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D U L C E MARIA CARDOSO

Campo de Sangue

OMPANHIA DAS L E T R A S
Ainda Ele falava, quando apareceu Judas, um dos doze, e com
ele uma grande multidão, com espadas e varapaus, enviada
pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo. O trai-
dor tinha-lhes dado este sinal: "Aquele que eu beijar, é Esse
mesmo. Prendei-0".
Mt. 26,47-50.

Então Judas, que O entregara, vendo que Ele tinha sido con-
denado, foi tocado pelo remorso e devolveu as trinta moedas de
prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos [...]. Depois
de terem deliberado compraram com elas o "campo do oleiro"
para servir de cemitério aos estrangeiros. Por tal razão, aquele
campo é chamado até ao dia de hoje — Campo de Sangue.
Mt. 27,2-9.

Esse homem, depois de ter adquirido um terreno com o salário


do seu crime, precipitou-se de cabeça para baixo e todas as
suas entranhas se espalharam. O facto chegou ao conheci-
mento de todos os habitantes de Jerusalém, a tal ponto que esse
terreno foi, na língua deles, chamado HAKELDAMÁ, que quer
dizer: Campo de Sangue.
Act. 1,18-20.
Os pensamentos dos mortais são tímidos
e incertas as nossas concepções,
porque o corpo corruptível toma pesada a alma.
Sab.9,14-15

Estão quatro mulheres na sala. Destas mulheres é preciso sa-


ber antes de tudo que estão aqui por causa de u m h o m e m que co-
meteu u m crime e que se por acaso se encontrassem na rua não se
cumprimentariam.

Esperam. E m silêncio, sem saber o que fazer com as mãos e


com os olhos. Ainda que prendam as mãos como às vezes fazem
entrelaçando-as sobre o regaço, ou as libertem abandonando-as
sobre o banco de madeira, ainda que encontrem u m sítio certo
para as mãos, sobram os olhos que se desviam uns dos outros, os
olhos que, elas sabem, só repousarão se fechados.
Mas as quatro mulheres têm de se vigiar, e por isso soltam os

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olhos na sala, deixam-nos pereorrer as paredes, retêm pormeno- aberta que não dá para lado algum, ou melhor, dá para u m saguão
res das paredes, tropeçam no reboco mais rugoso, uma pincelada preenchido por outras janelas que também não dão para lado
de tinta mais carregada, uma dedada imperceptível, u m insecto algum. E u m paralelepípedo de ar, com faces cheias de bolor, u m
esmagado, os olhos ávidos esmiuçam tudo, fios de estuque esta- sítio feio para se olhar mas o único para onde os olhos fogem c o m
lado, uma saliêneia naquele canto, uma depressão mais ao fundo, segurança. É desta janela sem vista que entra o feixe de luz turva
os olhos cansam-se, fecham-se, abrem-se ainda cegos, recome- que ensombra a sala, mas a ex-mulher sabe que lá fora está uma
çam, a mancha amarelada junto do rodapé... bonita manhã de primavera e que no jardim a árvore-de-Judas está
N a verdade n e n h u m a das quatro mulheres quer ou sabe carregadinha de flores.
estar nesta sala tão acanhada. Sentem que qualquer voz será des- C o m o cigarro apertado entre os dedos segue as espirais do
propositada nesta sala desconfortável de luz turva, as quatro f u m o que se misturam na l u z coada. Apaga o cigarro esborra-
mulheres mantêm-se caladas apesar da angústia de ali estarem, chando-o n u m pequeno einzeiro portátil que guarda na carteira e
decifram barulhos que vêm de fora, o silêncio na sala permite-lhes recomeça a brincar com o isqueiro acendendo-o várias vezes, pro-
ouvir u m carro que trava, u m pássaro a piar, vozes, o som seco de vocando estalidos monótonos até que a pele do polegar da mão
uma porta que bate, as quatro mulheres inquietam-se com o que direita fica marcada por u m vermelho-clarinho, a roda metálica
não são capazes de identificar, será uma criança a chorar, gatas do isqueiro arranha-lhe a pele, as outras mulheres olham-na e
com cio, mexem-se desconfortáveis nos bancos corridos de ma- nesse instante, quando os olhos lhe cercam as mãos, desiste do
deira, continuam atentas, i n c l i n a m mais a cabeça na direcção dos isqueiro, abre a cigarreira, espalha os cigarros para os ordenar de
ruídos, fogem da sala entretidas neste jogo, gastam tempo, há u m seguida, acende mais u m cigarro que deixa a queimar, distraída,
h o m e m que tosse, sim, é claramente u m h o m e m que tosse, retor- na mão magra de pele muito branea. Umas mãos de eera quase
nam aliviadas às mãos, as mãos têm tantas linhas onde se podem falsas eomo ele sempre lhe dissera.
perder, a linha da vida, do coração e da saúde, uma cicatriz, linhas A terceira mulher, a senhoria dele, reconheceu a segunda
paralelas, perpendiculares, uma encruzilhada, a queimadura no mulher e repara que a cigarreira e o isqueiro parecem de ouro,
forno, as unhas esgarçadas, as quatro mulheres que, se por acaso podia jurar que eram de ouro, os dois objeetos têm letras gravadas,
se encontrassem na rua nem sequer se cumprimentariam, espe- entrelaçadas, decifra u m esse, uma das letras é u m esse, qual será
ram presas na luz turva da sala. a outra, a senhoria não consegue saber. Q u a n d o a ex-mulher
A primeira mulher do lado da porta, a mãe dele, prende as acende u m cigarro a senhoria olha desafiadora para o aviso que
mãos ao terço que tira da carteira preta muito lustrosa c o m u m está pendurado na parede, u m círculo vermelho com u m cigarro
cheiro intenso a cabedal. Fecha os olhos e encosta a cabeça à aceso cortado com u m traço, é u m sinal de leitura fácil que proíbe
parede, as meehas de eabelo cinzento confundem-se eom a cor o fumo. A ex-mulher segue-lhe o olhar e puxa o fumo com indife-
suja da parede, e o m e ç a a rezar, encontra, pelo menos assim rença. De manhã, o tabaco enjoa-a, mas não sabe o que fazer na
parece, a paz necessária para permaneeer na sala. sala, está cansada de gestos, de fugir c o m os olhos, queima a espera
A segunda mulher, a ex-mulher dele, olha por uma janela nas pontas dos cigarros, o tempo ineendiado paira sobre ela, sus-

