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Lendas de
Tol-Eressëa
Capítulo 1
Ælfwine conhece Pengolod

Ælfwine sentou-se sob uma grande faia, descansando de sua jornada. Sobre ele, as
folhas da árvore pareciam adornadas em ouro e verde profundo, um ouro esverdeado
refletido pela luz do sol poente. Enquanto mantinha suas costas no tronco e seus
dedos correndo através da turfa macia e das finas raízes, ele novamente pensou na
boa fortuna que o levara até a costa branca da ilha. E se perguntou o porquê de ter
sido salvo do afogamento nas profundezas do mar no qual havia estado por tanto
tempo; para ser lançado nas costas destas terras por onde as lendas caminhavam sob
o céu.

- Sorte? - havia dito Pengolod. - Um mero acaso ter sido carregado sobre as ondas até
as costas destas terras? Não. Isso poderia ocorrer se a sorte o tivesse lançado em
alguma parte das costas cinzentas da Terra-média. Mas por todas as Eras, desde que
Ulmo ancorou Tol Eressëa neste lugar, nenhuma vez a "sorte" trouxe um filho dos
Homens a este local. Não, apesar dos propósitos estarem obscuros, fostes trazido
entre os Eldar por mais do que mera sorte.

O povo élfico, antigo e esquecido, salvo talvez pelos contos infantis, socorreu-o antes
que fosse novamente arrastado pelas ondas. E lhe contaram histórias de Eras nas
quais o mundo era ainda novo e fantástico. Das três famílias élficas eles lhe falaram, e
do escurecimento de Valinor, onde os deuses ainda habitavam. Canções ele ouviu,
repletas de sofrimento e beleza, da rebelião dos Noldor e da trágica guerra contra o
antigo Inimigo do qual todos os povos livres fugiam. E, quando ouviu sobre a Guerra

Lendas de Tol-Eressëa 1
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da Ira, e do resgate dos Eldar e dos Pais dos Homens em Beleriand, Ælfwine
perguntou.

- Se a Terra-média está realmente redimida dos demônios de Morgoth, e ele foi, afinal,
totalmente derrotado, então porquê a Terra-média não tornou-se um jardim
compartilhado por Elfos e Homens? Porquê os Eldar abandonaram aquelas terras,
deixando-as para as tolices dos Homens?

Pengolod sorriu tristemente.

- Os Eldar não abandonaram a Terra-média. Sim, muitos entre os Noldor aceitaram o


perdão dos Valar e retornaram ao abrigo, aqui na Ilha Solitária. Ainda assim, muitos,
além do povo de nossa família, Moriquendi, ficaram para trás. Aquele não é o local de
nosso descanso e moradia, mesmo sendo as terras onde nascemos. Por muitas Eras os
Quendi caminharam por entre as árvores que nasceram no que hoje são as Terras
Mortais.

- Quando os Eldar partiram afinal? - Perguntou Ælfwine. - E porquê?

- Após o fim da Terceira Era, o tempo dos Homens surgiu, então os últimos entre os
meus irmãos seguiram para o mar, para Avallone. E o porquê? É melhor deixarmos
este conto para aquele que tem observado esta história se desenrolar e a entende com
mais profundidade, Mestre Elrond. - Respondeu o Elfo.

Assim, dias depois, Ælfwine viu-se sozinho na estrada que conduzia ao abrigo daquele
outro sábio. Para norte ele viajou, de Tavrobel, através da grande cidade de Avallone,
então para oeste, em direção ao coração da ilha. Mas parou melancolicamente, as
vistas das torres brancas de Avallone, desejando visitar a cidade e ver os pálidos
navios élficos, ancorados no cais. Queria cavalgar as ondas sobre o corpo orgulhoso
daqueles cisnes! Mas, Avallone podia esperar. Por agora, limitava-se a sentar por entre
as faias, cansado e faminto, enquanto saboreava a doçura do entardecer daquela
estranha terra. Mesmo o ar que respirava possuía qualidades mágicas, como se
estivesse impregnado das flores e das coisas verdes que cresciam em abundância.
Abrindo os olhos, olhou por sobre as grandes árvores que se estendiam pela estrada,
repletas de folhas de tonalidade cinza prateadas e douradas. Como os Elfos a
chamavam? Malinorne?

Seu devaneio foi quebrado pelo som de cascos que troavam do leste. Muitos cavaleiros
faziam a curva na estrada próxima, e entre eles havia um grande garanhão cinzento,
sobre o qual se destacava uma dama élfica de inigualável beleza. Os cavaleiros
diminuíram a marcha e pararam próximos a Ælfwine , olhando-o curiosamente. Um
Elfo alto, de cabelos negros, e que trazia uma estrela em seu peito, pendurada por uma
fina corrente, falou.

- Agora vejo sentada aqui uma maravilha como a qual não vejo a anos incontáveis. A

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menos que esteja enganado, este viajante é um Atani. Saudações a este encontro! Que
adventos estranhos podem ter trazido um filho dos Homens a Ilha Solitária?

- Nenhum advento estranho me trouxe aqui, apenas a boa sorte, embora Pengolod
pense de outra forma. - Replicou Ælfwine.

- Acredito que Pengolod, o Sábio, veja este prodígio de maneira bem particular. Seu
nome?

- Sou Ælfwine , Senhor. Procuro pela casa de Elrond, Senhor do Saber, como foi-me
indicado por Pengolod.

Com um sorriso discreto, o Elfo virou-se para a dama que permanecia sobre o
garanhão.

- A sorte não guia este homem! O que acha Celebrian? Há alguma chance deste
encontro ocorrer?

O sorriso da bela dama soou como uma chuva prateada.

- A casa de meu Senhor Elrond está onde uma pedra possa ser lançada. - Ela disse. -
Mas ao Elfo você encontrou, Ælfwine ! Você está diante de Elrond e sua esposa. Sou
Celebrian. E estes são os Elfos de nossa Casa.

Elrond desmontou graciosamente e segurou o homem pelos ombros.

- Venha Ælfwine ! Precisas de novas vestimentas. Ser aliviado de seus ferimentos e


saciado com vinho. Então, nos contará a sua história, e porquê Pengolod enviou-o. E,
caso possa lhe ser útil, o serei.

Eles cavalgaram ao longo da estrada e, realmente, em distância menor do que uma


pedra poderia ser lançada, nas dobras de uma colina coberta por árvores, ele pode ver
um grupo de casas, pequenas e grandes, que se espalhavam pelas encostas
entrecortadas por riachos e pequenas cachoeiras. Elrond e Celebrian levaram-no a
maior edificação, uma casa de madeira e pedra branca, onde foram recebidos por
muitos Elfos. Ælfwine foi levado a um aposento com uma cama convidativa, e uma
grande bacia cheia de água quente e limpa. Após ter se banhado, foi conduzido a um
grande salão, onde uma mesa comprida estava recheada de alimentos. Elrond guiou-o
para uma cadeira alta, próxima a sua, e fez com que bebesse e comesse.

Após ter sua refeição, Ælfwine contou a história de sua chegada a Eressëa; de como
navegara do Velho Mundo; e de como viu-se perdido até que o horizonte desabou por
baixo de seu navio; relembrou seus companheiros abandonado a embarcação,
apavorados; falou da tempestade que finalmente partiu o casco em pedaços; e da
imensa onda que o ergueu e o levou delicadamente até a praia.

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Elrond e seus companheiros ouviram, maravilhados, a história de Ælfwine.

- Então Pengolod não estava errado. Apenas a sorte não o traria aqui entre os Eldar.
Algum grande propósito, que ainda não percebo, repousa por trás deste evento. Mas
diga, porquê Pengolod enviou-o?

E Ælfwine falou sobre sua permanência na casa de Pengolod, e dos contos que ouvira
sobre a Primeira Era, e de seu assombro frente a história oculta do Mundo. Por ultimo,
ele expôs suas dúvidas sobre o desaparecimento dos Eldar durante os anos após a
derrota de Morgoth, e de sua partida da Terra-média.

- Pois me parece que se os Eldar tivessem permanecido, muitas desgraças poderiam


ter sido evitadas, e a história do Homem poderia ter sido menos trágica. - Ele disse.
Elrond olhou-o gravemente.

- As respostas que você procura são antigas, e elas mesmas estão envoltas em tristezas
e mágoas. Contar-lhe tudo a respeito delas levaria muito tempo, e você tem viajado
por longos dias. Deseja mesmo começar nesta noite?

Ælfwine respondeu positivamente com um meneio de cabeça, e Elrond convocou seus


convidados até o grande salão, onde havia fogo. Quando todos estavam acomodados,
Elrond dirigiu-se a Aelfwine, e começou a falar.

- Muitos dias se passaram desde a época destes contos da Segunda e da Terceira Era
de Arda...

Ælfwine olhava-o maravilhado, e ouviu sobre a fundação de Númenor; sobre os


Mirdain e o estabelecimento de Eregion; sobre a criação dos Anéis de Poder e do Um
Anel; sobre a Guerra entre os Elfos e Sauron, da ruína de Eregion; do Akallabeth; da
Aliança Final e de sua vitória; sobre a fundação de Gondor e Arnor e do desastre das
Gladden Fields; das guerras contra o Rei Bruxo, e da queda de Arnor; do fracasso da
linhagem de reis de Gondor; da Guerra do Anel; e de muitas outras coisas que
ocorreram posteriormente.

Muito tarde, naquela mesma noite, Ælfwine retirou-se para os jardins nos fundos da
casa de Elrond, onde floresciam elanor e niphredil. Por longo tempo ele manteve-se
pensativo, em tristeza, considerando tudo quanto lhes disseram os Eldar, e todas as
tragédias que os cercaram. Após um tempo, encontrou uma clareira nos jardins, onde
erguiam-se três monumentos moldados em branco marfim e adornados com detalhes
de ouro. Incapaz de ler as runas escavadas na pedra, ele sentou-se, imaginando o seu
propósito.

Por quanto tempo permaneceu ali não se pode dizer, mas subitamente se levantou e
olhou ao seu redor, percebendo que a noite havia caído. As estrelas brilhavam
gentilmente no céu, mas para sua surpresa, os monumentos pareciam ter adquirido

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um brilho de luz clara, em contraste com a escuridão da noite. Neste momento, viu que
não estava sozinho. Ao seu lado estava Elrond, observando os monumentos, com um
sorriso triste. Seus olhos cinzentos brilhavam sob as estrelas e faziam-no parecer
distante daquela realidade.

Então, olhando para Ælfwine , ele perguntou.

- Ouvistes suficientes histórias do passado? Ou desejas todo o conhecimento que pesa


sobre a memória dos Eldar?

O homem sorriu.

- Tenho ouvido muitas maravilhas desde que cheguei a estas costas. Mas minha
memória tem espaço para mais. E ainda não ouvi a resposta para a pergunta que fiz a
Pengolod; porquê você seu povo deixaram as terras mortais?

- Talvez nem todos o tenham feito. - Respondeu Elrond. - Talvez alguns permaneçam
escondidos em montanhas longínquas, ou em vales verdes desconhecidos, como
espíritos ou fantasmas do passado. Mas você deve ter a sua dúvida esclarecida. É o
destino de nossa raça desaparecer frente ao domínio dos Homens, e deixar-lhes o
controle da Terra-média. Com as belezas criadas pelos Três Anéis desaparecidas
quando da destruição do Um Anel, muitos do meu povo decidiram partir rumo a oeste
antes mesmo que a Terceira Era finda-se. A Quarta Era e as Eras seguintes são tempos
do Homem.

- Mas frio e triste se tornou o mundo sem os Elfos, e pobre de sabedoria e


conhecimentos. - Argumentou Ælfwine.

Elrond ergueu sua cabeça, e seus olhos brilhavam enquanto observava o amigo.

- O próprio Pengolod poderia ter-lhe falado sobre a passagem dos Eldar. Enquanto o
propósito de sua vinda a Eressëa não torna-se claro, inclino-me a pensar que talvez
você tenha sido enviado para ouvir estas histórias do passado, e levá-las de volta ao
seu povo, para que então as memórias dos Eldar, assim como nossos feitos e
sofrimentos não sejam totalmente esquecidos quando o mundo envelhecer. Por esta
razão, Pengolod enviou-te a mim, a não ser que esteja enganado.

Eles permaneceram sentados, quietos, por certo tempo, sob a luz clara das estrelas.
Com um brilho pálido, Isil surgiu sobre as suas cabeças. Como se agradecessem a esta
fonte de luz, as três estátuas de pedra brilharam ainda mais na noite. Ælfwine
levantou-se e disse, apontando para os monumentos.

- E o que são estas pedras? - Perguntou. - Parecem pedras fúnebres. Não vi nada como
elas em minha estada aqui, embora não ache certo que as Terras Imortais possuam
túmulos.

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Uma expressão saudosa cruzou a face de Elrond, e ele disse.

- Pois túmulos elas são. Aqui descansam grandes heróis cuja memória cultivamos em
honra, e cuja passagem é repleta de uma tristeza que durará enquanto durar Arda.

- Quem descansa aqui? Como podem morrer nas Terras Imortais?

- As terras não são imortais, - respondeu o Elfo, - nem os que aqui vivem. Os Eldar e os
Valar viverão até que Arda desapareça. As terras não possuem nenhuma virtude
especial.

Elrond olhou-o novamente.

- Na manhã seguinte de nossa partida dos Portos Cinzentos, cruzamos a noite Tol
Morwen. Então, paramos em honra daqueles que viveram nas terras de Beleriand, e
aos que haviam perecido nas guerras da Primeira Era.

Prosseguimos por mais um tempo e logo entramos na Estrada Escondida, e o mundo


fundiu-se perante nós. Então, alguns olharam pela última vez pelas bordas do navio
para uma última visão da Terra-média. E não foram poucas as lágrimas que rolaram
naquele momento.

Apesar de todo o sofrimento, não amamos menos a Terra-média. Mas os Portadores


dos Anéis não derramaram lágrimas. Frodo manteve-se na proa, com o vento
varrendo-lhe a face, e Bilbo sentou-se ao seu lado. Eles, ao menos, partiram sem
tristeza, olhando sempre para o Oeste.

Depois de um tempo os mares tornaram-se calmos novamente, e navegamos pelas


nuvens enquanto uma chuva fina caía. Ilhas passavam sob nós, pequenas e escuras, e
algumas vezes pudemos vislumbrar os esqueletos de antigos navios encalhados nas
costas. E imaginamos a quem teriam pertencido, Homens ou Elfos, viajantes que
passaram por tormentas apenas para caírem no fim do mundo. A chuva causava uma
sensação agradável, e logo sentimos no ar um odor de flores.

- Aye, - interrompeu Aelfwine, - as ilhas pelas quais passei também me pareceram


esquecidas pelo tempo, e eu temi percorre-las. Mas a chuva que se abateu sobre o meu
barco não era agradável e nem leve. E também não senti o odor de nenhuma flor, até
que despertei nas costas destas terras.

- Sim, você não foi destruído, como seu navio, e a Eressëa acabou sendo trazido. -
Replicou Elrond. - Quando emergimos por entre as formações de nuvens, pudemos ver
diante de nós uma ilha verde, rodeada por extensas praias brancas, e além a Montanha
Sagrada, cravada no céu. Agradecidos ficamos com esta visão, de tal forma que muitos
começaram a cantar.

