Você está na página 1de 4

ABSTENHA-SE E FIQUE SÃO!!

"Rebela-te contra o público!"


G.Gazizi, «Revolucii»

Por algum motivo, ultimamente começou a viger a opinião de que só a religião (segundo alguns a cristã,
mas outros dizem que pode ser qualquer uma) mostra o caminho correto para o progresso e
aperfeiçoamento da humanidade, só ela torna o ser humano nobre, cordial, filantropo, pacífico, puro de
alma...

Os ateus não são atualmente perseguidos, mas se tem para com eles uma relação de suspeita. Entre
outras coisas, não me apraz muito a palavra "ateu". Eis que lhe apresento uma comparação pertinente:
imagine que alguém o entrevista com a pergunta: "Que tipo de drogas você prefere?" Você responde
indignado que é saudável e prudente, e por isso nunca usou drogas – e assim o entrevistador resume:
"Então você é um abstêmio!"...

Quase todos os atores famosos, políticos e similares, apressam-se em declarar sua religiosidade – isso se
tornou como que um símbolo de lealdade ou "bom-tom". Claro que é preciso agradar ao público! Os mais
prudentes, é certo, se calam, mas, de fato, ninguém tem coragem de pronunciar algo antirreligioso... Na
"ideia nacional russa", propagandeada através da mídia, encontramos nada muito além do cristianismo
ortodoxo. Ora, absolutamente não posso compreender por que, para sermos boas pessoas, devamos
acreditar que o céu é sólido, que o mundo surgiu no período de 7 dias há mais ou menos 7000 anos e
coisa e tal. Só não venha dizer que tudo isso deve ser compreendido metaforicamente! Se você dissesse
isso 500 anos atrás, uma bela fogueira teria sido arrumada em sua homenagem... Na Bíblia, de fato,
várias vezes está dito (os que quiserem encontrarão facilmente essas referências) que tudo o que está
descrito deve ser compreendido literalmente. Na Antiguidade e na Idade Média tinha-se pouco
conhecimento a respeito do mundo – assim era possível dizer as mais bizarras fantasias. Hoje em dia a
ciência cada vez mais preenche "as lacunas em branco" e a igreja tem de ardilosamente voltar atrás,
penando para adaptar fatos recém-descobertos a seus dogmas inflexíveis.

Já há muito está provado que grande parte dos milagres bíblicos se origina simplesmente de uma
tradução malfeita ou de um erro de transcrição – do mesmo modo que os sapatinhos de vidro da
Cinderela ou a expressão russa 'não no seu prato' para indicar mau humor. Eis apenas um exemplo: o
nome da cidade de Nínive era escrito com um ideograma que significava 'peixe'. O profeta Jonas tinha
sido preso e passou algum tempo naquela cidade. Um copista desatento deixou faltar outro ideograma
no nome da cidade – o que resultou em que Jonas tenha vivido dentro de um peixe. A "santa" escritura
nunca erra – e se acrescentaram detalhes verossímeis: qual peixe pode conter um homem? Claro que é o
maior de todos. Pois então, a baleia! (que a baleia não é um peixe os homens daquela época tinham o
direito de não saber...)

Certamente nem todos os milagres se originam de erros desse tipo, mas mesmo para os supremos
mistérios encontram-se explicações simples e naturais – caso se raciocine analiticamente pelo menos
um pouquinho. Por exemplo: como nasceu Cristo? Sim, de fato existe o fenômeno da reprodução sem
auxílio de machos, denominada partenogênese. Entretanto, qualquer especialista em biologia logo lhe
dirá: primeiro, o rebento partenogenético é uma cópia genética da mãe, então inevitavelmente deve ser
do sexo feminino. Segundo, nos vertebrados isso só é possível em algumas espécies raras de peixes,
anfíbios e répteis, mas em seres de sangue quente de modo algum. O que realmente ocorreu há dois mil
anos? Casaram a bela e jovem Maria, contra a vontade dela, com um carpinteiro velho – possivelmente
de bom coração, mas já há muito tempo impotente sexualmente. Um corpo saudável e jovem tem
necessidades naturais e desejos – então surgira em breve um belo jovem... E é claro que depois de algum
tempo ela engravidou. O que dizer às pessoas? Confessar a verdade era absolutamente impossível: de

1
acordo com os costumes crudelíssimos de então, a infidelidade da esposa era punida com a morte. Assim
os amantes elaboraram uma brilhante lenda, na qual, apesar de seu evidente absurdo, milhões de
pessoas acreditam até hoje. Mesmo hoje em dia há pessoas extremamente ingênuas (por exemplo, creem
nas promessas dos políticos e nas propagandas), e milênios atrás os ingênuos eram a maioria absoluta.
Possivelmente Maria era honesta, de boa índole e queria permanecer fiel ao marido caduco – mas o
jovem astuto e engenhoso, para conquistá-la, apresentou-se como um enviado divino e ordenou que ela
"cumprisse a Vontade Divina". Seja assim seja de outro modo, uma das bases mais fundamentais do
cristianismo se evidencia como um blefe – embora não possamos nos furtar ao apreço pela genialidade
de seu elaborador!