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u
penso. Acaba de fumar, deixa cair os braços, as inúmeras pulsei- guarda o bâton e o espelhinho na carteira de verniz branco. Sen-
ras douradas e finas tocam umas nas outras, por instantes u m som te-se melhor e sorri. Está satisfeita c o m os lábios novos, mas as
de festa na sala. Levanta o braço direito, as pulseiras tornam a t i l i n - outras mulheres não correspondem ao sorriso, a senhoria toree o
tar, limpa com cuidado as gotas de suor da cara, não quer estragar pescoço em direcção à janela, uma planta à procura de luz, de ar,
a maquilhagem, cruza as pernas com irritação, tira u m livro do mas no saguão o ar está parado e a luz turva, a senhoria endireita
saco que tem pendurado no ombro, abre-o com vagar na página o pescoço, uma planta murcha, abre novamente a earteira de ver-
dobrada no canto superior direito, deixa os olhos pousados nas niz braneo, os dedos gordos vasculham-na até que encontram u m
letras, as palavras não a levam para fora da sala, ali fica, está cada toalhete de u m a companhia aérea. Enquanto abre o pacote a
vez mais enjoada, dobra a pequena marca no canto superior senhoria assume u m ar e x t r a o r d i n a r i a m e n t e sério e rasga o
direito da página e guarda novamente o livro. invólucro plastificado no sítio indicado pelo tracejado. Retira o
A ex-mulher olha para as mãos da mãe. Os dedos deformados toalhete e estende-o na mão, é u m quadrado de papel braneo
avançam meeânicos pelas contas do rosário, dedos encurvados, encharcado n u m cheiro de rosas, a senhoria descontrai-se, passa
garras, u m animal a sibilar rezas, fecha os olhos, com força, mais lentamente o papel na papada que quase lhe eseonde o queixo,
força, com os olhos bem fechados rebentam-lhe nas pálpebras atrás do pescoço, nos pulsos, nas mãos, besunta-se com o cheiro
pequeninas luzes, a ex-mulher eonclui que nunca gostou da sogra das rosas, mais confortada amachuca o quadrado de papel tor-
e espanta-se de c o m o , presa no escuro guiada por pequeninas nando-o uma pequena bola, levanta o corpo gordo do banco de
luzes que lhe rebentam nas pálpebras, percebe de forma tão irre- madeira, caminha sobre os sapatos de verniz branco, uns sapatos
versível esse não gosto. muito apertados que lhe i n c h a m os pés, passos dolorosos, apro-
A senhoria tira da carteira de verniz branco u m espelhinho xima-se da janela do saguão para deitar fora a bola de papel.
de mão, dourado, com dálias amarelas pintadas nas costas de por- Espreita para baixo, há mais einco janelas iguais até ao chão, m u i -
celana, e l i m p a cuidadosamente os restos de encarnado que se tas caixas de ar eondieionado, distrai-se c o m o emaranhado de fios
a e u m u l a m nas gretas dos lábios descaídos que lhe dão u m ar eléctricos, segue-os até ao fim, no rés-do-chão estão os exaustores,
m u i t o triste. Os dedos gordos pegam no bâton, retiram-lhe a franze o nariz, reconhece carne e eouves cozinhadas, regressa ao
tampa que faz u m barulho de ventosa e rodam ligeiramente a base seu lugar com a mesma difieuldade nos passos, os pés arroxeados
até aparecer u m cilindro cremoso da eor de sangue desmaiado. A pelos tornos de verniz braneo, mas quando se senta não sabe o que
senhoria, que se esforça por não tremer, segura o bâton c o m o fazer na sala, onde prender as mãos, onde pousar os olhos, com-
polegar e o indicador da mão direita, desenha os novos lábios em praz-se c o m o cheiro a rosas.
frente ao espelhinho, amassa-os u m contra o outro, testa o sorriso A quarta mulher, a mais jovem, está grávida dele. Foi a úl-
pintado de freseo, o creme untuoso ultrapassou os lábios, a senho- tima a chegar e não consegue ficar muito tempo sentada, levan-
ria retira pacientemente o exeesso eom o indicador, o creme ta-se, senta-se, o banco de madeira é demasiado duro, tem ealor,
untuoso também lhe sujou os dentes, limpa-os c o m o mesmo demasiado calor. Quando se levanta apoia as mãos no baneo e
indieador, os dentes chiam ao serem ligeiramente friccionados. soergue-se de uma só vez. Tem cabelos louros de criança que não

