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Políticas de educação profissional:

referências e perspectivas

Resumo
O artigo revisita o processo histórico à formação escolar e profissional, assi-
de construção do modelo de educação nalando as peculiaridades da área da
profissional de nível médio vigente no Bra- saúde que a afastam do modelo de edu-
sil, procurando identificar aspectos que cação profissional de nível médio com ca-
auxiliem na compreen- ráter de terminalidade.
são de questões pertinen- Palavras-chave:
Mônica Wermelinger
tes a essa modalidade de Educação profissional.
Doutoranda da Escola Nacional
ensino. Aborda a duali- de Saúde Pública Ensino técnico. Ensino
dade do ensino médio, a Pesquisadora da Fundação médio. Terminalidade.
associação entre discri- Oswaldo Cruz Formação em saúde.
minação social e ocupa- monicaw@fiocruz.br
ções técnicas, a conten-
ção de demanda ao ní-
Maria Helena Machado Abstract
Doutora em Sociologia
vel superior de ensino, a Pesquisadora da Fundação Professional
formação integral do ci-
dadão e a formação
Oswaldo Cruz educational
machado@ensp.fiocruz.br
para o mundo do traba- Antenor Amâncio Filho
policies:
lho, situando a educação Doutor em Educação references
profissional na área da Pesquisador da Fundação
saúde nesse contexto. Oswaldo Cruz
perspectives
Foram utilizados, como amancio@ensp.fiocruz.br This paper argues the
fontes, a legislação bra- historical process of
sileira para a educação, professional education
além de referenciais, diretrizes e docu- models construction in the Brazilian high
mentos técnicos do Ministério da Educa- schools to help the understanding of this
ção. O artigo ressalta a importância que education modality questions. It
o conceito de terminalidade adquiriu nas approaches the high schools ambiguity, the
propostas para a educação profissional, association between social discrimination
apontando a politecnia como alternativa and technical occupations, containment of

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208 Mônica Wermelinger, Maria Helena Machado e Antenor Amâncio Filho

demand to the Universities, citizen’s propuestas para la educación profesional,


integral formation and formation to the señalando la politecnia como alternativa a
work, pointing out the health area in this la formación propedéutica y profesional,
context. It had been used, as sources, the señalando las particularidades del área de
Brazilian legislation for the education and la salud que la separan del modelo de la
other governmental technical documents. educación profesional de nivel medio con
The article intends to show the importance carácter de término de formación.
that the finish point concept acquired in the Palabras clave: Educación profesional.
professional education proposals, pointing Educación técnica. Escuela secundaria.
the politecnia as alternative to the school Recursos humanos de la salud.
and professional formation, designating the
peculiarities of the health area.
Keywords: Professional education. Introdução
Technical education. High school. Health No Brasil, quando se discute edu-
human resources. cação, é preciso considerar inúmeros
aspectos, pelo fato de ser este um país
de dimensões continentais, com situa-
Resumen ções sociais, econômicas e culturais tí-
Políticas de educación picas e diferenciadas, que obrigam a
refletir sobre como se aproximam e se
profesional: referencias y articulam as ações promovidas nas três
perspectivas esferas de governo (municipal, estadu-
El artículo revisita el proceso histórico de la al e federal), bem como se essas ações
construcción del modelo de educación refletem os anseios da população no
profesional del nivel medio en Brasil, que diz respeito à escolaridade e à for-
buscando identificar los aspectos que mação para o trabalho.
ayuden a la comprensión de las cuestiones
pertinentes a esta modalidad de Historicamente, apesar dos esforços
educación. Aborda aspectos como la empreendidos para estabelecer políticas
dualidad de la educación media, la educacionais afirmativas dessa modali-
asociación entre la discriminación social y dade de ensino, a educação profissional
las ocupaciones técnicas, la contención de de nível médio foi e continua sendo dis-
la demanda a la universidad, la formación criminada por uma significativa parcela
integral del ciudadano y la formación para da sociedade, que a tem como um meio
el mundo del trabajo, precisando la de fazer ingressar no mercado de traba-
educación profesional en el área de la lho pessoas consideradas como possui-
salud en este contexto. Han sido utilizados, doras de capacidade intelectual, econô-
como fuentes, la legislación brasileña para mica e social insuficientes para prosse-
la educación, además de los referenciales, guirem nos estudos. A baixa definição dos
las directrices y documentos técnicos del objetivos, finalidades e proposições des-
ministerio de la educación. El artículo sa modalidade de ensino, certamente
resalta la importancia que el concepto de podem ser tomados como fatores contri-
término de formación adquirió en las butivos para esse entendimento.

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Também não se pode perder de vista ganização de serviços socialmente adequa-