A face de Frodo parecia brilhar de contentamento, e talvez pela primeira vez, desde o

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seu retorno, ele esboçou um sorriso verdadeiro e confiante, e virou-se para Bilbo,
comentando 'Olhe! Contemple nossa nova morada!' E Bilbo olhou-o com a face
envelhecida e acenou em concordância enquanto a brisa desmanchava seus fartos
cabelos brancos. 'Por um tempo, Frodo', ele respondeu. 'Por um tempo'.

Enquanto nos dirigíamos ao porto de Avallone, uma grande multidão reunia-se no


cais, gritando e balançando seus braços em saudação. Sinos soaram e ecoaram pelas
estradas e pelas torres, enquanto o sol surgia iluminando as bandeiras dos Eldalie.
Muitas reuniões de boas vindas ocorreram naquele dia, e prazeroso foi meu primeiro
olhar para Celebrian, que encontrava-se curada de males.

Ele interrompeu sua fala com um sorriso, olhando para Ælfwine.

- Sim, muitos esperaram intermináveis anos para reunirem-se novamente aos seus. - E
muitos outros esperaram mais tempo que eu para o reencontro. Um grande pavilhão
branco foi erguido na praça central da cidade, onde muitos reuniram-se, alguns vindos
mesmo de Valinor, para ver os recém chegados. Todos abriam caminho aos
Portadores dos Anéis, principalmente aos Hobbits, e a Galadriel, ao seu lado.

E no final do pavilhão, havia uma grande plataforma, sobre a qual encontravam-se


muitos Elfos. Enquanto nos aproximávamos, Galadriel deu um grito, e correu a frente;
havia avistado Finarfin, seu pai, e ao seu lado, Finrod, que havia retornado de Mandos,
além de outros de seu povo. Eras haviam se passado desde que haviam se visto pela
última vez.

Entre o clamor e as lágrimas, um caminhou adiante pela plataforma de braços


estendidos para os Portadores dos Anéis. Alto, com cabelos negros, vestia um robe
prateado, e ostentava uma jóia que pendia em sua testa. Era Eonwë, a quem eu havia
encontrado pela última vez durante a queda de Beleriand, nos últimos momentos da
Primeira Era. A multidão silenciou quando ele falou: 'Bem vindos Frodo e Bilbo, a
quem trago agradecimentos de Manwë! Nunca antes um membro das raças jovens
caminhou por estas estradas, e Eras se passarão antes que outros o façam novamente.
Poucos de tão grande valor pisaram estas terras. Seus feitos serão cantados em cações
até mesmo nos picos de Taniquetil. Bem vindos!'

Os Hobbits, lisonjeados, ficaram vermelhos como carmesim, e gaguejaram


agradecimentos, incapazes de encarar o brilho dos olhos de Eonwë. Olórin foi quem
gentilmente guiou-os pelos ombros por sobre a plataforma, entre os poderosos de
Arda, em meio a aclamações. Muitas taças foram cheias e esvaziadas no calor daquela
noite. Queriam eles ou não, haviam se tornado grandes heróis.

Elrond fez uma pausa, inclinando-se para olhar as estrelas. Ele sorriu novamente e
continuou.

- Bilbo não cochilou um segundo enquanto durou a celebração. Ele gastou muito
tempo naquela noite conversando com Finrod sobre Beren Erchamion. Sempre um

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amante de histórias era Bilbo. E Frodo, como de hábito, falava pouco, mas prestava
atenção em tudo quanto ouvia.

Ele parou de novo e levantou-se, caminhando até o primeiro monumento.


Descansando as mãos sobre o seu topo, Elrond acenou com a cabeça, tristemente.

- Bilbo morreu um ano depois, no seu aniversário. Ele convocou Olórin e a mim, e
viajamos com ele e Frodo até Avallone, onde o carregamos pelas escadas da Torre, até
ao Aposento do Palantir. Olorin levantou-o para que pudesse observar a pedra. Velho
e cansado ele estava, mas gastou suas últimas horas com visões de sua casa no
Condado, de Hithlaeglir, da Montanha Solitária, e finalmente, de Aragorn em Minas
Tirith, com sua amada Arwen. Então saímos na noite, para que ele pudesse ver as
estrelas. Frodo havia começado a chorar, mas Bilbo abraçou-o com suas últimas forças
dizendo 'Acalme-se agora. Meu pequeno papel nesta história foi desempenhado.
Precisas continuar sem mim, como puderes. Não tema; pois eu não temo. Nunca houve
um Hobbit mais sortudo do que eu, que tenha visto o quê eu vi, feito o que eu fiz, ou
aprendido o que eu aprendi. A história é sua agora, até que você mesmo passe, e até
que este mundo seja renovado, e nos encontremos novamente'. E dizendo isso, fechou
os olhos e passou calmamente pela morte. Mas Frodo levantou sua face coberta de
lágrimas, e balançou sua cabeça levemente, como se concordasse.

Frodo viveu por muitos anos mortais em Eressëa. Então, um dia, ele também
convocou Olorin, e novamente viajamos a Avallone. Não para a Torre, mas até o cais,
onde nos sentamos por longo tempo, olhando por sobre o mar. E no horizonte
pudemos ver se aproximando um navio por entre as nuvens. Sua proa cortando os
céus, e uma altiva cabeça de cisne observando ao longe. Então ele ancorou, e muitos
Elfos escalaram suas muradas guiando-o até as docas. Após alguns minutos, uma
figura de baixa estatura, com os cabelos totalmente brancos surgiu.

'Sam!' gritou Frodo. 'Finalmente você esta aqui. Tenho lhe esperado por longos anos.
Não me diga que você teve medo de velejar?'

E Sam respondeu, 'Imploro ser perdão Mestre Frodo, não, não estava com medo. Mas
não poderia deixar Rosie para trás. Tive que aguardar que ela se fosse primeiro'.

'Sinto muito Sam,' disse Frodo, abraçando seu amigo. 'Eu sei que você a perdeu. Mas
estou feliz em tê-lo aqui.'

Nós retornamos para casa novamente, e jantamos com Frodo e Sam. Então, os
deixamos a sós para que falassem. Os ouvimos conversando até a madrugada, e então
ficaram quietos. Na manhã seguinte, os encontramos lado a lado, de mãos dadas, e em
seus rostos havia uma tranqüilidade de quem apenas dorme um sono gostoso. Foi no
dia 25 de março. E agora há três túmulos e três pedras funerárias em Tol Eressëa, no
jardim de Elrond.

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Elrond deu um forte suspiro e permaneceu silencioso ao lado das pedras. Então, se
curvou solenemente, e dirigiu-se a Ælfwine.

- Venha, é tarde.

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Capítulo 2
A Estrada para Avallónë

Ælfwine havia se acostumado a casa de Elrond, mas semanas depois, em meio à noite,
quando o vento mudou, soprando forte do leste, trouxe consigo nuvens pesadas e
negras. Dançando por entre as nuvens havia gaivotas, pairando sobre a casa,
equilibradas pelas correntes de vento que redemoinhavam no céu. Seus gritos
estridentes despertaram em Ælfwine um grande desejo de novamente respirar o ar
salgado e caminhar pelas costas da ilha. Então, resolveu deixar a hospitalidade de
Elrond e Celebrian, ainda que tenha sido dentro daquelas paredes que, pela primeira
vez em sua vida, havia conseguido encontrar um profundo sentimento de paz. Os
salões de Elrond eram como nenhum outro; mais antigos do que o conhecimento
humano, e no entanto menos afetados pelo peso do tempo do que outros abrigos de
senhores élficos. Era como se os aposentos tivessem ficado incólumes por Eras, e se
um dia voltasse a visitá-los, mesmo que centenas de anos se tivessem passado, seria
certo que os encontraria da mesma forma, intocados. Além disso, Elrond entendia o
coração dos homens como ninguém nestas terras.

Então, em uma agradável manhã de sol, Ælfwine cruzou as portas da casa de Elrond,
carregando um pequeno pacote e as saudações de seus anfitriões. Elrond observou-o
gravemente, e então conduziu seus olhos cinzentos para o leste, como se quisesse
vislumbrar os destinos para os quais a estrada conduziria aquele homem.

- O desejo do mar é dividido por Elfos e Homens, - disse - é difícil resistir ao seu
chamado. Temo que você ainda não esteja pronto para deixar nossa ilha. Assim, peço
que retorne assim que puder, ou quando o destino permitir. Serás bem vindo.

- Sim. - disse Celebrian. - Venha quando puder. Sua estadia aqui é prazerosa, pois traz-
nos lembranças de Eras passadas, de quando ainda habitávamos a Terra-média, e
muitos filhos de Homens alegravam nossas casas.

- Eu retornarei se puder. - Replicou Ælfwine. - Na verdade, nunca fui tão feliz quanto
nestas semanas que se passaram. Se puder, visitarei sua casa novamente.

Elrond sorriu generosamente, e seus olhos brilharam como estrelas em uma noite
escura.

- Que assim seja, há sempre histórias a serem contadas, e canções a serem cantadas.
Você teve apenas um sabor do farto banquete que é a sabedoria dos Eldar. Em apenas
três semanas estaremos em pleno verão, e então muitos serão os convidados na casa
de Elrond. E o primeiro dia é como nenhum outro para canções e histórias, de modos
que a sua sede de conhecimentos será plenamente saciada. Venha então, se puder, e
junte-se a nós para as boas vindas aos primeiros raios do sol. Então, realmente poderá
sentir-se agradecido por sua estadia em nossa casa.

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- Eu agradeço. - Respondeu Ælfwine. - E retornarei, pois quem poderia recusar um


convite tão generoso?- Ele curvou-se aos Elfos, segurou seus pertences, e ganhou
estrada.

- Um momento! - Gritou Celebrian. - Não podemos deixar que parta sem lhe dar algo
que lembre sua estadia na casa de Elrond. - Ela caminhou na direção do homem, sua
mão estendida. Havia uma pequena faca, do comprimento de um dedo, protegida por
uma bainha prateada que brilhava sob o sol. Era adornada por uma estrela de seis
pontas, envolta em um círculo. Entre cada raio de sol estilizado havia uma pedra
branca que cintilava a luz da manhã. Pegando a faca, Ælfwine impressionou-se com a
beleza do presente.

- Tome cuidado! - Alertou Elrond. - É muito afiada, e manterá seu gume mesmo que
seja muito usada.

- Obrigado novamente! - Disse Ælfwine. - Mas porquê teria que usar este presente?
Certamente ninguém me faria ciladas nestas terras, e mesmo que isso acontecesse,
poderia uma arma tão pequena defender-me? Vejo-a como um artefato de grande
beleza, e será preciosa para mim de agora em diante.

Celebrian trocou um olhar com seu companheiro e sorriu.

- Isso não é para sua defesa. Apesar de que suspeito que poderás achar bom uso para
ela. - Disse enquanto sorria, e seus olhos cinzentos brilharam com alegria.

- Até logo Ælfwine ! Que sua viagem seja agradável, e que a estrada lhe traga de volta
quando desejares visitar nossa casa de novo.

Elrond e sua esposa voltaram-se para seus aposentos, galgando os degraus brancos, e
atravessando as pesadas portas de madeira. Ælfwine parou por um momento,
olhando-os, controlando a vontade de permanecer entre aqueles sábios. Então,
embainhou a faca, colocando-a em um bolso de sua mochila, e apressou o passo pela
estrada.

A estrada para Avallónë pareceu-lhe mais longa do que imaginara, e por onde
caminhava, os pássaros do mar o seguiam, em balbúrdia sobre sua cabeça. Finalmente,
aproximou-se da cidade élfica; cujas muradas, de pedra branca e rósea, estendiam-se
perante seus olhos, e cujas muitas torres resplandeciam como picos nevados
desenhados contra o céu, profundamente azul. Finalmente, as gaivotas abandonaram
a perseguição, cruzando as paredes da cidade, de volta aos seus abrigos, no mar. Uma
delas, no entanto, pousou no galho de uma árvore que se debruçava sobre a estrada.
Olhou para baixo, enquanto Ælfwine passava, e então, com um forte trinado, alçou vôo
novamente, fazendo caminho rumo ao oceano.

A estrada prosseguia seu caminho rumo as pontes de Avallónë. Como uma imensa
pérola, a cidade se elevava em tons de cinza, branco e azul opala. Parecia frágil, tão

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adornada em prata e ouro era, mas quem nestas terras iria sitiá-la? Sim, Ælfwine sabia
que seria preciso mais do quê vontade ou força mortal para fazer ruir aqueles portões.
Hoje, como em muitos dias, salvo quando raras tempestades fustigavam o mar
encantado, as pontes de Avallónë permaneciam abertas, e muitos a cruzavam.

Em seu interior, Ælfwine parou para observar ao redor, e seu olhar repousou sobre a
grande Mindon Anduliéva. Construída em pedra coral polida, a delgado torre elevava-
se por quase cento e cinqüenta metros de altura, e seu topo abrigava um brilhante
farol, cuja luz penetrava a escuridão mesmo em noites nebulosas. Ele lembrou-se
quando em noites escuras, meses atrás, quando as tempestades e ondas fustigavam
violentamente seu navio, havia sido a luz de Mindon, vislumbrada entre cortinas de
chuva e vento, que o guiara na direção da ilha. Somente o brilho deste farol havia
evitado que ele se rendesse a tempestade. Em um aposento, bem debaixo do farol,
Ælfwine agora sabia, descansava um palantír, cujo foco apontava para as terras
mortais, as quais os Elfos haviam deixado para trás, para sempre. Ele imaginou se a
noite alguém se interessava em observar pela palantír as terras do leste, a tanto
tempo abandonadas aos desejos dos homens.

Enquanto divagava pelas ruas da cidade, muitos paravam para olhá-lo, curiosos em
ver aquele homem de cabelos encanecidos. Mas isso não incomodava Ælfwine ; ele
havia experimentado as mesmas expressões de surpresa em Tavrobel, e pelas
estradas pelas quais havia viajado na Ilha Solitária. Ignorando o falatório ao pé do
ouvido e os cochichos de "Atan", ele caminhou até chegar a uma grande praça, nas
quais muitas fontes se espalhavam, seus esguichos mesclando-se como arco-íris
filtrados pela luz do sol. A sua esquerda erguia-se Mindon, inacreditavelmente esguia
para a sua altura, de modo que não se podia contemplá-la sem que uma vertigem
surgisse em onda rápidas. A sua direita, as ruas desciam até o cais de Avallónë, onde
dezenas de navios brancos descansavam nas docas. Nas proximidades, um pequeno
grupo de crianças élficas, as primeiras que ele havia visto na ilha, dançavam por baixo
de um esguicho de fonte.

Repentinamente, elas se deram conta de sua presença, e misturaram-se por entre as


pernas da multidão, observando-o de longe. Encantado pela música de suas vozes, e
por sua graciosidade quase etérea, ele ajoelhou-se entre eles e uma menina,
hesitantemente, se aproximou, tocando sua face. Quando seus dedos roçaram a barba
do homem, a menina deu um grito de excitação, para deleite das demais crianças, que
saltitaram e gargalharam, apontando Ælfwine. E ele sorriu também, pois havia
entendido agora o propósito do presente de Celebrian. Há meses, desde que havia sido
lançado as costas da ilha, ele ainda não havia visto um Elfo sequer usando barba.