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penteou, é uma criança selvagem que morde os próprios lábios.
Está vestida com uma blusa às florinhas e umas calças largas, nos
pés tem umas sandálias gastas de tiras de cabedal. As outras m u -
lheres vêem a dificuldade com que se move mas não sentem pena
ou qualquer outra coisa, limitam-se a ver a difieuldade com que
se move. A rapariga eleva a cabeça, sai altiva da sala, procura o cor-
redor onde poderá andar de u m lado para o outro. Na sua ausên-
cia as três mulheres não cedem à tentação de se falarem, olham
para o saco plástico que ela deixou pousado no banco, u m sítio
seguro onde podem descansar os olhos, a única garantia de que
ela voltará, todas gostariam de saber o que o saco guarda. A rapa-
riga regressa, desta vez demorou-se u m pouco mais, as outras
olham-na, a rapariga caminha empinando a barriga volumosa
que parece exagerada n u m corpo tão miúdo. Há u m estado de
graça na maternidade que nela não se cumpre. Talvez seja a alti- Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa,
vez com que se move, a irritante blusa às florinhas, o cabelo louro mas então veremos face a face.
de criança por pentear. Hoje conheço de maneira imperfeita:
C o n t i n u a m à espera. E m silêncio, sentadas nos baneos cor- então, conhecerei exactamente, como também sou
ridos de madeira. Daqui a pouco, a mãe recomeçará outro misté- conhecido.
rio, a ex-mulher acenderá outro cigarro, a senhoria pegará nova- ICor. 13,12
mente no bâton e no espelhinho com dálias amarelas nas costas
de porcelana e a rapariga tornará a sair da sala para andar no cor- Portavam-se como amantes. Tomavam as precauções dos
redor. Até lá esperam e cada uma só conhece realmente das outras amantes. Chegavam separados eom algum tempo de diferença e
este acto de esperar. • fingiam surpresa quando se viam para que aos olhos dos outros o
encontro parecesse casual. Escolhiam os locais segundo as regras
dos amantes, qualquer u m desde que afastado de tudo que os
pudesse denunciar. Costavam de esplanadas perto do mar,
encontravam-se muitas vezes em esplanadas.
Estavam sentados numa mesa reeuada e falavam em voz bai-
xa. Pediram vinho braneo gelado e aeenderam cigarros que deixa-
ram arder no ar quente da tarde. Pareciam felizes. Encheram os
copos de vinho.

