Estado e dos particulares, no qual estabelece limites que
impedem que a Administração Pública atue divergentemente ao ordenamento jurídico –
e mesmo que atue em conformidade com o sistema, deverá necessariamente perscrutar a
finalidade a qual foi posta para tal atuação. Se esta dinâmica for ignorada ocorrerá o
desvio de poder ou desvio de finalidade, ou seja, ocorrerá a dissonância entre o que o
ato busca e o que realmente foi perseguido. (HACHEM, 2011, p. 79).
Por fim, o autor apresenta quais são as espécies de interesses que são
englobados pelo conceito de interesse público em sentido amplo. Estas espécies de
interesses são constituídas de várias formas – que vão de uma simples pretensão,
chegando-se a um direito – tendo em vista que tal instituto é caracterizado pela sua
imprecisão conceitual. Inclusive, tal característica (imprecisão) é objeto de debate entre
doutrinadores administrativistas, como será visto ao decorrer da dissertação. Mas que
pra Hachem (2001) é apenas uma confusão conceitual.

Por essa razão, deve-se tomar cuidado com afirmações taxativas em matéria
de “interesses”, pois é possível que aquilo que um autor denomina de
“interesse privado” diga respeito a uma acepção diversa daquela empregada
por outro autor que utiliza a mesma expressão. Podem se tratar de
concepções distintas sobre o termo “interesse”. Aqui parece estar a chave
para entender por que existem tantas confusões quanto ao princípio da
supremacia do interesse público: aquilo que Celso Antônio Bandeira de
Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Romeu Felipe Bacellar Filho
chamam de interesse privado, por exemplo, trata-se de uma concepção
distinta daquela empregada por Humberto Ávila, Daniel Sarmento e Gustavo
Binenbojm, apenas para citar alguns autores. (HACHEM, 2001, p. 80).

Dessa forma, o interesse público em sentido amplo é formado por direitos


subjetivos ou por interesses legítimos. Estes últimos possuem fluidez conceitual,
podendo ser caracterizada por uma titularidade difusa ou indeterminada. Em ambos os
caso há um interesse individual reconhecido e tutelado pelo ordenamento jurídico. A
diferença entre tais institutos reside no fato de que os direitos subjetivos possuem
proteção direta e imediata, fazendo com que o titular deste direito exija comportamento
que o satisfaça, pois a lei garante que, no caso de descumprimento, o direito seja
alcançado. Já o interesse legítimo possui também proteção imediata, entretanto é feito
de forma indireta, pois o que se exige é que este interesse não seja ofendido. Ressalta-se
que o autor deixa claro que tal distinção é refutada por outros autores, que consideram
que todos os interessem juridicamente protegidos são considerados direitos subjetivos.
(HACHEM, 2011, p.82). Tal diferença pode ser esclarecida através do
exemplo dado pelo autor:

Exemplo de interesse legítimo seria o do vencedor de uma licitação que foi


revogada pela Administração. Apesar de o licitante, no caso de revogação,
não ter o direito subjetivo à adjudicação do objeto da licitação, ele tem o
direito subjetivo de ser indenizado pelos prejuízos que essa extinção
proporcionou ao seu interesse legítimo de ser contratado pelo Estado. Outro
caso seria o do exercício do poder de polícia através das autorizações: o
indivíduo que preencher os requisitos mínimos para a concessão de uma
autorização tem o interesse legítimo de ter o seu pedido deferido pela
Administração. Como se trata de uma apreciação discricionária, o pleito
poderá ser denegado. Conquanto o particular não possua um direito subjetivo
à concessão da autorização, ele tem o interesse legítimo de que sua
solicitação seja avaliada e concedida. Ele poderá recorrer ao Judiciário caso o
indeferimento seja imotivado, pois tem direito subjetivo à motivação do ato,
mas não ostenta direito subjetivo ao deferimento de seu requerimento.
(HACHEM, 2001, p. 82).

O interesse público em sentido amplo, que é composto por direitos subjetivos


ou interesses legítimos, pode apresentar três tipos de titularidades: individual, coletiva e
difusa. Desta forma, no conceito de interesse público em sentido amplo estão incluídos
o interesse geral – de titularidade difusa – e os interesses específicos (de titularidade
individual ou coletiva). (HACHEM, 2011, p. 86).
A extrema riqueza e sofisticação do conceito de interesse público pode ser
verificada no fato de que a mera referência a uma exigência da coletividade
não é suficiente para abarcar todo o seu espectro, quando ele é considerado
em seu sentido amplo. A natureza individual ou setorial de um interesse não
impede que ele seja qualificado como público. Destarte, os direitos subjetivos
de caráter individual devem ser, invariavelmente, considerados como
interesse público (lato sensu). (HACHEM, 2011, p. 86).

O meio ambiente, objeto desta pesquisa, é considerado interesse geral, de


titularidade difusa – isoladamente é considerado um interesse público em sentido
estrito, conforme será abordado no próximo tópico.

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