As crianças retornaram aos seus jogos e ele levantou-se, prosseguindo seu caminho
até o cais. O cheiro do oceano impregnava o ar, fazendo seu coração pular dentro do
peito, enquanto se aproximava dos grandes e imponentes navios. Ele vagou pelas
docas observando a beleza e simetria dos belos cascos. Nenhuma mancha sequer
maculava-os, criando uma aura irreal naquela cena. Suas bandeiras brancas, azuis e
verdes, tremulavam ao lado de flâmulas douradas e prateadas, gerando um murmúrio

Lendas de Tol-Eressëa 12
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agradável que lhe era trazido pela brisa. Uma vez mais, os pássaros dos mar giravam
sobre sua cabeça.

Ele continuou seu caminho ao longo do cais, e viu que se aproximava um imponente
navio-cisne branco, o maior que ele havia visto. Suas bandeiras eram cinzentas, e
ostentavam estrelas azuis, adornadas por asas brancas. Aproximava-se do cais, e
muitos Elfos movimentavam-se pelo seu convés, limpando as lembranças do mar.
Quando a embarcação se aproximou, ele pode perceber duas figuras que elevavam-se
na proa. Então, com um grito de surpresa, Ælfwine correu na direção do que achava
ser um Homem, pois ostentava cabelos embranquecidos pela idade, e uma longa
barba. Ouvindo seu grito, ambos viraram-se para ele, e pelo brilho de seus olhos, que
refletiam uma sabedoria primeva, Ælfwine percebeu que eram Eldar.

- Perdoem-me. - Murmurou ao se aproximar dos dois Elfos que já haviam


desembarcado. - Devido a sua barba, achei que fossem minha gente; Filhos dos
Homens. Mas vejo que me enganei.

- E eu vejo que és realmente um Atani. Mas que estranhos acontecimentos permitiram


a um homem atravessar a Estrada Escondida? - Replicou o Elfo barbado, cuja voz era
profunda como o oceano. - Venha, sente-se conosco e conte sua história. Sou Círdan, o
construtor de navios.

- Chamo-me Ælfwine. - Respondeu o Homem. - E também quero ouvir sua história,


pois nenhum Elfo que encontrei nesta ilha cultivava uma barba como a sua. - Ele
sentou-se no cais, e, pela primeira vez, olhou para o segundo Elfo. Era muito alto, e
seus cabelos eram negros. Sua face, profundamente delineada, trazia algum
sofrimento ou tormento antigos. Trazia as mãos às costas, e não pronunciou uma
palavra sequer.

- Mesmo um Elfo pode revelar algum sinal da idade, após a passagem de tantas Eras, e
eu sou velho, mesmo aos olhos de meu povo. Poucos vivem nesta ilha que possam
relembrar as águas de Cuiviénen. - Disse Círdan, olhando para as ondas, que
chocavam-se monotonamente contra as pedras do cais.

- Cuiviénen? - Murmurou Ælfwine. - Este é um nome que tenho ouvido aqui, mas como
eco de uma Era passada. Um lugar legendário, acredito. Cuiviénen existiu realmente?

- Existiu. - Replicou Círdan, com um suspiro. - Uma terra de colinas verdes, penhascos
repletos de bosques e cheia da doce música da água. Lembro-me das vozes quietas dos
riachos correndo sob as folhas do outono... Pareciam finas lâminas de prata dançando
sobre o fluxo… Estas lembranças estão impressas em meu coração. Ainda hoje posso
escutar a música das águas de Cuiviénen. As florestas verdes atraíram grande parte de
meu povo, mas eu sempre me encantei com os sons das águas.

Ele fez uma pausa, e seus olhos cinzentos brilharam como se estivesse vendo uma
miragem distante.

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Ele fez uma pausa, e seus olhos cinzentos brilharam como se estivesse vendo uma
miragem distante.

- Por muito tempo vivemos ali em alegria, onde tudo parecia novo e maravilhoso. E
errávamos pelas colinas e campos, dando nomes a tudo que víamos. As terras, as
árvores, campinas e águas, de modo que tornaram-se parte de nós. Assim, foi
despertado nos Elfos um desejo de preservar e amar Arda. Ela é parte de nós, e nós
somos parte dela.

- Se Cuiviénen era um lugar tão abençoado, porquê os Elfos saíram de lá? - Perguntou
Ælfwine.

- Após um tempo, longo talvez na contagem dos Homens, a escuridão veio, ou mais
verdadeiramente tenha nos encontrado. - Disse o Elfo. - Nuvens escureceram o céu e
as colinas passaram a esconder coisas maléficas. Espectros escuros voavam na noite,
cobertos de fumo e fogo, e muitos que caminhavam nos campos e florestas não
voltavam. De vez em quando, os gritos de algum Elfo que havia sido agarrado cortava
o ar enquanto nos encolhíamos a volta do fogo. E, mais que qualquer outra sombra
que amaldiçoava os caminhos de Cuiviénen, estava o Cavaleiro Negro, que caçava
nossa gente, e os levava vivos para lugares que não imaginávamos.

Seus olhos coruscaram com raiva.

- Um dia, eu deixei nossas terras com Vilwë, e seguimos um riacho que descia pelas
colinas. Eu forcei caminho por entre o junco enquanto ele procurava um novo
caminho pelas árvores que se estendiam à beira d”água. Por um momento, havíamos
esquecido a escuridão e o terror que caía sobre os Quendi. Mas então, ouvi um clamor
vindo do campo, e Vilwë gritou em pânico. Quando me virei, dei-me com um cavaleiro
sobre um garanhão negro, segurava Vilwë pelo pescoço, com apenas uma mão. Nossos
gritos atraíram mais Elfos e ele acossou seu cavalo em minha direção.

Com um de nós ele se parecia, cabelos negros e olhos brilhantes, mas em sua boca
havia escárnio. Nossos olhos se encontraram, e foi como se eu tivesse sido atingido
por um tufão, pois naquele momento pude perceber a profundidade de sua corrupção;
portas de ferro negro, muros de sombra e torres de pedras torturadas. Por nenhuma
razão que pudesse entender, descobri que me odiava, e a todo o meu povo. Então,
perseguiu-me até as águas mais profundas, onde me escondi entre o junco, sentindo
toda a sua malícia. Quando passou, tentei arrancar meu amigo de seu abraço, mas ele
gargalhou novamente e seu cavalo arrastou Vilwë por dezenas de metros, onde seu
corpo foi abandonado diante meus olhos.

Círdan calou-se por longos minutos, suas mandíbulas tensas pela lembrança dolorosa.

- Eu o vi novamente. Não em Cuiviénen, mas Eras depois. Mensageiros vieram de


Eregion a Lindon, convocando-nos para um conselho. Um estranho havia chegado a
Hollin, com promessas de presentes e ensinamentos maravilhosos. Nosso Senhor, Gil-

Lendas de Tol-Eressëa 14
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galad, enviou a mim e Elrond, e viajamos por muito tempo até chegarmos aquelas
terras. Fomos levados ao Grande Salão de Celebrimbor, afim de nos encontrarmo-nos
com Annatar, o Senhor das Dádivas. E lá estava ele, sentado com Celebrimbor e os
Elfos de sua casa, rindo e festejando entre colunas de mármore e paredes revestidas
de finas tapeçarias. Justo ele aparentava ser, com cabelos dourados e estatura nobre,
um rei disposto a compartilhar as riquezas de seu saber aos que descem ouvidos aos
seus conselhos. Assim que me sentei naquela mesa, ele pousou seus olhos nos meus,
com um sorriso nos lábios, e minha mente quis convencer-me de que estava olhando
para um velho amigo. Mas o falso véu que desceu sobre os olhos de Celebrimbor e seu
povo voou como gaze ao vento quando subitamente lembrei-me daquela imagem de
Eras passadas; portas de ferro negro, muros e torres de sombras. E o reconheci,
apesar de não saber seu nome, e tive uma reação de recuar, derrubando a cadeira
sobre a qual estava sentado. Em minha raiva, não pude encontrar a voz, e tive ganas
de buscar por minha espada para notar que não estava armado, havia vindo a um
conselho. Eu o teria matado ali mesmo, em memória de Vilwë.

Mas, como era costume naqueles tempos, havia deixado minha espada ao lado de fora
do Salão, e Elrond conteve-me. Ao chegar a porta do Salão, contive minha fúria e disse
'Não negociem com ele. Sigam seus conselhos e temerão o futuro'. Mas Annatar
respondeu 'Suponho que as boas maneiras sejam diferentes entre os que vivem entre
as árvores. Água deve ser o seu sustento, e não os bons vinhos da nobre Eregion'. E
muitos riram, mas Elrond voltou seu olhar para o sorriso de Annatar, e viu que seus
olhos queimavam e neles pode perceber seu ódio contra todos os que caminhavam
livremente. Então, quando lhe contei minha história, ele acreditou, e aconselhamos
Gil-galad a fechar seu reino ao Senhor das Dádivas. Mas Celebrimbor, derrotado pelo
orgulho e pelo desejo de conhecimento não deu crédito as minhas palavras... -
Finalizou Círdan, sua voz desaparecendo sob a dor daquela lembrança, e sua cabeça
pendeu para frente, até que seus olhos não puderam mais ser vistos.

- Você leu seus pensamentos? Como foi possível reconhecê-lo? - Perguntou Ælfwine ,
quando Círdan recompôs-se.

- A habilidade é conhecida como Ósanwë entre o meu povo, e todos os povos livres
podem utilizá-la em certo grau, caso possam identificá-la. Mesmo os Homens possuem
certos traços desta habilidade, mas poucos são os que a dominam. O conhecimento da
Ósanwë é difícil mesmo para os Elfos. - Replicou Círdan.

Eles permaneceram sentados, quietos no cais, cada um entregue aos seus próprios
pensamentos. O Elfo dos cabelos negros permaneceu silencioso desde sua chegada,
encarando a brisa marinha, que se fortalecia naquele momento. Certo tempo depois
ele esfregou suas mãos fortemente, como se sentisse dores. Novamente Ælfwine falou.

Como puderam os Quendi escapar da escuridão que se abateu sobre Cuiviénen? -


Perguntou. - Vocês fugiram de lá, rumo a outras terras?

Círdan sorriu.

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- Nós não fugimos. Não sabíamos para onde ir. Mas então, fomos encontrados por
Oromë, e os Valar protegeram-nos até que fomos convocados para o Oeste, e Morgoth,
o Senhor Negro, havia sido encarcerado em Mandos. Mas mesmo então, feras
caminhavam na escuridão, e muitos dos que se afastavam do caminho que levava ao
mar sumiram para nunca mais serem vistos.

- O quê aconteceu aqueles que ficaram para trás? Será possível que algum enclave
Quendi ainda se mantenha em meu mundo? Há muitas histórias de seres mágicos
entre meu povo. Será possível que Elfos ainda vivam na Terra-média? - Inquiriu
Ælfwine.

- Nós não sabemos o que aconteceu com os que ficaram para trás, apesar de que
muitos acabaram reunindo-se posteriormente a nós, no Oeste. - Respondeu Círdan. -
Alguns dizem que muitos acabaram sendo tomados por Sauron, a quem os Valar não
encontraram quando Utumno foi destruída, e transformaram-se em sementes para a
raça maldita dos Orcs. Outros vão além, e dizem que os Orcs foram criados a partir de
animais selvagens, a quem Sauron deu a perspicácia de espíritos desconhecidos, e que
foram posteriormente cruzados posteriormente com a raça dos Homens. Entre os que
não foram corrompidos pela escuridão, diz-se que procuraram eternamente pelo
Oeste, e acabaram se cansando das lidas do mundo até fundirem-se a seus hröar, seus
corpos, tornando-se apenas fëar, espíritos, que ainda vagam pela Terra-média, como
lembranças do passado.

Os Quendi amam a Terra-média, e muitos adiaram a partida. Esta foi, e ainda é a nossa
natureza. Pedra e colina, árvore e folha, flor e caule, gota e riacho perfuram-nos até
nossos corações, cada qual de forma e intensidade diferente. E amor nós demos em
retorno, transmitindo nossa própria essência, dando e recebendo. Abandonar
qualquer lugar no qual vivemos por muito tempo é uma tarefa dura, pois lá deixamos
parte de nós.

Meras palavras não traduzem a profundidade deste sentimento. Homens não


entendem isto; mesmo os Valar não compreendem inteiramente este aspecto de nossa
natureza, chamando-nos 'voluntariosos' ou 'rebeldes', apesar de sermos apenas o quê
Eru desejou. Assim, Turgon não pode deixar Gondolin, mesmo sob o conselho de
Ulmo, e Celebrimbor não pode abandonar Eregion, mesmo no final.

Eu mesmo quase retornei. - Confidenciou - Durante a longa jornada de Cuiviénen para


o Oeste, nos deparamos com um portentoso rio, o Anduin, e acabei arrebatado pela
alegria de sua música. Pulei em suas águas, deixando-me flutuar na corrente, e quase
vi-me tentado a estabelecer-me em suas margens. Mas uma voz interior disse-me que
meu destino era outro, e fez-me continuar a viagem. Assim, eu deixei para trás o
Anduin, seguindo rumo a Beleriand.

Os Teleri foram a última casa dos Quendi a chegar àquelas terras e eu estava entre os
últimos, mesmo entre os Teleri. Quando cruzei as Montanhas Azuis, entrando em
Beleriand, meu Senhor Elwë desapareceu na floresta, e muitos ali permaneceram,

Lendas de Tol-Eressëa 16
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procurando por ele, mas continuei a viagem, até as orlas da terra. Na distância pude
ver os fogos e lanternas que bruxuleavam nesta ilha, que já navegava para oeste,
levando os Vanyar, os Noldor e muitos de meu povo. Lamentei minha sorte,
imaginando como iria cruzar o oceano. E então, uma voz veio a mim, e se era uma voz
interior ou uma mensagem dos Valar nunca descobri, mas me dizia que ficasse
naquela costa e que servisse de refúgio e conselho aos Quendi que me encontrassem,
perdidos ou deixados para trás, até que o último de meu povo resolvesse deixar o
mundo. Me regozijei então, pois amava o mar, e sua miríade de cores, temperamentos
e vozes, e então estabeleci-me a Oeste do mundo, até que o último navio partiu, e
nenhum outro pudesse passar a Oeste.

- Como você sabe que não havia outros a partir? - Ponderou Ælfwine.

- Uma noite, - Círdan respondeu, - quando muitos anos já haviam se passado sem que
nenhum dos meus chegasse a minha cidade, um grande vento soprou, e o mar
encapelou-se. As cordas que seguravam um de meus barcos arrebentaram e o vento
encheu suas brancas velas. Mas o navio não saiu do lugar. E do Oeste veio uma grande
águia que dobrou suas asas e desceu para pousar exatamente no timão da
embarcação. Ela olhou para mim com seus olhos brilhantes. Então, com um forte grito,
alçou vôo ao ar e dirigiu-se novamente a Oeste, onde a súbita tempestade morria.
Repentinamente eu soube que a hora havia chegado e todos quantos restavam
poderiam finalmente partir. - Círdan fez uma pausa e sorriu para seu companheiro,
que permanecia silencioso.

- Então, estes poucos remanescentes, Teleri e Noldor, os atrasados e rebeldes,


reuniram seus pertences e embarcaram. Pois havíamos compreendido que nossa hora
havia chegado, e todas as tristezas deviam ser esquecidas. E os portos ficaram
silenciosos e vazios atrás de nós.

