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FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE E ADOECIMENTO: NOVAS DEMANDAS DE

COMPREENSÃO A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

Marlene Aparecida Wischral Simionato*, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de


Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil; Diana Priscilla de Souza Mezzari,
Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil; Marina Beatriz
Shima Barroco Esper, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia,
Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil ; Elis Bertozzi Aita, Programa de Pós-Graduação
em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil;
Marilda Gonçalves Dias Facci, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia,
Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil.
contato: simionato@wnet.com.br

Palavras-chave: Personalidade. Adoecimento do professor. Medicalização. Psicoterapia. Psicologia


Histórico-Cultural.

A presente proposta de simpósio reúne trabalhos de pesquisadoras que buscam na


Psicologia Histórico-Cultural fundamentação para a compreensão de novas demandas que a
contemporaneidade vem colocando como desafios a serem enfrentados. São pesquisas que
versam sobre o desenvolvimento da personalidade, o adoecimento do professor, a medicalização,
a psicoterapia, em análises que partem da compreensão do homem em sua complexidade e como
síntese das relações sociais.
A Psicologia Histórico Cultural é um sistema teórico elaborado pelos soviéticos Lev
Semenovich Vigotski (1896-1934), Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alekxei
Nicolaievich Leontiev (1903-1979) nas primeiras décadas do século XX, vinculado ao contexto
sócio-político e econômico da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em pleno
clima revolucionário na Rússia, e cujo projeto era formular e consolidar uma Psicologia Geral
que compreendesse o homem na sua complexidade e dinamicidade, em sua forma de ser e agir
no mundo decorrente das relações estabelecidas com seu entorno social. Trata-se de uma teoria
que tem seu embasamento no método e na filosofia do Materialismo Histórico-Dialético e, por
nele se pautar, tem como aporte primordial a busca pela superação do caráter natural do
desenvolvimento do psiquismo humano, e a compreensão da formação do psiquismo como
totalidade dentro de um processo histórico e social.
Quatro trabalhos compõem este simpósio; são textos em que as autoras discutem o
desenvolvimento humano sob diferentes aspectos e em sua complexidade, e enfatizam o caráter
social e histórico desse desenvolvimento. A seguir, apresentamos resumidamente os respectivos
trabalhos.

O trabalho intitulado “A Constituição e o Desenvolvimento do Psiquismo em Vigotski”


tem por objetivo apresentar e discutir a constituição e o processo de desenvolvimento da
personalidade, sob o prisma da Psicologia Histórico-Cultural, a partir da compreensão do homem
como síntese das relações sociais, em meio às quais constitui a sua biografia. Esta perspectiva
teórica se opõe à tradição idealista que marca a história da Psicologia no Ocidente, que se afasta
da natureza social do psiquismo humano e reduz a personalidade a um conjunto de
características pré-existentes no indivíduo que apenas vão se atualizando no decurso de sua vida.
Neste trabalho, as autoras expõem as proposições vigotskianas acerca do desenvolvimento
psíquico, mostrando a intervinculação entre as categorias psicológicas da atividade, da
consciência e da personalidade, e evidenciando a tese do autor de que o psiquismo é formado
social e historicamente.

O texto focaliza a atividade como a primeira e mais importante das categorias de


humanização do homem e, nesta perspectiva, como objeto de estudo de destaque na psicologia,
não como uma parte ou elemento, mas como função formadora da própria consciência humana.
As autoras enfatizam que, para a Psicologia Soviética, a atividade constitui a substância da
consciência e da personalidade do homem e, nessa medida, é condição e expressão do reflexo
psíquico; que a personalidade se manifesta, nas suas características e peculiaridades nesse
processo de interação do sujeito com o mundo circundante; e que a personalidade, enquanto se
constitui através da atividade humana, guarda três grandes qualidades ou propriedades, que se
formam de modo indissociado: o temperamento, as capacidades e o caráter.

As autoras assinalam que a biografia, através dos atos e capacidades humanas, é o que
revela e expressa a personalidade do homem; concluem que a constituição e o desenvolvimento
da personalidade só podem ser compreendidos em sua intervinculação com a atividade e a
consciência do homem, porquanto este fato é o que confere à personalidade um caráter dinâmico
e processual, de estrutura psíquica que se desenvolve em constante movimento, em um perene
processo de transformação.

O segundo trabalho, denominado “Uso de Medicamentos pelos Professores da Educação


Básica” apresenta os resultados de uma pesquisa realizada com professores de escolas públicas
da Educação Básica, sobre o uso de medicamentos pelos mesmos, e seu objetivo é problematizar
a respeito do uso da medicalização na escola e nas relações de trabalho. As autoras argumentam
que muito se tem pesquisado na atualidade sobre o uso de medicamentos em diversas áreas e
com diferentes propósitos e em distintas perspectivas teóricas e metodológicas. Consideram que
o processo de medicalização se define pelo aumento considerável da presença da medicina na
vida das pessoas, e entendem como medicalização a utilização indiscriminada de remédios em
todas as esferas da vida, como tentativa de solucionar problemas que são, em sua essência, de
ordem social, política e cultural.

De acordo com as autoras, numa compreensão dialética de homem, não há como separar a
medicalização das condições de produção e reprodução materiais da existência humana e a forma
como o saber é produzido cientificamente sob determinada estrutura social. Nesta perspectiva é
que discutem o fenômeno de medicalização na escola, porquanto consideram que abordar a
medicalização na educação implica em estabelecer uma relação com o contexto social mais
amplo: em que tipo de sociedade vivemos e que ideal de homem se deseja alcançar.

As autoras concluem que, no processo de trabalho do professor no modo de produção


capitalista, as condições de trabalho aparecem como o fator que mais provoca o adoecimento do
professor; que o acirramento nas condições de trabalho tem como consequência a produção de
problemas de saúde desse trabalhador. Assinalam ainda que a medicalização é resultado do
intenso sofrimento do trabalhador e dos modos de exploração que o trabalho docente adquire na
sociabilidade capitalista. Neste modo de produção a interseção do trabalho e da saúde passa a ter
uma relação contraditória, na qual, quanto mais o trabalhador vende sua força de trabalho, menos
saúde possui.

Já o terceiro trabalho proposto neste simpósio, intitulado “Adoecimento/Sofrimento do


Professor Universitário: uma pesquisa na Scielo”, tem como objetivo discutir, a partir dos
pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, como as produções bibliográficas discorrem sobre
o adoecimento/sofrimento do professor universitário, por meio de pesquisas em periódicos
da Scientific Electronic Library Online - SciELO. As autoras discorrem sobre alguns conceitos
da Escola de Vigotski, tais como formação humana e trabalho, sentido e significado,
patopsicologia, buscando analisar como ocorre o processo de adoecimento, e apresentam a
pesquisa realizada na Scielo com diversas palavras-chave e suas combinações, com o intuito de
se alcançar o maior número de trabalhos.

Nos artigos encontrados que tratavam especificamente do professor universitário, e que


foram selecionados para análise por estarem alinhados com a temática pesquisada, verificou-se
que é frequente a análise do sofrimento/adoecimento do professor a partir da compreensão
historicizada de sobrecarga e precarização do trabalho docente. Tais artigos relatam que a lógica
de mercado inserida nas universidades, o individualismo e a competitividade, são fatores
agravantes do sofrimento/adoecimento dos professores; e que o processo de adoecimento e
sofrimento do docente tem sido naturalizado, trazendo dificuldades para o processo de
enfrentamento.
As autoras concluem que pouco se tem examinado sobre o sofrimento/adoecimento do
professor universitário a partir de uma visão marxista, especificamente. Entendem que há a
necessidade da análise desta problemática a partir desta visão, posto que a universidade é uma
instituição social que reflete e reproduz o modo de sociedade na qual ela está inserida, levando
os professores a um modo de trabalho estranhado, conforme discussão apresentada por Marx.
Por fim, o quarto texto, denominado “Psicoterapia Histórico-Cultural: Revisão da
Literatura Brasileira”, cujo objetivo é apresentar os resultados de pesquisa realizada sobre o
estado da arte da psicoterapia histórico-cultural no Brasil. Nele, as autoras apresentam suas
considerações sobre os artigos e demais materiais selecionados, e assinalam que as elaborações
teóricas de Vigotski, e as reflexões da Psicologia Histórico-Cultural, de forma geral, têm sido
estudadas principalmente na esfera da Psicologia Escolar; enfatizam que ainda são poucos os
estudos desta perspectiva teórica em outros campos de atuação do psicólogo, como a psicologia
clínica, por exemplo.
Como conclusão, as autoras compreendem que é preciso construir uma prática clínica
baseada nos pressupostos filosóficos e epistemológicos que embasam esta perspectiva teórica,
visto que a atuação clínica do psicólogo também precisa estar de acordo com a visão de homem,
de mundo e de sociedade que esta teoria apresenta, e com os objetivos de transformação social
que a mesma propõe. Entendem que uma prática clínica, baseada na Psicologia Histórico-
Cultural, pode retroalimentar dialeticamente esta teoria, impulsionando-a para a elaboração de
um estudo sobre a psicoterapia dentro desta perspectiva teórica. A pesquisa em tela vem ao
encontro dos estudos de outros pesquisadores que tem buscado ampliar a inserção da Psicologia
Histórico-Cultural e pensar esta teoria nos distintos campos de atuação do psicólogo.
Na sequência, apresentamos os quatro textos que integram o presente simpósio, nos quais
são discutidos e aprofundados os diferentes aspectos aqui referidos acerca do desenvolvimento
humano, na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural.
A CONSTITUIÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO EM VIGOTSKI
Marlene Aparecida Wischral Simionato*, Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil; Marilda
Gonçalves Dias Facci, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia,
Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil.
Contato: simionato@wnet.com.br
Palavras-chave: Personalidade. Biografia. Psicologia Histórico-Cultural.

Considerações iniciais
Trata-se de um estudo a sobre a personalidade à luz dos pressupostos da Psicologia
Histórico Cultural, sistema teórico elaborado pelos soviéticos Lev Semenovich Vigotski (1896-
1934), Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alekxei Nicolaievich Leontiev (1903-1979),
nas primeiras décadas do século XX que, desde seu surgimento esteve vinculado ao contexto
sócio-político e econômico da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Isto se deu
em pleno clima revolucionário na Rússia, e o cerne do projeto desta teoria era formular e
consolidar uma Psicologia Geral que compreendesse o homem na sua complexidade e
dinamicidade, em sua forma de ser e agir no mundo decorrente das relações estabelecidas com
seu entorno social.

No projeto intelectual de Vigotski era fundamental não somente compreender o


desenvolvimento do psiquismo humano, mas também, e principalmente, desenvolver uma teoria
geral do desenvolvimento que respondesse às necessidades concretas desse contexto
revolucionário da Rússia, na constituição do novo homem soviético. Na tarefa de responder
adequadamente a essa demanda, juntamente com outros pesquisadores russos, Vigotski foi
incumbido de elaborar propostas educacionais coerentes com o momento e o contexto político
daquela sociedade. O envolvimento com essa e com outras tarefas essenciais para a consolidação
dessa nova sociedade, concorreu para a criação da chamada ‘Escola de Vigotski’ e da Teoria
Histórico-Cultural, como mais tarde viria a ser conhecida.

Trata-se de uma teoria que tem seu embasamento no método e na filosofia do


Materialismo Histórico-Dialético e, por nele se pautar, tem como aporte primordial a busca pela
superação do caráter natural do desenvolvimento do psiquismo humano, e a compreensão da
formação do psiquismo como totalidade dentro de um processo histórico e social. Conforme
Leontiev (1978a, p.10), esta psicologia marxista “(...) não é uma tendência particular, não é uma
nova escola, mas uma nova etapa histórica que representa o princípio de uma psicologia
autenticamente científica”.

Seu surgimento ocorreu em oposição a uma tradição da psicologia do Ocidente no modo


de pensar e tratar a personalidade do homem. Na Europa ocidental e na América do Norte, a
história da Psicologia é marcada pelo desenvolvimento de várias correntes, dentre elas o
behaviorismo, o gestaltismo e o freudismo, as quais tratam a personalidade como um sistema
psíquico fechado e pré-determinado, existente no indivíduo desde o seu nascimento e que dirige
e regula toda sua estrutura psicológica.

É esta a tradição que tem embasado a maioria dos estudos sobre a personalidade, numa
perspectiva que se afasta da natureza social e histórica do psiquismo humano, imprimindo aos
fatos e fenômenos psicológicos do homem um caráter biologizante, considerando-os como
conjunto de quesitos dados à priori, que apenas vão se atualizando no decurso de sua vida.
Consequentemente, a compreensão acerca da personalidade, pautada nessa perspectiva idealista
do desenvolvimento humano, está circunscrita muito mais num campo de descrição isolada do
que propriamente de análise das formações psicológicas humanas (Leontiev, 1978a).

O presente trabalho tem por objetivo discutir o processo de constituição e


desenvolvimento da personalidade, sob o prisma da Psicologia Histórico-Cultural, a partir da
compreensão do homem como síntese das relações sociais, em meio às quais constrói a sua
biografia, entendida como expressão da sua personalidade. A seguir, apresentamos algumas
considerações sobre como Vigotski entende o desenvolvimento psíquico.

Proposições vigotskianas acerca do desenvolvimento psíquico: relações entre atividade,


consciência e personalidade

O que diferencia os escritos de Vigotski, Luria e Leontiev, que formularam os princípios


da nova Psicologia Geral, de outros estudiosos do tema é o fato de basearem-se no método e na
filosofia do Materialismo Histórico-Dialético, razão pela qual defendem a tese de que o
psiquismo é formado socialmente. E se o psiquismo tem essa gênese social, entende-se que o
desenvolvimento psíquico do sujeito, mais do que depender de aspectos biológicos herdados ou
das suas aquisições culturais, dependerá das oportunidades que lhe sejam oferecidas para que
alcance estágios cada vez desenvolvidos da produção cultural a que chegou a humanidade.

Por esta razão é que Leontiev (1978a) afirma que “o homem não nasce dotado das
aquisições históricas da humanidade” (p.282), que homem algum nasce propriamente humano.
Como tais aquisições resultam do desenvolvimento das gerações anteriores e são incorporadas ao
mundo concreto, na cultura humana, somente quando se apropria de tais aquisições é que o
homem adquire propriedades e faculdades verdadeiramente humanas, num processo que o
coloca, “por assim dizer, aos ombros das gerações anteriores e eleva-o muito acima do mundo
animal” (p.283).

Leontiev (1978a) defende que a humanidade do indivíduo é aprendida. Tornar-se homem


significa aprender a agir, sentir, perceber, a se comportar diante das pessoas e coisas que nos
rodeiam como humanos, e este aprendizado se dá em meio à atividade dos homens. Falar da
personalidade requer que se focalize a formação e o desenvolvimento da atividade humana,
porquanto a atividade é a unidade através da qual é possível analisá-la e apreendê-la.

A atividade é compreendida pelo autor como processos que são psicologicamente


caracterizados pelo fato de aquilo para o que tendem no seu conjunto, o seu objeto, coincidir
sempre, com o elemento objetivo que incita o sujeito a uma dada atividade, ou seja, com o seu
motivo. Leontiev (1978a) compreende os motivos como aquilo que impulsiona, que gera uma
dada atividade, sempre vinculados a uma necessidade do sujeito.

De acordo com Leontiev (1978a, b), o motivo é o gerador da atividade, é aquilo que
impulsiona a realização de uma dada atividade. O autor afirma que a atividade humana é
polimotivada, porquanto responde, sempre e ao mesmo tempo, a mais de um ou mesmo a vários
motivos. Entende-se que a atividade abarca tudo o que realizamos e que responde sempre a uma
necessidade que lhe é própria; faz parte da vida cotidiana, naquilo que fazemos, nos modos como
aprendemos a ser seres humanos.
A atividade é a primeira e mais importante das categorias de humanização do homem e,
nesta perspectiva constitui-se como objeto de estudo de destaque na psicologia, não como uma
parte ou elemento, mas como função formadora da própria consciência humana. A atividade
constitui a substância da consciência e da personalidade do homem e, nessa medida, é condição e
expressão do reflexo psíquico.