que a delimitação do trabalho dos técnicos dos. Portanto, a formação de pessoal técnico
depende de situações locais e de circuns- de nível médio da saúde deve fundamentar-
tâncias que os tornam profissionais neces- se em uma visão crítica do contexto social,
sários e fundamentais no campo em que não dissociando o domínio da técnica da
atuam. Quando se trata de um laborató- participação e do agir político.
rio, por exemplo, os técnicos executam en-
saios experimentais e suas ponderações e A constituição e a implementação do
interpretações constituem fontes de informa- Sistema Único de Saúde, trouxe novos ce-
ção para que os pesquisadores avaliem os nários e possibilidades que exigem estraté-
resultados obtidos e as estratégias adota- gias de formação que tenham como refe-
das. Se, no entanto, o trabalho ocorre em rência os princípios éticos da universalida-
uma unidade de saúde, as relações e inte- de, da equidade e da integralidade, visan-
rações que se estabelecem nesse espaço do a garantir à população o acesso iguali-
diferem das que ocorrem em um laborató- tário às ações e serviços para a promoção,
rio, pois nele há um componente central proteção e recuperação da saúde.
do processo de trabalho, que é o doente,
ou seja, as relações incluem o doente e as Fundamental, ainda, é compreender a
inúmeras implicações que disso advém. vital importância de recursos humanos bem
formados e comprometidos com a causa
Em virtude das especificidades e peculia- da saúde para garantir a qualidade e a
ridades que caracterizam o trabalho em saú- resolubilidade dos cuidados e dos serviços
de (preservação da existência humana, luta de saúde disponíveis para a população.
constante pela manutenção da vida, cuida- Nesse contexto, as relações entre educa-
dos para evitar riscos à saúde e à qualidade ção e trabalho assumem posições estraté-
de vida do ser humano, convívio e oposição gicas e repletas de novos significados, pois
permanente ao fenômeno morte), a forma- a função da educação se torna mais im-
ção de recursos humanos para o setor cons- portante na preparação da força de tra-
titui-se em locus privilegiado de estudo das balho, uma vez que as habilidades re-
variáveis – políticas, econômicas, sociais e queridas do novo trabalhador são muito
culturais – que permeiam a educação profis- relacionadas com aquelas desenvolvidas
sional de nível médio em nosso país. na escola, isto é, responsabilidade, ca-
pacidade de abstração, de resolver pro-
Em uma sociedade estratificada e hierar- blemas, de trabalhar com símbolos e
quizada como a nossa, a aplicabilidade tan- compreensão de textos abstratos, entre
to do conceito de saúde expresso na 8ª. Con- outras. (SALGADO, 1997, p. 87).
ferência Nacional de Saúde quanto da no-
ção de saúde como direito social, esbarra O presente artigo foi construído na percep-
em limitações e obstáculos, especialmente se ção de que o processo de mudança deve con-
considerarmos que as desigualdades sociais jugar clareza e vontade política, compromisso
e regionais existentes refletem condições es- social e competência técnica, remetendo à re-
truturais que restringem o desenvolvimento de flexão sobre o processo de educar cidadãos para
um nível satisfatório de saúde e de uma or- a vida e para o mundo do trabalho.

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Ensino médio: formar sua auto-realização e exercitar, de forma


consciente, seu direito de cidadania. Nessa
para a universidade ou perspectiva, segundo Sucupira (1974, p.13):
para o trabalho? A cultura geral se faz necessária para
servir de base à educação profissional
De uma maneira geral, o ensino de ní-
não somente pelos conhecimentos que
vel médio manteve, durante décadas, a fi-
oferece, mas também pelas qualidades
nalidade de preparar o aluno para ingres-
intelectuais que desenvolve. Ao mesmo
sar no ensino superior. Já na década de
tempo, a formação profissional apare-
trinta do século passado, esse aspecto pro-
ce como elemento da personalidade
pedêutico era ressaltado de modo enfático
humana integral, como elemento da
por Campos (1931, p. 3): “O ensino se-
própria cultura. A formação profissio-
cundário tem sido considerado entre nós
nal e a própria profissão constituem fa-
como um simples instrumento de prepara-
tor educativo, fator de socialização do
ção dos candidatos ao ensino superior,
indivíduo, modo de afirmação e aper-
desprezando-se, assim, a sua função emi-
feiçoamento do homem. Há, portanto,
nentemente educativa.”
complementaridade entre educação ge-
ral e formação profissional.
Ao longo do tempo, a ausência de uma
política educacional que articulasse o mun-
do escolar com o mundo do trabalho aca- Em que pese a intenção manifesta,
bou por delegar ao ensino secundário o equacionar as duas formas de ensino trou-
caráter de transição entre os níveis de ensi- xe incontáveis transtornos de ordem práti-
no fundamental e superior. Como tentativa ca, tendo-se tornado freqüentes as polêmi-
de resposta a essa aparente falta de objeti- cas e os debates em torno do tema “tecno-
vidade da educação intermediária, em 1971 logia versus humanismo”. Problemas e di-
foi sancionada a Lei n o 5.692 (BRASIL, ficuldades surgiram para a implantação do
1971), visando a tornar compulsória a pro- novo modelo educativo, cuja explicação
fissionalização mediante um intenso pro- pode ser encontrada em diversas razões,
cesso de qualificação para o trabalho. Os como o viés acadêmico de que se revestiu
currículos passaram a ter um núcleo co- a proposta, a falta de esclarecimento dos
mum obrigatório, de alcance nacional, com professores em relação ao projeto, a falta
enfoque na educação geral e uma parte de incentivo para adoção e aplicação das
diversificada, para atender às especificida- novas diretrizes e a carência de professores
des locais mediante a habilitação profissi- qualificados para ministrarem disciplinas
onal dos alunos. novas (OLIVEIRA, 1981, p.133-134). Pode-
se acrescentar a esses fatores a falta de
Na busca da interação entre o ensino apoio ao modelo por parte da sociedade,
propedêutico e o técnico, a Lei preconizava que continuava a compreender o ensino
a preparação para o trabalho, de acordo secundário como uma etapa preparatória
com as necessidades do mercado, em con- para a universidade. Nesse contexto, a ge-
sonância com uma formação geral que ob- neralização do ensino profissional no nível
jetivava fornecer ao aluno condições para médio não se concretizou, extinguindo-se sua
desenvolver suas potencialidades, alcançar obrigatoriedade e restabelecendo-se a mo-