O vento acariciou seus cabelos enquanto as aves do mar clamavam sobre eles. O
navio-cisne batia seu casco contra as fracas ondas no cais, fazendo saltar ao ar
milhares de gotículas de água salgada que se espalhavam pelo porto. O sol refletia-se
nos cabelos de Círdan, e em seus olhos podia-se ver o mar.

Ælfwine franziu suas sobrancelhas, curioso.

- De que rebeldes você falou anteriormente? - Perguntou. - Eu escutei contos sobre a


rebelião dos Noldor, e de seu banimento. Mas os antigos agravos foram esquecidos já
que todos partiram depois da Terceira Era.

- O banimento foi retirado de todos, a não ser de um, - respondeu Círdan, - um deixado
para trás, sem que pudesse retornar. Mas na época em que o Último Navio deixou os
portos, ele foi perdoado. - Círdan virou-se para seu silencioso amigo e disse. - Este,
Ælfwine , é Maglor, filho de Fëanor.

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Capítulo 3
Círdan e o Filho de Fëanor

Ælfwine reagiu com surpresa ao anúncio de Círdan, pois diante dele estava um
protagonista de atos lendários. Muitos haviam lhe contado histórias do poderoso
Fëanor e seus sete filhos, e do mal causado por eles e por seu juramento amaldiçoado.
Muitos haviam recitado com amargura as antigas leis, enquanto outras ainda haviam
falado com ódio em seus corações. Para Ælfwine , as histórias despertavam pouca
simpatia, e considerava que teria sido melhor se as sementes geradas pelas ações de
Fëanor e seus filhos tivessem morrido antes de germinar. Entretanto, ele olhava
atônito para o alto e silencioso Elfo.

- Estou honrado por encontrá-lo Maglor, filho de Fëanor. - Ele disse. - Muitas são as
histórias sobre você e sua gente. Confirmo novamente que aqui caminham lendas
entre os vivos pois tenho ouvido que sua morte culminou com o fim da Primeira Era
do mundo.

Pela primeira vez Maglor falou, e sua voz soou surpreendentemente bela, como se o
cantar de muitos pássaros, a música das águas e os sussurros dos ventos soassem em
um só tema. Era um prazer ouvi-lo falar.

- Morto? - Disse Maglor, com um sorriso amargo. - Não, o destino não me presenteou
com esta graça. E por mais que eu anseie por isso, não pude encontrar o caminho de
meu irmão Maedhros, tirando minha própria vida. Mas como puderam as mansões de
Mandos exigir de mim qualquer pena maior do que o conhecimento de que eu
livremente me desfiz de um Silmaril, e a consciência das sementes geradas por este
fato.

Enquanto Maglor falava, suas mãos e ombros crispavam-se em tensão, e seu rosto
assumia uma expressão amarga.

- Mas sobre estes acontecimentos não quero mais falar. - Disse o Elfo. - Eu retornei do
Oeste a procura de cura, não de perdão, embora não tenha recebido nem uma coisa
nem outra. Meu coração só encontrará paz se ao menos puder deixar meu passado
para trás, esquecido.

- Venha! - Disse Círdan. - É tarde, e nós ainda queremos ouvir sua história Ælfwine.
Retiremo-nos aos meus aposentos e saciemos nosso apetite antes que nossas línguas
se cansem de tanto falar.

A casa de Círdan localizava-se a norte do cais de Avallónë, e suas janelas a leste se


abriam sobre o porto. Muitos artesãos e carpinteiros navais se hospedavam ali, e o
grande salão de jantar estava lotado. Ælfwine observou que enquanto muitos
saudavam Círdan, poucos se dirigiam a Maglor, que em contrapartida, pouco falava
aos presentes. Os três prosseguiram a uma mesa coroada por uma grande janela, da
qual podiam apreciar as estrelas que começavam a surgir no céu. Ælfwine retomou a

Lendas de Tol-Eressëa 19
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história de sua chegada a Tol Eressëa, e Círdan fez-lhe muitas perguntas. No entanto,
Maglor permaneceu silencioso, comendo sem nem mesmo olhar para seu prato.
Novamente, Ælfwine dirigiu-se a ele e falou.

- Você disse que ansiava pela morte. Me parece que não saciarás seu desejo nesta ilha.
Porquê não parte para a Terra-média se anseia realmente encontrar seu destino?

Maglor ergueu sua fronte até que seus olhos encontrassem os de Ælfwine, e a face do
Elfo parecia como uma máscara de ódio, controlado a grande esforço.

- O Atani deveria parar de fazer tantas perguntas aos mais velhos. - Ele murmurou. -
Na verdade, no final, não tenho estado totalmente separado de meu povo. Por um
momento, no passado, fui bem recebido entre os que vieram depois, mas quando as
Eras se passaram os nomes de meu pai e parentes foram menosprezados. Assassinos e
criminosos lhes chamaram. Ainda que eu tenha encontrado pouca simpatia aqui,
muitos fingiram cortesia.

Maglor levantou-se abruptamente, puxando a mesa com força, e derrubando tudo


sobre ela em grande confusão. E com os dentes travados em ódio disse a Ælfwine.

- Não me incomode mais. Minha história é apenas minha, e escolhi não contá-la a você
nem a ninguém. Ninguém acreditaria no quê eu, um filho de 'Fëanor o Traidor' tivesse
a dizer. Desejo apenas ser deixado de lado com a paz que possa encontrar comigo
mesmo. - E, com estas palavras, sua voz orgulhosa e poderosa quebrou-se no profundo
desespero que revelava. Ele sentou-se novamente em sua cadeira, pedindo por uma
nova taça de vinho.

- Paz! - Clamou Círdan. - Nos esquecemos do dever que temos para com nosso
hóspede, e o vinho fez com que nossas línguas se tornassem livres dos grilhões da
cortesia. Ælfwine! Perdoe Maglor por suas palavras; não é você o alvo de seu ódio.

- Aye, - respondeu Ælfwine, - e em troca imploro que perdoe minha insaciável


curiosidade humana, da qual não soube me prevenir. Maglor! Não tive intenção de lhe
ofender. Agora, com sua licença, devo me retirar aos meus aposentos. Como uma
criança devem os Eldar lembrarem-se de mim. Estou em uma sociedade educada, e
deve livrar-me desta barba para ver novamente as ruas de Avallónë.

Com isso, Ælfwine vasculhou sua bolsa de viagem, procurando em cada bolso, até
encontra o presente de Celebrian. Sacando a pequena lamina de dentro da mochila, ele
levantou-se e preparou-se para sair. Mas Maglor levantou sua cabeça e, vendo a faca,
levantou-se de seu assento, com uma expressão de surpresa. Nas mesas vizinhas, os
Elfos viraram-se, para ver Maglor, em toda a sua imponência, e de olhos chamejantes.

- Como você conseguiu esta lâmina? - Rugiu Maglor, avançando em direção ao homem.

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- Foi um presente. - Gaguejou Ælfwine enquanto se movia, colocando uma mesa entre
ele e o filho de Fëanor.

Novamente Maglor avançou, e com um movimento rápido, tomou a faca das mãos de
Ælfwine que, tomado pela fúria, iniciou uma tentativa de retomar seu presente. No
entanto, Círdan, silenciosamente, colocou-se entre os dois, olhando com curiosidade
para Maglor. Segurando a faca em suas mãos trêmulas, Maglor cambaleou
pesadamente para frente, apoiando-se em uma mesa. Seus olhos fecharam-se, e ele
pendeu a cabeça como se carregasse um grande peso.

- Onde você conseguiu isso? - Perguntou delicadamente, sem erguer a cabeça.

- Eu já lhe disse, foi um presente! - Gritou Ælfwine - Agora devolva-me!

Maglor deixou a faca escorregar por suas mãos nervosas, retornando a sua cadeira.
Quando levantou sua cabeça, Ælfwine surpreendeu-se ao ver lágrimas escorrendo
lentamente dos orgulhosos olhos do Elfo.

- Quem lhe deu este presente? - Perguntou. - Você sabe o quê é isso?

- Foi dado a mim por Elrond e por sua esposa, Celebrian, quando eu deixei sua casa.
Uma brincadeira eu supus; uma lamina afiada para livrar-me de minha barba, embora
não tenham me dito isso. Eles sorriram ao me presentear, e Celebrian disse suspeitar
que a usaria em breve. Somente depois pude perceber que minha barba mal feita era
motivo de divertimento entre os Elfos.

- Uma brincadeira? - Gemeu Maglor. - Uma brincadeira? Seria de muito mau gosto
então. Celebrian é a filha de Galadriel. Dela poderia esperar tal "brincadeira". Mas de
Elrond? Terá ele também começado a me desprezar? Não, Não posso crer! Mas eles
lhe deram como um presente!

- Eu também reconheci esta lamina e sua bainha. - Disse Círdan. - Você a daria a
Elrond se desconfiasse que ele a usaria com maus propósitos contra você, Maglor?
Elrond tem uma visão aguçada, e é sábio entre os Eldar. Tal presente não foi feito em
tom de brincadeira.

O construtor naval virou-se para Ælfwine com um leve sorriso nos lábios.

- Diga-me amigo dos elfos, Elrond sabia que você planejava vir a Avallónë?

- Sim. - Respondeu Ælfwine. - Pássaros do mar vieram brincar sobre sua casa, e eu
ouvi seus gritos no ar. Então, resolvi visitar esta cidade e, com pesar, deixei a casa de
Elrond e sua esposa.

Ælfwine franziu o cenho levemente.

Lendas de Tol-Eressëa 21
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- Não posso crer que Elrond e Celebrian tivessem intenção de magoar a qualquer um
nesta ilha. E, enquanto viajava pela Estrada, rumo a esta cidade, com as gaivotas
seguindo-me como se alimentassem de meus desejos, acabei dando-me conta do
objetivo com o qual foi me presenteada esta pequena lâmina.

Maglor tirou as mãos do rosto e olhou para Ælfwine.

- Esta lamina, - disse, - foi feita em Gondolin, através de antigas artes, por ninguém
menos que Eärendil, filho de Tuor e Idril. Dele, foi repassada ao seu filho Elrond.
Quando os postos na boca do Sirion foram assaltados por meus irmãos, eu retirei
Elrond, e seu irmão, Elros, das ruínas daquele lugar. E ele levava esta lamina, e nada
mais.

- Você tomou Elrond como refém? - Perguntou Ælfwine.

- Não! - Gritou Maglor, com os olhos em brasa. Mas então, o fogo de sua fúria
retrocedeu novamente. - Você não ouviu? Talvez não tenha entendido... O quê você
ouviu sobre o ataque aos portos nas bocas do Sirion?

- Apenas que você e seus irmãos assaltaram aquele infeliz enclave e mataram sua
própria gente em busca do Silmaril que estava em posse de Eärendil e Elwing. –
Replicou Ælfwine.

Novamente a face de Maglor contorceu-se em fúria e ele esboçou um gesto como se


fosse levantar, mas Círdan calmamente repousou uma mão sobre o ombro do filho de
Fëanor, e gradualmente sua raiva aplacou. Ele olhou para baixo, na direção da faca, e
com um suspiro, e então pousou a sua própria mão sobre a de Ælfwine.

- Eu não devia ter ficado tão surpreso em lhe você em posse dela. Parece que meu
Juramento condena-me sempre ao abismo. E apesar de não ter seguido meus irmãos
aos salões de Mandos, acabei condenado a sofrer de arrependimento em meu retorno.
Ele olhou novamente para a faca sobre a mesa.

- Elrond... - ele suspirou tão levemente que seus companheiros ouviram aquela
palavra apenas como uma leve brisa na tarde de Avallónë. Após um momento, ele
aprumou-se novamente, como se tomasse uma decisão.

- Por Elrond, a quem eu amo como a um filho, a quem não vejo desde a Guerra da Ira,
lhe contarei um pedaço de minha história. Tenho lhe ofendido com minhas palavras e
minha raiva, e então poderei reparar parte do que houve aqui, de modo que possa
perdoar as palavras deste filho de Fëanor.

- Você não vê Elrond desde o fim da Primeira Era? Mas ele mora a apenas poucos dias
de viagem daqui! - Exclamou Ælfwine.

Lendas de Tol-Eressëa 22
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- Não. - Respondeu Maglor. - Nem na Terra-média, apesar de eu saber onde ele se


encontrava, e nem aqui eu o vi. Mesmo sabendo que ele procurou por mim, eu não o
encontrei. Eu não podia! Minha vergonha é muito grande. Vergonha pelos feitos de
meu pai, de meus irmãos, e meus. Não vivi mais entre os Noldor, a não ser por um
breve período em Eregion. Não posso suportar!

Sim! Contarei um pouco de minha história, mas falarei apenas sobre o que eu sei. E
não será parecido com o quê você tem ouvido. Apesar de eu ter sido enredado nas
teias da malícia de Morgoth, sei mais do que tem sido cantado pelos arautos nas Eras
que se passaram.

Meu pai esteve entre os maiores de todos os Elfos que já viveram. Era sutil de
pensamento, habilidoso com as mãos, e profundamente abençoado pelas dádivas com
as quais Eru o havia presenteado. Sua busca por conhecimentos e sabedoria
beneficiou todo o seu povo, e aumentou a glória de Valinor. Mas Fëanor não era
escravo de seus conhecimentos, e não acumulava os frutos de suas habilidades, mas os
distribuía livremente a todos quantos o procurassem, Elfo ou a gente dos Valar. E, se
ficou desgostoso quando meu avô uniu-se a Indis, dos Vanyar, e se não nutria grande
amor por seus meio-irmãos, mesmo assim, naquele tempo, ao Meio Dia de Valinor, não
acumulava intenções maléficas em seu coração.

Meus irmãos e eu éramos amigos de muitos dos filhos de Finarfin e Fingolfin, você
sabia? Maedhros e Fingon, especialmente, mas todos éramos próximos. Fëanor nada
fez para evitar isso, e mesmo com seus meio-irmãos era civilizado, apesar de frio, até
Morgoth ser liberto de Mandos. Foi um grande erro dos Valar ter permitido que o
inimigo vivesse entre nós. Pergunto-me se eles sentiram alguma culpa pelo que
ocorreu depois, pois como poderiam os Elfos saírem ilesos da sombra de malícia de
Morgoth? É claro que de início todos tiveram grande proveito de sua assistência, e ele
parecia amistoso.

Então Maglor levantou e olhou para o Salão de Círdan, para o mar ondulante, e para as
estrelas que começavam a se mostrar no céu. Através das janelas podia-se ouvir uma
voz que sustentava uma antiga canção sobre a glória de Valinor. Seus olhos pareciam
fixos em alguma visão longínqua, de Eras passadas. Então, ele voltou o olhar para seus
companheiros.

- Após Morgoth ser liberto, meu pai passou a ser perturbado por sonhos
premonitórios. - Ele disse. - E resolveu que iria mesclar e preservar a luz das duas
Árvores, assim elas nunca iriam morrer por completo. Muitos anos dos Valar durou
este trabalho, e pela primeira vez Fëanor conheceu o fracasso.