Leontiev (1978a) tem a convicção de que a pré-história da consciência humana na


atividade instrumental dos ancestrais tem suas raízes no longo e complexo processo de
desenvolvimento do psiquismo animal e, ao debruçar-se nos estudos sobre o desenvolvimento do
psiquismo, defende o princípio da unidade e da inseparabilidade da atividade e da consciência,
ao mesmo tempo em que enfatiza o caráter histórico de seu desenvolvimento. Na atividade é que
são produzidas as condições de humanização dos homens; nela se forma o ser humano, pelos
processos de objetivação e apropriação no decurso de sua atividade vital.

Leontiev (1978a, p.92) compreende o desenvolvimento da consciência ocorrendo em


etapas, determinadas pela evolução da existência, razão porque defende que “(...) a estrutura
interna da consciência humana está regularmente ligada à estrutura da atividade humana” (p.99).
Em seus argumentos, localiza o surgimento da consciência vinculado ao desenvolvimento de um
tipo superior de atividade, em meio a relações de produção com qualidades e características
específicas, quais sejam:

[...] quando os homens, já munidos de instrumentos primitivos, travavam uma luta coletiva contra
a natureza; quando efetuavam o trabalho em comum e a propriedade dos meios de produção e dos
seus frutos era comum; quando, por conseqüência, a divisão do trabalho, as relações de
propriedade privada e a exploração do homem pelo homem não existiam (p.100).

Nessa linha de pensamento, o autor enfatiza que

[...] a principal modificação de forma do reflexo psíquico quando da passagem à humanidade


residia no fato de a realidade se mostrar ao homem na estabilidade objetiva das suas
propriedades, na sua autonomia, na sua independência para com a relação subjetiva que o homem
mantém com ela e para com as necessidades efetivas deste último (p. 92).
Destarte, Leontiev (1978a) reconhece que o reflexo psíquico não existe senão vinculado à
vida real, à existência concreta do indivíduo, o que implica na unicidade entre o representado
mentalmente pelo sujeito e o sentido vital que o objeto refletido tem para com aquele. Quanto
mais complexa se torna a atividade vital humana, mais complexas também se tornam as formas
de o homem refletir psiquicamente a realidade circundante e vice-versa. “O reflexo psíquico
depende forçosamente da relação do sujeito com o objeto refletido, do seu sentido vital para o
sujeito” (p. 93).

Conforme bem argumenta Duarte (2013), é pelo trabalho que o homem se objetiva nos
produtos/instrumentos que constrói e transfere para os objetos, materiais ou imateriais, a sua
atividade física e mental, imprimindo-lhes a marca da sua natureza. Embora os animais se
utilizem da natureza, estes produzem modificações meramente por sua presença nela, ao passo
que o homem a domina, submete-a aos seus interesses e necessidades, produzindo seus meios de
vida, através do trabalho.

Marx e Engels (1982) consideram que este é o ponto essencial que distingue a
inteligência animal do psiquismo humano, a atividade instrumental animal da atividade humana,
diferença esta que é determinada pelo trabalho:

O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos


humanos vivos. O primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais,
não é o fato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida. Pode-se distinguir os homens dos
animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a
se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é
condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens
produzem, indiretamente, sua própria vida material (p.27, grifos dos autores).

Vygotski (2000, 2012a) segue esta linha de raciocínio, pois, para o autor, a atividade vital
humana é o ponto de maior relevância para a constituição e compreensão do psiquismo e da
personalidade do homem, porquanto ao atuar sobre a natureza modifica-a e, ao fazê-lo, modifica
a sua própria natureza. Neste movimento, o trabalho ocupa lugar de destaque na transformação
tanto da natureza natural quanto na natureza do homem, pois que “(...) desperta as forças nelas
adormecidas e subordina a dinâmica destas forças a seu próprio poder” (2012a, p.85).
Para Leontiev (1978b), o lugar de destaque da atividade na vida do homem está
vinculado à formação de sua consciência, atividade esta que é provocada pelas necessidades
humanas e sempre dirigida para sua satisfação. O autor acredita que são as necessidades,
conscientes ou não, naturais ou culturais, materiais ou imateriais, pessoais ou sociais, que
impulsionam as mais variadas formas de atividade do homem e somente deste modo, no contexto
interno da atividade, poderão garantir a sua formação, existência e desenvolvimento como
organismo, como homem, indivíduo e personalidade.

Pela historicidade do próprio psiquismo, e por ser a atividade um processo orientado por
motivos e a unidade essencial a partir da qual se estrutura a personalidade, tem-se que toda
atividade se manifesta sob a forma concreta de ações dos sujeitos envolvidos. Ao longo de seu
desenvolvimento, a complexificação pela qual passou historicamente o processo de atividade dos
homens permitiu que ela se decompusesse numa infinidade de ações e estas, por seu turno, em
um universo igualmente largo de operações.

Ações são componentes da atividade, cujos resultados imediatos não coincidem com os
motivos da atividade; dito de outro modo, falamos de ação quando o motivo que a determina não
é dado nela mesma, mas na atividade da qual faz parte. Já as operações, são processos variados
que viabilizam as ações, referem-se ao como realizar as ações na atividade, representam os
modos objetivos de realização das ações em condições específicas (Martins, 2001).

Ações e operações, na qualidade de componentes da atividade implicam em que,


continuamente, o sujeito da ação reflita psiquicamente as relações entre aquilo que faz, por que
faz e como faz; o que, por sua vez, denota que estará exercitando, continuamente, o
estabelecimento dos nexos entre os componentes de sua consciência, os significados sociais e os
sentidos pessoais que lhe são correspondentes.

Para a Psicologia Soviética, a personalidade se manifesta, nas suas características e


peculiaridades, no processo de interação do sujeito com o mundo circundante, em sua atividade
vital. Para Petrovski (1985), falar sobre a personalidade pressupõe falar de um indivíduo na
unicidade, indivisibilidade, integridade e particularidade de um sujeito concreto, cuja formação
genotípica continuamente se transforma na ontogênese, no decurso de toda sua vida; o indivíduo
é resultado do desenvolvimento filo e ontogenético. Dando continuidade à exposição,
apresentaremos o temperamento, as capacidades e o caráter e os discutiremos enquanto
qualidades psíquicas que compõem a personalidade humana.

Temperamento, capacidade e caráter: propriedades constituintes da personalidade

Petrovsky (1981, 1985) e Smirnov (1961, 1969) relatam que a personalidade, enquanto se
constitui através da atividade humana, guarda três grandes qualidades ou propriedades, que se
formam de modo intervinculado: o temperamento, as capacidades e o caráter. Dentre as
qualidades da personalidade que fazem de cada indivíduo um ser diferente dos demais, o
temperamento tem um papel fundamental.

Para os Antigos, o temperamento era considerado como a síntese dos “humores” ou


líquidos que existem no organismo: o sangue, o muco e a bílis, e que as suas variações
dependiam da proporção em que se mesclavam no organismo esses humores fundamentais. Esse
interesse antigo se estendeu aos dias atuais, numa tentativa de desvendar os “mistérios” que
comporta a individualidade de cada ser humano.

Petrovski (1981) compara a vida psíquica do homem a um rio impetuoso, pois que
constantemente se modificam seus desejos, ideias, sentimentos, suas impressões da realidade,
suas lembranças do passado e seus sonhos para o futuro. O curso desta torrente caudalosa é
diferente em cada pessoa; umas, rápida e facilmente, de modo impetuoso, respondem aos fatos
da vida; outras, mais moderadas, respondem ao meio de modo mais lento, são mais sensatas, às
vezes até apáticas: trata-se do temperamento do homem.

Para o autor, o temperamento é uma das qualidades da personalidade de fundamental


importância porquanto dentre elas é a que mais concorre para que cada indivíduo seja único,
diferente de todos os demais. Curiosamente, não é considerado o mais importante componente da
personalidade. Mas, por suas propriedades, que conferem tônus, fluxo, vivacidade e ritmo à
constituição e expressão da personalidade, o temperamento ocupa este lugar de destaque no
psiquismo humano. Suas propriedades determinam o curso desse rio caudaloso que é a vida
psíquica do homem.
Dentre as qualidades da personalidade, o temperamento é a que guarda mais nitidamente
as marcas de sua herança biológica. Petrovski (1981, 1985) relata estudos sobre as propriedades
e a evolução dos processos nervosos superiores de alguns animais e do homem e situa tais
propriedades como oriundas de reflexos condicionados primitivos que, transformados no decurso
do processo evolutivo, contemporaneamente compõem a dinâmica do sistema nervoso destes.

Petrovski (1981, 1985) e Smirnov (1961, 1969) referem quatro tipos de temperamento: o
tipo sanguíneo, o tipo colérico, o tipo fleumático e o tipo melancólico, os quais apresentam
características psicológicas peculiares. Leites (1969) assim resume as características dos tipos de
temperamento:

[...] O temperamento é a manifestação na conduta e na atividade do homem do tipo de atividade


nervosa superior. A manifestação do tipo forte, equilibrado e rápido da atividade nervosa é o
temperamento sanguíneo. As particularidades da atividade nervosa do tipo forte, equilibrado e
lento são a base fisiológica do temperamento fleumático. O tipo forte, desequilibrado corresponde
ao colérico e o tipo débil, ao temperamento melancólico (p.455).

Os autores assinalam que, embora tais características psicológicas do temperamento não


sejam consideradas como um arcabouço de conhecimento fechado, rígido ou mesmo
determinista, devem ser levadas em consideração quando de reflexões sobre o processo de
constituição da personalidade.

As capacidades representam o segundo conjunto de qualidades da personalidade do


homem, as quais constituem um sistema de atividade psíquica intima e diretamente ligado à
atividade humana, sempre na direção de atender as necessidades do homem. Para Petrovski
(1985), “[...] as capacidades são aquelas particularidades psicológicas da pessoa, das quais
depende o adquirir conhecimentos, habilidades, hábitos, mas não se reduzem a estes
conhecimentos, habilidades e hábitos” (p.405). Isto significa que as capacidades se formam
através dessas aquisições, mas não se restringem a elas, porque generalizam-se, complexificam-
se e expandem as possibilidades do indivíduo para novos processos de apropriação e objetivação.

A capacidade está em ligação com a exercitação psíquica que se refere ao como realizar
concretamente uma atividade qualquer, em função de sua significação social e do lugar que
ocupa a tal atividade no universo dos sentidos pessoais do próprio indivíduo.
Nas palavras de Petrovski (1985), “[...] as capacidades revelam-se apenas no curso de
uma atividade” (p. 406) e, nesta perspectiva, estão em íntima conexão com os conhecimentos,
hábitos e habilidades do indivíduo e, em última instância, pode-se dizer que a capacidade é fruto
direto da história pessoal do indivíduo.

As capacidades de perceber, sentir e memorizar, por exemplo, e assim como todas as


demais capacidades humanas, só se desenvolveram em função das exigências que a vida prática
foi colocando aos homens no decurso da história social. Conforme Leites (1969), quanto mais se
desenvolveu a divisão e a especialização da atividade trabalho, mais as capacidades humanas
foram se especializando.

Nas palavras do autor, “[...] quanto mais ampla e variada se faz a atividade das pessoas,
mais ampla e variadamente se desenvolvem suas capacidades” (p.434). Por esta razão, as
capacidades são compreendidas como produtos da história social, pois suas origens estão nos
processos mais remotos de apropriação e objetivação de nossos antepassados, transmitidas pela
linguagem e por toda a cultura acumulada pela humanidade.

O caráter, terceira propriedade psicológica constituinte da personalidade, forma-se e se


desenvolve em estreita ligação com as capacidades e o temperamento. Caráter, que no grego
significa “marca” ou “cunho”, assume na psicologia a noção de característica, de traço essencial
que auxilia a denominar ou representar uma pessoa. Na prática, na existência concreta do
homem, o caráter reflete o caminho que tem seguido o indivíduo, suas condições pessoais e
sociais, seu modo de vida nas relações que estabelece.

Martins (2001) pontua que os traços de caráter são condicionados pelas atitudes do
indivíduo e que suas atitudes são, por seu turno, condicionadas pelas relações sociais. No
decurso da atividade, o indivíduo desenvolve padrões de resposta compatíveis a distintas
situações. A autora assinala que “[...] os traços de caráter manifestam-se principalmente, diante
de situações conflitivas ou que demandam rápida tomada de decisão, sem análise prévia ou
vacilação, do que resultam os altos esforços no sentido de sua mudança” (p.94).

Ao realizar sua atividade, o indivíduo trava uma luta constante com as situações adversas.
É justo nessas ocasiões que o seu caráter é posto à prova. No enfrentamento ou na esquiva de
circunstâncias desfavoráveis ou conflituosas, os traços intelectuais, emocionais e volitivos do
caráter se conjugam ativa e dinamicamente e é essa conjugação que define o maior ou menor
grau de racionalidade, de força de vontade e emotividade frente às adversidades, e o próprio
modo como o indivíduo soluciona ou encaminha a situação difícil ou desfavorável.

Sendo assim, a relação dinâmica e indissolúvel entre os traços intelectuais, emocionais e


volitivos do caráter, forma o que se denomina estrutura do caráter, através de um sistema
organizado de suas múltiplas qualidades. Nas palavras de Merlin (1981), “[...] nas pessoas que se
desenvolvem e educam em diferentes condições sociais, se formam distintas propriedades do
caráter. A pessoa não nasce bondosa ou mentirosa, folgada ou aplicada, boa ou má; adquire essas
propriedades durante o desenvolvimento” (p.549).

Vimos que as propriedades que constituem a personalidade do homem estão em íntima


conexão com o desenvolvimento de sua atividade; que o temperamento, a capacidade e o caráter,
ainda que guardem em si traços que lhe são peculiares, distintos e relativamente permanentes,
modelam-se e são transformados no decurso da constituição da biografia dos homens.
Apresentamos a seguir qual a concepção de biografia que sustenta nosso entendimento, e como
se desenvolve no contexto da atividade humana.

Biografia e personalidade

Sempre que se fala em biografia, é comum considerá-la como a descrição da vida de


alguém, tal como está definida nos dicionários. Na literatura em geral, salvo raríssimas exceções,
“[...] a biografia, tal como é correntemente praticada, é um exemplo literário, até mesmo uma
tarefa comercial, e não um estudo científico” (Sève, 1979, p. 529). Com uma compreensão
completamente diferente sobre o que é a biografia definida pelos dicionários e corrente na
literatura, o autor afirma que

[...] aquilo que nos é hoje em dia apresentado como uma investigação de índole biográfica não
passa, com demasiada freqüência, senão de repetições de antigas tentativas de que tanto o
contributo como os limites e os impasses se tornaram claramente patentes de há longo tempo a
esta parte (p. 529).
Para Sève (1979), as biografias se resumem, em sua imensa maioria, em “[...] séries e
séries de anotações biográficas justapostas da forma mais banalmente sensacionalista” (p. 529),
[...] “rematadas por interpretações apressadas” (p. 530) e superficiais. O autor afirma que, salvo
as exceções,

[...] não existe nenhuma que solucione, de uma forma convincente, o conjunto
extraordinariamente complexo dos problemas que se colocam ao biógrafo, na falta de este poder
se apoiar numa teoria coerente e completa sobre o devir da personalidade e numa correspondente
metodologia (p. 528).

O autor acredita que a biografia é expressão da personalidade do indivíduo e que “[...] a


personalidade é um sistema complexo de atos, e a especificidade de um ato está em produzir
socialmente algo” (p. 427). Destarte, cada personalidade, conforme vai se constituindo,
manifesta-se como uma grande acumulação dos mais variados atos, no decurso do tempo. Razão
porque cada ato individual do sujeito representa um momento de sua biografia, uma expressão de
si.

