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O estado é, sociologicamente, o resultado

de um processo de agrupação de forças que se


impõem arbitrariamente sobre os grupos que
sucumbiram durante o processo de
desenvolvimento das sociedades. Não importa se
o modelo imposto é democrático ou autoritário,
ambos carecem de legitimidade. E tal
legitimidade não pode ser alcançada por
constituições ou leis editadas e colocadas em
vigor pelos detentores do poder de estado visto
que legislar em causa própria é uma característica
inerente aos métodos tirânicos, os quais
procuram excluir todo e qualquer sentimento de
oposição pela via legal. Durkheim, de forma
categórica, define o que é o estado bem como a
impossibilidade dele ser o meio pelo qual são
representados os indivíduos,
“É um grupo de funcionários sui generis, no
seio do qual são elaboradas representações e
volições que comprometem a coletividade, embora
não sejam obra dessa última. Não é exato dizer
que o estado encarna a consciência coletiva, pois
esta o ultrapassa por todos os lados. Em grande
parte é difusa; a cada instante há um número
enorme de sentimentos sociais de todo o tipo, dos
quais o estado percebe apenas um fraco eco.”[1]
Esse conceito sociológico descrito por
Durkheim demonstra a incapacidade do estado
em prever todos os acontecimentos e as
particularidades que derivam das interações
sociais. Os representantes do povo enxergam de
forma muito vaga o que a sociedade demanda. As
mudanças acontecem de uma forma tão rápida
que é impossível para o estado, em sua estrutura
naturalmente engessada, alcançar todas as
variáveis do meio social.
Outro problema que o estado traz é a noção
equivocada de que a vida coletiva deve se impor
sobre as individualidades. É evidente a
impossibilidade de conciliar todos os anseios dos
indivíduos de maneira perfeita, mas muitos
intelectuais em conjunto com a mídia e o corpo
diretivo dos governos defendem veementemente
a existência de um contrato social implícito que
se revela objetivamente quando há aceitação
tácita do conjunto de leis por parte da sociedade.
Nesse sentido, não é possível para qualquer
cidadão dissidente, ou um conjunto deles, se
opor à imposição das leis e normas editadas pelo
estado, não é permitido aos que manifestam
contrariedade ao estabelecimento de um
determinado governo escapar à sua jurisdição. Os
que relutam em se conformar com os métodos de
atuação do estado e buscam meios de autodefesa
contra a sua atuação invasiva e abusiva não têm
outro destino senão as penas da lei.
Mas como explicar o fato de uma grande
quantidade de pessoas se oporem
ideologicamente a um governo e, mesmo assim o
aceitarem? Não é simples responder a essa
pergunta. No entanto, há uma razão de ser para
todos os fenômenos sociais; o fortalecimento do
estado é só mais um dentre os inúmeros
fenômenos que se nos apresentam.
Um dos fatores que têm relação direta com
o grau de subserviência de uma sociedade aos
governos é a possibilidade do uso regular da
força, pelo estado, contra indivíduos que
apresentam opiniões manifestamente
divergentes. A relação entre a intensidade desse
uso pelo estado e entre a qualidade da psiquê e
do caráter dos indivíduos que compõem o meio
social revelam a forma como o estado exercerá
seu poder sobre os indivíduos. Povos pacíficos e
ingênuos sofrerão invariavelmente uma
influência muito maior do que os povos que
apresentaram características de resistência física
e ceticismo quanto ao caráter dos governantes. A
possibilidade de um embate de forças sempre
aparecerá se os indivíduos entenderem que os
ganhos proporcionados por esse conflito são
muito maiores do que as perdas que dele possam
advir. Se um estado tem, fragilizados, os meios de
uso da força, naturalmente sofrerá uma pressão
maior da sociedade e terá que ceder para que se
sustente ou não sofra consequências indesejadas.
Por outro lado, se um estado detém muito poder
de coerção e, o tipo social constitutivo de um
povo não apresenta as qualidades psíquicas e de
caráter suficientes para se engajar no conflito,
então a opressão continuará seu curso normal ou
poderá se agravar. La Boéti nos apresenta, ainda
no século XVI, um rascunho da sociedade em que
vivia. Não é muito diferente do que ainda
acontece hoje,
“Como ele tem algum poder sobre vós, senão
por vós? Como ousaria atacar-vos se não fôsseis
receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do
assassino que vos mata, e traidores de vós
mesmos? Semeais vossos frutos para que deles
faça o estrago; mobiliais e encheis vossas casas
para alimentar suas pilhagens; criais vossas filhas
para que ele tenha com que embebedar sua
luxúria, criais vossos filhos para que ele faça com
eles o melhor que puder, leve-os em suas guerras,
conduza-os à carnificina, torne-os ministros de
suas cobiças e executores de suas vinganças; na
dor arrebentais vossas pessoas para que ele possa
mimar-se em suas delícias e chafurdar nos
prazeres sujos e vis; ficais mais fracos para torná-
lo mais forte e rígido mantendo mais curta a
rédea; e de tantas indignidades – que os próprios
bichos ou não as sentiriam ou não a suportariam –
podeis vos livrar se tentais, não vos livrar mas
apenas querer fazê-lo.Decidi não mais servir e
sereis livres; não pretendo que o empurreis ou
sacudais, somente não mais o sustentai, e o vereis
como um grande colosso, de quem subtraiu-se a
base, desmanchar-se com seu próprio peso e
rebentar-se.”[2]
As bases ideológicas e culturais de uma
sociedade são fatores determinantes para definir
rumos diferentes para as nações. As forças de
reação ao estado são importantes para delimitar a
opressão intrínseca dos sistemas democráticos.
Henry Thoreau, filósofo americano, nos mostra a
tragédia que os homens impõem a si mesmos ao
aceitarem ou defenderem os governos,
“Desta forma, os governos são a prova de
como os homens podem ter sucesso no ato de
oprimir em proveito próprio, não importando se a
opressão se volta também contra eles.”[3]
Thoreau nos faz pensar sobre a forma como
o estado nos impede de exercer nossos
verdadeiros direitos e obrigações individuais e
como estamos tentando nos privar de nossa
natureza,
“Mas um governo onde prevalece o mando da
maioria em todas as questões não pode ser
baseado na justiça, mesmo nos limites da
avaliação dos homens. Não será possível um
governo em que a maioria não decida virtualmente
o que é certo ou errado? No qual a maioria decida
apenas aquelas questões às quais seja aplicável a
norma da conveniência? Deve o cidadão desistir da
sua consciência, mesmo por um único instante ou
em última instância, e se dobrar ao legislador? Por
que então estará cada homem dotado de uma
consciência?”[4]