Quantos cristais quebradiços ou opacos ele produziu não saberia dizer; mas foram
muitos. Mas, um dia, ele ergueu uma tenda entre as Árvores e, quando a multidão veio
para ver o quê ocorria, ele apenas enterrou-se ainda mais no trabalho, cercado por
lentes e espelhos enquanto as horas transformavam-se em dias. Então, após conseguir
mesclar a luz das Árvores, ele finalmente emergiu da tenda, sua face e mãos

Lendas de Tol-Eressëa 23
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enegrecidas e chamuscadas, seus olhos vermelhos e cansados, mas carregava uma


caixa negra em seus braços. Dirigiu-se a sua casa, e foi seguido por muitos.

Finalmente, no seu aposento mais profundo, ele abriu a caixa diante de sua família, e
pudemos ver três grandes jóias que brilhavam com a luz viva das Árvores. No escuro,
elas resplandeciam com uma luminescência grandiosa, em tons de ouro e prata, mas
na luz, cintilavam e faiscavam como se arco íris estivessem capturados em seu
interior. Assim eram os Silmarils, o maior de todos os seus trabalhos, e o mais amado.
- Alguns dizem que sua criação contou com um toque de Morgoth. - Disse Ælfwine. -
Eu também tenho ouvido que Morgoth era um de seus maiores conselheiros, e que
teria sido através de sua ajuda que Fëanor pode alcançar seu objetivo.

- Falsidades! - Reagiu Maglor. - A blasfêmia de Morgoth, sempre atentando com suas


teias de decepções, procurando estabelecer o conflito entre as casas dos Noldor,
jogando um contra o outro e disseminando as sementes da inveja e da confusão.
Muitos ouvidos escutaram os sussurros maliciosos do Senhor Negro, e como é dito,
murmúrios geram murmúrios, e assim tais mentiras se perpetuaram entre o povo de
Tirion.

Mas meu pai não teve tratos com Morgoth, apesar de suas palavras terem encontrado
caminhos tortuosos até os seus ouvidos, instigadas por outros, e não antes que sua
malícia tenha sido revelada. Ninguém desprezava Morgoth mais do que meu pai e o
Coração Negro nunca foi bem vindo em nossos aposentos. Na verdade, Fëanor nunca
tomou conselhos com Morgoth, ou aceitou sua assistência na criação dos Silmarils ou
em qualquer dos seus trabalhos. Meu pai trabalhou sozinho, e quando precisava de
alguma assistência contava apenas com seus filhos ou com aqueles em quem confiava,
membros de sua Casa.

Maglor fez uma pausa, e sorriu amargamente antes de continuar.

- Verdade seja dita, se Fëanor recebeu alguma inspiração alheia a sua na criação dos
Silmarils, esta veio de alguém a quem ele aprendeu a odiar além de todos os demais,
salvo o próprio Morgoth. Na época do festival, pouco tempo depois da libertação de
Morgoth, uma grande festa foi oferecida na casa de meu avô. Enquanto a luz das
árvores se mesclavam, e os pilares brancos brilhavam através das janelas como se
fossem torres de luz, meu pai entrou no grande salão e deparou-se com uma dama
alta, vestida em branco, e cuja face parecia ter capturado as luzes de Telperion e
Laurelin. Quando se aproximou dela, viu que não se tratava de outra senão Galadriel,
filha de Finarfin. Colocando de lado se orgulho, ele a cumprimentou com palavras
delicadas, e implorou por uma mecha de seu cabelo, o qual definiu como 'o mais
fantástico e maravilhosos de todos os trabalhos criados pelas mãos dos Noldor'. Mas
ela recusou, dizendo 'Você pede por uma parte de mim mas não é capaz de doar uma
parte de você ao meu pai, seu irmãos ou as suas crianças. Quando a Casa de Fëanor
puder sentar em paz e amizade com as Casas de Fingolfin e Finarfin, então poderei lhe
dar este presente, mas não antes'. Então, ela levantou-se deixando meu pai
envergonhado e furioso. Mesmo então, por mais duas vezes ele pediu por uma mecha

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de seus cabelos, e outras duas vezes ela negou-lhe. Então meu pai disse 'Nunca mais
eu pedirei nada a meus meio-irmãos ou as suas Casas'. Assim, talvez movido pela
vontade de criar algo que empalidecesse até mesmo o esplendor dos cabelos de
Galadriel, ele considerou a luz das Árvores e como aquela maravilha poderia ser
embebida em um cristal imperecível.

- Me parece que seu pai começou a amar acima de todas as coisas os trabalhos de suas
mãos. - Disse Ælfwine. - A não ser a você e seus irmãos. Pelo roubo destas jóias foi
feito o temeroso juramento sobre o qual tenho ouvido. Não foi o Juramento e a cobiça
sobre os Silmarils que ocasionou a rebelião dos Noldor?

- Eu não duvido que muitos digam isso. - Replicou Maglor. - Mas, novamente, não foi
bem assim. Por muito tempo as mentiras de Morgoth encontraram caminhos secretos
através das ruas de Tirion, até chegarem a ouvidos propensos a escutá-las. Para a Casa
de Fëanor foi dito que seus meio-irmãos planejavam contra ele, mas a Finarfin e
Fingolfin, a história dizia que Fëanor desejava reinar entre os Noldor. Outros
sussurravam que os Valar haviam aprisionado os Noldor para evitar que eles
atingissem seu ápice e governassem as terras além mar.

Finalmente, nós ouvimos sobre a chegada dos Homens, a quem os Valar


presenteariam com a Terra-média, como vassalos, negando aos Noldor seu direito
aquele lugar. Esta última intriga revoltou Fëanor, que via alguma verdade naquelas
palavras. Os Valar, é claro, não negavam a chegada dos Hildor, mas não entendiam a
confusão e o ressentimento no coração dos Noldor. Nestes tempos, os conselhos de
Finwë foram tomados por tempestades de ódio e acusações, apesar de meu avô tentar
manter a paz. E o mal estar entre Fëanor e seus meio-irmãos tornou-se ódio, e nós
fomos afastados de nossos primos. Não foram os Silmarils que causaram a rebelião.
Foram as mentiras de Morgoth que nos levaram ao abismo.

Então os Noldor conceberam a criação de armas, couraças e escudos, sem dúvida sob a
inspiração de Morgoth. As ruas de Tirion tornaram-se militarizadas, e muitos
passaram a ostentar os brasões de suas Casas. Assim parecia a Caranthir, Celegorm e
Curufin muito prazeroso ostentar seus escudos adornados enquanto diziam a todos
quanto pudessem ouvi-los que os Valar haviam nos privado das coisas que fizemos e
amamos e nos mantinham como escravos e servos, como os Vanyar, que habitavam
com seus mestres.

Muitos murmuravam estas palavras e então, quando finalmente Fingolfin enviou


mensageiros a Fëanor, convocando-o a reprimir as ações de seus filhos contra os
Valar, Fëanor revoltou-se, rejeitou o meu conselho e o de Maedhros, e tomou a palavra
de seus filhos como a sua própria. Pouco depois meu pai quebrou a paz ao sacar da
espada contra seu meio-irmão, e nossa Casa foi banida de Tirion, mesmo enquanto os
Valar recomeçaram a caça a Morgoth. Assim fomos nós enredados nos planos de
Melkor. E aos ouvidos de meu pai as mentiras do Inimigo tornaram-se verdades
devido ao seu banimento, e quando Finwë colocou de lado seu reinado, unindo-se a
nós no exílio.

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Assim, Fëanor prosseguiu com os Conselhos sobre os erros e injustiças que ele
considerava terem sido impostos a nossa Casa, e Caranthir, Curufin e Celegorm
propuseram abertamente uma rebelião aos ouvidos de meu pai. Se alguém
aconselhava o contrário, Caranthir taxava-o como desleal e muitas palavras amargas
foram trocadas entre os meus irmãos. Eu e Maedhros não desejávamos deixar Aman,
assim como Amrod e Amras.

- Ainda assim todos se rebelaram, e todos proferiram o Juramento de retomar os


Silmarils.

- Argumentou Ælfwine. - E estas palavras foram proferidas de coração leve, e sem


pressões.

Maglor gargalhou sem humor e seu rosto tornou-se escuro.

- Sem pressão você disse? De coração leve? Você não compreende a dor e a confusão
daqueles tempos. De coração leve? Nós havíamos cedido aos intentos de Morgoth, cuja
mente era tão antiga e perspicaz quanto a do próprio Manwë! Nossos destinos haviam
sido determinados, não pelos Silmarils, ou por nossa escolha, mas pela vontade do
Inimigo Negro. Se os acontecimentos estivessem resumidos apenas ao roubo dos
Silmarils, os Noldor não teriam se rebelado, e a vontade de Finwë talvez tivesse
prevalecido sobre a de Fëanor até que os Valar dominassem Morgoth.

Mas não foi o caso. Morgoth destruiu as Árvores, lançando Valinor no que parecia uma
escuridão infinita. A alegria e contentamento de Aman havia sido destruídas como
bolhas de sabão e em seu lugar só havia medo e dúvida. Para muitos parecia que havia
pouco a se deixar para trás.

- Então partissem! Se rebelassem se fosse o caso! - Interrompeu Ælfwine. - Mas por


quê o Juramento?

Ao ouvir estas palavras, lágrimas voltaram a escorrer pelos olhos de Maglor, formando
caminhos pela nobre face do Elfo.

- O Juramento! Mesmo agora eu posso ouvi-lo; as palavras de meu pai, então as


minhas e as de meus irmãos como tochas flamejantes em Tirion. Por quê, você
pergunta? Quando as Árvores foram destruídas, meu pai estava em Valmar, convocado
a participar do festival de Manwë. Nossa Casa ficou para trás, apenas para ser
conspurcada por escuridão e dúvidas. Então, notícias vieram falando sobre uma
sombra. Algum poder, mais escuro que a própria noite, acercara-se de nossos
domínios fazendo com que todos fugissem aterrorizados. Mas meu avô permanecera,
fazendo com que meus irmãos e eu protegêssemos nosso povo. 'Irei buscar os
Silmarils e segui-los!' Ele disse. Mas não nos seguiu. Sozinho, permaneceu de fronte as
nossas portas, espada em punho, para enfrentar Morgoth e o poder negro, que mais
tarde descobrimos tratar-se de Ungoliant. Sozinho ele permaneceu e sozinho ele caiu,
terrivelmente queimado por Morgoth e coberto por inúmeros ferimentos. E suas mãos

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estavam atadas por teias! Ele foi morto sem chance de defesas, sua espada jazia
quebrada no solo. E nós havíamos fugido, deixando-o para trás, sozinho!

Talvez Caranthir, Celegorm e Curufin tivessem mantido o Juramento apenas pelo


roubo dos Silmarils. Mas Maedhros e eu? Não. Nós proferimos o Juramento
enlouquecidos pela dor e pelo ódio, desejosos de perseguir os assassinos de Finwë, e
destruidores da luz de Valinor. Nós não poupamos nossas palavras, e repetimos o
Juramento de nosso pai tendo em mente apenas vingarmo-nos de Morgoth o
Amaldiçoado. Nós falamos sem pensar, nossas mentes cobertas pela dor. Nós não
estávamos ao lado de nosso avô, e ele morreu fazendo o que nós tivemos medo de
fazer!
- Se vocês tivessem ficado para combater ao lado de Finwë, algo teria mudado? -
Perguntou Círdan gentilmente. - Salvo talvez que você e seus irmãos teriam perecido
também.

- E talvez o mundo teria ganho se isso ocorresse! Se eu tivesse escapado àquele cruel
destino apenas para viver até o dia de proferir o Juramento, muito mau teria sido
evitado. - Ponderou Maglor, e levantou uma taça de vinho, esvaziando-a de um só gole.
Novamente ele passou a manga de sua túnica por sobre os olhos.

Então nos rebelamos. - Prosseguiu. - E mesmo durante os tumultos, as Casas dos


Noldor não entraram em concordância, tão turbulentos estavam os sentimentos.
Partimos de Tirion em três hostes, com Fëanor a frente. Deixamos Tirion para trás
sem sabermos nem mesmo em que direção seguir. Então, após muito debate,
resolvemos prosseguir até Alqualondë, e persuadir os Teleri a juntarem-se a nós ou ao
menos permitirem-nos que usássemos seus navios para que pudéssemos cruzar o
oceano. Mas os Teleri não desejavam deixar Aman, e nos negaram seus barcos, talvez
pensando que reconsideraríamos nossa decisão. Mas, devido ao Juramento, havíamos
sido banidos e não deixaríamos que ninguém entro nós reconsiderasse. Tão
desesperados estávamos, tão determinados, que simplesmente decidimos avançar
sobre as docas para tomarmos os barcos por nós mesmos.

Meu pai deixou que o sangue falasse mais alto em suas veias e, com meus irmãos, caiu
sobre a cidade tentando capturar os navios. Mas um alarma soou e muitos entre os
Teleri correram para as docas para encontrar-nos de posse de seus navios. Apesar de
serem muitos, em sua maioria estavam armados apenas com facas, ganchos e arcos.
Nós tentamos recuar, mas nos vimos bloqueados pela multidão que havia nos
encurralado no cais. A princípio, nós apenas entramos em confronto corporal com os
Teleri, tentando achar uma saída dali. Então, um dos Teleri adiantou-se e, com um
grito, jogou sua faca contra meu pai. Celegorm avançou com sua espada em punho,
matando-o. Por um longo momento tudo ficou quieto, mas então uma grande luta
eclodiu, e muitos foram mortos de ambos os lados antes que pudéssemos abrir
caminho por entre a turba.

De minha parte, usei apenas o escudo, e as bordas de minha espada, procurando


defender-me dos ataques. Maedhros agiu da mesma forma, tentando evitar um

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derramamento de sangue ainda maior. Mas, ouvindo o barulho dos gritos na cidade,
uma grande parte de nossa hoste correu em nosso socorro, e encontrando os Teleri
armados reiniciaram, sob as ordens de Caranthir, um novo ataque as docas. Eu
implorei a meu pai que interviesse, mas ele empurrou-me de lado gritando que os
Valar haviam subornado os Teleri, instigando-os. Mesmo então, com as ruas estreitas,
fomos forçados a um novo recuo.

Maglor pareceu estar novamente a beira das lágrimas, e sua voz soava entrecortada
enquanto falava.

- Neste momento a hoste de Fingolfin chegou e, deparando-se com nossa Casa,


enredada em um violento combate, avançou com espadas em punho. Maedhros corria
por entre os Noldor, urgindo-os a baixar as armas, mas seus apelos perdiam-se por
entre o clamor da luta. Vi-me novamente nas docas, coberto pelo sangue de nossa
gente, Noldor e Teleri. E então, contemplei uma estranha visão. Pois Galadriel estava
lá, e lutava com os Teleri, contra seu povo. Com uma voz clara ela gritou para Fëanor,
'Que loucura o dominou para que avances contra a sua gente, assassinando-os a
sangue frio? Pare, ou terás em mim e em todos os que aqui presenciam estes crimes,
inimigos eterno. Esta será a recompensa de seus atos!' Mas meu pai gargalhou, pois já
tinha em sua posse os navios. Para finalizar minha agonia, acabei sendo atingido nas
costas. Minha ultima visão foram os soldados Noldor empurrando os Teleri para a
morte, lançando-os de cima do alto penhasco que se erguia sobre as docas.

Por entre lágrimas, Maglor virou-se e disse:

- Perdoe-me Círdan, pois o sangue de seus parentes mancha meu passado. - E enterrou
o rosto entre suas mãos, soluçando copiosamente.