Todavia, entende-se também que a personalidade se manifesta, em sua madureza e


plenitude, quanto mais a biografia do indivíduo se encontrar engendrada por relações sociais
fundamentais, do trabalho social. Cabe assinalar que, na compreensão de Sève (1979), as
relações que determinam a constituição da personalidade do homem são relações entre classes,
as quais orientam e influenciam o seu desenvolvimento, a partir de interesses distintos e
antagônicos.

Para Leontiev (1978b) e Sève (1979), a personalidade desenvolvida é precedida por


formações precoces, oriundas da inserção da biografia em relações sociais variadas, que se
constituem oscilando ora como de primeira relevância, ora como secundárias na vida do
indivíduo, mas de importância indiscutível, tais como as relações familiares e escolares, e as
estruturas de linguagem que ele vai adquirindo no decurso de seu desenvolvimento. Por mais
precoces que sejam, tais formações já podem ser chamadas ‘personalidade’ (infantil,
adolescente, etc.), pois que se tratam de expressões das características do indivíduo concreto
inserido e atuante em relações sociais, conforme a sua idade ou etapa de vida, num processo em
que expande e revoluciona as suas funções psíquicas.
O conteúdo que embasa a construção da biografia, considerada como um processo que
expressa a personalidade do indivíduo não é outro senão aquele que sedimenta a sua atividade.
Na perspectiva histórico-cultural da psicologia, a biografia é compreendida a partir dos atos e das
capacidades humanas, enquanto elementos intervinculados no desenvolvimento de uma mesma
atividade, em que os atos constituem a base para a formação das capacidades e estas,
dialeticamente, constituem a condição fundamental para a concretização dos atos.

Se a biografia – através dos atos e das capacidades - é o que revela e expressa a


personalidade do homem, é fundamental que se compreenda o universo complexo da atividade
vital humana, produtiva da vida, na qual está inserido o indivíduo, e na qual este emprega um
tempo real de sua vida, deposita suas energias em atividades que se desdobram com qualidades-
características distintas. A questão do quanto de tempo o indivíduo emprega em sua atividade
tem uma grande importância para a compreensão do sistema temporal das relações que
estabelece entre as grandes categorias da atividade, ou seja, as formas de atividade pessoal
concreta e de atividade social abstrata, categorias da atividade humana adquirem uma valoração
diferenciada no decurso da vida do homem, conforme muda a posição deste no conjunto das
relações de produção de sua vida material, e também conforme muda o próprio conteúdo das
atividades que realiza ao longo de seu desenvolvimento.

Nas proposições de Leontiev (1978a, b) e de Sève (1979), o que embasa a constituição da


personalidade do homem é a sua biografia; os autores acreditam que a personalidade é interna e
externamente desenvolvida e que o indivíduo, no decurso da vida, compõe sua biografia por
meio de sua atividade. Assim sendo, o conjunto de suas relações com o mundo, através de suas
atividades, as quais são realizadas por um complexo conjunto de ações e operações, está sempre
intervinculado com os motivos que as impulsionam e definem, e com as emoções e sentimentos
que o indivíduo vivencia.

À guisa de concluirmos

Face ao que vimos expondo acerca das qualidades da personalidade - o temperamento, as


capacidades e o caráter – entende-se que tais propriedades psíquicas estão em íntima conexão e
se constituem e se expressam no decurso da atividade vital do sujeito. Na perspectiva da
Psicologia Histórico-Cultural, o temperamento é considerado como a qualidade mais primitiva,
ancestral da personalidade humana, posto que se assenta mais nitidamente numa base fisiológica;
abarca uma vasta gama de características, tais como a suscetibilidade e o estilo de reação da
pessoa frente a uma dada estimulação; seu funcionamento envolve a velocidade e a intensidade
das respostas do indivíduo e a qualidade do ânimo que predomina em suas interações.

Quanto às capacidades, são compreendidas como condições psíquicas que o indivíduo


dispõe e/ou desenvolve para realizar com êxito determinados tipos de atividade, e que elas só se
desenvolveram em função das exigências que a vida prática foi colocando aos homens no
decurso da história social. Suas origens estão nos processos mais remotos de apropriação e
objetivação de nossos antepassados, transmitidas pela linguagem e por toda a cultura acumulada
pela humanidade; tal é a importância desses processos, que as objetivações, uma vez
apropriadas, tornam-se propriedades psicológicas individuais, tornam-se capacidades;
transformam-se em qualidades que diferenciam uma pessoa das outras naquilo que lhes fornece o
êxito, ou o melhor desempenho em determinadas atividades.

Por fim, quanto ao caráter, este se constitui como a propriedade que mais nitidamente
conserva sua natureza social, ainda que traga consigo um profundo enraizamento nas vivências
mais primitivas e peculiares do indivíduo, nos sentidos pessoais que elabora em suas relações.

Na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, ao focalizarmos nossa investigação


sobre a constituição e desenvolvimento da personalidade, enfatizamos que ela só pode ser
compreendida em sua intervinculação com a atividade e a consciência do homem. Este fato é o
que lhe confere um caráter dinâmico e processual, de estrutura psíquica que se desenvolve em
constante movimento, num perene processo de transformação.

Vimos que o estudo sobre a constituição e desenvolvimento da personalidade, na


perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, representa uma nova forma de compreender essa
formação psicológica: em sua historicidade, enquanto instância psíquica em constante
transformação, vinculada à dinâmica da atividade vital, concreta que o homem realiza.
Entendemos que as possibilidades de contribuição desta psicologia marxista, por constituírem
um modo radicalmente diferenciado daquele que tradicionalmente a Psicologia tem veiculado e
defendido, representam uma virada qualitativa no trato da personalidade, em oposição à tradição
que a concebe como estrutura psíquica pré-existente no indivíduo.

Numa direção diametralmente oposta à tradição ocidental referida, o caráter


revolucionário desta nova psicologia se evidencia na busca da superação do caráter natural do
desenvolvimento psíquico. Sua marca revolucionária também se expressa através da
compreensão da personalidade como expressão singular da universalidade humana, que se
constitui na mediação das particularidades através da atividade vital do indivíduo. O ponto de
partida é a compreensão do homem como síntese das relações sociais.

No Brasil, somente a partir da década de 1980 é que os livros de Vigotski passaram a ser
publicados, impulsionando estudos sobre a temática do desenvolvimento humano. Apesar do
curto período da história da psicologia em nosso país, as contribuições da Teoria Histórico-
Cultural já se configuram como um arcabouço teórico de destaque, na direção de uma nova
compreensão do psiquismo humano e da personalidade do homem.

Cabe assinalar que, ainda que as proposições de Vigotski devam ser consideradas no
contexto de toda sua obra, do momento histórico de sua produção e do seu compromisso
específico com a construção da educação para a nova sociedade soviética, é certo que o legado
do autor pode nos ajudar a melhor compreender o desenvolvimento do psiquismo e da
personalidade do homem, e a empreender nossas investigações acerca da vida, das relações entre
os homens, numa perspectiva histórico-social. Em seus aspectos fundamentais, as proposições
vigotskianas se revestem de uma indiscutível contemporaneidade, o que nos permite refleti-las
face a qualquer que seja a realidade social em que esteja inserido o sujeito, na direção de uma
mais ampla compreensão do seu psiquismo.

Espera-se que estudos desta natureza, respaldados na fundamentação teórico-


metodológica da Psicologia Histórico-Cultural possam orientar a constituição de uma
compreensão diferenciada acerca do psiquismo humano e da personalidade do homem de forma
não fragmentada, não isolada do contexto social-cultural em que os sujeitos vivem e se
desenvolvem.
Referências

Leontiev, A. N. (1978a). O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte.


Leontiev, A. N. (1978b). Actividad, conciencia y personalidad. Buenos Aires: Ediciones
Ciências Del Hombre.
Duarte, N. (2013). A individualidade para si. Contribuição a uma teoria histórico-crítica da
formação do indivíduo. 3ª ed. Coleção Educação Contemporânea. Campinas: Autores
Associados.
Martins, L. M. (2001) Análise sócio-histórica do processo de personalização de professores.
Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de filosofia e
Ciências. UNESP, Marília.
Marx, K. e Engels, F. (1982). A ideologia alemã (I Feuerbach). (J.C.Bruni e M.A.Nogueira,
Trads.) 3ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda.
Merlin, V. S. (1981). El carácter. In: Petrovski, A. (1981). Psicología general. Cuba: Editorial de
Libros para la Educación, pp.535-58.
Petrovski, A. (1981). Psicología general. Cuba: Editorial de Libros para la Educación.
Petrovski, A. (1985). Psicología general: manual didático para los institutos de pedagogia.
Moscú: Editorial Progresso.
Sève, L. (1979). Marxismo e teoria da personalidade. (M.L.Godinho, Trad.) Vols. I, II e III.
Lisboa: Livros Horizonte.
Smirnov, A. A.; Leontiev, A.N.; Rubinshtein, S.L. y Tieplov, B.M. (1961). Psicologia. (F.V.
Landa, Trad.) Cuba: Imprenta Nacional.
Smirnov, A. A.; Leontiev, A.N.; Rubinshtein, S.L. y Tieplov, B.M. (1969). Psicologia. (F.V.
Landa, Trad.) 3ª ed. México: Editorial Grijalbo SA.
Vygotski, L.S. (2000). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Madri:Visor.
Vygotski, L.S. (2012a). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Madrid:
Machado Libros.
USO DE MEDICAMENTOS PELOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Diana Priscilla de Souza Mezzari *, Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá,


Maringá, PR, Brasil; Marilda Gonçalves Dias Facci, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR,
Brasil.
contato: psicodpsm@hotmail.com

Palavras-chave: Adoecimento do professor. Psicologia Histórico-Cultural. Medicalização. Sentido da


pratica pedagógica.

INTRODUÇÃO

Muito se tem pesquisado na atualidade sobre o uso de medicamentos em diversas áreas,


como Psicologia, Educação, Medicina, Ciências Sociais e outras, com diferentes propósitos e em
variadas perspectivas teóricas e metodológicas. Esta utilização indiscriminada de remédios, que
vem ocorrendo em todas as esferas da vida, na tentativa de solucionar problemas que são, em sua
essência, de ordem social, política e cultural, mas que acabam sendo atribuídos a questões
médicas e apresentados como ‘doenças’, ‘transtornos’ ou ‘distúrbios’, é o que entendemos como
medicalização.
Neste aspecto, Barros (1983) contribui expondo que o processo de medicalização se
define pelo o aumento considerável da intervenção da medicina na vida das pessoas, em que se
impõem à área médica a responsabilidade de resolver problemas visivelmente decorrentes da
forma como se encontra organizada a sociedade, no interesse de manter o status quo,
escamoteando os conflitos inerentes às relações capital-trabalho.
Temos observado que a medicalização tem atingido vários contextos da sociedade, dentro
os quais destacamos o escolar, em que o uso de medicamentos se apresenta na rotina de muitos
alunos, professores e especialistas da educação em busca de solucionar de forma imediata
dificuldades educacionais que se apresentam neste contexto.
Sendo assim, o principal objetivo desse artigo apresentar os resultados de uma pesquisa
realizada com professores de escolas públicas da Educação Básica sobre o uso de medicamentos
pelos mesmos.

O fenômeno da medicalização na escola


A medicalização dos comportamentos considerados socialmente indesejáveis, ao menos
nas sociedades ocidentais, se estendeu nas últimas décadas a quase todos os níveis de existência.
A crença de que sentimentos e comportamentos têm causas e origens físicas e que aspirações
morais devem partir de um modelo preestabelecido tornou-se bastante comum nos dias atuais, na
qual o mito cientifico é considerado universal. E problemas de ordem social são exemplificados
através de argumentos biomédicos, os quais, por meio de um diagnóstico mascaram a realidade,
culpabilizando o indivíduo por problemas que são considerados de ordem social. De acordo com
Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014), medicalização significa definir um problema médico
e licenciar à profissão médica a oferta de algum tipo de tratamento para comportamentos que são
considerados socialmente inadequados. Sendo assim, problemas não médicos são tratados como
problemas médicos e passam a ser definidos como transtornos.
Em uma compreensão dialética de homem, não há como separar a medicalização das
condições de produção e reprodução materiais da existência humana e a forma como o saber é
produzido cientificamente sob determinada estrutura social. Portanto, há uma medicalização do
social, que abarca diferentes fenômenos, desde a evolução biológica – que modifica a pratica da
medicina, com inovações tanto nos métodos de diagnóstico terapêuticos, a indústria farmacêutica
e a de equipamentos médicos –e até mesmo o que resultantes econômicas e sociais geradas e
estimuladas por essa produção do ato médico ocasionam nas relações materiais.
Nesse sentido, abordar a medicalização na educação implica em estabelecer uma relação com
o contexto social mais amplo: em que tipo de sociedade vivemos e que ideal de homem
desejamos alcançar. Quando se analisa um fenômeno de maneira particular, corre-se o risco de
chegar a conclusões calcadas na aparência, e por isso, torna-se de extrema importância estudar
esse objeto numa visão de totalidade. Com a crescente medicalização no contexto escolar, tanto
por parte dos alunos quanto de professores, busca-se refletir sobre quais os reais motivos que
influenciam esse fenômeno. Considerando que o Brasil, no cenário mundial, se enquadra como
um país em desenvolvimento cuja base econômica é capitalista, pode-se afirmar que os conflitos
de interesse e de classe são introduzidos na escola, onde esses estão arraigados nas políticas
públicas educacionais. Dessa forma, essas políticas expressam posições político-ideológicas da
classe social dirigente que as elabora.
Essa visão medicalizante do insucesso escolar, de acordo com Facci, Ribeiro e Silva (2012),
permanece na escola e nos profissionais da educação, norteando as práticas desses profissionais e
causando sofrimento nos mesmos; sofrimento este que deve ser sanado e curado com remédios,
voltando o discurso novamente para a culpabilização do sujeito. Dentro do meio educacional, o
professor, enquanto sujeito condutor da atividade pedagógica, é o responsável por essa
transmissão do saber historicamente acumulado:

No caso dos professores, o significado do seu trabalho é formado pela finalidade da ação de ensinar,
isto é, pelo seu objetivo, e pelo conteúdo concreto efetivado através das operações realizadas
conscientemente pelo professor, considerando as condições reais, objetivas na condução do processo
de apropriação do conhecimento do aluno (Basso, 1994, p.27).

A significação social da atividade pedagógica do professor é justamente proporcionar


condições para que os alunos aprendam, ou melhor, engajem-se em atividades de aprendizagem.
Portanto, é o professor o mediador entre o conhecimento e o aluno. Tanto Vigotski (2000), como
Leontiev (1978), enfatizam o caráter mediador do trabalho do professor (adulto responsável ou
criança mais experiente) no processo de apropriação dos produtos culturais. Compreender a
significação social da atividade pedagógica é fundamental para investigar o que motiva o
professor a realizar tal atividade, ou seja, qual é o sentido pessoal da atividade pedagógica ao
professor. Leontiev (1978) nos aponta que na sociedade de classes há uma ruptura entre a
significação social e o sentido pessoal, o que caracteriza a consciência humana, nesta
particularidade, como alienada.
Nesse caso, o trabalho alienado do docente pode descaracterizar a prática educativa
escolar. A cisão entre o significado social e o sentido pessoal no trabalho docente compromete o
produto do trabalho do educador e interfere diretamente na qualidade do ensino ministrado. Para
Basso (1994), os professores, ao sentirem essa cisão entre o significado e o sentido de suas
atividades, avaliam suas condições de trabalho como limitadoras e expressam desânimo e
frustração ao falarem sobre sua profissão.
No atual desenvolvimento da sociedade burguesa que nega a historicidade dos homens, as
contradições sociais são encarnadas nos sujeitos tomando a roupagem de problemas individuais
que devem ser resolvidos individualmente. Dessa forma, passamos a considerar o contexto
societário dos sujeitos e suas aflições pelo viés da patologização e da biologização,
desconsiderando que são influenciados pelo meio histórico e social. Considera-se que partindo
desta abordagem teórica, que a medicalização é uma produção da sociedade burguesa na qual
estamos inseridos, e esta mesma sociedade que revela os produtores, demonstra a forma como os
sujeitos vem sendo formados e educados, formação esta que deveria ser responsável pela
humanização dos homens e pelo desenvolvimento psicológico, mas vem produzindo um
desenvolvimento parcial e desumanização.