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— Vamos brindar? rir mas deve ser por eausa dos postais, da televisão, mas penso mais
— Aquê? facilmente no m u n d o em forma de rectângulo...
À tua viagem pelas ilhas gregas. Eva regressou do sol, apoiou os eotovelos na mesa, olhou-o
Eva pousou o copo. — Não são as ilhas gregas — mas logo enternecida e parou de se rir. Mais bonita, falou-lhe do medo dos
depois — , mas são na mesma ilhas, se queres brindar. marinheiros antigos, arrastou as palavras até ao silêncio que ele
— Pensei que estavas contente. temia. Nesse instante chamou com u m gesto o empregado, pediu

— Achas que nos tornámos bêbados — disse Eva levando o mais vinho e uma salada de polvo igual à da mesa ao lado.

copo à boca — ou que me vou tornar? As eonversas deles eram quase sempre ineonsequentes e

— Não. Claro que não. Eala-me das ilhas. podiam ser interrompidas ou terminadas a qualquer m o m e n t o .
Eva achava que a possibilidade de mudarem de assunto sempre
Eva não lhe respondeu. Acendeu outro eigarro e espreitou o
que quisessem era u m privilégio de quem se conhece verdadei-
mar inclinando-se para a frente.
ramente. Mais tarde, quando o empregado se aproximou c o m o vi-
— Não gosto deste mar tão cheio de gente. Fala tu. Não me
nho e a salada, calaram-se, respeitando outra das regras dos amantes.
apetece ouvir-me — riu-se — , nestes dias digo coisas de que me
A esplanada tinha-se enchido com banhistas da praia. Che-
arrependo, o calor desespera-me. Q u e m me dera estar na água,
gavam em pequenos grupos, sentavam-se arrastando ruidosa-
nadar até que...
mente as eadeiras, ajeitavam o chapéu-de-sol, protegidos sob o pe-
Eva eontinuou a falar mas ele já não a ouvia. Quando Eva se
queno círculo de sombra pediam cervejas, petiscos e gelados para
calou reprovadora ele pediu-lhe desculpa. Pedia-lhe frequente-
as crianças.
mente desculpa, o que desagradava Eva, que sabia que era uma for-
— C o m o vês — disse Eva — basta u m pouco de sol para que
ma de ele fazer sempre o que queria, bastando-lhe no fim dizer
todos pareçam felizes, para que a vida seja u m sítio agradável.
desculpa. Eva c o n t i n u o u calada, e ele p r o c u r o u rapidamente
Ele não lhe respondeu.
qualquer coisa para dizer, não suportava o silêneio entre eles que
Eva pediu-lhe para olhar para uma m u l h e r que estava do
os fazia fugir u m do outro, ou pior ainda, u m para o outro.
lado esquerdo dele, mais atrás. Ele virou a cabeça e v i u u m a
— C o m o é.que será viver numa ilha? mulher gorda, que tinha os cabelos molhados escorridos nas cos-
— Deve ser como noutro sítio qualquer — respondeu Eva tas. Tinha-se untado eom u m ereme braneo que lhe acentuava a
rodando a aliança — , como noutro sítio qualquer. earne em harmónio.
Eva parecia uma gata feliz com as pernas estendidas ao sol. — Tenho medo de ficar assim — confessou Eva — , aquela
— U m a ilha deve ter qualquer coisa diferente. m u l h e r se calhar já foi de outra maneira e agora, tenho medo,
Eva boeejou e esticou-se mais para o sol. I n c l i n o u a cara e achas que u m dia vou ficar assim, consegues imaginar-me assim?
fechou os olhos. A luz do sol dourava-lhe a pele. — Claro que não — respondeu-lhe sem desviar os olhos da
— Tenho muita dificuldade em pensar no mundo redondo. mulher que bebia uma eerveja — , mas não te pareee que ela não
C o n t i n u o u apesar do riso de Eva. — Sei que te dá vontade de se importa?