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dalidade de educação geral pela promul- conceito de politecnia pressupõe ultrapas-


gação da Lei no 7.044 (BRASIL, 1982), que, sar o conhecimento meramente empírico e
a rigor, apenas referendou o que já vinha requer formas de pensamento mais abstra-
sendo praticado nas escolas, reafirmando a tas. Isso significa ir além da formação téc-
concepção do ensino médio como uma nica e enseja um trabalhador com perfil mais
modalidade destinada aos já socialmente amplo, “consciente, capaz de atuar criti-
incluídos nos benefícios da produção e do camente em atividades de caráter criador e
consumo, preparando-os para ingressar na de buscar com autonomia os conhecimen-
universidade (KUENZER, 2001, p. 30). tos necessários ao seu progressivo aperfei-
çoamento.” (MACHADO, 1989, p. 19).
Segundo Machado (1989, p. 33), dis-
torções ainda prevalecem no ensino de ní- Do ponto de vista pedagógico, a no-
vel médio, em especial pelo fato de que ção de politecnia encaminha para a supe-
O ensino médio fica como uma espécie ração da distinção entre trabalho manual
de nó, no centro da contradição: é pro- e trabalho intelectual, entre instrução pro-
fissionalizante, mas não é; é propedêuti- fissional e instrução geral. Ou seja, apren-
co, mas não é. Constitui, portanto, o pro- der a ler, escrever e contar, além de noções
blema nevrálgico das reformas de ensi- cognitivas das ciências naturais e das ci-
no que revela em maior medida, o cará- ências sociais, são pressupostos básicos
ter de abertura ou de restrição do siste- para compreender o mundo em que se vive,
ma educacional de cada nação. Não exis- inclusive para compreender a própria in-
te clareza a respeito dos seus objetivos e corporação, pelo trabalho, dos conheci-
métodos e geralmente costuma ser o úl- mentos científicos, no contexto da vida e
timo nível de ensino a ser organizado. da sociedade (SAVIANI, 2003, p. 140). Por
essa perspectiva, politecnia diz respeito
Frente a essa realidade complexa, é ne- ao domínio dos fundamentos científi-
cessário refletir sobre uma proposta peda- cos das diferentes técnicas que caracte-
gógica que contenha, em seus pressupostos rizam o processo de trabalho produtivo
teóricos, elementos que atendam às condi- moderno. Está relacionada aos funda-
ções dessa mesma realidade. Com essa com- mentos das diferentes modalidades de
preensão, pode ser pensada uma proposta trabalho e tem como base determina-
para o ensino médio “à luz do trabalho to- dos princípios, determinados fundamen-
mado como princípio educativo” (KUENZER, tos, que devem ser garantidos pela for-
1989, p. 31), formulada sob o conceito de mação politécnica.
uma organização de ensino que conjugue
três características: que seja politécnica quan- Calcada nesse entendimento, a educa-
to ao conteúdo, única quanto à estrutura e ção politécnica permitiria propiciar ao tra-
dialética quanto à metodologia. balhador a formação centrada no desen-
volvimento multidimensional, capaz de ha-
Enquanto as características provenien- bilitá-lo para o exercício de diversificadas
tes da escola unitária e da relação dialéti- funções, rejeitando adestramentos direcio-
ca conduzem ao desenvolvimento do raci- nados para tarefas específicas. Articular o
ocínio crítico e histórico do ser humano, o trabalho manual e intelectual durante o

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processo de formação é uma forma efici- das pelos trabalhadores na produção


ente e eficaz de aprendizagem, que possi- flexível requerem um conjunto maior de
bilita assimilar, unindo teoria e prática, os qualificação. Na prática, o que se esta-
princípios científicos preconizados na or- belece é a exigência que os trabalhado-
ganização do processo produtivo. res sejam multifuncionais. (OLIVEIRA,
2003, p. 259).
Se é verdade que a concepção original
dos cursos técnicos integrados, oferecidos Educação profissional: um
por escolas técnicas e Centros Federais de
Educação Tecnológica – CEFETs, se vincu- dilema histórico
lava a orientações tecnicistas, A educação profissional, em nosso país,
ainda assim as diversas possibilidades pode ser compreendida como um sistema que
de integração de conteúdos da teoria e reflete determinada visão de mundo, mas que
a infra-estrutura disponível na maioria denota uma limitada apreensão da realida-
dessas instituições, fez com que esses de, se considerada a delimitação tempo-es-
cursos viessem a constituir, na prática, a paço e as especificidades que nele ocorrem.
experiência na história da educação bra- É possível, porém, quantificar e qualificar os
sileira que mais se aproximou de uma princípios informativos da lógica desse siste-
formação integral no nível médio, em- ma educativo, que assume configurações
brião do que poderia aproximar-se da definidas em cada momento histórico, numa
concepção politécnica em construção. espécie de ambiência, equivalente a um con-
(GARCIA; LIMA FILHO, 2004, p. 23) tínuo processo de mutação.