Em muitas passagens as narrativas bíblicas frontalmente contrariam umas às outras, porque são lendas
de diversos povos que foram misturadas entre si. Em verdade é estranho que mesmo hoje se encontrem
pessoas, que se julgam cultas, quase sabendo de cor a Bíblia (ah, se eles igualmente dessem atenção
também a outros livros!...) – os quais de modo algum notam isso. Poderiam ser listados aqui centenas de
tais equívocos, entretanto não quero abusar da atenção do leitor, tornando o artigo muito longo. Os dois
exemplos mencionados mostram claramente a situação geral e "sapienti sat"...

A ciência hodierna é muitíssimo complicada, exigindo uma pesada carga de trabalho de grandes grupos
de profissionais (o tempo dos quietos cientistas individuais, e tanto mais universais, já passou e não
volta), instrumentos complexos, grandes despesas – e os resultados atingidos aparentam ser
“aborrecidos” e incompreensíveis para o “público em geral” (para se compreender algo, é necessário
durante muitos anos, com diligência, estudar a especialidade concernente). Além disso, esse público
sempre acusa a ciência pelas chagas que resultam de suas conquistas: bomba nuclear, pesticidas, etc.,
apesar de que, com certeza, a culpa não é da ciência, mas de pessoas de pouca sapiência, que não sabem
utilizar corretamente seus frutos. Há quem possivelmente preferiria mesmo anular o progresso, voltar a
um estado semisselvagem e toda natural pergunta dos curiosos responder assim: “Para tudo existe a
vontade de Deus”. Pois bem, mas, de fato, “as palavras de Deus são inefáveis”, o que então fazer para se
descobrir algo, corrigir, melhorar, ou evitar um mal?

Alguns dizem que há milênios as pessoas viviam em harmonia e com felicidade, pois “de modo natural”
aparecem chamamentos para se voltar a esse modo de vida. Entretanto, os ecoextremistas esquecem que
agora, sobre a Terra, vivem milhares de vezes mais pessoas do que podem ser alimentadas por ela de
acordo com o método “natural”. O que fazer então com os 99,9% “supérfluos” da humanidade? As
mulheres outrora davam a luz de 10 a 15 crianças, mas que até a maturidade, na melhor das hipóteses,
sobreviviam 2 ou 3; a expectativa média de vida não ultrapassava 18 a 20 anos – é louvável se esforçar
em busca disso?!...

Não temos o direito de sermos tão ingênuos quanto foram nossos antepassados – é certo que a vida se
transformou totalmente em outra, mesmo se isso não agrada a alguns. Tudo evolui demasiadamente
rápido e, para viver com êxito em um mundo complicado, o ser humano precisa ter uma cosmovisão
adequada, um modelo adequado do mundo em sua consciência – sem isso não é de modo algum possível
analisar uma situação mutável e prognosticar acontecimentos e, por conseguinte, atingir um objetivo de
valor. Um age, porém outro, por demais preguiçoso e mentalmente débil, incapaz de se adaptar às novas
condições, prefere só pedir todos os bens a deus – e muito pragueja se deus não dá... (Ademais, compare
o nível de vida em diversos países com mais ou menos as mesmas condições naturais, ou no mesmo país
durante diversos períodos: a correlação entre religiosidade e miséria se faz evidente. É de se pensar, não
é mesmo?)

Para qualquer pessoa de cérebro saudável e honesta, com uma educação mediana, é evidente que para
deus não resta lugar em nosso mundo, esta noção é desnecessária e não tem sentido. Decerto, existem
pessoas (muito mais numerosas do que geralmente supomos) com perturbações psíquicas, incapazes de