Círdan inclinou-se sobre o Elfo, segurando suas mãos trêmulas entre as suas.
Levantou-lhe a face e beijou sua testa ternamente.

- Eu já sabia sobre a Matança entre as Famílias muito antes de nosso primeiro


encontro, - ele disse - e ainda que você nunca tivesse me contado a sua história, em
algum momento neguei nossa amizade? Pelo seu nome, tens sido estigmatizado como
"o filho de Fëanor", e marcado pelos feitos de seus parentes, ainda que seu nome
mesmo não seja marcado pelo mal. Pelos seus olhos eu vejo que o que falas é verdade,
mas mesmo que não fosse, não foi você perdoado, e trazido do leste? Coloque de lado
suas culpas Maglor, pois não as merece.

- Não as mereço? E o que me diz da segunda matança entre as famílias? - Ele clamou. -
Quando Beren recuperou o Silmaril da Coroa de Ferro nós não celebramos seu feito
como um ato digno de honra. Entre meus irmãos prevaleceu a decisão de enviar um
mensageiro a Thingol, reclamando a Jóia. E então, Maedhros e eu reprimimos por um
tempo a idéia de um levante contra Thingol e sua rainha. Mas, quando o Rei foi morto,
e o Silmaril passou para as mãos de Lúthien para Dior o Justo, não pudemos mais
conter Celegorm, Caranthir e Curufin. A Casa de Fëanor assaltou Doriath e destruiu o

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reino em nome do Juramento. Embora Maedhros e eu tenhamos permanecido para


trás com a maioria dos homens de nossas Casas, ainda assim nada fizemos para evitar
que nossos irmãos derramassem novamente o sangue dos parentes. Devido a isso
fomos ainda chamados desleais por nossos irmãos, e jogados na lama pois eles havias
assassinado Dior e seu povo.

- Ainda assim não derramaste o sangue dos seus, assim como não quebrastes o seu
Juramento. - Replicou Círdan. O antigo Elfo fixou seus olhos em Maglor. - Não poderias
conter seus irmãos em nenhum de seus atos.

- Não poderia? - Suspirou Maglor. Seus olhos refletindo a luz vermelha dos candeeiros
do grande salão e do fogo que ardia em seu coração. - O Silmaril escapou a ruína de
Doriath nas mãos de Elwing, e retornou as bocas do Sirion. Celegorm, Caranthir e
Curufin poderiam ter seguido com o restante de nosso exército, mas novamente
Maedhros e eu nos recusamos.

- Mas mesmo assim vocês atacaram os Portos, se ouvi corretamente. - Disse Ælfwine. -
E também é dito que parte de seu povo se rebelou e decidiu lutar entre os refugiados
que ali se encontravam.

- Uma meia verdade finalmente. - Respondeu Maglor. - Por longo tempo discutimos
nós, os cinco irmãos sobreviventes, mas Maedhros e eu mantivemo-nos firmes, e
Caranthir chamou-nos covardes. E quando com o passar do tempo parecia que nossa
opinião prevaleceria, então, novamente, o debate aflorou, e palavras amargas foram
trocadas antes que todos retornassem aos seus acampamentos. Mas, dias depois, uma
mensagem de Caranthir chegou, e dizia em poucas palavras 'Nós vamos recuperar o
Silmaril e cumprir nosso Juramento. Se vocês não são covardes sigam-nos e
regozijem-se com nossa vitória. Mas, se recusarem e desonrarem nossa Casa não
estarão mais entre nossos parentes. Lembramos que são filhos de Fëanor, o maior
entre os Noldor. Se a sua memória e a de Finwë significam algo para vocês, então
sigam-nos”.

Os olhos de Maglor turvaram-se como se viajassem no tempo, e sua voz soava como se
viesse de Eras passadas.

- Nós seguimos. Juntamo-nos aos membros de nossa Casa. Quando alcançamos os


Portos a batalha já havia começado, e refugiados seguiam pelas estradas como
mendigos. A retaguarda do exército de nossos irmãos observou nossa aproximação, e
soaram trompas. Eu pude ouvir por sobre o clamor da luta os gritos que Elwing, que
em um ato desesperado, lançou-se no mar levando o Silmaril em seu seio. Fracasso! E
então avancei com o estandarte de Fëanor e todos abriram caminhos por entre o que
restava da batalha. E avançamos para a cidade, abrindo caminho pela retaguarda dos
exércitos de nossos irmãos. Maedhros e eu não ficamos pesarosos quando
descobrimos que eles haviam caído na batalha pois vimos isso como a sua libertação
frente aos desígnios de Morgoth.

Lendas de Tol-Eressëa 29
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Então, tomei Elrond e seu irmão, Elros, como filhos adotivos pois ninguém sabia que
eram filhos de Eärendil e Elwing. Eu os amei como a meus filhos, e eles, em troca, me
deram seu amor, e cresceram sob meus cuidados.

- Você os resgatou, e aos remanescentes de seu povo! - Clamou Ælfwine. - Mas porque
se recusas a ver Elrond ou aos Noldor?

Maglor caiu em silêncio por um momento, mas Círdan olhou para o amigo com um
sorriso amargo. Então, levantando outro copo de vinho, Maglor disse.

- Grande foi a Guerra da Ira. E para minha grande alegria, após muitos anos de
sofrimentos e batalhas, Morgoth fora derrotado. Mas nosso Juramento acordara
novamente para a recuperação dos Silmarils. Enquanto a hoste preparava-se para
partir rumo ao Oeste, Maedhros e eu debatemos. Ele pretendia encontrar os Silmarils,
enquanto eu queria apenas cruzar o mar a procura do julgamento de Manwë, mesmo
que isso custasse a minha promessa. Maedhros estava decidido e resolveu ir em busca
de seu destino com ou sem a minha ajuda.

Temendo por sua vida, tentei detê-lo. Segui-o enquanto se aproximava do campo. Mas
havia luz e guardas, e Maedhros engatinhou até o local onde os Silmarils estavam
guardados. Ele ergueu-se rapidamente atacando os guardas, e matou dois na força de
sua loucura. Mas, outros dois reagiram e no final eu senti que não poderia ficar ali
assistindo a sua morte. Sacando minha espada eu derrubei um enquanto ele derrotava
o último guardião, e entrava na tenda para se apoderar da caixa na qual repousavam
os Silmarils. Assim cumpri meu juramento, e ao mesmo tempo matei um membro de
meu povo. Chorei amargamente enquanto um alarme soava, e pus-me de pé junto a
Maedhros desejando a morte. Mas Eönwë não permitiu que fossemos mortos, e
fugimos com dois Silmarils.

A uma distancia segura do acampamento, as margens do oceano, nós paramos. O solo


sob nossos pés estava quebrado, e fios de fumaça subiam das fendas, pois Beleriand
estava morrendo, e uma larga porção de suas terras encontravam-se agora sob as
ondas. Maedhros abriu a caixa e as Jóias brilharam com a luz das duas Árvores. Em
nós pegamos cada um uma jóia em nossas mãos.

A voz de Maglor tremeu novamente e uma sombra de loucura brilhou em seus olhos.
- Já esteve diante de um Silmaril, Ælfwine ? - Ele gemeu. E abriu sua mão direita, com a
palma virada para cima. Gravada na pele, como se tivesse sido marcada a ferro, estava
a impressão de uma jóia oval. Maglor fechou seus olhos e disse. - Elas queimaram!
Como as chamas do sol, elas queimaram nossas mãos, pois haviam sido feitas em
Valinor, e nós, pelos nossos feitos, havíamos perdido o direito de possuí-las! Enquanto
eu gritava em agonia, Maedhros cambaleou para a frente, na direção de uma das
fendas fumegantes e, com um Silmarill nas mãos, deixou-se cair em busca de uma
morte aparadora. Enquanto labaredas eram cuspidas das fendas a minha volta, a
pedra queimava minha mão, e eu lancei-a o mais longe que pude, no mar.

Lendas de Tol-Eressëa 30
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Enlouquecido pela dor e pelo sofrimento, fugi as cegas, e por longo tempo evitei a
companhia de qualquer criatura viva. A Elrond não poderia voltar, pois minha
vergonha era e ainda é muito grande. A dor causada pelo Silmaril despertou em minha
mente a memória de todos os maus feitos nascidos em nome do nosso Juramento.
Apesar de que eu tenha eventualmente retomado meu senso e minha necessidade por
companhia, não pude, e não posso ainda encará-lo, assim como a qualquer um a quem
conheci naqueles tempos.

Círdan levantou-se de seu assento e pos as mãos sobre os ombros de Maglor.

- Assim, agora Maglor, você contou-nos, após tanto tempo, a sua história, e posso
dizer-lhe que aguardei muito tempo para ouvi-la. Irás continuar a esconder-se no
passado? Você tem habitado nesta cidade por muito tempo, e jamais cruzou suas
portas. Você, que temeu o julgamento, julgou a si mesmo e condenou-se a um
banimento voluntário. Bem, eu não concordo. Acho que o que está feito, esta feito.
Você fez o que lhe era possível para se esquivar da malícia. Seja lá o que você tenha
feito, foi perdoado, pois se não fosse assim não teria lhe sido permitido retornar ao
Oeste. Você ainda nega a autoridade dos Valar?

Lendas de Tol-Eressëa 31
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Capítulo 4
A Cura de um Antigo Mal

Maglor contraiu-se perante o toque de Círdan, como se a mão sobre os seus ombros
estivesse tomada por brasas incandescentes. Ele buscou novamente pela jarra sobre a
mesa, servindo-se cambaleante de mais uma taça de vinho. Ignorando as gotas do
líquido, que escorriam por suas mãos. Ele ergueu a taça e sorveu avidamente seu
conteúdo.

- O que é isso que me dizes Círdan? - Perguntou. - Meu pai e meus irmãos sentam-se
silenciosos nas Mansões de Mandos. Eles não foram libertos, nem mesmo Maedhros!
Este é o julgamento dos Valar! Que somos culpados, todos nós. Culpados além de
qualquer redenção. Culpados por guiarmos nosso povo para a rebelião e o morticínio.
Nossos reinos no exílio foram destruídos e nossas terras, sobre as quais nossas casas
estavam fundeadas, afundaram e ruíram sob o peso das ondas, como tivessem sido
limpas dos pecados dos que ali habitaram. Quem sou eu para negar este julgamento?
Lágrimas desciam pelos seus olhos, deixando estradas úmidas em seu rosto. Maglor
apertou os punhos, pesaroso e ferido, enquanto encarava o olhar de Círdan.
Novamente procurou por sua taça, mas suas mãos estavam trêmulas, e o vinho
derramou-se pela mesa. O copo tombou e Maglor ergueu suas mãos manchadas com o
escarlate da bebida. - Sangue - Ele murmurou enquanto tentava se levantar. Mas suas
pernas falharam e desabou sob a mesa, como se tivesse sido atingido por um golpe.
Círdan observou o sonolento Elfo, seus olhos repletos de piedade. Então, convocou
dois de seus marinheiros e ordenou que levassem Maglor aos seus aposentos. Ele
observou enquanto os homens erguiam gentilmente o corpo cambaleante, e então
sentou-se ao lado de Ælfwine.

- Tão nobre Elfo reduzido a isso. - Disse pesaroso. - Vivendo aqui como um ermitão,
falando apenas com poucos dos meus homens. Por muito tempo temos convivido aqui.
Sua aflição e vergonha estão impressas em sua alma, e ele não pode livrar-se desta
sina. Ælfwine , desde que eu o conheço ele jamais contou sua história. Mas mesmo
agora, que finalmente tomou coragem para falar, temo que não consiga enxergar a
própria cura.

- Sua história é triste além do que possamos imaginar. - Disse Ælfwine. - Ainda que
difira das histórias que ouvi na casa de Pengolod. Ele disse a verdade?

O fogo que crepitava na grande lareira refletiu-se nos olhos cinzentos de Círdan,
pousados sobre o homem que sentava-se ao seu lado.

- Muitos dos que contam histórias do passado relatam apenas o que ouviram de
outros. Mesmo Pengolod não esteve presente durante a maioria destes eventos.
Assim, eu presenciei quando Celegorm, Caranthir e Curufin caíram sobre Doriath.
Eram tempos confusos, e palavras passavam de boca em boca, modificando-se
enquanto o tempo corria. Maglor disse a verdade - Sustentou o Elfo. - Não vejo engodo

Lendas de Tol-Eressëa 32
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em suas palavras, apenas dor. Ele não poderia mentir para mim. Nos conhecemos há
muito tempo.

- Como Maglor veio habitar com você nos Portos Cinzentos da Terra-média? -
Perguntou Ælfwine.

- Ele disse-me que havia vagado por muito tempo, sozinho, coberto de sofrimento, e
retornou após Maedhros ter-se matado. - Respondeu Círdan. - Naqueles dias ele pouco
falava, a não ser para dizer que jamais voltaria as costas salgadas, lamentando-se de
saudades pelo Oeste, que dizia ter perdido para sempre. Aos poucos, acalmou-se, e em
segredo habitou entre os Silvan, nas florestas aos pés das Ered Luin. Chamava a si
mesmo Randir, e instalou-se sob as árvores daquelas terras que eram as únicas
sobreviventes de Beleriand.

Quando Sauron ergueu-se, durante a Segunda Era, e assolou Eregion com seus
imundos exércitos de orcs, Maglor enfureceu-se. Apesar do ataque não ter atingido
aos Noldor de Lindon, muitos a quem ele amava encontravam-se estabelecidos em
Ost-in-Edhil, e Celebrimbor era seu sobrinho. Então, reuniu tantos Elfos quantos lhe
foi possível, e ergueu-se contra o legado de Morgoth com uma pequena força,
cruzando as montanhas para ajudar Eregion.

Randir e suas forças lutaram bravamente, deixando para trás a tranqüilidade de suas
casas, viajando muitas léguas até Eriador. Mesmo assim, no final, não poderiam fazer
frente aos exércitos de Sauron. Os cavaleiros de Randir adentraram as ruas de Ost-in-
Edhil em uma manhã estranhamente escura. Os Elfos das montanhas olharam a
cidade, maravilhados. Fora construída sobre uma colina verdejante, em memória da
antiga Tírion. A cidade era cercada por muralhas brancas, e suas avenidas eram
pavimentadas com grande blocos de pedras cinzentas, emolduradas por árvores e
canteiros de flores. Suas forjas eram instaladas em robustas construções emolduradas
por domos prateados que ostentavam compridas chaminés que nunca deixavam de
expelir fumaça branca. Os edifícios de trabalho eram agrupados juntos, na parte norte
da cidade, mas em seu centro, e nas proximidades da murada oeste, elevavam-se
grandes torres, cada qual coroada por belos cristais representando a marca da Casa
que a possuía. E o símbolo da Casa de Celebrimdor era uma citrina dourada, sobre a
qual erguia-se a Estrela de Fëanor.

Os rumores sobre a dimensão dos exércitos de Sauron haviam acabado de chegar a


sala do conselho de Celebrimdor, e os preparativos para a guerra já estavam em
andamento. Mensageiros haviam chegado de Lindon e Lorinand, com promessas de
auxílio. Mas ainda assim os Capitães de Eregion estavam receosos. Enquanto debatiam
a melhor estratégia, Randir surgiu, em trajes empoeirados pela estrada, e com o rosto
coberto por um capuz. Ele tentou convencê-los a recuar, talvez para as mansões dos
Anões, seus aliados, ou ao menor enviar as crianças e as mães, ao norte ou ao leste.
Um dos Capitães ridicularizou-o, ordenando que recuasse para as árvores do norte se
não tivesse estômago para a luta. “Não deixaremos para trás o quê construímos aqui”,
disseram.