Por sua vez, pode-se compreender que Aceita essa perspectiva, apreende-se
a utilização do conceito de polivalência nos que as primeiras iniciativas, no sentido de
documentos empresariais elaborados e di- firmar uma relação entre educação e tra-
vulgados por empresas como tentativa de balho, foram realizadas em virtude do de-
fazer do processo educativo um espaço de senvolvimento da economia de subsistên-
formação de indivíduos que se identifiquem cia e, particularmente, do incremento à ati-
diretamente com os interesses (como se es- vidade extrativa de minérios em Minas Ge-
ses também fossem seus) dos setores empre- rais. Os primeiros núcleos de formação pro-
sariais. A ênfase em flexibilidade e compe- fissional de artesãos e demais ofícios, as
tências nas diretrizes da educação profissio- “escolas-oficina”, foram sediadas nos co-
nal estariam, assim, atendendo de forma légios e residências dos padres jesuítas. A
subjacente aos interesses dos setores produ- Companhia de Jesus trouxe da Europa re-
tivos. Por esse enfoque, a utilização do con- ligiosos para aqui praticarem suas especi-
ceito de polivalência se apresentaria como alidades profissionais e, simultaneamente,
mais uma expressão da modificação do ensinarem seus misteres a escravos e ho-
discurso das elites visando conseguir, mens livres que demonstrassem habilida-
também no plano da produção, a sua des para a aprendizagem. Visavam, desse
hegemonia política. A utilização do con- modo, suprir a carência de mão-de-obra
ceito de polivalência procura criar a fal- especializada observada na Colônia.
sa impressão de que as tarefas realiza- (MANFREDI, 2002, p. 69).

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A par da atividade educativa e da cate- do, representam “o marco inicial da orga-


quese dos indígenas, os jesuítas tiveram in- nização do trabalho no País, e da aprendi-
fluência decisiva na construção de escolas zagem, embora assistemática, de artífices na-
para setores da elite do Brasil Colônia. Tal turais da terra” (FONTES, 1985, p. 14). É
como havia ocorrido em Portugal, os colé- importante ressaltar que as características
gios jesuítas se dedicavam, sobretudo, à for- principais desses estabelecimentos de apren-
mação de indivíduos para ocupar posições dizagem eram seu aspecto assistencialista de
de direção e de mando na sociedade, privi- atendimento aos órfãos e desvalidos e sua
legiando o currículo humanístico, que mais recusa em ensinar a negros e escravos. Eram
interessava às famílias dos ricos senhores de vistas mais como “obras de caridade” do
engenho, por assemelhar-se à cultura dos que como “obras de instrução pública”.
nobres portugueses. Por conseqüência, o (MANFREDI, 2002, p. 77).
ensino científico profissional pouco evoluía
por estar associado ao trabalho manual, tido A título ilustrativo, cabe mencionar que,
como próprio para os escravos. O próprio na cidade do Rio de Janeiro, a educação
sistema escravocrata vigente à época impri- profissional surgiu sob o argumento de pro-
mia um caráter subalterno às atividades físi- mover a inclusão social de uma parcela da
cas e manuais. Assim, população que não tinha acesso ao mer-
numa sociedade onde o trabalho manu- cado de trabalho. Com essa mentalidade
al era destinado aos escravos (índios e foi criada, no final da década de 1890, a
africanos), essa característica ‘contami- Escola Correcional, no Bairro de São Cris-
nava’ todas as atividades que lhes eram tóvão, que se destinava a ensinar algum
destinadas, as que exigiam esforço físico ofício “a meninos pobres e desvalidos da
ou a utilização das mãos [...]. Aí está a fortuna”. Mediante o preparo profissional
base do preconceito contra o trabalho desses meninos, atendia-se à demanda do
manual, inclusive e principalmente da- crescimento desordenado da população,
queles que estavam socialmente mais em uma época de profundas transforma-
próximos dos escravos: mestiços e bran- ções urbanísticas que ocorriam na cidade.
cos pobres. (CUNHA, 2000, p. 90).
Durante a Primeira República (1889-
Com a transferência da Corte Portugue- 1929), a educação profissional ganhou
sa para o Brasil, em 1808, ocorrem trans- nova configuração sem, contudo, perder o
formações sociais, econômicas e políticas de caráter assistencialista. Nessa época, foram
grande significado para a Colônia. Do ponto criadas, pelo Presidente Nilo Peçanha1, nas
de vista da educação profissional, a histori- capitais dos estados, escolas de aprendizes
ografia oficial aponta a formação de corpo- e artífices para o ensino profissional gratui-
rações de ofícios, a exemplo de Portugal, to, considerando que
onde foram adotados os padrões de hierar- O aumento constante da população das
quia e disciplina vigentes no âmbito militar. cidades exigia que se facilitasse às clas-
Tais instituições, criadas e mantidas por so- ses proletárias os meios de vencer as
ciedades particulares, com apoio do Esta- dificuldades sempre crescentes na luta

