Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sua Leitura 0
Esta matéria:+0
1/8
Ouça este conteúdo
Então você leu o título deste texto e clicou para lê-lo. Ótimo. Já é um bom sinal. Mostra
que você está disposto a refletir sobre a forma como pensa e que não está fechado a
dados, argumentos e opiniões que talvez o contradigam e o desagradem. De acordo com
Alan Jacobs, autor de Como Pensar: Um Guia de Sobrevivência Para um Mundo em
Desacordo, este é o primeiro passo para qualquer pessoa que queira dar ao ato cotidiano
de pensar o peso que lhe é devido, ainda mais numa época em que expressar o
pensamento é tão fácil – com consequências graves tanto para o ser pensante quanto
para a sociedade.
Essa é sua matéria grátis do dia. Assine agora e tenha acesso ilimitado. R$ 0,99 no 1º
mês
Mas cuidado! Porque “pensar, vasculhar as bases de nossas crenças, é um risco, e talvez
um risco com consequências trágicas. Não há garantias de que isso nos deixará felizes
nem que nos dará qualquer prazer”, adverte Jacobs.
Ou seja, pensar é mais difícil do que... se pensa – e a gente nem se dá conta disso. Porque
geralmente pensamos “no automático”, agindo mais por instinto e intuição, e não depois
de uma reflexão minimamente ponderada. Isso porque pensar não é, para a maioria das
pessoas, prazeroso. “Relativamente poucas pessoas querem pensar. Pensar nos causa
problemas; pensar nos cansa. Pensar é algo que pode nos tirar de nossos hábitos
conhecidos e confortáveis; pensar pode complicar nossa vida; pensar pode prejudicar ou
no mínimo complicar nossas relações com aqueles que admiramos ou amamos ou
seguimos. Quem precisa pensar?”, pergunta Jacobs.
Uma prova de que pensar é muito difícil e também algo que fazemos “no automático” é
que muita gente leu o primeiro parágrafo e, impacientemente, correu para a caixa de
comentários ou simplesmente me sentenciou em silêncio (e talvez tenha sentenciado até
mesmo o autor do livro) ao frio gelado dos jornalistas pretensiosos que acham que são
capazes de ensinar os outros a pensar. Onde já se viu uma coisa dessas, não é mesmo?
O primeiro se manifesta de várias formas na nossa vida cotidiana. Quando decidimos não
atravessar a rua com o sinal vermelho, por exemplo. Quando acordamos e abrimos mão
daquela preguicinha matinal deliciosa para irmos trabalhar e, assim, não corrermos o
risco de uma bronca ou demissão. Quando damos nota para o motorista do Uber. E,
finalmente, quando damos ou não “like” nas redes sociais e, mais frequentemente do que
nunca, quando usamos um meme ou até um xingamento para refutar aquilo que tanto
nos causa ojeriza.
Mas por que cedemos tanto a esse pensamento apressado e não raro equivocado? Para
Jacobs (você já entendeu, mas não custa repetir que tudo neste texto se refere ao que ele
diz no livro) e seus amigos cientistas, a primeira dificuldade está no fato de o pensamento
afetar tanto nossas relações pessoais. Ninguém pensa sozinho e ninguém está isento de
influências, sejam elas conscientes ou não. E ninguém quer ser um pária por pensar
diferente.
Daí porque tendemos a pensar em grupo. A ideia de pensar sozinho, ou melhor, pensar
por si mesmo é uma impossibilidade, a não ser, talvez, se você for um eremita. Pensamos
também para nos relacionar, para causar uma boa impressão, para influenciar, para que a
vida siga um determinado curso. O ato de pensar, portanto, requer esforço não só
cognitivo, mas também emocional. Isso serve tanto para o pensamento rápido e intuitivo
quanto o demorado, reflexivo, embora se possa argumentar que a sabedoria só pode ser
alcançada mesmo com certo domínio da emoção, como ensinam os filósofos estoicos.