O uso de medicamentos pelos professores da Educação Básica


Neste item apresentaremos as informações obtidas em uma pesquisa que realizamos no
ano de 2016 com o objetivo de identificar o uso de medicamentos pelos professores. A
investigação foi aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e
foram aplicados questionários aos professores de escolas públicas, da Educação Básica, do norte
do Paraná.
O questionário foi respondido durante cursos de formação de professores realizados em
duas cidades, ministrados por uma das participantes do projeto, e também em escolas estaduais
de uma cidade do estado do Paraná. O roteiro das questões solicitava dados de identificação e
informações sobre o uso de medicamentos, diagnósticos e relação entre o problema de saúde e a
atividade profissional de professor.
Participaram 223 professores do estado do Paraná, sendo 89,7% mulheres. Do grupo
investigado, 61,9% eram formados em Pedagogia, seguido de Letras – 10,3%. Grande parte dos
docentes que responderam o questionário tinha idade acima de 30 anos, sendo que 21,5%
estavam entre 45 a 50 anos; 13,5% entre 40 a 45 anos; 15,2% entre 30 a 40 anos e 15,7% entre
30 a 35 anos. A maioria dos professores (27,4%) tinha menos de cinco anos de formação; 23,3%
até 10 anos de formação e 18,8% de 10 a 15 anos de formação. No tocante ao tempo de trabalho,
a maioria dos professores (21,1%) estava entre 5 e 10 anos de tempo de docência; 18,8% menos
de 5 anos; 14,3% 10 a 15 anos; 13,5% 15 a 20 anos e 14,3% 20 a 25 anos.
Ao serem questionados se utilizavam algum medicamento nos últimos 12 meses, 105
professores (47%) responderam que sim, e (53%) responderam que não.
O número apresentado neste levantamento é de fato alarmante, visto que quase metade
dos professores que responderam o questionário utilizam medicamentos. As considerações a
respeito deste alto índice de professores que fazem uso de algum medicamento, direcionam-nos
ao seguinte questionamento: não estariam estes professores buscando neste medicamento alguma
forma de resolver ou superar as dificuldades que são apresentadas no cotidiano da escola?
Na construção histórica da entrada da medicina nas escolas, principalmente como função
de higiene desta, vai comandando espaços e justificando com sua prática a culpabilização de
diversos participes não só da Educação mas da sociedade como um todo, de que o remédio é a
solução para diversos problemas, mesmo aqueles de ordem social, fazendo com que se mascare
as condições reais e materiais que resultam diversas vezes em sofrimento/adoecimento dos
docentes.
Outro questionamento feito aos professores foi o tipo de medicamentos utilizados pelos
mesmos, conforme nomes citados pelos participantes, foram os seguintes: anticonvulsivo (1%),
antidepressivo (16%), ansiolítico (9%) e outros tipos de medicamentos (58%). Alguns
professores marcaram mais de uma alternativa: ansiolítico e antidepressivo (6%), ansiolítico e
outros (3%), antidepressivo e outros (3%) e antidepressivo, ansiolítico e outros (4%). Aqueles
que marcaram outras opções (58%), indicam remédios para hipertensão, enxaqueca, tireoide,
estômago e diversos outros medicamentos.

Fonte: Elaborado pela autora com dados extraídos de pesquisa realizada com 223 professores da região norte do
Estado do Paraná (2016).

Nas respostas de professores que dizem utilizar medicamentos, observamos que 42% são
indicados para problemas de ordem psíquica, demonstrando que, mesmo que diversas pesquisas
discutam os adoecimentos dos professores enfocando em problemas orgânicos, os de ordem
psicológica têm grande influência nos tratamentos prescritos a esses profissionais. Mesmo
aqueles problemas que são considerados orgânicos, como hipertensão e enxaqueca, podem
também, em alguns casos, ser associados a problemas de ordem psíquica e considerados como
decorrentes de doenças como ansiedade, depressão e pânico.

Ao procurar para que eram indicados os remédios, na bula dos remédios especificados
pelos professores percebe-se que grande parte desses remédios são para tratamentos de depressão
(proximax, escitalopram, fluoxetina, BUP, Alenthus, Pondera, Paroxetina, Espran, Cloridrato de
sertralina, reconter) utilizados por 16 professores. Tratamentos para pânico (algadil e rivotril)
utilizado por dois professores, tratamentos para ansiedade (frisium) utilizado por 1 professor.
Tratamento para transtorno bipolar (dekapote, carbonato de litio) utilizado por 3 professores,
tratamento de esquizofrenia (respiridon) utilizado por 1 professor e calmantes (chá calmante e
valeriana) utilizado por 3. Essa lista soma ao todo 26 medicamentos utilizados por professores.
Todos esses remédios são indicados para problemas psicológicos e como visto, eles se
encontram em grande número dentro dos utilizados pelos professores.
Se levarmos em consideração os dados expostos acima, e os dados em que apresentamos
o diagnóstico prescrito pelo médico, se confirma que em sua maioria esses diagnósticos são para
ansiedade e depressão (25%), cansaço mental e estresse (5%), transtorno de pânico (1%),
distúrbio bipolar (3%) e insônia (2%). Portanto, os problemas que os professores vêm
enfrentando em geral são de ordem psíquica, e tem relação com o trabalho (51%) ou relação
parcial (7%). Isso nos apresenta um dado de muita relevância, e nos faz questionarmos as
condições do trabalho nesse modo de produção, condições estas que na atualidade se refletem na
perca de direitos já conquistados, perca das mínimas garantias da previdência e das mínimas
condições de trabalho. Essa situação é reflexo do modo de produção capitalista que como já
discutimos, reflete-se em alienação tanto objetiva quanto subjetiva. Na ordem subjetiva,
podemos considerar, no caso especifico da Educação, problemas de ordem física, recursos
financeiros, formação do professor, formação continuada, perca de garantias a muito
conquistadas e no plano objetivo, a massificação e a pauperização da Educação como um todo
que refletem e repercutem no processo de adoecimento dos docentes, aqui dispostos nos dados,
que nos dizem que esses profissionais vêm adoecendo, vêm utilizando medicamentos em geral
associados a problemas de ordem psicológica e que estes têm relação com o trabalho. A pergunta
que nos cabe fazer e refletir: Até que ponto estes docentes vêm utilizando medicamentos como
forma de enfrentamento das condições desumanizadoras perpetuados pelo modo de produção
capitalistas?

Dentro da pesquisa realizada, os participantes consideraram que as formas de relação


existente entre a atividade profissional e o adoecimento, foram: condições do trabalho (41%),
problemas físicos (12%), indisciplina dos alunos (8%), desestrutura familiar (3%) e fobia ao se
aproximar da escola (2%). Vale ressaltar que nessa questão dois professores responderam duas
das alternativas colocadas. As informações apresentadas pelos participantes da pesquisa sobre o
uso de medicamentos e a relação que estes fazem com o trabalho e a escola, reforçam o que foi
abordado anteriormente, de que a Medicina tem atingindo várias camadas da sociedade,
sobretudo o espaço escolar, pois quase 50% dos professores fazem uso de algum medicamento,
sendo um percentual bastante significativo destinado ao uso de drogas para sanar problemas
relacionados à depressão, à ansiedade etc. Isso se configura como processo de medicalização, em
que questões da vida cotidiana estão se transformando em objetos da Medicina ou, como
apontam Kantoviski e Vargens (2010), o médico tem se apropriado dos problemas cotidianos e
explicando-os por meio de conhecimentos da Medicina.

Fonte: Elaborado pela autora com dados extraídos de pesquisa realizada com 223 professores da região norte do
Estado do Paraná (2016).
Desta forma, nas relações da atividade com o adoecimento, percebe-se que as condições
do trabalho e os problemas físicos decorrentes do processo de trabalho são os principais fatores
que acarretam adoecimento, e denotam não só falta de recursos financeiros e físicos das escolas,
falta de formação deste professor, tanto a acadêmica quanto a continuada, e que geram
adoecimentos de ordem física e psicológicas. A falta de valorização profissional, o excesso de
trabalho, o estresse do dia-a-dia, são fatores que fazem com que o docente perca o sentido do
processo de trabalho, e que este profissional seja alienado frente a estas condições. A alienação
nos demonstra que ao mesmo tempo em que a produção global se diversifica e se enriquece, a
produção/desenvolvimento pessoal se empobrece cada vez mais, fazendo com que na prática
pedagógica especificamente, venha havendo uma cisão entre o sentido/significado do trabalho
docente, e esta é resultado não só das condições do trabalho, da desestrutura familiar, da
indisciplina dos alunos, dos problemas físicos destes docentes e sim são resultado do modo de
produção capitalista no qual estamos inseridos e das consequências que este gera (Leontiev,
1978).

A escola e as suas multideterminações (sociais, políticas, culturais, etc) são


desconsideradas nas análises dos problemas que perpassam o contexto escolar, mantendo-se
dentro de uma visão biologicista e psicologizante, com centralidade no individuo, aqui, no caso,
alunos e professores. O que é interessante nas respostas dos professores que estabelecem relação
entre o adoecimento do professor e as condições de trabalho, é que a indisciplina dos alunos não
é a maior causa dos problemas. Na aparência, muitas vezes, é isso que é colocado, mas, na
essência, são as condições de trabalho que mais incomodam os professores. Mas que condições
são essas?

Condições do processo de trabalho do professor no modo de produção capitalista

Como podemos constatar, as condições de trabalho foram elencadas como aquelas que
mais provocam o adoecimento do professor. Hoje, o acirramento nas condições de trabalho tem
como consequência a produção de problemas de saúde no trabalhador.
Antunes e Praun (2015), ao discutirem sobre a relação entre trabalho e adoecimento,
afirmam que a flexibilização, que influencia no adoecimento da classe trabalhadora, se
fundamenta na forma de organização do capitalismo atual. Ela teve impacto nas relações de
trabalho, [...] na diminuição drástica das fronteiras entre atividade laboral e espaço da vida
privada, no desmonte da legislação trabalhista, nas diferentes formas de contratação da força de
trabalho e em sua expressão negada, o desemprego estrutural. (Antunes; Praun, 2015, p.
423,424).

Algumas características desta flexibilização remetem aos seguintes pontos: a jornada de


trabalho se torna mais densa, os trabalhadores têm que executar sozinhos o que era feito por um
grupo, os salários estão cada vez mais vinculados ao cumprimento de metas, ocorre uma
terceirização do trabalho. Tudo isso causa maior instabilidade e insegurança. Essa intensificação
não ocorre somente nas indústrias, nas empresas, de forma geral. Ela também invade a
instituição educativa, tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior.

No caso da escola, observamos esse acirramento quando temos uma sobrecarga de


atividades; tripla jornada de trabalho; falta de equipamentos para ministrar aulas, para além do
uso de giz e quadro negro; flexibilização da atividade docente, que leva o professor a ser
contratado como professor substituto, por tempo determinado, entre outros pontos. Com tal fato,
o que constatamos é que professores são obrigados a se deslocarem de uma escola para a outra,
com sobrecarga de aulas para conseguirem adquirir um salário maior, além da pressão por obter
índices em sistemas de avaliação.

No que tange ao trabalho do professor, este não se percebe mais inserido no processo de
ensino, exatamente porque a mercantilização da educação leva a escola a atuar como uma
empresa, reproduzindo os modelos privatizantes da sociedade capitalista e não como o local do
conhecimento, em que o professor tem um papel relevante, isto é, de fazer a mediação entre o
conhecimento e o aluno. Respaldados pela Teoria Histórico-Cultural e pela Pedagogia Histórico-
Crítica, defendemos que esta é a principal função do professor. De acordo com Vigotski (2000),
compete a este atuar na zona de desenvolvimento próximo, ou seja, naquilo que está em vias de
se efetivar, naquilo em que os alunos precisam de mais mediações e, desta forma, possibilitar o
desenvolvimento psicológico das funções superiores e humanizar o indivíduo.
No modo de produção capitalista, principalmente com a divisão do trabalho, com a
fragmentação do processo de trabalho, ocorre o estranhamento deste trabalho e o docente não se
vê mais como partícipe do processo de humanização do aluno. Ele mesmo, nestas condições em
que desenvolve sua atividade pedagógica, tem poucas condições para se humanizar – no sentido
de se apropriar das elaborações mais desenvolvidas criadas pelos homens. Atuar em uma
instituição que tem por finalidade a socialização dos conhecimentos, mas na qual o trabalhador
não consegue, devido a condições objetivas e subjetivas, cumprir com sua função de ensinar, traz
muitos desgastes. O adoecimento, muitas vezes, pode se tornar uma forma de resistência ao
processo de sucumbir às péssimas condições de trabalho, pode ser uma forma de não compactuar
com uma sociedade que desvaloriza o trabalhador e o conhecimento. No entanto, quase sempre é
entendido como um problema individual, do sujeito que não consegue lidar com as dificuldades
que o processo histórico produz.

O educador, ao adentrar a sala de aula, encontra um educando, um aluno concreto. Isto


significa, de acordo com Saviani (2012), que o indivíduo que lhe cabe educar sintetiza em si as
relações sociais próprias da sociedade em que vive e em que se dá o processo de sua educação. O
que ocorre é que tanto a formação profissional e a continuada possibilitada aos professores não
permite a esse profissional, muitas vezes, educar os alunos, visto que a luz dessa concepção aqui
defendida o currículo escolar deve dispor de uma forma que viabilize a assimilação, pelos
alunos, do conjunto das objetivações humanas. E o professor, ao lidar com o aluno concreto,
precisará ter domínio dessas objetivações para realizar aquela colaboração inicial do adulto para
com a criança, que Vigotski (2000) discute em sua obra, ou seja, que o professor deve colaborar
no desenvolvimento da zona proximal do aluno, a qual se refere àquilo que ele pode aprender
com a ajuda de outra pessoa. Como visualizamos na política atual, pautada nos moldes
neoliberais, o professor não tem nessa forma de sociabilidade a função de humanizar os sujeitos.
A prática docente deve ser realizada de forma parcial e voltada para a formação de indivíduos
capazes de adentrar o mercado de trabalho de forma eficiente. As políticas educacionais desde
1990 vêm incorporando esse ideário na prática educativa, preconizando a formação de
indivíduos pautadas nos ideais de eficiência, qualidade, rapidez e objetividade que a filosofia
neoliberal prega.
O discurso da qualidade e eficiência parece, no entanto, mascarar a realidade prática da educação
brasileira. As estratégias supostamente inclusivas que buscam índices que melhorem as
estatísticas educacionais, não correspondem necessariamente a uma ética educacional que prega
que o ensino de qualidade deveria gerar alunos preparados em termos de conhecimento do
patrimônio cultural da humanidade. Para isto, vale a utilização de estratégias, no mínimo,
questionáveis, tais como a ciclagem, a aceleração de fluxo, a progressão automática ou
continuada, as classes de aceleração, os cursos supletivos com vídeo aulas e os cursos superiores
com Ensino a Distância, por exemplo. Estratégias estas aplicadas e criticadas por seus principais
executores: os professores (Pereira, 2015, p. 49).

Assim, não é difícil verificar que o entorno em que se situa a Escola, em todas as suas
dimensões e níveis, oferece desafios de monta àqueles que tomaram a tarefa educativa em suas
mãos. Não somente no sentido do ensino propriamente dito, mas dos embates inerentes à
conquista de melhores condições de trabalho e à compreensão da rede de pensamentos que
embasam política e filosoficamente a Educação, produzindo professores e estudantes
desavisados da manipulação ideológica em função da manutenção do sistema capitalista,
usurpando o sentido libertador que o processo educativo poderia engendrar, precarizando e
deturpando o trabalho educacional. Porém, como analisa Saviani (2012), não vale apenas
constatar fatos a respeito da situação da educação brasileira, mas, principalmente, dar o passo
adiante. Ao observarmos essa situação dentro de uma concepção de totalidade, compreendemos
que este próximo passo necessita necessariamente passar pela emancipação da classe
trabalhadora como um todo. Não parece ser essa uma tarefa exclusiva da educação, uma vez que
tal tarefa se insere em um contexto muito mais amplo e reflete as articulações sociais e o
pensamento de um grupo que se concretiza dentro e para além dos processos educativos formais.
Porém, é claro que a Educação pode se tornar também um espaço de enfrentamento, pois se
articulada a um projeto coletivo embasado no entendimento da estruturação do sistema
capitalista, como forma de enfrentamento e de práticas que se encontrem à luz da história e da
realidade colocadas pela sociabilidade capitalista.