1
Presidente da República (1909-1910), assumiu o cargo em decorrência da morte do Presidente Afonso Pena.

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pela existência e que, para isso, se tor- Assim, a política educacional brasileira no
nava necessário, não só habilitar os fi- primeiro quarto do Século XX
lhos dos desfavorecidos da fortuna com acaba por admitir que, afinal, o Brasil é
o indispensável preparo técnico e inte- ainda um imenso território a ser explo-
lectual, como fazê-los adquirir hábitos rado, que muitas mercadorias estão lá,
de trabalho profícuo que os afastassem praticamente prontas, dadas, nos pas-
da ociosidade, da escola do vício e do tos, nas florestas, nas águas, nas abun-
crime. (BRASIL, 1909). dantes e férteis terras. Ora, essas mer-
cadorias precisam apenas de braços
Os aspectos de cunho social e caritati- fortes e musculosos, de puras energias
vo marcaram indelevelmente os primórdios humanas e de elementares instrumen-
da educação técnica no Brasil. Sempre es- tos técnicos que simplesmente as ex-
teve associada à população de baixa ren- traiam, ‘limpando-as do cascalho’, cor-
da, sem identidade, destituída de intenções tando, colhendo, pescando. (NOSELLA,
pedagógicas de desenvolvimento intelectual 2002, p. 168).
pleno: “O governo e os industriais viam as
escolas como instituições piedosas e não Com o lançamento, na década de 30,
integradas à estrutura de produção, além de um projeto industrial para o país, a edu-
dos aspectos limitados impostos à qualifi- cação profissional sofreu significativas mo-
cação qualitativa mais ampla da mão-de- dificações, aumentando a demanda para
obra industrial”. (FONTES, 1985, p. 24). a formação de operários especializados e
de quadros técnicos intermediários. Como
Até a década de 30, o Brasil era um desdobramento, a Constituição de 1937
país agroexportador, tendo como base eco- estabeleceu a obrigatoriedade da organi-
nômica a indústria açucareira e, posterior- zação de escolas de aprendizes, por parte
mente, a do café. As forças políticas sus- de empresas e de sindicatos. Mérito inques-
tentavam as oligarquias rurais, um dos prin- tionável dessa Constituição foi eliminar a
cipais pontos de apoio da classe dominan- referência que se fazia, sempre, ao ensino
te. A estrutura social, de sólida formação profissionalizante como destinado aos des-
econômica, reduzia a importância do pa- favorecidos da fortuna ou desvalidos da
pel do Estado, que freqüentemente não sorte. No período do Estado Novo (1937-
detinha a força política necessária para 1945), o governo adotou o ensino profissi-
promover intervenções nas unidades fede- onal como prioridade, visando a formar tra-
radas. Nesse cenário, predominava uma balhadores capazes de se adequarem à
concepção de ensino elitista, voltada para organização científica do trabalho, princí-
a área de letras e humanidades. As espar- pio que se ajustava à inspiração taylorista-
sas tentativas para dar ao ensino profissio- fordista de organização do trabalho na pro-
nal um tratamento sistematizado e caráter dução industrial (KIRSCHNER, 1993, p. 14).
de obrigatoriedade, não obtiveram suces-
so, dentre outras razões pelo fato de que, Na década de 40, no plano das reformas
em uma economia essencialmente agro- educacionais, busca-se a adesão dos indus-
exportadora, à população trabalhadora era triais para a manutenção de cursos profissio-
suficiente um nível de escolaridade baixo. nais para os operários. Promulga-se um de-

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creto determinando que os cursos poderiam nização. Teve início o Plano de Metas do
ser instalados, como unidades autônomas, governo Kubitschek (1956-1961), que con-
nas indústrias ou em suas proximidades, po- tinha trinta propostas (com ênfase nos seto-
dendo ser mantidos em comum por vários res de energia, transporte, siderurgia, cimen-
estabelecimentos industriais. Duas outras ini- to, automobilística, naval), que contribuiri-
ciativas importantes ocorrem em 1942, con- am para mudar a feição do país, fazendo
tribuindo para a adequação da formação com que deixasse de ser uma nação agrária
profissional às tendências de parcialização do para se tornar um país industrial, com a for-
processo de trabalho: foi criado o Serviço mação técnico-profissional passando a ser
Nacional da Aprendizagem –SENAI, que li- sinônimo de modernização. A transforma-
berou as indústrias e sindicatos da responsa- ção político-institucional, em 1964, acen-
bilidade exclusiva da educação profissional tuou, ainda mais, a tendência de racionali-
de seus operários e promulgada a Lei Orgâ- dade via concepção tecnicista da educação2.
nica do Ensino Industrial que, além de esta-
belecer as bases da organização desse ensi- Para completar o ciclo de iniciativas do
no, equiparou-o ao ensino secundário e in- período denominado de “tendência tecnicis-
troduziu a orientação educacional nas esco- ta”, o Congresso Nacional aprova e o Go-
las de formação profissional. verno promulga, em 1971, a Lei n° 5.692 (BRA-
SIL, 1971), que institui o ensino de segundo
A década de 50 teve o mérito de pro- grau de profissionalização compulsória. A prin-
mover, por meio de inúmeros atos legais, o cipal justificativa dos que defendiam a gene-
ajuste e a reformulação da estrutura edu- ralização da formação profissional nesse nível
cacional erigida durante o período autori- de ensino era uma suposta demanda do mer-
tário do Estado Novo. Quando a Lei de cado de trabalho por técnicos de nível médio,
Diretrizes e Bases da Educação, Lei no. surgida em decorrência do crescimento eco-
4.024 (BRASIL, 1961), foi finalmente pro- nômico acelerado do período denominado de
mulgada, muitas das inovações nela cons- “milagre econômico”, entre os anos de 1968
tantes já tinham sido incorporadas ao coti- e 1974 (LIMA, 1996, p. 33). Entretanto, seja
diano educacional, como, por exemplo, a pela falta de estrutura para implantação de
equivalência entre os diversos ramos de cursos técnicos ou pela falta de pessoal do-
ensino médio e a legislação sobre cursos cente habilitado para lecionar nesses cursos,
em cooperação com empresas. essa medida nunca chegou a ser amplamente
adotada, sendo alvo de inúmeras críticas e de
No início da década de 60, acentua-se fortes controvérsias a tal ponto que, alguns
a internacionalização da economia, com forte anos depois, o governo editou outro instru-
participação do Estado, que passou a ocu- mento legal, eliminando o caráter compulsó-
par posição central no processo de moder- rio da profissionalização.

2
Surgiram, nessa época, várias iniciativas no campo da educação profissionalizante: Ginásios industriais (1961); Ginásios
orientados para o trabalho (1963); Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra Industrial (1963); Centro de Educação
Técnica, no Rio de Janeiro e em São Paulo (1964);Fundação de Educação para o Trabalho de Minas Gerais (1965); Centro de
Educação Técnica do Nordeste (1967); Centro de Educação Técnica da Amazônia (1968); Centro de Educação Técnica de Brasília
(1968); Centro de Educação Técnica da Bahia (1968); Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Médio (1968); Centro
Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (1969); Fundação Centro Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal para a
Formação Profissional (1969). (KIRSCHNER, 1993, p. 12).