Lendas de Tol-Eressëa 33
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Então, Randir desfez-se de seu disfarce, revelando seus cabelos soltos e avermelhados,
e sua face tomada pela raiva. “Ambarusso”, sussurrou um dos conselheiros, e muitos
reconheceram o visitante. “Não ame em demasia as coisas feitas por suas mãos”
advertiu Maglor. “Isso aprendi uma Era atrás, no Norte. Uma lição aprendida
duramente sob as névoas de falsidade do Senhor Negro”. E novamente ele suplicou
aos Capitães para que enviassem os jovens e as mulheres, acompanhadas por poucos
soldados, e Celebrimbor curvou-se a sabedoria de seu tio e enviou a salvação muitos
sob a guarda do novamente disfarçado Randir. Mau partiram para norte, e as forças de
Sauron caíram sobre a cidade.
Círdan suspirou pesadamente.

- Somente mais tarde vieram as notícias de que Elrond e Celeborn não haviam
chegado a tempo, e que Eregion caíra. Celebrimbor foi cruelmente torturado e
assassinado. Seu corpo foi empalado e ostentado como estandarte entre os exércitos
de Sauron. Poucos escaparam a queda da cidade, salvo os que seguiram com Randir e
seu povo.

O bando de Randir não se demorou em Lindon após entregar as mulheres e crianças,


mas voltou a Eriador, para atormentar as forças de Sauron onde quer que as
encontrassem. Eu me lembro de histórias de Randir, histórias que falavam dos
ataques desesperados e violentos que ele liderava contra acampamentos de orcs, para
em seguida desaparecer sem deixar rastros. De fato, foi dito que eles se arrastaram
rumo ao acampamento das forças de Sauron e de lá roubaram o corpo de Celebrimbor,
deixando em seu lugar o corpo de um Capitão orc, coberto por uma gaze branca. Não
foi pequena a sua participação na longa guerra contra Sauron, e nos últimos
momentos daquela Era havia se tornado um grande Capitão, comandante de um
robusto grupo de Elfos Sindar na Batalha de Dagorlad.

Quando as linhas de Oropher foram rompidas pelas forças de Sauron, onde no que
depois ficou conhecido como Pântano dos Mortos, o Inimigo assaltou a hoste de Gil-
galad, e o Rei com muita dificuldade, pode conter o ataque. Mas Randir e suas forças
movimentaram-se pelo flanco dos exércitos do Senhor Negro, dividindo-os. Cercada, a
soldadesca de Sauron acabou passada a fio de espada, até o último orc. Mas mesmo
após a batalha, Randir não encontrou-se ou aceitou os agradecimentos de Gil-galad ou
de seu arauto, Elrond. Após a guerra, desapareceu novamente.

Durante a Terceira Era, Randir novamente perambulou por Eriador, ajudando as


forças remanescentes de Arnor em sua guerra contra Angmar. Mas quando Elrond e
Glorfindel vieram em assistência aos Dúnedain, e finalmente os exércitos do Rei Bruxo
foram derrotados, ele desapareceu. É dito que mais tarde, ainda na Terceira Era,
Randir novamente combateu contra os servos de Sauron, mas após a Guerra do Anel,
retornou aos Portos.

Círdan suspirou novamente e levantou-se para olhar pela grande janela que
emoldurava o oceano abaixo. As estrelas refletiam-se em seus cabelos acinzentados

Lendas de Tol-Eressëa 34
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enquanto ele respirava profundamente o ar salgado da costa. Então, dirigiu-se


novamente a Ælfwine , e falou.

- Uma noite, - ele disse, - eu caminhava por entre as árvores de um bosque próximo as
muralhas dos Portos quando ouvi uma canção de incomensurável beleza. E fui atraído
até Randir, que entoava uma melodia de Valinor na língua dos Noldor. Sua voz era
doce como o mel e eu, que conhecera Daeron, nunca havia escutado tal beleza. Então
compreendi, e aproximei-me chamando-o por seu verdadeiro nome. De início, Maglor
não falou, mas eu disse “Como Randir você é meu amigo e isso não se modificará com
seu nome”. Com isso ele respondeu, “Mas meu nome é uma maldição para mim e para
todos a quantos amo”. Mas eu disse, “Seu nome é sua herança, use ele ou não. Mesmo
Turin aprendeu esta lição”. Desta forma tornamo-nos amigos e ele não ostentou mais
o nome de Randir, mas mesmo assim nunca revelou a mim as coisas que disse a você
esta noite.

Ælfwine abriu a boca para falar novamente, mas Círdan ergueu a mão com um sorriso,
interrompendo-o.

- É tarde, e hora de descanso. Você é meu convidado e podemos falar deste e de outros
assuntos outra hora. Maglor jaz em sua cama, e você deve descansar também. Como
dizemos aqui, "a manhã pode trazer novas notícias". E agora, a manhã não esta longe.
Mas, ao amanhecer, Ælfwine não viu Círdan ou Maglor. Nenhum dos dois apareceu nos
dias seguintes, e Ælfwine gastou seu tempo explorando a cidade élfica, e conversando
com sua gente. Em um belo pátio ajardinado, abaixo da Mindon Anduliéva, descobriu
uma elevação verde sobre a qual crescia uma bela árvore branca. Suas folhas tinham a
forma de pontas de lanças, e pareciam emitir um brilho prateado, enquanto suas
raízes eram lisas e claras. Antiga lhe pareceu, de modos que nem mesmo conseguia
abraçar-lhe o tronco. Mas ainda assim lhe pareceu jovem, como um broto que rebenta
na primavera. Por muito tempo esteve Ælfwine sob seus galhos, escutando a música
que o vento criava entre suas folhas, como um cálido suspiro que parecia dizer-lhe
coisas de um passado remoto, e de um futuro ainda porvir. A cada dia, Ælfwine
retornava a árvore para ouvir a esta música, e sentir o aroma de seu ar verde, mas na
maioria do tempo apenas sentava-se sob a sua sombra e divagava olhando os raios do
sol criando formas nas folhas.

Foi sob a árvore que Círdan surgiu novamente em uma tarde. O marinheiro caminhou
em sua direção com um sorriso, e disse:

- Não me surpreendo em encontrar-te aqui. Eu mesmo venho às vezes para


contemplar, mesmo que apenas em minha visão mental, aquilo que nunca vi durante
minha vida.

- E do que se trata? - Perguntou Ælfwine , ainda sonolento devido ao calor do verão, e


deleitado pela dança da luz entre as folhas.

Lendas de Tol-Eressëa 35
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- Da Árvore Prateada, é claro. Uma das Duas Árvores de Valinor. - Disse Círdan. - Você
não sabe? Descansas sob Celeborn, uma muda de Telperion, um presente antigo dos
Valar. De todas as árvores do mundo é a que mais lembra a original, é o que se diz. -
Suas sobrancelhas eriçaram-se, e sua voz tornou-se pensativa enquanto ele olhava
para o leste. - Esta pode ser a última de sua linhagem a leste de Pelennor, talvez em
toda Arda.

Silenciosamente, os dois caminharam afastando-se da árvore, embora Ælfwine tenha


se sentido estranhamente relutante em fazê-lo, como se apenas sob as suas sombras
ele pudesse se sentir totalmente satisfeito e livre de todas as mazelas. Mas este
sentimento se foi assim que atravessaram as ruas de Avallónë e aproximaram-se do
porto. O vento mudou de direção, soprando do oeste. Olhando para cima, Ælfwine
pode ver novamente os pássaros marinhos amontoando-se sobre ele, subindo e
mergulhando por entre as casas com seus gritos ásperos. Círdan olhou para cima com
um sorriso, enquanto as gaivotas dirigiam-se para o cais onde uma figura solitária
estendia-se de pé.

Maglor olhou surpreso, e então levantou-se para cumprimentar Círdan e Ælfwine.

- Devo me desculpar por meu comportamento. - Ele disse. - Temo que não tenha me
comportado de forma honrada, e nem dado ao nosso hóspede o respeito que merecia.
- Não tens porque se desculpar. - Respondeu Círdan. - Por embebedar-se após um
grande esforço para revelar-nos o que esteve por tanto tempo oculto? Nah, desculpas
não são necessárias. Por Eras de longo e doloroso silêncio? Sua tristeza é apenas sua, e
se escolheres cultivá-la, não é assunto de minha alçada. Mas espere! Há ainda uma
rudeza pela qual você ainda não foi perdoado. Ainda não respondeste minhas
indagações.

- Perdoe-me? - Replicou Maglor. - Que indagações seriam estas? Minha memória sobre
aquela noite é pouco clara.

- Duas indagações eu lhe fiz. - Disse Círdan carrancudo. - Primeiro, perguntei-lhe se


continuarias escondendo-se no passado. Pois é isso que tens feito por Eras, e como és
meu amigo pesa-me presenciar sua dor. Por ultimo, mas não menos importante,
perguntei-lhe se mesmo agora você contraria a vontade dos Valar. Pois tens julgado a
si mesmo, ignorando que foram eles que o julgaram permitindo sua entrada nas
Terras Imortais. Vê? Pareces julgar-se culpado enquanto, ao que parece, os próprios
Valar já consideraram o seu arrependimento. E a estas duas indagações, pelas quais
não obtive respostas, adiciono agora uma terceira: Maglor, o que farás agora?
Finalmente contaste sua história, por tanto tempo guardada. Nenhum segredo
permanece. O que farás agora?

O rosto de Maglor endureceu-se, como se ele tivesse saboreado aquelas perguntas e


sentido um gosto amargo em sua boca.

Lendas de Tol-Eressëa 36
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- Sugeres que eu embarque agora mesmo e parta para Valinor em busca do


julgamento e do perdão dos Valar? - Disse.

- Não hoje. - Gracejou Círdan. - Apesar de ser uma escolha sua. No entanto, tens aceito
a hospitalidade deles por Eras. Talvez seja hora de agradar aos seus anfitriões. Mas
não sugiro tal viagem neste momento. Talvez em breve. Ælfwine foi convidado a
celebrar a chegada do Verão, assim como eu. Irá nos acompanhar? Deixará Avallónë
finalmente, ao menos por uma noite, para ver o que se esconde atrás de suas
muradas?

Maglor permaneceu estático diante de Círdan, sem compreender. Então, sua face
tornou-se pálida.

- Quer que eu viaje até a Casa de Elrond? - Perguntou incrédulo. - Para encarar a quem
eu privei de sua própria gente, apenas para abandoná-lo com o intuito de matar um
guarda sem motivo melhor do que roubar um Silmaril, pelo qual eu nem ao menos
tinha direito?

- Sim. Elrond, a quem você amou, e que o amou também. E se você realmente o
abandonou, não lhe deve alguma explicação?

- Mas que explicação poderia eu lhe dar? - Desesperou-se Maglor.

- Podes começar pelo que falou a mim. - Respondeu Ælfwine secamente. - Pois apesar
de não ser a única história que você poderia contar é, certamente, a única que você
precisa contar. Além disso, porquê gastar sua saliva falando com um homem, se é a
Elrond que deve explicações.

- Para mim isso parece destinado a ocorrer, se não profetizado. - Emendou Círdan. -
Por qual outro motivo teria Elrond presenteado Ælfwine com a pequena faca, a não
ser para despertar a sua atenção? Por isso fiz minha primeira e terceira perguntas.
Irás abandonar seu exílio, e juntar-se a nós nesta viagem a Casa de Elrond? Partiremos
em dois dias. Quanto a minha Segunda pergunta, deixo para que responda a você
mesmo. - E com isso Círdan virou-se e afastou-se do cais.

Ælfwine fez o mesmo, seguindo o orgulhoso e sábio Elfo.

Os três viajantes cruzaram a pé os portões de Avallónë ("Pois Maglor nunca viu as


belezas da ilha, e eu não quero apressá-lo sobre um cavalo", argumentara Círdan),
acompanhados apenas pelos pássaros do mar, que trinavam estridentemente sobre
suas cabeças. Da mesma forma que haviam seguido Ælfwine em sua jornada rumo a
cidade, também agora acompanhavam o trio enquanto caminhavam para oeste.
Carregavam pequenas mochilas e trajavam capas acinzentadas, presas ao pescoço por
broches de aquamarina, o símbolo da guilda de marinheiros de Círdan.

Lendas de Tol-Eressëa 37
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A estrada era boa, e o grupo viajou em paz. Algumas vezes, foram ultrapassados por
elfos montados, alguns finamente trajados, que seguiam aparentemente a mesma
direção. Com saudações eles passavam, velozes, deixando para trás apenas os sons dos
guizos dos cavalos. Em uma ocasião, uma carruagem surgiu pela Estrada e um Elfo
convidou-os a subir. Mas Círdan respondeu com humor: "Vá em frente, amigo! Não
estamos com pressa, principalmente por viajarmos em tão boa companhia!", disse
apontando para cima, para os pássaros que os acompanhavam em círculos. O Elfo
sorriu e atiçou suas rédeas, seguindo caminho.

Apesar da estrada ser mais longa do que eles esperavam, e apesar de terem parado
por mais tempo do que planejavam para apreciar as belezas do caminho, chegaram às
terras de Elrond às portas do verão. Pavilhões haviam sido erguidos nos campos, e as
tendas multicores se espalhavam por todos os lados, como se fosse o acampamento de
um grande exército. Foram recebidos por Gildir, um servo da Casa, que providenciou
banho e vinho, enquanto outros procuravam um bom lugar para a tenda. Mas, quando
perguntaram sobre Elrond, a face de Gildir tornou-se triste.

- O Senhor e a Senhora foram convocados para negócios urgentes. Não sabemos ao


menos quando retornarão, nem mesmo se isso ocorrerá a tempo de participarem das
festividades.

Um suspiro surgiu do capuz que escondia a face de Maglor. Se foi de cansaço ou alívio,
seus companheiros não puderam distinguir. Ainda que Maglor não tirasse seu capuz,
caminhou entre os acampados e seus pavilhões. Mas, enquanto muitos
cumprimentavam Círdan, ou encaravam com curiosidade Ælfwine, ninguém dirigiu a
palavra ao filho de Fëanor.

- Não mostrará sua face? - Provocou Círdan. - Vais continuar como um ermitão?

- Mostrarei minha face quando encontrar Elrond. - Replicou Maglor. - Mas vejo aqui
muitos servos das Casas de Finarfin e Fingolfin. Apesar de não temê-los, devo evitar
conflitos no que parece ser um dia de paz e alegria. - Com isso, Círdan desenrolou de
sua mochila uma bela capa azul celeste que, com uma rápida sacudidela, para o
espanto de Ælfwine, rapidamente transformou-se em uma pequena tenda onde os três
entraram.