Sim, é difícil resistir ao impulso de fazer parte da manada. “Por que as pessoas pensariam,
uma vez que pensar lhes tira o ‘prazer de compartilhar uma atitude que se sabe ser
socialmente aprovado’ – sobretudo num ambiente virtual no qual é fácil adquirir
aprovação social por meio de likes, seguidores e amigos?”, pergunta a ensaísta Marilynne
Robinson.
A guerra do pensamento
Outra reflexão interessante de Jacobs a respeito do simples ato de pensar nesse nosso
mundo hiperinformado e hiperconectado é a transformação do pensamento em
instrumento de agressividade e defesa. Parece um paradoxo, e talvez seja mesmo. Quanto
mais informações e possibilidades de nos expressarmos temos, mais recorremos ao
instrumento primitivo do conflito. Somos inteligentes, mas não buscamos o consenso;
preferimos usar essa inteligência para derrotar e até destruir o outro.
3/8
E, assim, construímos para nós não a imagem de seres intelectuais, e sim de guerreiros
adorados pela tribo, admirados pelo domínio dessa ferramenta extremamente sofisticada
que é o pensamento.
Isso porque o pensamento, ou melhor, as ideias que são o produto deste pensamento se
tornaram, sobretudo ao longo do século XX, armas perigosas. Ideias fizeram com que
vizinhos mandassem vizinhos para gulags. Ideias fizeram com que vizinhos mandassem
vizinhos para campo de concentração. Ideias provocaram a morte de centenas de
milhares de pessoas sob cogumelos atômicos. E, por causa desses acontecimentos, do
nosso medo diante das ideias alheias, nos acostumamos a nos munir de pensamentos a
fim de esmagar qualquer ameaça que enxerguemos no pensamento (matéria-prima da
ideia) alheio.
Ideias continuam destruindo. Na era das redes sociais, ideias fazem com que pessoas
percam o emprego, tenham o casamento arruinado, caiam no ostracismo e até cometam
suicídio por algo que disseram (e não existe essa coisa de dizer “impensadamente”; você
só cedeu ao impulso do pensamento instintivo). Daí a vontade de ter, sempre na ponta da
língua ou dos dedos, aquele argumento matador, que não só vai anular qualquer ameaça
como renderá ao pensador todas as glórias que ele merece por suas brilhantes sinapses.
É possível contornar esse problema. Mas não é nada fácil. Para começo de conversa, é
preciso abdicar ao máximo de termos belicosos. Ninguém realmente destrói ninguém
com uma frase certeira. A única coisa que se consegue é uma humilhação passageira que
pode virar ressentimento e dar origem a um sentimento ainda mais nocivo de vingança.
Ninguém muda de ideia nem tampouco dá um passo em direção ao consenso ao se sentir
derrotado por um argumento, por mais enfático que ele seja.
Depois é preciso estar disposto a ser “derrotado” pelo pensamento alheio. Quando você
se deixou convencer pela última vez? Quando você permitiu que um argumento
perfurasse essa sua armadura formada por uma trama de emoções, intuições,
experiências pretéritas, fatos mais ou menos comprovados e até clichês? Para Jacobs,
essa disposição em ser “derrotado” num debate significa “crer que as pessoas com as
quais você está debatendo são pessoas decentes, que não querem prejudicá-lo nem
manipulá-lo. (...) Isso sugere que o problema do pertencimento e não-pertencimento, de
inclusão e exclusão, é fundamental para quem quer aprender a pensar”.
4/8
Nós nos fixamos tanto nessa ideia de que um debate é uma guerra, em parte, porque os
seres humanos geralmente são competitivos demais; mas também porque em muitos
debates há realmente algo a ser perdido, e comumente o que está ameaçado é nosso lugar
na sociedade. Perder um debate pode ser um constrangimento pessoal, mas também pode
ser um indício de que você está ao lado de pessoas erradas, o que significa que você precisa
encontrar outro grupo ou aprender a conviver com o que os marxistas chamam de
“consciência falsa”.