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O desenvolvimento industrial do país e Um dos principais problemas causados


a necessidade de formar especialistas e téc- por esse dilema é a falta de respaldo das ins-
nicos de diversos níveis para atender à de- tituições públicas de ensino técnico-profissio-
manda, imprimiram uma nova perspectiva nal, para a manutenção de seus altos gastos
para a formação profissional. Como con- (KIRSCHNER, 1993, p. 15). Esse é um dos
seqüência, em 1978 o governo deu início argumentos utilizados por empresários e po-
à política de transformar algumas escolas líticos para subsidiar o discurso de que essas
técnicas em CEFETs, tendo por objetivos: escolas federais e os CEFETs não atendem à
a) ministrar ensino de graduação e pós- sua função social primordial e que estariam
graduação, com vistas à formação de pro- voltadas para as elites, formando profissio-
fessores e especialistas para o ensino de nais que, em grande parte, não chegam à
segundo grau e formar tecnólogos; b) mi- ingressar no mercado de trabalho.
nistrar ensino de segundo grau, com vistas
à formação de auxiliares e técnicos indus- Mesmo admitindo os méritos das inici-
triais; c) promover cursos de extensão, aper- ativas desse período histórico (1930-1990)
feiçoamento e especialização, objetivando no campo do ensino médio, Nosella (2002)
a atualização profissional na área industri- analisa que elas serviram mais para disfar-
al; d) realizar pesquisas na área técnica çar, pela equivalência burocrática, a dico-
industrial, estimulando atividades criado- tomia entre as modalidades propedêutica e
ras e estendendo seus benefícios à comu- profissionalizante de ensino e, pretensamen-
nidade, mediante a oferta de cursos e ser- te, atender às aspirações dos trabalhado-
viços (BRASIL, 1978). res por um maior nível de escolaridade e
uma melhor formação profissional. Segun-
Contudo, o duplo papel das escolas do ele, a política educacional
federais e dos CEFETs, de preparar os estu- democratizou a clientela escolar mas
dantes para o mundo do trabalho e para deformou o método rebaixando a qua-
seguir os estudos em nível universitário, lidade; ensinou ao povo o caminho da
estaria contribuindo para diminuir as opor- escola, porém não lhe deu uma verda-
tunidades às novas ocupações e promo- deira escola. Criou pobres cursos su-
vendo o distanciamento progressivo entre pletivos, cursos noturnos de ‘faz-de-
o que as escolas técnicas ofertam e as pre- conta’, faculdades de beira de estrada,
ocupações de trabalhadores e de empre- quatro ou até cinco turnos diários, su-
sários, no tocante à formação profissional, perlotação de salas, má formação pro-
instalando um dilema: fissional, [...] tudo para ‘cicatrizar’ a
Se por um lado, essa nova função soci- dolorosíssima ferida de uma sociedade
al – a de permitir o ingresso à universi- desigual, que para uns oferece a esco-
dade de indivíduos que não tiveram la, para outros ‘faz de conta’ que ofere-
acesso a boas escolas de nível médio ce. (NOSELLA, 2002, p. 179).
– pode ser considerada positiva, por
outro, não estaria prejudicando sua Educação profissional no
função maior, que é a de formar técni-
cos de nível médio para os setores pro- Brasil: contexto atual
dutivos? (KIRSCHNER, 1993, p. 16). Em nível internacional, a problemática

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da formação profissional de nível médio tem de se aproximar mais dessa terceira for-
sido tratada de três formas básicas. Primei- ma, ao instituir um arcabouço legal vi-
ro, como um sistema que se caracteriza por sando a romper “com um modelo que pre-
abrigar dois processos de formação inde- conizava a solução conciliatória entre os
pendentes, não equivalentes: um que pre- objetivos de preparar para o prossegui-
para o indivíduo para prosseguir os estu- mento de estudos e a formação para o
dos em nível mais elevado e, outro, que trabalho” (BERGER FILHO, 1999, p. 91),
prepara para ingressar no mundo do tra- configurando uma educação profissional
balho ao término do curso realizado, ou complementar ao ensino médio, ao mes-
seja, possui caráter de terminalidade; se- mo tempo terminal e propedêutico.
gundo, como um sistema que oferece uma
grande variedade de cursos, sendo que to- Obedecendo ao disposto no Decreto no
dos eles permitem avançar a um nível mais 5.154 (BRASIL, 2004), as escolas voltaram
elevado de ensino; terceiro, como um sis- a oferecer a educação profissional e o en-
tema que propõe uma educação geral com sino médio, de forma integrada, utilizando
ênfase na ciência e na tecnologia e uma a mesma infra-estrutura, no mesmo turno/
educação profissional complementar. escola com os mesmos professores. O De-
creto visou a normatizar uma situação já
Tendo esses eixos como referência, alguns observada na prática pedagógica cotidia-
consensos no tocante à política educacional na, ainda que sem o objetivo de terminali-
estão-se ampliando. Primeiro, juntamente com dade, com os estudantes tendo como ex-
a ciência e a tecnologia, a educação está pectativa o acesso a novos níveis de apren-
incluída na pauta das políticas de Estado, dizagem, não contemplando, porém, as-
considerada como importante fator para aten- pectos importantes para superar a duali-
der aos novos padrões de desenvolvimento; dade que marca o ensino médio.
segundo, vem sendo compreendida como
indispensável no processo para tornar as so- O Conselho Nacional de Educação
ciedades mais integradas e solidárias; tercei- (1999), por meio das Diretrizes Curriculares
ro, a aquisição e o domínio de conhecimen- Nacionais para a Educação Profissional de
tos científicos e habilidades cognitivas são Nível Técnico, determinou a organização
condições necessárias para que todo sujeito desta em vinte áreas profissionais: Agrope-
seja capaz de selecionar e de assimilar as cuária, Artes, Comércio, Comunicação,
informações que considere relevantes para seu Construção Civil, Design, Geomática, Ges-
cotidiano de vida; quarto, a informação, o tão, Imagem Pessoal, Indústria, Informática,
conhecimento e a internalização de valores Lazer e Desenvolvimento Social, Meio Am-
éticos e morais são condições essenciais para biente, Mineração, Química, Recursos Pes-
o exercício da cidadania em sociedades plu- queiros, Saúde, Telecomunicações, Transpor-
rais, cambiantes e cada vez mais complexas. tes e Turismo e Hospitalidade.
(AMÂNCIO FILHO, 1997, p. 17).
Para a construção dos currículos, o
Com relação aos rumos da educação Ministério da Educação e o Conselho Na-
profissional, no Brasil o movimento edu- cional de Educação definiram que as ma-
cacional mais recente tem sido no sentido trizes de referência seriam formuladas e di-