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• — Isso é que é estranho—disse Eva incapaz de compreender. j^^lhei- — repetiu — , cabe mesmo tudo na carteira de uma m u -
A m u l h e r levantou a mão para chamar o empregado, i m i - lher por mais pequena que seja. — Riu-se. — Aqui está o cartão.
tando o gesto que Eva fizera ainda há pouco. Estendeu-lhe o rectângulo de plástico dourado que ficou a
— Nunca se sabe quando é que começamos a ficar iguais aos brilhar ao sol. Depois, olhou para o relógio e ficou sobressaltada
que... aos que nos desagradam. — Eva desviou rapidamente os quando viu as horas.
olhos. Ele sabia que horas eram, há muitos anos que o tédio o fazia
C o m e r a m sem o prazer que viam nas outras mesas. Beberam olhar constantemente para o relógio, por isso ele sabia que eram
vinho. M u i t o vinho. Pousaram os talheres exasperados e culpa- 16:18, vigiar o tempo ajudava-o a gastá-lo. Se Eva soubesse desse
ram o calor. hábito diria apenas que era mais uma mania.

Dentro do café, u m rádio anunciava que aquele podia ser o — Ultimamente o tempo voa, tenho que ir. — Eva afastou o
dia mais quente do ano. Mas eles não ouviram. cinzeiro cheio de beatas, esfregou as mãos — Ainda tenho as ma-
las por fazer e u m jantar de despedida, já te disse como estes jan-
Acendeu-lhe u m cigarro e encheu novamente os copos.
tares são aborrecidos?
O l h o u para a mulher que tanto incomodara Eva.
Já lho tinha dito muitas vezes. Não gostava de jantar c o m os
— Es muito bonita e serás sempre muito diferente de qual-
filhos do marido, com os irmãos dele, com ninguém dele, quando
quer mulher.
falava neles Eva não os nomeava, identificava-os por parentesco
Eva expeliu o f u m o do eigarro para a cara dele, ficou calada,
para deixar bem claro que para ela só existiam assim. C o n t i n u a m
e ele pressentiu novamente o silêncio que o assustava, o silêncio
a detestar-me, coneluiu Eva, pronunciando novamente a palavra,
que modificava os olhos de Eva.
de-tes-tam-me, se soubesses, também não me importo, nunca gos-
U m rapaz abeirou-se da mesa e pediu-lhes u m cigarro. Ele
tei deles, aeho melhor assim, é tão desagradável ter de fingir, b o m
deu-lho agradecido. O rapaz afastou-se sem saber que o salvou do
tenho mesmo que ir, repetiu. Ele não ligou, sabia que quando Eva
silêncio de Eva e do seu medo. Eva abriu a carteira e começou à pro-
tivesse realmente que ir levantar-se-ia e cumpriria a sua obrigação
cura de qualquer coisa. O cigarro que ele lhe tinha acabado de acen-
de partir, antes diria várias vezes que.tinha pressa mas deixar-se-ia
der incomodava-a na busca. Esmagou-o no cinzeiro, contrariada.
ficar, era sempre assim, tenho mesmo que ir, diria ainda umas
Levantou os olhos e tornou a baixá-los. Movimentos rápidos que quantas vezes sem se levantar, sem fazer u m gesto sequer.
ele conhecia bem, daqui a pouco ajeita o cabelo, suspira, daqui a
Fez que levava a sério a pressa de Eva e pediu a conta ao
pouco finge que desiste, ele tentava adivinhar-lhe os gestos. empregado. Eva repreendeu-o, nunca deixava que ele pagasse.
— Nunca te percas na carteira duma mulher. C o m e ç a m a Ele deveria ficar incomodado por Eva o sustentar, mas em vez
fumar cada vez mais cedo, nunca sei se devo dar cigarros a estas disso ficava satisfeito, era a única forma que sabia de depender
crianças, mas nada podemos contra os vícios do m u n d o . Se u m dela. Outra qualquer seria impossível.
dia quiseres desaparecer basta-te a carteira duma mulher. D e cer- Além do eartão de crédito dourado, Eva entregou-lhe u m
teza que nunca mais te encontram. Cabe tudo numa carteira de livro de cheques assinados em branco que ele devia utilizar