À título de conclusão

Pretende-se que esta reflexão chegue até os professores que estão sendo medicalizados,
considerando que se tem explicado o adoecimento que decorre das condições sociais, da forma
como o trabalho está organizado, como situações no âmbito individual ou partindo de um
diagnóstico prescrito pelo médico, desconsiderando os fatores sociais que influenciam esses
fenômenos.

O trabalho, no capitalismo, é determinado pelo processo de produção, no qual acidentar e


adoecer são resultantes de relações sociais em que o trabalhador se torna apêndice da máquina. O
trabalho que deveria gerar prazer, felicidade, na ordem do capital, causa fadiga, doenças,
acidentes, sofrimentos físicos e mentais. Muitos acidentes de trabalho, quando não matam,
podem deixar mutilações e dependências. A inquietação e a defesa da saúde do trabalhador
devem ser encaradas como luta da classe trabalhadora, que busca avançar nas conquistas de
melhorias nas políticas públicas, voltadas para atender a saúde do trabalhador, como condição
emergencial.

Nos mais diversos espaços produtivos, notamos que a saúde do trabalhador padece de
todos os castigos impostos à força de trabalho – reduzida não só à condição de mercadoria, mas
de principal mercadoria do modo de produção capitalista –, pois é da extração da mais-valia, que
as condições são propícias para acumulação de capital. Hoje, apesar dos avanços significativos
no campo conceitual que apontam um novo enfoque e novas práticas para lidar com a relação
trabalho e saúde, consubstanciados sob a denominação de “saúde do trabalhador”, depara-se, no
cotidiano das lutas sociais do trabalho, com as hegemonias da Medicina do Trabalho e da Saúde
Ocupacional. Tal fato coloca em questão a já identificada distância entre os interesses
antagônicos da sociedade capitalista, sobretudo num campo potencialmente ameaçador, em que a
busca de soluções quase sempre se confronta com interesses econômicos arraigados e
imediatistas, que não contemplam os investimentos indispensáveis à garantia de uma política em
defesa do trabalho. A partir dessa constatação, cabe aproximar o debate sobre as alterações nas
condições e relações de trabalho que intensificaram as doenças do trabalho, na
contemporaneidade (Lara, 2011).

De uma forma geral, as principais doenças do trabalho são: lesão por esforço repetitivo
(LER), os distúrbios mentais provocados pelo estresse, as lombalgias, as perdas auditivas, os
problemas oculares. As “novas” gestões da força de trabalho, a desregulamentação e a
precarização das relações sob a reestruturação produtiva e o neoliberalismo, estão limitando os
trabalhadores pelo medo do desemprego. A competitividade é acirrada por um posto de trabalho,
o que interfere na constituição da “consciência de classe” e no reconhecimento que constrói as
subjetividades que se nutrem pela lógica do trabalho. Diante desse quadro, a intensificação do
trabalho, a polivalência e a submissão impõem-se de forma ululante, o que origina uma situação
propícia a mudanças do perfil patológico dos trabalhadores. Ao mesmo tempo em que é
anunciado o “fim do trabalho”, observa-se o surgimento de patologias decorrentes da cada vez
maior sobrecarga: Burnout, as LER, as alterações cognitivas, as tentativas de suicídio nos locais
de trabalho, os indicadores de estresse no trabalho (Lara, 2011). Os dados expostos neste artigo,
nos apresentam essa realidade, quando nos mostra que as condições do trabalho e os problemas
físicos deste, são os principais causadores dos adoecimentos dentro do espaço de trabalho do
docente.

O trabalho, especificamente o trabalho docente, mas considerando neste interim o


trabalho em geral, e a saúde do trabalhador, no modo de produção capitalista adquire uma nova
configuração, este trabalho passa a ser estranho aos sujeitos, concebido enquanto uma atividade
social dotada de sofrimento, exploração e destruição das capacidades emancipatórias do
indivíduo. A medicalização é resultado do intenso sofrimento do trabalhador e dos modos de
exploração que este trabalho adquire na sociabilidade capitalista. Neste modo de produção a
interseção do trabalho e da saúde passa a ter uma relação contraditória, na qual, quanto mais o
trabalhador vende sua força de trabalho, menos saúde possui (Lara, 2011).

Entretanto, como nos faz refletir a autora Zeigarnik (1979, 1981) deve-se levar em
consideração os aspectos saudáveis do indivíduo, ao visualizarmos aspectos adoecidos do
sujeito, devemos partir daquilo que se encontra intacto, que se encontra saudável. Ao reabilitar
ou tratar indivíduos com certas enfermidades, deve-se levar em conta não somente os aspectos
comprometidos de determinadas funções, mas sobretudo, considerar o que há de intacto, as
esferas que se mantém saudáveis. Nesse caso, ao estudar-se o adoecimento dos professores,
temos que ter em conta não apenas os sintomas e suas queixas que se apresentam nas variadas
patologias psicológicas que os atingem, mas também considerar, de igual forma, os aspectos
sadios presentes nesses sujeitos. A necessidade que se impõe é de criar estratégias coletivas de
enfrentamento da situação posta e de lutar para que o trabalho, enquanto essência do homem,
caminhe para a emancipação e não para a alienação.

Referências

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Sociedade. N. 123, p. 407-427. São Paulo.

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medicamentos. Revista Saúde Pública. São Paulo, v. 17, n. 5 p. 377-386.

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ensino de História. 123p. Tese de doutorado. Faculdade de Educação da Universidade Estadual
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Facci, M., Ribeiro, M. & Silva, S. (2012) Medicalização na escola e fracasso escolar: novamente
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estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado: Universidade Estadual Paulista, São Paulo – SP.

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Zeigarnik, B. (1979). Introducción a laPatopsicologia. La Habana: Científico Técnica.

Zeigarnik, B. (1981). Psicopatologia, Madrid: Akal Editor.

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conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência e Saúde Coletiva (Impresso), v.19, p. 1859-
1868.
ADOECIMENTO/SOFRIMENTO DO PROFESSOR UNIVERSITÁRIO: UMA
PESQUISA NA SCIELO

Marina Beatriz Shima Barroco Esper * – Departamento de Psicologia, UEM, Maringá – PR, Brasil.
Marilda Gonçalves Dias Facci* - Departamento de Psicologia, UEM, Maringá – PR, Brasil.
contato: marina.shima@gmail.com/mgdfacci@uem.br

Palavras-chave: Professor universitário. Adoecimento. Psicologia histórico-cultural

Introdução
De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), feita pelo Ministério do
Trabalho, a profissão “Professor Universitário” é identificada e descrita como:
Ensinam, articulando o processo de ensino-aprendizagem na formação de
profissionais da educação; planejam atividades relativas a cursos e pesquisas;
realizam pesquisas científicas sobre o campo educacional; supervisionam
formação pedagógica em estágios; orientam alunos; avaliam o trabalho
acadêmico científico; coordenam atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Produzem material de trabalho; prestam atendimento às demandas da
comunidade na área da educação escolar e não-escolar (educação formal e
informal); participam de atividades administrativas, atualizam-se na área e
comunicam-se oralmente e por escrito. (BRASIL, 2017).

Diante desta descrição, verificamos que são vastas as atividades a serem realizadas e
alcançadas pelo professor do ensino superior. Nos indagamos: como esses profissionais estão
desempenhando essa função? Que relação tem a atividade docente com o adoecimento que tem
se evidenciado nas universidades? Eles estão cientes das contradições postas à sua profissão? O
contexto vivenciado é de uma realidade de mercantilização do saber, de produtivismo (onde a
moeda de troca e de ascensão são produções acadêmicas desenfreadas), onde o ensinar, que seria
o foco principal do professor, muitas vezes é feito a duras penas diante do descaso com as
condições objetivas e subjetivas que este processo exige.
Levando em conta esses pontos, o presente trabalho tem como objetivo apresentar alguns
dados acerca de uma pesquisa realizada na Scientific Electronic Library Online - Scielo a
respeito do adoecimento/sofrimento psíquico, mais precisamente do professor da educação
superior, tendo como base teórica a Psicologia Histórico-Cultural. Acreditamos que esta teoria
nos fornece ricas contribuições para compreensão da temática visto que ela se baseia em uma
concepção de homem historicizada, ou seja, determinada pelas condições materiais que o sujeito
se encontra, não o descontextualizando portanto, do lugar e tempo que ele ocupa.
Para tal estudo, primeiramente iremos discorrer sobre o desenvolvimento humano para
Vigotski, depois, apresentaremos os conceitos de sentido, significado e motivos nos apoiando
nos escritos de Leontiev, para ao final discorrer sobre a concepção de adoecimento para Vigotski
e Zeiganik. Posteriormente, iremos apresentar alguns dados coletados sobre o que vem sendo
dito a respeito do sofrimento/adoecimento do professor universitário nos periódicos da biblioteca
eletrônica Scielo, e assim, iremos fazer uma análise dos dados obtidos a partir de autores que
tomam como base de pensamento a Psicologia Histórico-Cultural.

Desenvolvimento humano, sentido e significado


A partir dos pressupostos da Psicologia Histórico Cultural, Tuleski (2002) explicita que
L. Vigotski, autor russo que liderou esta corrente psicológica, tinha como objetivo central criar
uma Teoria Psicológica marxista, utilizando-se do materialismo histórico dialético como método.
Em suma, Vigotski pretendeu criar uma teoria psicológica compatível com as transformações
históricas do homem, fazer uma análise histórica para o entendimento do comportamento
humano, criando uma nova forma de se compreender o desenvolvimento humano. Diante deste
objetivo, Vigotski refutava todos determinismos biológicos e trazia à tona estudos que
comprovassem o caráter histórico-cultural do psiquismo. Isto porque, como explica Tuleski
(2002), seria impossível sustentar uma psicologia que apregoa a impossibilidade de mudança do
homem (que o psiquismo já está dado a priori) dentro de uma sociedade revolucionária que
estava surgindo na URSS. A autora afirma: “Comprovar que não só a organização social, mas
também a natureza humana era passível de transformação e de revolucionar-se era fundamental”.
(TULESKI, 2002, p.95). Uma psicologia com fundamentos biologicistas tornaria incapaz a
transformação da URSS em socialista, visto que precisava que uma nova consciência se
formasse nos homens desta nova sociedade e a Psicologia Histórico-Cultural trazia fundamentos
para que esta transformação de consciência ocorresse.
Em concordância, Leontiev (1978) em “O desenvolvimento do psiquismo” tem como
objetivo maior defender a natureza sócio-histórica do psiquismo humano, refutando concepções
biologizantes defendidas nas teorias psicológicas de sua época. Tomando uma postura
materialista dialética, o autor retoma todo o percurso do desenvolvimento do psiquismo animal
para apresentar sua tese da evolução do psiquismo humano. Desta forma, Leontiev (1978)
conclui que a modificação essencial que diferencia o psiquismo animal da consciência humana
está nas leis que presidem o desenvolvimento do psiquismo. Nos animais, estas leis são as da
evolução biológica e no homem, são as leis do desenvolvimento sócio-histórico. Leontiev (1978)
defende, então, que diferente dos animais, o homem não é determinado biologicamente. Para se
estudar o psiquismo humano deve-se sim levar em conta seu aparelho biológico, entretanto, não
será ele que irá formar as características propriamente humanas, mas irá apenas garantir que elas
tenham a possibilidade de se formar por meio do desenvolvimento sócio-histórico.
Tomando como base a natureza sócio histórica do psiquismo humano, o autor assevera
então, que a característica propriamente humana não é inata ao homem, assim como é o aparelho
biológico. Para se humanizar, é necessário que o indivíduo se aproprie das aquisições do
desenvolvimento histórico da humanidade, em particular do pensamento e conhecimento
humano. Desta forma, Leontiev (1978) está também refutando os pressupostos da psicologia
idealista que prega que a criança possui, por natureza, a faculdade de efetuar processos
propriamente humanos, ou seja, processos mentais interiores. O autor defende que é necessário
partir do pressuposto de que a atividade mental da criança não é inata, mas sim construída. Será
somente a partir do processo de apropriação do mundo dos objetos e dos fenômenos criados
pelos homens no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade, que irá surgir a formação
de faculdades e funções especificamente humanas.
Ainda ressaltando esta ideia, Vygotsky (2007) defende que depois do Homo Sapiens, o
desenvolvimento biológico foi reduzido, e agora são as leis sociais que provocam muito mais
desenvolvimento no homem. Desenvolvimento tal que, os seres humanos são criados,
“determinados”, pela sociedade na qual vivem.
Recorremos agora a Leontiev (1978) para a discussão sobre o desenvolvimento do
homem, da consciência humana, pois entendemos que é necessária a compreensão dos conceitos
de sentido e significado pois a sua relação é um dos principais componentes da estrutura da
consciência. Significação é entendida como o reflexo da realidade que não depende da relação
individual do homem com ela. Ao nascer, o homem encontra um sistema de significações
prontos, elaborados historicamente e pode se apropriar deles. “A significação é, portanto, a
forma sob a qual um homem assimila a experiência humana generalizada e refletida”.
(LEONTIEV, 1978, p.94).
A questão individual desta apropriação diz respeito ao sentido que é determinado
individualmente a partir das apropriações ou não das significações, do grau em que são
apropriadas e o que elas representam para o sujeito. O autor ainda argumenta que para se
encontrar o sentido pessoal de alguma atividade para o sujeito, é necessário descobrir os motivos
que lhes correspondem. Motivo aqui é entendido como incitador, orientador da ação do homem.
A relação do motivo com a atividade está em que o motivo desempenha papel formador
de sentido pessoal. A característica especificamente humana da atividade é a de ser motivada.
Quando se perde o caráter motivador e torna-se em impulsivo, se perde a complexa organização
da atividade humana e converte-se em apenas impulsos irracionais, e, essas modificações na
atividade consequentemente trazem modificações na personalidade.
Ainda traçando análise entre motivos, sentido e significado Leontiev (1978) discorre que
a alienação do homem tem como consequência a cisão da relação entre sentido e significado. Em
uma sociedade de classes, na qual o homem nem sempre tem acesso às produções, tanto
materiais como no plano das ideias, este sente-se estranhado nas relações de trabalho:
“A alienação da vida do homem tem por consequência a discordância entre o resultado
objetivo da atividade humana e o seu motivo. Dito por outras palavras, o conteúdo
objetivo da atividade não concorda agora com o seu conteúdo subjetivo, isto é, com
aquilo que ela é para o próprio homem. Isto confere traços psicológicos particulares à
consciência”. (LEONTIEV, 1978, p.122).
Tomando estes apontamentos como ponto de partida, podemos questionar: Qual é o
significado da atividade docente? O que é exigido das atividades do professor universitário nos
documentos oficiais do Brasil? Como esta atividade se caracteriza? Como podemos entender o
sofrimento/adoecimento do professor?