Mesmo que estejam diante dos nossos olhos


uma série de formas para se estabelecer a
governança, o tipo social predominante nas
sociedades se permite escravizar ou ter todos os
seus direitos naturais suprimidos em prol da
agenda do estado. É um fato que se mantém
apesar dos desastres econômicos e sociais
inerentes à forma de atuação estatal. O uso da
força pelo estado, em paralelo com o tipo social e
psíquico dos agrupamentos humanos, exerce
influência sobre o estado das coisas. É dessa
relação que derivam as formas mais comuns de
governança: sejam elas democráticas ou
manifestamente autoritárias. Falamos isso em
termos gerais, tendo como consequência o
sentimento de quietude frente as arbitrariedades
perpetradas pelo estado.
Explicadas as razões puramente utilitaristas
da relação entre uso da força e custos da
mobilização social, vejamos agora outro fator de
extrema importância para a preservação da
ordem social tal como se estabeleceu. Esse fato
está ligado ao ambiente introspectivo dos
componentes da sociedade, a saber que, o tipo
psicológico e os costumes imprimem na natureza
do ser um bloqueio impeditivo à luta contra o
estado. Quando isso se espalha pela extensão do
corpo social e se estabelece de forma permanente
– alcançando uma quantidade considerável de
indivíduos – o ambiente se torna favorável à
atuação do estado e, na medida em que o foco de
resistência se torna cada vez mais deficitário, a
opressão se instala e pode revelar as ditaduras
mais cruéis e sanguinárias. Uma amostra desses
fenômenos pode ser vista em diversos países da
América Latina e da Ásia onde se instalaram
ditaduras, mas mesmo depois da derrubada
desses governos autoritários continuaram a sofrer
com arbitrariedades absurdas sob o regime
democrático. Os homens tendem a seguir as
regras de conduta social que os coloquem em
condição de aceitação e louvor perante os seus
iguais. Embora exista uma minoria que não se
adéqua a esses padrões, ela não é suficiente para
exercer influência decisiva sobre os demais. O
imperativo de ordem cultura e dos costumes
pode encerrar os dissidentes num ostracismo que
os impeça, em determinadas condições, de viver
uma vida tranquila em sociedade. São poucos os
indivíduos que pagariam o preço de ter uma vida
em eterno conflito com os costumes locais. Esse é
mais um elemento dificultador para a instalação
de focos de resistência. Durkheim,
inteligentemente, nos dá uma noção desse
imperativo que se impõe,
“Com efeito, algumas destas maneiras de
agir ou de pensar adquirem, devido à repetição,
uma espécie de consistência que as precipita, por
assim dizer, e as isola dos acontecimentos
particulares que as refletem. Tomam assim um
forma sensível que lhes é própria, e constituem
uma realidade sui generis muito distinta dos fatos
individuais que a manifestam. O hábito coletivo
não existe apenas em estado de imanência nos
atos sucessivos que determina, mas, por um
privilégio que não encontramos exemplo no reino
biológico, exprime-se de uma vez para sempre,
numa fórmula que se repete de boca em boca, que
se transmite pela educação, que se fixa mesmo por
escrito. Tal é a origem e a natureza das regras
jurídicas, morais, dos aforismos e dos ditados
populares, dos artigos de fé em que as seitas
religiosas ou políticas condensam suas crenças,
dos códigos de gosto que as escolas literárias
estabelecem, etc.”[5]
Além de todas essas variáveis, o cenário
desanimador ainda consegue impelir as pessoas a
não acreditarem numa mudança efetiva. É
natural que elas desistam e não há como mudar
isso, pelo menos a curto prazo. O que deve ser
feito, diante de um clima tão desfavorável é a
manutenção de formas associativas, grupos de
discussão e de divulgação das ideias libertárias. É
necessário que o grupo se mantenha coeso,
apesar das divergências, e que demonstre
intransigência na defesa dos princípios
fundamentais que regem a filosofia do
libertarianismo. Essa solidez é condição
necessária para a sobrevivência de qualquer ideia.