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vulgadas pelo MEC na forma de referenci- saber epidemiológico e social na reali-


ais curriculares, destinados a subsidiar as zação das práticas de saúde. (BRASIL,
escolas na elaboração dos currículos e no 2000, p.13).
planejamento dos cursos. Com essa inten-
ção, foram publicados, no ano de 2000, Se inovações tecnológicas e de organi-
21 volumes contendo os Referenciais Cur- zação do trabalho vêm ocorrendo com maior
riculares Nacionais de Nível Técnico3. intensidade na área industrial, é certo tam-
bém que o setor de serviços não se encontra
Contudo, no que se refere à área da alheio às mudanças. No setor saúde é pos-
saúde, dada a diversidade e multiplicidade sível verificar sinais que atestam esse movi-
de saberes, de conhecimentos e de práti- mento, tais como: a) alta taxa de incorpora-
cas que a conformam, constatou-se ser pra- ção tecnológica; b) índices elevados de ob-
ticamente inviável aplicar à educação de solescência tecnológica; c) aumento nos ní-
nível técnico em saúde um processo de tra- veis de escolaridade dos trabalhadores; d)
balho único e comum, levando em conta reivindicação por educação permanente
os Referenciais Curriculares Nacionais di- para os trabalhadores; e) necessidade de
recionados para essa área (BRASIL, 2000). novas qualificações profissionais; f) diminui-
Assim, são preconizadas para a saúde as ção da remuneração; g) precarização dos
seguintes subáreas: Biodiagnóstico, Enfer- vínculos de trabalho, com rotatividade de
magem, Estética, Farmácia, Hemoterapia, empregos. Ao mesmo tempo, amplia-se o
Nutrição e Dietética, Radiologia e Diagnós- debate sobre implementar medidas que re-
tico por Imagem, Reabilitação, Saúde Bu- sultem na humanização do atendimento, na
cal, Saúde e Segurança no Trabalho, Saú- promoção da saúde, na saúde da família e
de Visual e Vigilância Sanitária. na internação domiciliar.

No âmbito da saúde, Observa-se que a sistemática que rege


o desafio posto pela realidade atual é o a aprendizagem no âmbito da saúde não
de adequar a incorporação tecnológica deve mais se restringir à formação conven-
à estrutura de necessidades da área da cional, posto que se exige desse novo tra-
saúde, pois não existem no mundo, e balhador da saúde mentalidade condizen-
muito menos num país como o Brasil, te com as transformações que ocorrem no
recursos financeiros suficientes para mundo contemporâneo, com destaque para
suportar a lógica dos diagnósticos e as que acontecem no interior do processo
exames complementares, baseados na de trabalho. Entretanto, a dinâmica ensi-
tecnologia dos equipamentos de custo no/aprendizagem está, ainda, comprome-
altíssimo e de rápida obsolescência. tida pelas próprias características das ten-
Urge que o papel do hospital seja rede- dências curriculares:
finido na organização da atenção, me- Pensar os currículos voltados à for-
diante a valorização da atenção ambu- mação técnica em saúde significa ter
latorial e domiciliar, da articulação da como premissa que as práticas curri-
demanda espontânea a uma oferta or- culares são marcadas tanto pela his-
ganizada de serviços e da utilização do toricidade da construção do próprio
3
Um volume corresponde à Introdução ao tema e, os demais, a cada área profissional.

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conhecimento, como pelo pensamen- A maior causa de frustração dos candi-