Aliás, o hábito de repugnarmos todas as ideias que nos desagradam é tanta que a
antropóloga Susan Friend Harding, interessada no fenômeno, cunhou o termo “repugnant
cultural other”, isto é, o “outro culturalmente repugnante”, para descrevê-lo. O termo se
refere ao reflexo de regurgitar diante de ideias que de antemão nos desagradam, como
quando um físico vai a uma palestra de coach quântico ou quando um libertário assiste a
um congresso do Partido Comunista, por exemplo. Nestes casos, a distância de valores e
convicções é tamanha que simplesmente não há possibilidade de diálogo e consenso.
Aqui a palavra “distância” é essencial. Citando o velho e bom Kierkegaard (aquele nome
que confere a qualquer texto um quê de erudição ridícula) e mais uma vez Sir Roger
Scruton, Jacobs explora o conceito do “outro” em relação à aproximação real e a relativa,
aquela criada pelo convívio no ambiente virtual. Scruton aconselha o pensador a ter uma
postura mais generosa para com este outro que, por causa dos avanços tecnológicos,
deixou de ser um vizinho de carne e osso, com o qual você pode se relacionar fisicamente,
para se tornar um “outro” quase inumano: um avatar e um screen name,
Mas, claro, todos temos convicções – o que é bem diferente de nutrir teimosias. Essas
convicções formam a espinha dorsal de muitas das coisas que pensamos e, por
consequência, de muitos dos debates que travamos. Mas convicções são um problema
porque, se não queremos parecer teimosos, tampouco queremos demonstrar hesitação
nem tampouco sermos vistos como fracos.
São nossas convicções inabaláveis as responsáveis por investirmos boa parte da vida
nesta ou naquela linha de raciocínio, a ponto de ser impossível, a partir de determinado
momento, mudar de ideia. É isso o que explica, por exemplo, por que o ex-presidente Lula
jamais fará a já mítica autocrítica ou por que aquele seu amigo de esquerda, diante da
foto de um prisioneiro morto de fome num gulag ou ainda diante de relatos das
atrocidades cometidas atualmente na Venezuela e Coreia do Norte jamais, em hipótese
alguma (salvo, talvez, um milagre), mudará de ideia: eles investiram toda a vida numa
5/8
convicção (neste caso, política) e agora é simplesmente tarde demais para uma correção
de rota. Independentemente dos fatos e da verdade objetiva, para essas pessoas é
compreensivelmente insuportável reconhecer que toda uma vida foi desperdiçada numa
luta que talvez não seja a mais virtuosa.
Esse apego social e emocional a um raciocínio, mesmo que notadamente errado e mesmo
diante de vários sinais de que a ideia só traz prejuízos, é o que leva ao fanatismo. O
fanático, explica Jacobs, de uma forma um tanto quanto óbvia, está determinado a usar
toda a sua inteligência para evitar cogitar qualquer alternativa à sua opinião. “Podemos
considerar isso um ingrediente necessário de qualquer definição útil de fanatismo: não
importa o que aconteça, isso prova o que estou dizendo. Isto é, as crenças dos fanáticos
não estão sujeitas à falsificação: tudo pode ser incorporado ao sistema (...). Fanáticos são
como os sacerdotes na parábola de Kafka: ‘leopardos entram no templo e bebem do
líquido que está na bacia de sacrifícios; isso se repete várias vezes, até que se torna parte
da cerimônia’”.
Os perigos de pensar
Jacobs conclui seu livro ressaltando os perigos de pensar: “Não posso prometer que, se
você mudar de ideia, você não vá perder ao menos alguns de seus amigos – e isso é
importante porque, se você aprender a pensar, pensar de verdade, você vai, às vezes,
mudar de ideia”.
Por fim, ele propõe, com alguma generosidade, que a opção por não pensar, isto é, por se
deixar levar pelas convicções sem embasamento (teimosia), pelo espírito belicoso e pela
insuportável sensação de ter investido toda a vida num ideário equivocado é, no final das
contas, uma escolha. Citando Tomás de Aquino, ele diz que “deixar de pensar é um ato de
desespero – não consigo ir além – ou de simples arrogância – eu não preciso ir além”.
Veja Também:
6/8
comunique erros Sobre a Gazeta do Povo
Sobre a Gazeta do Povo
7/8
Sua Leitura 0pontos
Esta matéria:+0
8/8