O adoecimento psíquico a partir da psicologia histórico-cultural

Zeigarnik (1979), autora que se dedicou aos estudos das psicopatologias a partir do viés
vigotskiano, concebe o adoecimento psíquico como algo que pode se desenvolver a partir de um
determinado modo de formação da personalidade, dependendo de todo o processo em que as
capacidades psíquicas foram construídas na vida do indivíduo. Na defesa da Psicologia com base
no materialismo histórico e dialético, a autora compreende que a formação dos processos
psíquicos não se dá de forma natural, não está intrínseco ao homem, mas é construído a partir da
apropriação do mundo dos objetos e fenômenos criados pela humanidade
A autora discorre que ao adoecer, o homem acaba sofrendo mudanças em sua atividade e
como consequência disso, muda seu componente de personalidade. A mudança da personalidade
em uma relação dialética, muda também suas atitudes, suas necessidades e seus interesses.
Zeigarnik (1979) afirma que uma modificação patológica de personalidade pode ser identificada
quando diante da influência da enfermidade, a pessoa diminui os seus interesses e necessidades;
quando é indiferente diante de coisas que antes lhe inquietavam; quando os seus atos não têm
objetivos, suas ações são mediatas; quando tem dificuldades de valorar e controlar
adequadamente seu comportamento; e, também, quando modifica sua atitude consigo mesmo e
com o mundo que o circunda. Estas atitudes, segundo a autora apontam para uma modificação de
personalidade.
Ao tratar sobre a mudança da personalidade, Zeigarnik (1979) também salienta que a
modificação das emoções dos afetos intensos, pode levar o indivíduo a adquirir significados
distorcidos de seus objetivos e propriedades. Não é concebível a existência de pensamento (que
compõe a personalidade do sujeito) isolado das necessidades, motivos, aspirações, orientação e
sentimentos da pessoa em sua totalidade. Resgatando os estudos de L. Vigotski, Zeigarnik
(1979) compreende que o pensamento não é formado a partir de associações de ideias, mas sim,
da esfera motivadora de nossa consciência, no qual nesta está inserido nossos desejos e
necessidades, interesses e motivações e nossos afetos e emoções. E estes por sua vez são
construídos na relação dialética entre indivíduo e sociedade.
Verificando a importância que os motivos exercem sobre a personalidade do homem,
Zeigarnik (1979) compreende que é imprescindível estudar a modificação da cadeia de motivos e
necessidades. A autora adota esta análise como sua metodologia para alcançar o estudo da
atividade e por conseguinte, da personalidade do sujeito adoecido. Ela entende que uma vez que
ocorrem modificações nas esferas motivadoras, muda-se os pontos de vista, interesses, valores e
personalidade da pessoa, ou seja, há uma mudança na estrutura hierárquica dos motivos.
Zeigarnik (1979), esclarece que o motivo possui duas funções: incitadora e significadora.
A união deles é o que proporciona à atividade humana o caráter de atos conscientemente
regulados. A debilitação e alteração destas funções conduz a modificação da atividade e em
consequência, da personalidade. A autora ainda afirma que a degradação da personalidade
consiste na alteração da estrutura da própria necessidade condicionada socialmente. Ela se
converte em menos mediata, menos assimilada, perde a estrutura hierárquica dos motivos,
modifica sua função significadora, desaparecem os motivos a largo prazo.
Com esta defesa de que a alteração dos motivos leva a alteração da atividade do homem,
Zeigarnik (1979) rompe com uma visão biologicista e afirma que a vida profissional de muitas
pessoas adoecidas se dá pelo fato de seus motivos pessoais estarem modificados e não porque
não possuem capacidades intelectuais.
Fica claro que as motivações dos professores interferem na sua prática pedagógica. Não
compreendendo esta motivação pessoal de maneira individualizada, mas sim construída
socialmente no indivíduo, podemos verificar que a afetividade do professor deve ser considerada
para o estudo do seu sofrimento/adoecimento. A partir dos pressupostos da Teoria Histórico-
Cultural, consideramos que o processo ensino-aprendizagem é permeado pela afetividade. O
afeto não é visto como nocivo à aprendizagem, mas sim como um agente que forma uma unidade
com a função cognitiva.
E esta visão de unidade entre afetivo-cognitivo nos leva a refletir sobre a importância da
afetividade para o processo educativo (GOMES & MELLO, 2010). Deste modo, torna-se
imprescindível o estudo sobre o sofrimento/adoecimento do professor universitário causado pela
execução de suas atividades, uma vez que compreendemos que esta problemática alcança além
da vida psíquica dos professores, também a sua prática e consequentemente o processo de
ensino-aprendizagem.
O que estamos tentando resgatar ao apresentar as ideias dos autores citados é que o
professor está passando por um processo de adoecimento devido a ruptura entre sentido e
significado da sua prática docente. E isto se dá pela forma em que está sendo organizada a
prática pedagógica e as próprias relações de trabalho imposta pelo sistema capitalista.

Adoecimento/sofrimento do professor universitário na biblioteca eletrônica de periódicos


Scielo
Para um maior aprofundamento e atualização sobre o que vem sendo estudado e
pesquisado a respeito do adoecimento/sofrimento do professor universitário, foi feita uma
pesquisa na biblioteca eletrônica de periódicos SCIELO (http://www.scielo.br). As pesquisas
foram realizadas com diversas palavras-chave e suas combinações com o intuito de se alcançar o
maior número de trabalhos. Nas palavras-chave “Adoecimento Professor” encontramos 17
artigos, “Mal-Estar Docente” (10 artigos), “Síndrome de Burnout +Professor” (4 artigos) e
“Adoecimento + Professor Universitário” (2 artigos), “Trabalho + Professor Universitário” (60
artigos) e “Produtivismo” (56 artigos).
Verificamos um total de 149 trabalhos, sendo que 15 deles encontravam-se repetidos,
sendo então, 134 artigos. Destes trabalhos, verificamos que 100 artigos tratam de assuntos que
não se enquadram na temática do sofrimento/mal-estar/adoecimento do professor universitário.
Por outro lado, tivemos o resultado de 18 artigos que tratavam da temática em questão focando-
se nos professores da educação básica e encontramos 16 artigos que se tratavam especificamente
do professor universitário.
Nestas produções científicas podemos constatar que o que foi mais frequente nas
discussões dos autores, 10 artigos (BERNARDO, 2014; BIANCHETTI & VALLE, 2014; LEITE
&NOUGUEIRA, 2017; LEITE, 2017; LEMOS, 2011; OLIVEIRA et al, 2017; PIOLLI et al,
2015; SILVA & MANCEBO, 2014; TREIN & RODRIGUES, 2011; VILELA et al, 2013) diz
respeito à sobrecarga e precarização do trabalho do professor com o processo de mercantilização
da educação, com o chamado “capitalismo acadêmico”. Este diz respeito ao processo de
mercantilização do saber, onde a universidade se assemelha às indústrias na produção de
conhecimento.
Ainda se verificou que o tema do produtivismo acadêmico foi muito questionado e visto
como um dos principais agentes de sofrimento e adoecimento dos professores universitários. De
maneira geral, os artigos defendem que o estímulo ao produtivismo pelas políticas educacionais
que vem sustentando a universidade brasileira tem dificultado as relações entre os pares, criando
competição entre os professores levando à máxima exploração do docente e ao individualismo.
Constatamos que é recorrente, 10 artigos, a discussão sobre a competição entre pares gerado no
processo de busca forçada por publicação. (BERNARDO, 2014; BIANCHETTI & VALLE,
2014; GODOI & XAVIER, 2012; LEITE &NOUGUEIRA, 2017; LEITE, 2017; LEMOS, 2011;
OLIVEIRA et al, 2017; PIOLLI et al, 2015; PIZZIO & KLEIN, 2015; SILVA & MANCEBO,
2014).
Outro ponto de bastante discussão, nove artigos, diz respeito à predominância do
quantitativo sobre o qualitativo. (BERNARDO, 2014; BIANCHETTI & VALLE, 2014; GODOI
& XAVIER, 2012; LAGO et al, 2015; LEITE, 2017; RIGO, 2017; SILVA & MANCEBO, 2014;
TREIN & RODRIGUES, 2011; VILELA et al,2013). Isso se refere à importância que se tem
dado à quantidade de trabalhos publicados em detrimento da qualidade destes. Visto que a
avaliação dos docentes tem sido feita através da quantificação de trabalhos publicados, os
professores se veem obrigados a aligeirar o processo de produção científica, muitas vezes
perdendo a qualidade e a função da pesquisa, este fenômeno pode ser nominado como
“quantofrenia”. Diante disso, coloca-se em pauta a perda ou distanciamento do papel social das
universidades, e principalmente, o papel do professor (oito artigos), visto que as produções
acadêmicas ocupam lugar de primazia em detrimento do processo de ensino-aprendizagem
(BIANCHETTI & VALLE, 2014; GODOI & XAVIER, 2012; LEITE, 2017; LEMOS, 2011;
OLIVEIRA et al, 2017; PIZZIO & KLEIN, 2015; SILVA & MANCEBO, 2014; TREIN &
RODRIGUES, 2011).
Relacionado ainda com o processo de perda do papel do professor, identificamos que as
pesquisas alegam (sete artigos) que o aumento das incumbências acadêmicas do docente é um
fator que se leva em consideração quando se estuda sobre o sofrimento/adoecimento do professor
universitário. Diante de múltiplas tarefas gerenciais, burocráticas, o professor se vê distanciado
do sentido de sua prática, exigindo dele, portanto, habilidades e tarefas das quais ele não se vê
preparado para realizar (BORSOI & PEREIRA, 2013; GODOI & XAVIER, 2012; LEITE
&NOUGUEIRA, 2017; LEMOS, 2011; PIOLLI et al, 2015; PIZZIO & KLEIN, 2015; VILELA
et al, 2013).
É recorrente também a discussão de que a variedade de incumbências acadêmicas somada
à alta exigência por produção, que modelam a forma de funcionamento da universidade na
atualidade, tem afetado gravemente a qualidade de vida dos docentes. Os autores discutem sobre
o aumento das horas semanais trabalhadas para dar conta das demandas das atividades docente, a
invasão do trabalho na vida privada e falta de tempo para o descanso, lazer e vida social
(BERNARDO, 2014; BIANCHETTI & VALLE, 2014; BORSOI & PEREIRA, 2013; GODOI &
XAVIER, 2012; LAGO et al, 2015; LEITE, 2017; LEMOS, 2011; OLIVEIRA et al, 2017;
PIZZIO & KLEIN, 2015).
Como forma de enfretamento, dois artigos trazem a proposta de maior envolvimento dos
sindicatos da classe dos professores com as políticas públicas que influenciam diretamente ou
indiretamente no trabalho docente (SILVA & MANCEBO, 2014; LAGO et al, 2015). Ainda é
vista a reflexão e estudo sobre o assunto com uma forma conscientização (quatro artigos) para
posteriores práticas efetivas que lutam contra a sobrecarga precarização do trabalho do professor
universitário (BERNARDO, 2014; BORSOI & PEREIRA, 2013; LAGO et al, 2015; LEITE,
2017). São poucas as sugestões trazidas para enfrentamento do sofrimento e adoecimento do
professor universitário. Podemos analisar este dado pensando que ainda estamos em um
momento em que tal temática está sendo explorada, analisada, conhecida, para que então
comecem a surgir propostas.
Apesar de escasso e recente (a publicação mais antiga é do ano de 2011) serem estes
trabalhos que tratam do sofrimento e adoecimento do professor, mais especificamente do
professor universitário, vemos que estes artigos apresentam ricas contribuições, com dados
objetivos, para começarmos a tecer discussões sobre este assunto. Entretanto, estes resultados
não são novidade.
Santos e Facci (2011) realizaram uma pesquisa na base de dados “Scielo” no ano de 2012
sobre o adoecimento e sofrimento do professor. Nos resultados, os pesquisadores identificaram
somente 14 trabalhos que enfatizavam o adoecimento psíquico. Doze trabalhos (85,7%)
relacionam o adoecimento do professor com as condições do local de trabalho em que estão
inseridos e o modo como este está organizado. Destes, sete trabalhos, ou seja, 50% dos artigos
encontrados, tematizaram o adoecimento psíquico do professor abordando a Síndrome de
Burnout, tanto em estudos elaborados a partir de pesquisas bibliográficas como a partir de
estudos de campo e pesquisa experimental.
Os autores chamam atenção para o fato de que os trabalhos encontrados
circunscrevem-se num período relativamente curto de tempo, de 2002 a 2011, sendo que nos
anos de 2003, 2007 e 2008 nenhuma publicação foi encontrada. Dos 14 artigos analisados, 13
foram publicados a partir dos anos de 2004, sendo que no ano de 2009 foram localizados cinco
artigos. Santos e Facci entendem que está havendo um acirramento das relações de trabalho, com
intensificação do processo de alienação, o que pode provocar nos indivíduos um sentimento de
impotência diante dos problemas postos pela realidade.

Considerações finais

Fischer (2009) ao tecer algumas discussões sobre a docência no ensino superior traz
questionamentos semelhantes aos que encontramos nos artigos que encontramos nas pesquisas.
Ela pergunta se não seria a universidade o lugar mais adequado de se tecer discussões coletivas,
problematizações e buscas de soluções para os problemas da sociedade. De maneira geral, vemos
a autora afirmando que a universidade tem perdido seu papel social, uma vez que o contexto em
que ela está inserida tem a levado a lugares no qual o ensino de qualidade, não é mais visto como
o objetivo final dela.
Ao tratar da universidade na sociedade Chauí (2001) deixa claro que a universidade é
uma instituição social e portanto, ela reflete e reproduz o modo de sociedade na qual ela está
inserida. A autora discorre que diante de uma sociedade pautada no modo de produção
capitalista, vemos que resta ao professor se enquadrar em modelos de trabalho que se assemelha
ao da indústria. As consequências se encontram no produtivismo e no esvaziamento da prática
docente. Ao se debruçarem nas pesquisas, a autora ressalta que, como a universidade se tornou
uma grande empresa capitalista, os professores têm buscado financiamentos grandiosos, de
pesquisas que são a favor de uma classe dominante. O saber para a emancipação, para o bem
coletivo é perdido de vista, uma vez que os professores são forçados a entrarem na lógica do
capital.
Vemos que este movimento que se formam nas universidades trazem grandes
consequências para o docente, uma vez que sua prática tem se distanciado, e muito, do que é
previsto socialmente à um professor, como podemos ver na C.B.O. Como exemplo, não vemos
nesta descrição, que o professor deve ter habilidades gerenciais para que suas pesquisas sejam
aceitas e financiadas. Como Lemos (2011) afirma, as contradições da prática docente estão no
fato de o professor ter de se ocupar de tarefas “administrativas” sem ter sido formado para isso,
luta contra os mecanismos de controle, mas se vê forçado a participar deles. Diante da
desvalorização de sua profissão, os docentes se veem forçados a buscar recursos externos para
que sua remuneração corresponda com o grau de seu conhecimento.
Para Facci (2000) é imperativo na nossa sociedade a desvalorização da escola e
consequentemente do trabalho do professor, ou mesmo um esvaziamento no seu trabalho. E
podemos transpor para as universidades. A sociedade capitalista não tem interesse em
possibilitar a socialização do saber que desvende suas contradições, não tem interesse que os
homens tenham consciência de sua condição de exclusão dessa sociedade e dos bens culturais.
Barroco (2007) defende que a superação da alienação envolve a busca de elementos que
vão para além da aparência e que se aproximam cada vez mais da realidade, e neste ponto a
ciência tem a sua grande relevância. A ciência permite que nos deparemos com o fenômeno para
além de suas aparências, para além da sua simples manifestação. Ao estudamos sobre o
adoecimento/sofrimento do professor, considerando este movimento de sucessivas aproximações
com a realidade, podemos constatar que compreender o sofrimento/adoecimento do professor de
forma individual e culpabilizante não é, definitivamente, o caminho fecundo para a superação
desta situação.
A partir da análise dos artigos encontrados na pesquisa na biblioteca eletrônica Scielo,
verificou-se que, apesar de se embasarem e diferentes perspectivas teóricas, todos os artigos
fazem uma análise do sofrimento/adoecimento do professor levando em consideração o contexto
na qual a universidade, e consequentemente, os professores estão inseridos. Não tomam portanto,
posturas de culpabilização, mas sim de busca de uma compreensão mais global e historicizada do
fenômeno. Verificou-se que a temática da mercantilização do saber é um dos elementos de
análise mais frequentes para a reflexão sobre o adoecimento/sofrimento do professor.
Leontiev (1978) nos esclarece que quando ocorre uma cisão entre sentido e significado,
há a formação de uma personalidade particular, diferenciada. Relacionando ao contexto desta
pesquisa, há uma alienação, uma cisão do significado da prática docente com o sentido pessoal
deste professor. Esta cisão pode ser percebida, ao lermos os trabalhos encontrados que relatam
que os professores perderam a motivação de dar aula para provocar o aprendizado no aluno,
passam a dar aula tão somente para garantir sua “sobrevivência” na academia.
Zeigarnik (1979) compreende o adoecimento como uma relação dialética da mudança da
personalidade com a mudança da atividade do homem. Para se entender estas mudanças, deve-se
debruçar sobre os motivos que tem movimentado as ações e as atividades do sujeito. Quando a
atividade perde seu caráter motivador e torna-se em impulso, perde-se a sua complexa
organização e converte-se em apenas impulsos irracionais.
Diante de uma sociedade que se apresenta constantemente contraditória, o professor que
perde o sentido pessoal de sua prática pedagógica alinhada com o significado do ensinar, corre o
risco do adoecimento. Sua prática torna-se alienada e carente de sentido, o que o leva a ter
motivações empobrecidas: a de somente sobreviver. A sua insatisfação e incapacidade de
conciliar o sentido pessoal com a significação de sua prática, devido ao sistema vigente, confere
mudanças significativas à sua personalidade, podendo levar ao sofrimento e/ou adoecimento.
Dar voz ao sofrimento do professor não implica somente auxilia-lo a partir de uma visão
individual. Levando em conta que a afetividade e cognição são inseparáveis, e que a afetividade
deve ser considerada como essencial no processo ensino-aprendizagem, uma vez que o professor
tem a sua área afetiva comprometida, torna-se claro que todo o processo de ensino-aprendizado é
comprometido.
Consideramos que a Psicologia e a Educação precisam contribuir para o entendimento
dessa problemática, por isso a proposição desse estudo. Estabelecer uma relação com o trabalho,
a formação da personalidade e o sentido da prática pedagógica levando em conta o contexto
histórico-cultural que produz sofrimento se faz urgente em tempos em que a universidade tem
perdido gradativamente seu papel social e consequentemente levado os professores a novas
formas de atividades que não correspondem diretamente com o ato de ensinar. Os dados obtidos
com a pesquisa auxiliarão na compreensão e proposição de ações que contribuam para que o
sentido da prática docente esteja vinculado ao significado real da universidade, relacionado à
apropriação dos conhecimentos pelos alunos.