2
distinguir claramente entre o real e suas visões – veem e ouvem não aquilo que existe, mas aquilo que
querem ver/ouvir. Sempre abundam também pessoas preguiçosas demais para fazer funcionar o próprio
cérebro; estão prontas para acreditar no que quer que seja. É bem oportuno mesmo, se a gente não
precisa pensar, mas somente escuta um pastor, um guru ou um dirigente partidário. Frequentemente
esse tipo de pessoa permanece mentalmente criança, teme o mundo real por sua complexidade e, para
viver bem, precisa de algum “protetor” – então foge para o mundo da ilusão e das fábulas e, depois,
ofende-se muito quando alguém tenta desiludi-la. (O que fará uma criança à qual se diga que Papai Noel
não existe? Chorará aos berros, dizendo que vai acreditar mesmo assim, apesar de tudo. Essa desilusão
pode causar um trauma psíquico, mas, devemos crer em Papai Noel durante toda a vida?) Mas há quem,
simplesmente por causa de autoproteção, “para que nada de mau aconteça”, prefira “não desaninhar-se”,
sempre ser igual a todos os outros (i.e, como a massa impensante). Além disso, festas religiosas dão um
pretexto a mais para embebedar-se... Principalmente isso tudo se faz oportuno para os governos – com
um rebanho de povo acéfalo é fácil fazer o que quer que seja, eis porque o atual governo russo é tão
amigo da igreja ortodoxa. Não almeje uma vida boa, não se queixe pela falta de dinheiro: Cristo tolerou e
vos ordenou... Desse modo é educada a psicologia do escravo. Não é de se admirar, pois, de fato, o
cristianismo surgiu e evoluiu como uma religião de escravos e a expressão “servo de deus” é oficialmente
usada até hoje. Em relação ao pacifismo e ao amor humanitário, lembremos que durante o socialismo a
religião foi suprimida. Mas então, na União Soviética e na Iugoslávia, diversos povos conviveram em paz
e tranquilidade. Depois as pessoas “se lembraram de Deus” (cada um do seu próprio). O resultado é
perceptível...

Afirma-se que a religião zela pela moral. Todavia, uma consciência sã não precisa de muletas de dogmas
“santos”, uma pessoa normal não mata nem rouba, pois isso contraria sua natureza. Mas aquele que
evita más ações apenas por medo de uma “punição divina”, mais cedo ou mais tarde, percebe que deus,
afinal, não reage – então “pecar” se faz possível, só é desejável depois, por qualquer ocorrido, pedir a
absolvição. A moral e a disciplina, cujas bases são somente o medo, não têm valor. Assassinos em prisões
se tornam extremamente religiosos, fervorosamente pregam que deus perdoe seus pecados, estão
prontos a dizer e a fazer o que quer que seja para evitar uma merecida punição. Alguns tolos até acham
mesmo que esses monstros arrependem-se sinceramente... E aquele que verdadeiramente compreendeu
a hediondez de sua ação – esse, para não enlouquecer de remorsos, para conseguir uma ilusão de paz de
espírito, procura ao menos uma certa justificativa: não foi ele próprio que agiu mal, mas deus quis que
assim ocorresse. Portanto, ele não é culpado e deve responder, mas deus. Lembre-se também do “Gott
mit uns” no cinturão dos soldados nazistas...

Há quem diga que a religião inspira escritores, pintores, etc., a criações geniais. Mas nunca
descobriremos quais obras geniais poderiam criar esse ou aquele famoso artista, se sua criação não
estivesse acorrentada pelas condições religiosas, mutilada pela censura eclesiástica (ou pela
“autocensura”). Há quem altivamente afirme que esse ou aquele cientista acreditou em deus – mas
mesmo se tais falas não forem uma mentira desavergonhada ou uma má interpretação de uma citação
concreta, então tudo facilmente se esclarece: um cientista quer trabalhar tranquilamente, não ter
problemas com os poderes oficiais e com o povo em geral – então por que não dizer publicamente
algumas frases que as pessoas desejam muito ouvir? (Porém o mundialmente famoso fisiologista Ivan
Pavlov, pelo contrário, por meio de uma religiosidade enfaticamente demonstrada, empenhou-se em
exprimir seu protesto contra o poder soviético, que ele odiava fortemente – entretanto não teve coragem
de protestar diretamente). Pelos mesmos motivos, na URSS, muitas pessoas famosas eram membros do
PCUS, embora compreendessem bem a tortuosidade da doutrina comunista, – mas de fato eles
esforçavam-se pela tranquilidade e segurança para si e para suas famílias. Quem nunca almejou isso –
jogue a primeira pedra...