O argumento de que não é possível vencer o
estado, e que, a ideia de uma sociedade
contratual não é possível sem a tutela de um
estado de direito garantido via governo
democrático, tem, obviamente, um forte apelo
popular. A ideia central é a de que as massas
ainda não estão preparadas psicológica e
intelectualmente para essa mudança e que a
interrupção de certos serviços prestados pelo
estado instalaria um caos social que resultaria em
consequências desastrosas para a sociedade,
principalmente para os pobres. Então, não seria
possível remover as estruturas do estado de uma
única vez, mas, na melhor das hipóteses, de
forma gradual. Na visão deles, tal extinção
sumária seria impossível; isso colocaria o
movimento libertário ao lado das demais
vertentes políticas rotuladas como utópicas. Mas
porque então eles acreditam que a democracia –
que é um sistema naturalmente tirânico e
comprovadamente ineficaz para a resolução das
demandas dos indivíduos – deveria ser o modelo
a ser aplicado em larga escala para resolver todos
os problemas complexos e com peculiaridades
inerentes a cada grupo social ou indivíduo em
específico? Se na visão deles os libertários são
utópicos não estariam eles cometendo o mesmo
erro?
Analisando os motivos dos quais se valem
para qualificar o movimento libertário como
utópico entendemos que nenhum deles faz
sentido. O argumento central dos estatistas é:
não pode haver liberdade plena! Vejam que os
libertários são taxados idealistas cegos por
defenderem uma liberdade maior do que
normalmente temos costume de ver. Ora, se a
democracia não permite a liberdade em vários
aspectos os quais não deveria nem cogitar a
limitação, além de promover uma ideia utópica –
e nós já demonstramos isso ao citarmos sua
impotência frente a resolução de vários aspectos
da vida social – passa a ser antiética, um arranjo
demagógico com intenções claramente
despóticas. A liberdade plena, absoluta e
irrestrita nunca existirá enquanto existirem
conflitos no mundo e, como não há como prever
quando eles deixarão de acontecer, a liberdade
terá um limitador apenas quando alguém se valer
dela para interferir na liberdade e propriedade
alheias. Ao contrário do que os estatistas pregam,
a democracia está muito mais distante de
encontrar a excelência na aplicação dos conceitos
de liberdade do que os libertários. Há clara
inadequação entre meios e fins uma vez que a
democracia usa meios arbitrários e antiéticos
para atingir seus objetivos. A democracia pode
decidir por maioria limitar ou suprimir seus
direitos de propriedade, poderá fixar usos e
costumes e impor restrições que não são
compatíveis com as aspirações de muitos
indivíduos que estão sob a jurisdição territorial
de um estado. Hans Hermann Hoppe, de forma
bem-humorada, nos mostra como o arranjo
democrático pode ser irracional,
“Ou imaginem que, em seu próprio país, o
direito de voto foi ampliado para as crianças a
partir dos sete anos de idade. Embora o governo,
provavelmente, não fosse composto por crianças,
as suas políticas certamente refletiriam as
“preocupações e demandas legítimas” das crianças
de terem um acesso ‘adequado‘ e ‘igual‘ a vídeos,
batatas fritas e limonada ‘grátis‘.”[6]
A questão da realidade prática de um
sistema nada tem a ver com os conceitos éticos
dos quais se originou. Todo empreendimento
humano corre o risco de ser implementado com
falhas. O que a democracia deveria perguntar é:
se o sistema é ou não, ético; se é ou não,
consentido. No entanto, os democratas estão
preocupados com valores utilitários, ou seja, os
resultados apresentados em benefício de uma
suposta coletividade. Desprezam em absoluto a
ética e os demais direitos como os da propriedade
e liberdade se seus fins utilitários não forem
atingidos. Apesar de todo o esforço em
desqualificar o libertarianismo são os democratas
que deveriam reconhecer a utopia dos governos
democráticos.

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