REFERÊNCIAS

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PSICOTERAPIA COM FUNDAMENTO NA HISTÓRICO-CULTURAL: REVISÃO DA
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Elis Bertozzi Aita* (Financiamento Fundação Araucária/CAPES, Programa de Pós-Graduação em


Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil); Marilda Gonçalves Dias Facci
(Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil).
contato: elis_aita@outlook.com

Palavras-chave: Psicoterapia. Psicologia Histórico-cultural. Psicologia clínica.

Introdução
No presente texto, temos como objetivo apresentar os resultados de nossa pesquisa
sobre o estado da arte da psicoterapia fundamentada na Psicologia Histórico-Cultural no Brasil,
bem como nossas considerações sobre os artigos e demais materiais selecionados. Esta pesquisa
faz parte de nosso estudo de doutorado (em andamento), que tem como objetivo contribuir para a
construção de um arcabouço teórico que embase a prática psicoterapêutica clínica a partir da
Psicologia Histórico-Cultural.
Nossa proposta de estudo de doutorado, que está em fase de andamento, visa delinear o
trabalho clínico do psicólogo, suas possibilidades e objetivos. Entendemos que nossa atual
prática clínica, que é baseada na Psicologia Histórico-Cultural, pode retroalimentar
dialeticamente a teoria, impulsionando-a para a elaboração de um estudo sobre a psicoterapia
dentro desta perspectiva teórica. Compreendemos que é preciso construirmos uma prática clínica
baseada nos pressupostos filosóficos e epistemológicos que embasam esta perspectiva teórica,
visto que a atuação clínica do psicólogo também precisa estar de acordo com a visão de homem,
de mundo e de sociedade que esta teoria nos apresenta, e com os objetivos de transformação
social que a mesma propõe.
As elaborações teóricas de Vigotski, e as reflexões da Psicologia Histórico-Cultural, de
forma geral, têm sido estudadas principalmente na esfera da Psicologia Escolar. Ainda são
poucos os estudos desta perspectiva teórica em outros campos de atuação do psicólogo, como a
psicologia clínica, por exemplo. Tendo em vista este panorama, nossa proposta de pesquisa se
relaciona com estudos de outros pesquisadores que tem buscado ampliar a inserção da Psicologia
Histórico-Cultural e pensar esta teoria nos distintos campos de atuação do psicólogo.
Pesquisas sobre o desenvolvimento da personalidade, sobre a psicopatologia, sobre as
emoções e sobre o inconsciente são exemplos de análises que buscam compreender o homem em
sua complexidade e pensar a Psicologia Histórico-Cultural em diversos campos do conhecimento
da Psicologia. Tais reflexões são fundamentais para que possamos elaborar construtos teórico-
práticos a respeito da psicoterapia com crianças, adolescentes e adultos, a partir dessa
perspectiva teórica.
Como primeira fase de nossa investigação, nos propusemos a analisar o estado da arte
da psicoterapia fundamentada na Psicologia Histórico-Cultural. Para tanto, realizamos uma
pesquisa bibliográfica (que será melhor detalhada a seguir), visando elencar e analisar o que já
existe de produção teórica sobre o assunto no Brasil. É esta etapa da pesquisa que será
contemplada neste texto.

1 Metodologia
Para mapear o estado da arte das produções que discutem a psicoterapia a partir da
perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural no Brasil, realizamos uma pesquisa por palavras-
chave no Portal de Periódicos da Capes, que oferece acesso a textos completos disponíveis em
mais de 38 mil publicações periódicas, nacionais e internacionais. A busca foi realizada a partir
da palavra-chave psicoterapia somada a uma das seguintes palavras-chave: Vigotski (buscou-se
pelas diversas variações da grafia do nome deste autor); Luria, Leontiev, Psicologia Histórico-
Cultural, Teoria Histórico-Cultural e Psicologia Sócio-Histórica. Selecionais os artigos cujos
textos completos estavam disponíveis de forma gratuita. Após leitura cuidadosa dos resumos,
fizemos a exclusão de textos duplicados e de artigos que não tratavam da temática.
A mesma busca por palavras-chave também foi realizada no Google Acadêmico, a fim
de selecionarmos materiais diversos que não tenham sido publicados em revistas científicas,
como livros, resumos apresentados em congresso, dentre outros. Foram analisadas ainda
referências secundárias citadas pelos autores dos primeiros textos selecionados.

2 Resultados e análise dos dados


A partir da busca realizada, selecionamos 17 textos que discutiam sobre a psicoterapia
ou outras formas de intervenção terapêutica a partir da Psicologia Histórico-Cultural ou traçavam
alguma relação entre a psicoterapia e tal perspectiva teórica. Neste texto, apresentamos algumas
considerações sobre os textos selecionados de autores brasileiros1.
A partir da análise dos dados, agrupamos os textos em alguns eixos temáticos, a saber:
levantamentos bibliográficos; reflexões sobre a possibilidade de uma clínica vigotskiana; a arte
enquanto instrumento psicoterapêutico; a obra Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade de
Gonzáles-Rey; interlocução com outras perspectivas teóricas; grupo de pesquisa de Quintino-
Aires e Rita Leal.

2.1 Levantamentos bibliográficos


De forma geral, os autores que realizaram uma pesquisa bibliográfica sobre a psicoterapia
baseada na Psicologia Histórico-Cultural concluíram que existe pouca publicação sobre o
assunto. Lima e Carvalho (2013) realizaram uma pesquisa bibliográfica na base de dados SCIElo
e em outras bases de dados e analisaram publicações de estudiosos da teoria sócio-histórica a fim
de debater a possibilidade de aplicação desta abordagem à psicoterapia. As autoras destacam a
existência de alguns trabalhos clínicos de psicólogos baseados nesta perspectiva teórica, mas
concluem que existe uma escassez de material específico da área. Resgatam as pesquisas de
Vigotski sobre o pensamento e a linguagem, e consideram que estes estudos do autor são chave
para a compreensão da natureza da consciência humana, e devem se constituir como material de
análise para aqueles que queiram pensar a psicoterapia a partir desta vertente teórica.
Oliveira e Alves (2015) também realizaram uma pesquisa exploratórias sobre as
possibilidades de uma prática clínica na psicologia sócio-histórica. Os autores realizaram um o
levantamento bibliográfico nas bases de dados da CAPES, BVSPSI e SCIElo, concluindo que
existe pouca produção teórica específica na área. Destacam que a prática clínica baseada na
psicologia sócio-histórica deve se basear nos conceitos fundamentais desta teoria, tais como
subjetividade, atividade principal, mediação, sentidos e significados, zonas de desenvolvimento
entre outros, que devem ser pensados a partir do contexto específico da psicoterapia.

1Também foram selecionados artigos em inglês e espanhol que tratavam da temática, a partir da mesma pesquisa por palavras-chave. A análise
dos mesmos ainda está em andamento.
2.2 Reflexões sobre a possibilidade de uma clínica vigotskiana
Delari Junior (2006) apresenta um ensaio a respeito da clínica vigotskiana como forma de
um convite ao diálogo sobre a temática. Destaca que o processo terapêutico tem três etapas
básicas: (1) acolhida; (2) diagnóstico; (3) intervenção. Numa proposta vigotskiana, é importante
pensarmos na realização de uma boa acolhida, pautada na materialização do valor ético
inalienável de respeito à condição humana. Já com relação ao diagnóstico, seria importante que o
psicoterapeuta não rotule ou enquadre a situação vivida pela pessoa em uma matriz descritiva e
quase matemática dos sintomas, em síndromes e quadros psicopatológicos. Por fim, para o autor,
a intervenção deve ser conduzida por meio de um processo dialógico, semioticamente mediado,
no qual todos os envolvidos são ativos.
Delari Junior (2006) seleciona quatro conceitos meta-teóricos próprios da teoria
vigotskiana importantes para se pensar a atuação clínica: objeto de estudo; princípio explicativo;
unidade de análise; e modo de proceder a análise. Segundo o autor, a teoria vigotskiana nos
indica que o objeto de estudo é a consciência; o principio explicativo são as relações sociais; a
unidade de análise é a palavra significativa (unidade entre pensamento e fala, entre a consciência
e as relações sociais); e o modo de proceder é o método genético (visto que o significado da
palavra se desenvolve, possui sua gênese, o principio metodológico posto é o de é preciso
compreender sua história de desenvolvimento).
Segundo o autor, a psicoterapia baseada na teoria vigotskiana terá necessariamente que
perpassar quatro questões teóricas importantes: o problema do diagnóstico; a psicopatologia, ou
patopsicologia; o problema das emoções e o problema do inconsciente.
Entendemos que os estudos de Delari Junior (2006) são de grande importância para
pensarmos a psicoterapia a partir da psicologia vigotskiana. As reflexões do autor contribuem
para pensarmos os princípios e conceitos basilares desta teoria que devem ser necessariamente
estar presentes em uma proposta de psicoterapia que se almeje histórico-cultural.

2.3 A arte enquanto instrumento psicoterapêutico


Reis (2014) apresenta um relato de experiência de um grupo de arteterapia como
instrumento na prática em psicologia social desenvolvido com base nos preceitos da Psicologia
Histórico-cultural, em especifico dos escritos de Vigotski e Bakhtin sobre arte.
Reis (2014) aponta que a arteterapia está tradicionalmente vinculada à psicologia clínica,
mas que a mesma encontra hoje vinculações interdisciplinares, e aplicações em diversas áreas,
como nos âmbitos escolar, social e comunitário, nos campos da educação, reabilitação,
psicoterapia e prevenção. “[...]o fazer artístico auxilia a pessoa no aprendizado de lidar
criativamente com sua própria vida, proporcionando pontes para que se estabeleça um contato
profundo e eficaz na relação terapêutica” (Reis, 2014, p.247).
A autora relata que as atividades desenvolvidas no grupo propiciaram aos participantes o
exercício da expressão criativa, transformando emoções, desejos, conflitos e significações por
meio das obras que os mesmos produziram. As produções se configuravam como dispositivos
para a auto percepção e reflexão, gerados pelo compartilhamento das experiências vivenciadas
no e com o grupo. Afirma que os problemas emocionais dos participantes não encontram na arte
sua solução, mas que se observa uma importante e significativa ampliação da percepção de si
mesmo dos participantes, uma diminuição da inibição, um aumento da capacidade expressiva e
da autoconfiança, desenvolvimento da criatividade, elaboração de emoções e de uma atitude
positiva frente à vida.
Segundo Reis (2014), sua proposta de trabalho se vincula em um grupo de autores da
psicologia social brasileira que visam trabalhar a temática da arte a partir da perspectiva da
Psicologia Histórico-Cultural. O mencionado grupo tem muitos de seus expoentes trabalhando
no programa de pós-graduação da UFSC. Dentre os textos citados pela autora representativos
deste movimento, temos o texto de Zanella, Reis, Camargo, Maheirie França e Da Ros (2005).
Os autores concebem a arte como atividade criadora, na qual o sujeito recorta elementos da
realidade e os recombina a partir de sua imaginação, produzindo sua reconfiguração em uma
nova forma. As autoras, a partir dos estudos de Vigotski e Bakhtin, entendem a arte enquanto
atividade estética de recriação da vida. O ser humano se objetiva e subjetiva nos processos de
criação artística, transformando realidades, conforme cria significados para si e para os outros.
Furtado, Levitan, Titon, Castilo e Zanella (2011) e Castilho e Zanella (2011) discutem
sobre a importância da arte para o desenvolvimento humano e para a produção de mudanças nos
modos de viver dos sujeitos, e dos mesmos avaliarem a realidade, a partir das contribuições
teóricas de Bakhtin e Vigotski. Entendem que as atividades artísticas são uma importante forma
de intervenção no trabalho com jovens. Nestes artigos, os autores problematizam a
potencialidade dessas atividades para a modificação da imagem de si mesmo de jovens que
participaram oficinas de improvisação teatral. Concluem que as atividades artísticas
possibilitaram e estimularam o diálogo entre os participantes, promovendo caminhos e desafios
diversos em relação ao (re)criar no exercício teatral e ao estar com um outro.
Outro artigo que propõe a utilização de recursos artísticos na psicoterapia é o texto de
Souza, Camargo e Bulgacov (2003), pesquisadoras da Universidade Federal do Paraná. Souza,
Camargo e Bulgacov (2003) buscam relatar a experiência de um estudo de caso de uma criança
em idade pré-escolar hospitalizada. O objetivo das autoras é estudar a expressão da emoção por
meio de desenhos realizados pela criança em sessões de psicoterapia. As autoras consideram que
o desenho como é uma atividade expressiva, um dos meios utilizados pela criança para expressar
sua vivência emocional.
Entendem a emoção como função psicológica que forma com as demais funções
psíquicas, ao longo do desenvolvimento cultural, um sistema psicológico complexo e
diversificado no qual a linguagem, enquanto signo mediador, desempenha um papel
fundamental. Apreendem a emoção enquanto um sistema, e que o signo mediatiza a expressão
emocional (Souza, Camargo e Bulgacov, 2003).
Segundo as autoras, no caso estudado, a criança utiliza o desenho para materializar e
tornar objetivas as suas emoções. O desenho, enquanto atividade expressiva, propicia que a
mesma objetive seu pensamento. Acompanhado da linguagem oral no momento de sua
produção, o desenho pode ser configurar como um meio de o psicoterapeuta se aproximar da
trama afetivo-volitiva da criança (Souza, Camargo e Bulgacov, 2003). O artigo apresenta uma
discussão muito interessante sobre a utilização do desenho na clínica baseada na Psicologia
Histórico-Cultural, e também contribui para pensarmos sobre a potencial terapêutico deste
recurso técnico.