Qualquer religião – não só as seitas – destroem bem rápido a personalidade humana. A vítima já não é
capaz de não produzir ideias triviais, de fazer algo criativo e até mesmo simplesmente aproveitar a vida

3
em toda sua plenitude e variedade (ou mesmo ler um livro sem permissão de seu “guia espiritual”!) –
pois vários prazeres da vida são de fato “pecados”. A relação das diversas religiões com o “pecado” dessa
ou daquela ação é totalmente diversa, bizarra, inconsequente e ilógica. De fato, justamente a multidão e
diversidade de religiões e sua incapacidade de paz recíproca em relação a ritos e normas de conduta – no
geral totalmente contrários, é a prova mais convincente de que deus não existe. Se existisse, então já
poderia há milhares de anos ter informado de algum modo os seres humanos a respeito das preferências
dele.

Não foi em vão que os sábios (muitas décadas antes de Karl Marx, que só popularizou essa comparação
pertinente) chamaram a religião de “ópio do povo”. Um conhecido meu uma vez tentou contra-
argumentar: não ópio, mas um medicamento analgésico totalmente inócuo e eficaz. Contudo, mesmo se
for assim – é certo que a dor é um sinal de desordem no organismo. Se uma pessoa, doente de
apendicite, ao invés de uma cirurgia imediata, ingerir os melhores remédios analgésicos – o que vai
acontecer?...

Outro conhecido meu, após ter lido a primeira versão deste artigo e terrivelmente ofendido, acusou-me
de uma cosmovisão “unilateral” e “desequilibrada”, incapacidade de sentir, alienação para com a arte...
Ele próprio era até alguns anos atrás um talentoso bardo, mas, ao experimentar uma situação
complicada na vida, se evidenciou absolutamente incapaz de uma ação consciente, hábil e responsável,
“dependurou” seus problemas nas costas dos outros e em breve (evidentemente para adquirir uma
justificação moral por sua má conduta) tornou-se um cristão fervoroso – desde então ele não escreveu
absolutamente mais nada. Neste ínterim, escrevo poemas, dos quais mais da metade é premiada em
diversos concursos internacionais e impressos em diversos países... Então ele, por exemplo, se indigna
por que uso as palavras “sagrada escritura” com letras minúsculas e com aspas “sarcásticas” (segundo
ele) – embora evidentemente todas dentre as centenas de religiões existentes tenham a própria “sagrada
escritura”, e não há nenhuma causa objetiva para se preferir essa ou aquela. Afirma que “possivelmente
Deus quer que haja muitas religiões, para que discutamos e desse modo não nos esqueçamos dele”.
Provavelmente, os autos-de-fé, as Cruzadas e a Noite de São Bartolomeu são as mais belas maneiras de
discussão... Ele, reconhecendo sem vontade os indubitáveis fatos de muitas más ações feitas “em nome
de Cristo”, sempre repete que isso fazem os “fanáticos” ou os “hipócritas” (que não creem com
sinceridade, mas apenas imitam crer, por moda). Mas do seu longo e pomposamente edificante texto,
cheio de autoadmiração, sem ambiguidade se torna evidente que o “verdadeiro”, piedoso e exemplar
cristão é só ele... Encontrei também outros cristãos “piedosos” – todos eles, se se trata de algo filosófico
ou psicológico, falam a seres humanos dotados de pensamento racional como se falassem com selvagens
analfabetos e imaginam a si mesmos como missionários ou mesmo profetas. Por meio dessa ilusão, fica
fácil compensar a falta de saber próprio, de talento, de laboriosidade, de confiança, de diligência e de
objetivo digno... Embora o orgulho seja um “pecado” grave, ele, (junto com a hipocrisia) é o traço mais
comum de toda gente semelhante a essa. É verdade que todos dentre eles se orgulham a não mais poder
pois encontraram a “verdade” e gabam seu amor-próprio, sentindo por trás de si o poderio da religião
“mundial” e se esforçando por humilhar todos os que pensam de outra forma – mas a rusticidade e
miséria da filosofice de tais “novos missionários” (é impossível não compará-los aos novos-ricos!) saltam
aos olhos.

Sim, haverá aqueles que desejarão aniquilar-me por causa desses raciocínios. Ora, avalio com
sobriedade a importância de minhas obras e não pretendo atingir a fama de Salman Rushdie com seus
“Versos Satânicos”. Por outro lado, por enquanto ainda não se aboliu a vastamente proclamada
liberdade de consciência e de expressão, e os cristãos são, segundo suas próprias afirmações – (eis aqui
uma boa ocasião para verificar a sinceridade deles!), menos agressivos que os muçulmanos... Se pude
instigar o pensamento de alguém, fico contente. Se ajudei alguém a (re)adquirir uma visão de mundo
adequada – fico feliz.

Autor: Valentin Melnikov, Rússia, vmel@hse.ru //Versão do esperanto feita por Aender dos Santos, Brasil.
4

Você também pode gostar