to hegemônico no mundo do traba- datos não admitidos no ensino superi-
lho. Ou seja, trata-se de um processo or reside na ausência de uma ocupação
conflituoso e contraditório, em que as útil numa idade em que se tornam ab-
exigências de uma formação humanista sorventes as preocupações com o futu-
e crítica entram em constante choque ro. Só tardiamente, quando não se in-
com as exigências pragmáticas e ob- clui na exceção dos egressos de cursos
jetivas do conhecimento definido pela técnicos, o jovem descobre que a esco-
divisão social do trabalho posta pelo la não lhe deu sequer a tão apregoada
capitalismo. (PEREIRA, 2004, p.129). cultura geral, e apenas o adestrou para
um vestibular em que o êxito é em fun-
Ponto a salientar é que, hoje, no Brasil, ção do número de vagas oferecidas à
apesar de existirem escolas técnicas que disputa. (BRASIL, 1971).
buscam formar profissionais capazes de
compreender e de enfrentar as mudanças Ainda que enfatize a importância da
presentes e futuras, persiste um ensino de formação profissional, o texto citado con-
concepção taylorista, que objetiva atender tém uma explicação no mínimo simplista e,
a necessidades pontuais e imediatas do mesmo, tendenciosa da realidade, ao de-
mundo do trabalho. Com isso, continua a bitar a procura pelo ensino superior a al-
existir uma miríade de cursos de atualiza- guma deficiência do ensino médio, descon-
ção, reciclagem, aperfeiçoamento, que ser- siderando o fato de que essa procura é,
vem para escamotear uma política de viés também, impulsionada por uma importan-
capitalista que prepara, rapidamente e a te variável, que é a valorização desses cur-
sos como requisito de ascensão social. O
baixo custo, o profissional necessário para
fato de egressos do ensino técnico de nível
“consumo imediato”.
médio conseguirem, além do domínio de
determinada técnica, acumular conheci-
Considerações mentos propedêuticos suficientes para que,
As iniciativas constituídas ao longo do nos exames para ingresso no nível univer-
tempo para oferecer uma educação técni- sitário, concorram em igualdade de condi-
ca de nível médio em nosso país trazem ções com candidatos que cursaram ape-
presente o conceito de terminalidade, mes- nas as disciplinas da chamada “formação
mo que de maneira subjacente, tendo como geral”, reforça o entendimento de que é
intenção possibilitar àqueles que concluem necessário integrar a formação propedêu-
esse nível de ensino o exercício imediato de tica e a técnica.
uma ocupação. Nesse entendimento, a for-
mação profissional possibilitaria vencer a Também é preciso ter em conta que supe-
frustração de uma parcela de jovens egres- rar a frustração dos formados inclui vencer a
sos do ensino médio que, sem nenhuma dificuldade de ocupar um posto de trabalho
habilitação profissional, têm como alterna- imediatamente após a conclusão do curso.
tiva o caminho, inacessível para um enor- Infelizmente, qualquer curso, seja de nível
me contingente deles, dos cursos superio- médio, graduação ou pós-graduação, não
res (CUNHA, 1977). traz em si a chave para essa vitória, em ra-

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zão, principalmente, do descompasso que se uma nova e importante função no que diz
observa entre a esfera que forma (educação) respeito à manutenção da hierarquia so-
e a que emprega (mercado), ocasionado por cial e à governabilidade: conter a deman-
um mútuo desconhecimento de interesses, de da ao ensino de nível superior. Na saúde,
necessidades e de distanciamento para de- por exemplo, até a década de 90, um gran-
senvolverem, em parceria, ações conjuntas. de contingente de trabalhadores de nível
elementar e médio obtinha habilitação
No Brasil, a política de educação pro- para o exercício profissional após o ingres-
fissional está baseada na suposição de que so nos serviços de saúde. Hoje, porém,
o crescimento dos setores industrial e de após regulamentadas as profissões de ní-
serviços, verificado a partir da segunda vel técnico em saúde, exige-se a compro-
metade do século XX, promoveu e ainda vação escolar da habilitação, o que fez
promove um aumento da demanda de téc- aumentar a demanda institucional e a ne-
nicos de nível médio – argumento refutável cessidade social pela formação de qua-
se analisarmos o quantitativo de vagas para dros técnicos a serem absorvidos pelo sis-
técnicos oferecidas por empresas e a quan- tema de saúde, o que diferencia o setor de
tidade de currículos que se acumulam nos outras áreas, nas quais o número de no-
Conselhos Profissionais que oferecem “ban- vos postos de trabalho para os habilita-
cos de empregos”. Ademais, o excesso de dos é menor do que foi no passado.
oferta de trabalhadores qualificados favorece
o surgimento de exigências mais rigorosas A questão do dilema formativo nos cur-
para o preenchimento de vagas e negocia- sos de nível técnico encontra, então, na
ções que resultam em diminuição de salários área da saúde, locus privilegiado. Além
(GOUVEIA; HAVIGHURST, 1969, p.194). de todas as contradições presentes na edu-
cação profissional, a área acumula, uma
Analisando o processo de formulação da tradição de carreira, de identidades pro-
Lei no 5.692 (BRASIL, 1971), por exemplo, fissionais transitórias, de variados itinerá-
verifica-se que sua discussão teve início com rios formativos, de hierarquia no trabalho
as mudanças ocorridas com o golpe militar em equipe e na formação em serviço que
de 1964. A política econômica adotada a a torna a antítese da política de terminali-
partir de então, torna cada vez mais difícil a dade no ensino médio.
possibilidade de ascensão social por via não-
educacional, na medida em que dificulta Finalmente, o desafio de construir, de fato
novos empreendimentos no comércio e na e de direito, um sistema de saúde democrá-
indústria. Esse fator provocou uma verdadei- tico e participativo, obriga a refletir e a com-
ra corrida pelo ensino superior e, apesar do partilhar intervenções no processo de for-
aumento do número de vagas implementado mação profissional, não só para preparar
nesse nível de ensino, a demanda permane- indivíduos aptos a ingressarem no mundo
ce significativamente maior do que a oferta. do trabalho em saúde, conscientes de sua
responsabilidade técnica e social, mas, fun-
A ênfase na terminalidade do ensino damentalmente, formar homens e mulheres
médio e as conseqüentes políticas de pro- cientes de seus direitos e deveres na cons-
fissionalização têm, desde a sua gênese, trução de uma sociedade menos desigual.

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Recebido em: 29/08/2006


Aceito para publicação em: 18/04/2007

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.15, n.55, p. 207-222, abr./jun. 2007

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