2.4 A obra Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade de Gonzáles-Rey


Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade é um livro de autoria de González-Rey
(2007), no qual o autor discute com profundidade a temática da psicoterapia a partir de seu
entendimento da teoria histórico-cultural. O autor apresenta uma proposta de discussão sobre a
psicoterapia e a noção de subjetividade proposta por ele em outras de suas produções teóricas. O
autor ressalta o potencial da noção de sentido, sujeito e subjetividade em Vigotski, e da
integração complexa de elementos cognitivos e emocionais relacionados à personalidade do
sujeito como um todo.
O autor realiza, no primeiro capítulo, uma discussão sobre o desenvolvimento histórico
da psicoterapia. No segundo e no terceiro capítulo, apresenta a discussão sobre a psicoterapia a
partir da ótica da psicologia histórico-cultural. Neste ponto, discute um caso clínico como forma
de demonstrar como seria a psicoterapia que está propondo em ação. No quarto capítulo, propõe
um diálogo entre a psicoterapia histórico-cultural e as perspectivas atuais da psicoterapia pós-
moderna, como a do construtivismo e do construcionismo social.
Dos textos encontrados em nossa pesquisa, o trabalho de González-Rey (2007) é o mais
completo sobre o assunto, que busca discutir a psicoterapia a partir da leitura que o autor faz da
Psicologia Histórico-Cultural e de suas próprias formulações teóricas, apresentando uma
proposta de psicoterapia propriamente dita, exemplificada no estudo de caso apresentado no
livro.

2.5 Interlocução com outras perspectivas teóricas


Guimarães, Malaquias e Pedroza (2013) propõe uma interlocução entre a psicologia
sócio-histórica de Vigotski e a psicanálise. As autoras falam sobre a psicoterapia infantil em
grupo e destacam que o objetivo do texto é apresentar novas reflexões a respeito da clínica
infantil, a partir da experiência de psicoterapia de grupo conduzida por elas em um contexto de
clínica-escola. Apontam que são os referenciais teóricos da psicanálise que norteiam o olhar a
respeito da construção da subjetividade da criança na relação com o outro e do desejo da mesma
que é manifesto em suas diferentes possibilidades de estar e de vir a ser. Se baseiam nos escritos
de Sigmund Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott e Françoise Dolto.
Destacam que a psicologia vigotskiana traz contribuições para a reflexão da
complexidade do desenvolvimento sociocultural e psíquico no decorrer da história do indivíduo.
Entendem que a psicoterapia em grupo de crianças é promotora de desenvolvimento. Se baseiam
no conceito vigotskiano de zona de desenvolvimento proximal, e entendem que este conceito as
auxilia a compreender como as inter-relações entre as crianças e os psicoterapeutas constituem-
se em possibilidade de desenvolvimento afetivo. Os preceitos da psicologia sócio-histórica
também proporcionaram, segundo as autoras, uma perspectiva histórico-cultural e antropológica
acerca do infantil e da relação criança-adulto. Esta perspectiva possibilita que o psicoterapeuta
possa “[...]ouvir a voz da criança, reconhecer sua vida psíquica e respeitá-la enquanto sujeito de
desejo” (Guimarães, Malaquias & Pedroza, 2013, p. 708).
Motta, Munari, Leal, Medeiros e Nunes (2007) discorrem sobre o processo de
desenvolvimento da dinâmica grupal tendo em vista o contexto da saúde. O artigo tem como
objetivo discutir sobre cinco trilhas essenciais para se compreender o processo e o
desenvolvimento da dinâmica grupal, a partir do processo de formação do coordenador de
grupos na perspectiva da Sociedade Brasileira de Psicoterapia, Psicodrama e Dinâmica de Grupo
(SOBRAP) e a experiência dos autores do texto2 na gestão de grupos.
A primeira trilha se baseia nos pressupostos da teoria, denomina pelos autores, de sócio-
histórico-cultural de Vygotsky; a segunda trilha fundamenta-se nos princípios da educação
contemporânea, respeitando as concepções humanísticas de aprender à: conhecer, saber,
conviver e ser; a terceira parte da intersecção das abordagens da psicanálise e alguns de seus
representantes como Didier Anzieu e Wilfred Bion, do psicodrama de Jacob Levy Moreno e da
abordagem de campo social de Kurt Lewin com os postulados da Gestalt; a quarta trilha se
fundamenta no modelo de gestão por competências; e a quinta indica que a prática do
coordenador de grupo deve ser baseada na metodologia de laboratório teórico-vivencial (Motta,
Munari, Leal, Medeiros e Nunes, 2007).
Com relação a teoria vigotskiana (segunda trilha), os autores destacam que a mesma é
fundamental visto que explicita a importância do outro social no desenvolvimento dos indivíduos
e explicita que é a aprendizagem que promove o desenvolvimento. Os autores trabalham com os
conceitos de zona de desenvolvimento real e proximal, situando a atuação do coordenador do
grupo nesta última. Também destacam a importância de o coordenador do grupo realizar a
contextualização sócio-histórica-cultural do grupo em questão (Motta, Munari, Leal, Medeiros e
Nunes, 2007)3.
Wladislawoski (2013) faz uma interlocução entre o construcionismo social e a teoria
vigotskiana. Destaca que seu objetivo no artigo é evidenciar a aproximação e as similaridades da

2 Os autores são do campo da Psicologia e da Enfermagem.


3 Tanto Guimarães, Malaquias e Pedroza (2013) quanto Motta, Munari, Leal, Medeiros e Nunes (2007) citam apenas uma obra de Vigotski ao
longo do texto, a saber, A formação Social da Mente (2003).
teoria de Vigotski e a proposta pós-moderna, especificamente a seu patamar terapêutico na
Terapia Narrativa e na Terapia Colaborativa. Se baseia nos conceitos de Vigotski sobre a
consciência, a linguagem, o pensamento, a palavra e ao significado da palavra, bem como o
conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Procura articular a teoria vigotskiana às
premissas abordadas pelo pensamento pós-moderno relacionadas com a linguagem, a construção
da identidade e a importância da vida relacional, e a perspectiva terapêutica desenvolvida a partir
do pensamento pós-moderno, que se constitui na proposta da Terapia Colaborativa de Harlene
Anderson e Harold Goolishian, e da Terapia Narrativa de Michael White e David Epston.
Para a autora, esta proposta pós-moderna pressupões que é “[...] através da conversa que
formamos e reformamos nossas experiências vitais; criamos e recriamos nossa forma de dar
sentido e de compreender; construímos e reconstruímos nossas realidades e nós mesmos”
(Wladislawoski, 2013, p. 79).
Camargo-Borges (2010) discorre sobre a terapia social e sua aplicação prática como
intervenção grupal. Segundo a autora, a terapia social é um método interventivo elaborado a
partir de uma perspectiva marxista pós-moderna inspirada em alguns conceitos na teoria de
Vigotski. A terapia social foi desenvolvida a partir de um movimento iniciado nos anos 1960 nos
Estados Unidos, que se propunha emancipatório e revolucionário, apresentando a terapia de
grupo como uma de suas práticas. Esse movimento nasceu no cerne do movimento americano de
contracultura. Segundo a autora, a terapia social se desenvolveu a partir do trabalho de Fred
Newman, filósofo engajado em organização comunitária e política, e de Lois Holzman,
psicóloga, pesquisadora da área de desenvolvimento humano.

Os marxistas pós-modernos, ao invés, inspirados pelos ideais da contracultura, inseriram outros


aspectos em seu foco de intervenção. Acreditavam que, para ocorrer mudança social efetiva, seria
necessário intervir para além do âmbito econômico, em alguns outros aspectos cruciais na
constituição e manutenção da nossa sociedade, tais como o aspecto cultural e emocional, já que as
formas de viver e relacionar (pessoal, sexual, familiar) também afetam e são afetadas pelas
questões econômicas e políticas. Dessa forma, esse grupo marxista pós-moderno passou a
organizar coletivamente seus membros, investindo e interferindo em tais aspectos [...] (Camargo-
Borges, 2010, p. 49).

A terapia social é uma terapia performática pouco conhecida no Brasil. Tem como foco a
constante construção da grupalidade e a emancipação. Segundo a autora, é uma possibilidade de
trabalho grupal potente na construção da mudança social.
Os textos citados acima demonstram que muitos dos autores que discutem a
psicoterapia a partir da Psicologia Histórico-Cultural, trabalham a temática a partir de uma
junção desta teoria com outras abordagens teóricas. Nestes casos, a Psicologia Histórico-Cultural
não é a teoria que guia o planejamento do processo psicoterapêutico, ela vem contribuir para que
os autores refletiam sobre alguns aspectos do mesmo. Nos textos estudados, o conceito mais
utilizado da psicologia vigotskiana para se pensar a psicoterapia é o de zona de desenvolvimento
proximal.

2.6 Grupo de pesquisa de Quintino-Aires e Rita Leal


Quintino-Aires (2006), afirma que seu grupo de pesquisa vem buscado desenvolver uma
abordagem psicoterapêutica baseada nos estudos de Vigotski, Luria, Leontiev e Zeigarnik, em
Portugal e no Brasil. O autor afirma que o trabalho clínico de seu grupo de pesquisa se baseia na
teoria e no trabalho clínico de Rita Leal4. Os textos de Quintino-Aires (2006), Marangoni e
Quintino-Aires (2006), Dias (2005) e Marangoni (2012) foram escritos por autores vinculados ao
Instituto Vegotsky (antes denominado de IQA – Instituto Quintino Aires), que é coordenado por
Quintino-Aires em Portugal5.
Segundo Dias (2005) o Modelo Relacional Dialógico, de Rita Leal, apresenta uma
proposta genética desenvolvimental para a compreensão do EU e estabelece uma ligação entre os
passos do desenvolvimento e as estruturas de personalidade.
A autora afirma que esta proposta de atuação clínica do Instituto Quintino Aires articula a
Psicologia Sócio-Histórica com o modelo Relacional Dialógico de Rita Leal. A Psicologia
Sócio-Histórica é definida pela autora como uma perspectiva teórica que parte da concepção
marxista de homem e de mundo. Nesta teoria, o homem é entendido como um ser ativo, social e
histórico. A teoria enfatiza o papel da atividade humana na constituição da subjetividade, e tem
como uma de suas principais preocupações estudar as formas superiores de comportamento,

4 Maria Rita Mendes Leal é psicóloga, doutora pela Universidade de Londres, no Departamento de Psicologia do Desenvolvimento Infantil.
Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Membro da Sociedade
Portuguesa de Grupanálise.
5O grupo de pesquisa tem seus principias expoentes trabalhando em Portugal, mas publicam em conjunto com pesquisadores do Brasil, em
períodos brasileiros.
como a linguagem, memória, atenção, pensamento, e a compreende-las a partir das relações
sociais que o indivíduo estabelece com o mundo.
Segundo Dias (2005), na conceituação psicoterapêutica do grupo de pesquisa de
Quintino-Aires, a teorização sobre a Zona de Desenvolvimento Proximal de Vigotski é utilizada
como um conceito e um método para a busca de soluções de conflitos vivenciados pelo cliente
na psicoterapia. O psicoterapeuta atua como mediador dinâmico, que guia, regula, seleciona,
compara e analisa o desenvolvimento do cliente, o ajudando a produzir novas maneiras de
pensar, o que propicia processos de modificação de esquemas de conhecimento, e se constroem
novos saberes e práticas (Dias, 2005).
Marangoni e Quintino-Aires (2006) afirmam que a psicoterapia é um processo de
construção de sentido e transformação. O indivíduo entra em contato com um outro, o
psicoterapeuta, que é capaz de construir sentido e resignificar o seu modo de pensar, sentir, agir e
estar no mundo. O psicoterapeuta atua como um mediador da relação eu-outro-realidade, a partir
da utilização das técnicas psicológicas, no intercâmbio do diálogo recíproco e alternante,
denominado pelos autores de AGORA TU - AGORA EU.
Quintino-Aires (2006) utiliza o conceito de zona de desenvolvimento proximal de
Vigotski, e afirmar que é nesta área que a psicoterapia deve atuar. Também se baseia no conceito
de internalização, entendendo que, na psicoterapia, as formas interpsicológicas (sociais /
relacionais) são transferidas para as formas intrapsicológicas (pessoais) de significados.
Marangoni (2012) apresenta um estudo de caso de ludoterapia realizada com uma criança
a partir dos pressupostos vigotskianos e do grupo de pesquisa de Rita Leal e Quintino-Aires.
Segundo a autora, a ludoterapia propicia o desenvolvimento das funções nervosas superiores,
visto que possibilita que a criança se aproprie dos significados e ou crie novos significados dos
objetos do meio externo, dos eventos e das relações sociais humanas.
O processo de ludoterapia tem como objetivo propiciar o desenvolvimento psicológico
da criança e proporcionar um espaço para a construção de novos significados das experiências
vivenciadas por ela. Segundo Marangoni (2012), a ludoterapia vigotskiana é um processo de
intervenção psicológica direcionada para a transformação do sujeito.
A proposta psicoterapêutica do grupo de pesquisa de Quintino-Aires busca ter como
teoria guia de suas reflexões a Psicologia Histórico-Cultural. Mas ainda assim os autores buscam
uma outra concepção teórica, o Modelo Dialógico-Relacional de Rita Leal, para pensar o sujeito
e a atuação psicoterapêutica. Também neste caso temos uma proposta de psicoterapia que
articula a teoria vigotskiana com uma outra concepção teórica.

Considerações Finais
A pesquisa bibliográfica a respeito do estado da arte da psicoterapia histórico-cultural
nos permite concluir que ainda são poucos os autores que se dedicam a temática, o que aponta
para a necessidade de ampliarmos o debate sobre o assunto. Nossa pesquisa de doutorado, que
está em fase de andamento, visa justamente delinear o trabalho psicoterapêutico clínico do
psicólogo, suas possibilidades e objetivos.
A partir de nossos estudos anteriores (Aita, 2014), entendemos que a psicoterapia pode
colaborar para que o indivíduo analise e compreenda os motivos de suas ações, ampliando sua
consciência sobre o mundo e sobre si mesmo. A partir do conhecimento de seus motivos, o
sujeito amplia suas condições de agir com mais liberdade e autodomínio (Vigotski, 1931/1996;
1931/2000).
A psicoterapia com fundamento na Psicologia Histórico-Cultural pode contribuir para
que o sujeito tome consciência de seus motivos e ações, o que, por sua vez, colabora para que o
mesmo se desenvolva em direção à uma individualidade livre e universal. Ao tomar consciência
de sua história pessoal e social, o sujeito pode decidir com mais liberdade o que almeja para si
mesmo, sua comunidade e para a sociedade como um todo. E pode, por meio de ações coletivas
com os demais, modificar a realidade.
Para Vigotski (1931/1996), a subordinação das ações do sujeito ao seu próprio controle
voluntário exige, como premissa, a tomada de consciência destas ações. Vigotski compreende
que é necessário que tomemos consciência de nossos motivos e ações, de nossa história pessoal e
social, para que possamos determinar de forma mais autônoma o movimento que queremos
produzir em nossas vidas e na sociedade como um todo (Aita, 2014).
O comportamento de um sujeito em específico, seus desejos e interesses, estão sempre
em concordância com as condições particulares da sua existência histórica, a partir da referência
primeira que é a forma universal de o homem agir no mundo, o gênero humano. Dito de outra
forma, as motivações para o comportamento humano são, ao mesmo tempo, singulares,
particulares e universais (Oliveira, 2001).
Entendemos que a psicoterapia com fundamentos na Psicologia Histórico-Cultural pode
colaborar para o desenvolvimento da consciência e da autoconsciência do sujeito. O indivíduo,
ao se apropriar dos conhecimentos científicos elaborados pela Psicologia, por mediação do
terapeuta, vai expandindo seu sistema de significações e conceitos sobre sua realidade individual
e social, ampliando sua consciência sobre a realidade circundante e suas próprias vivências, o
que lhe possibilita ter um maior controle voluntário sobre seu comportamento e desenvolver-se
de forma cada vez mais livre e universal.

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