O sol se pôs e as estrelas espalharam-se pelo céu claro, enquanto canções se elevavam
por todo o acampamento. Enquanto a noite se adensava, o vinho começou a ser
servido, as fogueiras acesas, e as cozinhas de campanha armadas. No entanto, a
celebração teria início apenas após a meia noite, com o começo do verão. Após
algumas horas de descanso, e com objeções por parte de Maglor, Círdan conduziu seus
acompanhantes para o grande salão da casa principal, onde a celebração estava sendo
preparada. Menestréis passeavam por entre a multidão, e canções eram elevadas,
algumas leves e belas, cantadas por Elfos alegres como crianças, outras profundas,
repletas de tradição e história, estas mantidas por faces nobres. Todos conheciam
Círdan, que rapidamente desapareceu na multidão. Muitos estavam curiosos a

Lendas de Tol-Eressëa 38
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respeito do Homem que havia chegado inesperadamente as costas da Ilha Solitária e


tanto Ælfwine como Maglor, ainda oculto por trás de sua capa, foram saudados por
grupos de Elfos que lhes ofereciam vinho, cerveja e suaves licores.

Com a madrugada aproximando-se, Ælfwine bebeu cuidadosamente uma taça de


vinho resfriado. Maglor permanecia próximo e silencioso, ouvindo a todos, mas sem
falar. Se lhe perguntavam o nome, respondia Rána, o Rebelde, e poucos lhe dirigiam
mais perguntas.

De vez em quando, Ælfwine hipnotizava-se com uma dama de incomparável beleza,


alta como poucos Homens, com cabelos dourados como se os raios do sol tivessem ali
encontrado morada, sua face serena e bela além de qualquer descrição. Seus olhos
brilhavam como pontas de lanças. Ela vestia um sóbrio manto cinza, e sobre seus
ombros havia uma fina corrente de prata que sustentava uma jóia solitária, branca, e
cujo brilho era como a mais brilhante estrela na noite. Acompanhando a bela dama
havia um Elfo também vestido de cinza. Mas, se o casal se aproximava, Maglor puxava
mais a frente seu capuz, e tomava direção contrária. Em dúvida, Ælfwine inquiriu-lhe e
ouviu como resposta apenas um sussurro.

- Galadriel. –

Muitas canções foram cantadas durante a noite, algumas por elfos sós, outras por
grupos alegres. A música afetava a todos como uma bebida forte, e trazia visões de
tempos passados, como se as palavras enchessem suas mentes com imagens e formas,
histórias e lendas. Ælfwine levantou-se da almofada onde esteve sentado por alguns
minutos, encantado com a beleza das canções, e viu uma colina verde sob um céu
negro e estrelado. Aos pés da colina estavam muitos Senhores e donzelas, sentados em
silencio. No topo da colina, duas donzelas estavam de pé, uma vestida em cinza
profundo, e de seus olhos lágrimas escorriam, caindo ao solo. A segunda, vestida em
muitos tons de verde e castanho, mantinha seus braços erguidos. Então, um coro de
Elfos ergueu-se, cortando o infinito com um sentimento saudoso, embora Ælfwine não
pudesse compreender as palavras.

Em seguida, uma voz solitária adensou-se enchendo todos os corações com doces
palavras.

Em sua visão, Ælfwine considerou perceber dois pequenos brotos surgindo ao lado
das donzelas que permaneciam no topo da colina. Enquanto cresciam, os brotos
rebentaram em ramos e folhas, rumo as estrelas que encharcavam o céu, que já
clareava com sinais da manhã. Mas então um outro sentimento interrompeu a visão e
Ælfwine viu-se novamente no grande salão, cercado por muitos Elfos que
permaneciam silenciosos enquanto uma voz se erguia em belo canto. E surpreso, ele
viu que era Maglor quem cantava.

Lendas de Tol-Eressëa 39
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Percebendo por sua vez que cantava sozinho, sua voz enfraqueceu-se, e ele se calou,
mas nenhum outro som pode ser ouvido na casa. De fato, pareceu que a própria noite
se calara. Maglor puxou sua capa, adensando a sombra em seu rosto, como se tentasse
escapar de tantos olhos que o observavam. Mas então, dois Elfos se aproximaram,
eram Galadriel e Celeborn.

- Você pode esconder-se nas sombras, mas por sua voz revelaste sua presença a mim e
a muitos outros. Mostre-se Maglor! - Gritou Galadriel.

Lentamente, Maglor deixou cair seu capuz, e permaneceu de pé, alto e orgulhoso
perante os dois Elfos.

- Minha Senhora Galadriel. - Disse de voz leve e com uma tênue reverência.

Então, Celeborn avançou com ódio no olhar.

- Porque teriam os Valar estendido sua graça permitindo que um filho de Fëanor
viesse a esta ilha está além de minha compreensão. Ainda que esta seja a casa de
minha filha Celebrian, não devo derramar o sangue da família e escurecer esta noite
de festas. Muito tempo atrás, nas docas de Alqualondë, minha Senhora levantou armas
e lutou contra seu pai e contra aqueles que tolamente marcharam sob suas bandeiras,
derramando o sangue dos Teleri injustamente. E apesar de Eras terem se passado, não
quero sua presença aqui, para manchar esta noite ou qualquer outra. - Clamou o alto
Elfo. Mas Galadriel havia caído em silêncio.

- Esta Casa não é sua. - Replicou Maglor em cólera. - E apesar de ser filho de meu pai,
não o segui ou a meus irmãos em todas as coisas. Mas veja Ælfwine ! É como eu temia.
Fui julgado sem ter sido ouvido. A marca do nome de meu pai permanece em mim
ainda. Mas manterei a paz, e partirei ainda que seja prisioneiro nesta ilha, cercado por
inimigos que me odeiam.

- O quê você poderia dizer em sua defesa? - Gritou alguém por entre a multidão. - Que
procura perdão? Que seus pecados foram menores dos que o de seus familiares? Que
meu irmão não foi feito em pedaços por lâminas Fëanoreanas em Doriath? Se o
tivéssemos condenado sem julgamento, mesmo assim não me parece que seria algo
injusto.

- Espere! - Gritou outro, e não era ninguém menos que Pengolod. - Eu não conheço
este Elfo como Maglor. Mas como Randir, que conduziu as donzelas e crianças para
fora de Eregion antes que a cidade caísse, levando-as a Lindon. Sei disso pois
Celebrimbor enviou a mim e também a outros, juntamente com Randir, para ajudar na
defesa dos refugiados!

Murmúrios elevaram-se pelo salão em uma grande confusão de vozes, algumas


advogando tolerância, outras clamando vingança e sangue. Então, uma poderosa voz
esmagou todas as demais.

Lendas de Tol-Eressëa 40
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- Apenas a Mandos, e somente a ele, foi dado o direito de julgar matérias como esta;
certo ou errado; inocente ou culpado, e qualquer grau que se estabeleça entre estes
dois estados. Nenhum de vocês tem este direito. E vocês condenam Maglor sem que
tenha sido ouvido! Então, quem será seu defensor?

- Ninguém. - Respondeu Maglor. - Pois ninguém aqui conhece minha história, a não ser
da forma como tem sido contada pelos que não a presenciaram, e eu não desejo falar a
uma audiência tão enfurecida.

- Nah! Eu conheço sua história. - Disse Ælfwine. - E se desejar, eu serei seu advogado.
O anúncio do Homem causou surpresa a multidão, e não foram poucas as gargalhadas
que espocaram em meio à turba.

- Sem querer ofender, alguém disse, - mas um simples Homem não teria a habilidade
nem o discernimento necessários para distinguir a mentira e a verdade.

- És agora o senhor da verdade e da mentira Belmir? - Disse a mesma voz que iniciara
a defesa de Maglor. - Deixem o Homem falar. Ao menos alguém aqui possui sabedoria.
Ou você presume estar além da autoridade de Mandos? Talvez possas "discernir"
melhor que ele sobre o que é certo e errado.

Então todos os olhares pousaram sobre Ælfwine, que elevou uma taça de cerveja e
entornou seu conteúdo. Depois, iniciou a história de Maglor, que havia ouvido uma
semana antes. Sobre Fëanor e seus filhos ele falou, e sobre os Silmarils e Morgoth.
Caminhou pelas ruas de Tírion, sobre a sombra de Bauglir, e chorou pela morte das
árvores, assim como a de Finwë. Em pesar e loucura relembrou o Juramento e o início
da rebelião. Ele seguiu sua trilha até as docas de Alqualondë, e deixou pegadas
ensangüentadas pela Estrada de Beleriand. Durante a longa derrota, esteve nas
florestas de Neldoreth, envolvido pelos gritos e pelo chocar das espadas. Então,
regressou repleto de vergonha para as Bocas do Sirion, onde irmão lutou contra
irmão. Por último, dois Silmarils brilhavam nas ruínas de Beleriand. Assim como a
culpa e a angústia.

Ainda não havia amanhecido quando Ælfwine estendeu a mão para outra caneca de
cerveja, e olhou para o salão silencioso. Galadriel olhava demorada e cuidadosamente
para Maglor. Ela parecia o estar avaliando, procurando por alguma falha ou mentira.
Então, ela também olhou para a multidão, e Celeborn parecia perdido em
pensamentos.

Finalmente, Belmir quebrou o silêncio.

- Uma bela história. - Disse. - Tecida com perspicácia, ainda que errada em certos
pontos. Você perdeu suas habilidades de contador de histórias Maglor, ou talvez
tivesse sido melhor ter falado por si próprio. Porque devemos nós acreditar neste
Homem se o que ele diz vai contra tudo o que sabemos?

Lendas de Tol-Eressëa 41
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- E você sabe a verdade Belmir? - Replicou novamente o dono da misteriosa voz grave
que vinha detrás da multidão. - Vivestes em Gondolin, certo? Não? Talvez em Hithlum,
onde podes ter testemunhado estes eventos? Não. Sei que gastaste todos os seus anos
sobre as folhas da Floresta Verde, a Grande, enquanto viveu na Terra-média.

Belmir corou encolerizado, procurando no salão pelo dono daquela voz.

- É o bastante. - Gritou. - Não, não vivi em Beleriand ou Valinor. Mas ninguém precisa
ver as estrelas para saber que elas brilham. De qualquer forma, ele está preso em suas
próprias palavras. Pois em sua história, suas ações, assim como as de Maedhros foram
idênticas; nem piores nem melhores. Maedhros, que morreu há tanto tempo, ainda
não emergiu dos salões de Mandos. Assim também seria o julgamento de Maglor.

A multidão murmurou, admirada com o argumento, e alguns, pensando que o assunto


estava encerrado, olharam em raiva para Maglor. Mas alguém gargalhou, como se uma
piada tivesse sido contada. A multidão abriu espaço, e um homem de barba branca,
trajando um manto do mesmo tom, adiantou-se. Galadriel, surpresa, deixou escapar
um suspiro:

- Olórin. –

- Belmir, és um grande arqueiro e batedor, mas não um bom advogado. Maedhros


tirou a própria vida devido à angústia e dor quando o Silmaril queimou sua carne.
Tirar a própria vida é uma perversão; uma falha na essência do fëa, e requer lenta cura
e permanência longa em Mandos. Apenas isso já separaria o destino de Maglor do de
seu irmão. Mas estou contente que concedas a Námo, por quem também conhecem
como Mandos, o direito e a autoridade para julgar esta matéria. Alguém aqui é
contrário a isso? - Perguntou Olórin em voz grave. Mas ninguém o respondeu.

- Ótimo! Então está decidido. - Disse. - Elrond! Venha! É tempo de cura e união.

Maglor, que esteve sentado de cabeça baixa durante toda a discussão, levantou-se ao
ouvir o nome de Elrond, e adiantou-se para abraçar o Elfo que surgia acompanhado
por sua esposa, ambos com lágrimas nos olhos. Mas então, por detrás de Olórin, uma
segunda figura, vestida em um manto azul, surgiu. E ao deparar-se com Maglor,
revelou sua face nobre com um sorriso. Neste momento, a primeira luz da manhã
adentrou o grande salão, e um raio de sol cruzou o pórtico, iluminando seu rosto.

- Não quero atrapalhar seu reencontro, Maglor. - Disse em voz clara. - Mas também
tenho aguardado por muito tempo, desde aquele dia na costa, quando o Silmarill
queimou nossa carne e nosso Juramento tornou-se vazio afinal.

Maglor avançou incrédulo, a face pálida, e encarou seu irmão Maedhros, de pé diante
dele. Enquanto se abraçavam, Galadriel pousou suas mãos nos ombros dos irmãos.
Então virou-se e sussurrou algo a Celeborn, que então sacou uma longa adaga que
estendeu para a esposa.

Lendas de Tol-Eressëa 42
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Em voz alta ela disse:

- Maglor e Maedhros! Por muito tempo nossas Casas tem estado em divergência. E por
muitos anos meias verdades tem sido sustentadas como fatos. É hora de desfazermos
este antigo erro.

Com estas palavras, ela cortou uma longa trança, oferecendo-a a Maglor.

- Muito tempo atrás, seu pai pediu-me este presente, e eu o neguei. Talvez se não
tivesse sido tão orgulhosa, as coisas pudessem ter ocorrido de outra forma. - Ela disse.
- Nunca amei seu pai, mas você não tem culpa. Vocês são bem vindos entre nós.
Venham! - E todos juntaram-se em uma canção para saudar a chegada do Verão e
celebrar tão impressionantes eventos.

Ælfwine sentou-se junto a Olórin bebendo outra caneca.

- Boa cerveja. - Comentou. - E uma grande noite também! Chegou bem na hora, Senhor.
Olórin bebericou cuidadosamente, cuidando para não manchar a barba.

- Senhor? - Resfolegou. - Podes me chamar Gandalf. E sim, a cerveja é muito boa, mas
já experimentei melhores. Porém isso foi há muito tempo. E por muito tempo também
durou a rixa entre as casas dos Noldor, muito além do que seria desejado.

- Aiye. - Replicou Ælfwine. - E estou feliz por ter tomado parte neste processo de cura.
A verdade é poderosa, mesmo quando dita por um Homem.

- A verdade não é diferente, seja dita por Elfo ou Homem. - Disse Gandalf. - Você ficará
aqui, com Elrond? Vejo que seus companheiros de viagem estão ocupados. - E ambos
olharam para Maglor, Maedhros e Elrond, que conversavam animadamente. Então
olharam para o Oeste.

- Se Elrond permitir, ficarei por um tempo. - Sussurrou Ælfwine.

- Ótimo! - Retrucou Gandalf também sussurrando. - Vou adorar a oportunidade de


conversar com você mais tarde. Já faz muito tempo desde a última vez que falei com
um Filho dos Homens.

Sobre o FanFiction Lendas de Tol Eressëa:

Neste FanFiction você irá ler sobre a chegada de Ælfwine , o navegante que tomou a
Rota Direta e chegou a Tol-Eressëa, a Ilha Solitária, localizada pouco antes das costas
de Valinor. Esta história chegou a ser iniciada por Tolkien, mas apesar de ter bases
sólidas e um futuro aparentemente promissor, nunca chegou a ser concluída.

Lendas de Tol-Eressëa 43
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Ælfwine era um anglo-saxão, que viveu na Bretanha durante o século X. Seu nome, no
inglês arcaico, significa "Amigo-dos-Elfos", um nome não tão incomum naquele tempo.
Ele era um descendente muito distante de Eärendil, e possuía, bem como todos os
descendentes de Eärendil, o anseio pelo mar em seu sangue. Extraordinariamente
Ælfwine também é o único personagem que viveu em nossos próprios dias, e não
milênios no passado.

Lendas de Tol-Eressëa 44

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