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durante as férias dela no estrangeiro e fez-lhe as reeomendações — Sineeramente não percebo porque te irritas tanto c o m a
habituais. Ele leu-lhe os lábios sem a ouvir, a voz emudeceu na ideia de teres mudado. — Estava aflito, sem poder remediar.
cor das bagas de romã, inesperadamente desejou beijá-la, beijar — Porque é injusto. Ninguém muda. Não sou só eu que não
aquela cor, saboreá-la, não estava apaixonado por Eva mas apete- mudei. Nin-guém-mu-da, ouviste? Nin-guém. E u não sabia que
cia-lhe saborear a beleza dos seus lábios. Guardou o cartão e os gostava de viajar porque nunca tinha viajado como agora ainda não
cheques e espreitou p r i m e i r o para o mar que se estendia para sei se gosto de outras coisas que nunca fiz. Mas isso não quer dizer
longe e depois para o céu. Pensou qual dos dois seria maior e mais
que tenha mudado. Somos os mesmos, somos sempre os mesmos.
azul e qual dos dois seria o espelho do outro. Eva nunca tinha pen-
Calou-se abruptamente. Espalmou as mãos de cera sobre a
sado nestas coisas tal como ele nunca pensava que o dinheiro com
mesa, e com os olhos postos nas tábuas de madeira do ehão sujo
que Eva o sustentava era roubado ao marido.
da esplanada, abanou a cabeça, em sinal de desistência:
— Nunca fomos de férias — disse.
— És u m caso perdido. — Não levantou os olhos e juntou-o
— Fomos de lua-de-mel — corrigiu Eva — , já te esqueceste?
a ele e à sujidade do chão no mesmo desespero.
— Fez-lhe uma festa na cabeça e repetiu fingindo-se i n d i g n a d a —
Eva acusava-o, ele conhecia os motivos, a mágoa que mos-
Já te esqueceste?
trava sempre nestas ocasiões, mas fingiu não perceber, não se l e m -
Não se tinha esquecido, mas não considerava férias os três
brar e quando Eva se esforçou por rir, ao repetir-lhe, és mesmo u m
dias que passaram numa pensão ao pé da estrada.
caso perdido, ele riu-se também. Enganavam-se porque ambos
— Claro que não me esqueci, só que como agora gostas tanto
t i n h a m consciêneia de que não lhes restava outra alternativa
de viajar...
senão a destes enganos consentidos.
Eva zangou-se e tirou repentinamente a mão. Ele arrepen-
deu-se de ter falado. Sabia que Eva não gostava sequer que ele — Confessa, não gostavas de fazer, n e m que fosse uma só

insinuasse que ela mudara e que começaria uma discussão sem vez, uma grande viagem? — perguntou c o m os olhos outra vez
que ele pudesse evitar e que o repreenderia mais uma vez. Mas era semicerrados, os lábios generosos de romã.
tarde de mais, tinha-lhe saído da boca, as palavras tinham esse pro- — Não.
blema, não t i n h a m corpo e por isso não podiam ser destruídas, — C o m o é que podes dizer isso com tanta certeza?
uma vez ditas nada as apagava. — A s pessoas viajam para sentirem a falta das eoisas. V i a j a m
— Não pereebes nada. Sempre f u i assim. N u n c a m u d e i . para voltarem ansiosas para as suas casas. Não dizes que quando
Sabes o que aeho? — Eva abriu os olhos habitualmente semicer- estás fora só pensas em voltar e que... O verdadeiro prazer das via-
rados e os lábios crisparam-se, perderam a cor de romã. Fieou gens está no regresso. Se não fosse assim ninguém voltava. Nunea
quase feia. te apeteceu não voltares?
— Faz-te falta uma ocupação. Tens muito tempo e o tempo — Talvez — disse Eva — , nunca pensei nisso, mas nesta via-
por gastar é perigoso. O tempo é uma coisa que só existe para se gem vou pensar, prometo. Vamos mudar de assunto?
gastar, para se gastar rapidamente. _ — Se partisse possivelmente não voltava, pereebes?

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— Não — disse Eva ofendida — , mas também não me inte- — Às vezes és surpreendente. Não te sabia c o m essas ten-
ressa. Ninguém te obriga a viajar, perguntei por perguntar. dências.
Eva ergueu os olhos, leu em voz alta e vagarosa a tabuleta — N e m eu — respondeu desconcertado.
presa por detrás do balcão da esplanada, "Não são admitidos ani- — Não suporto que me faças isso — Eva sorriu, mas a boca
mais. Obrigado. A Gerência". ficou torcida n u m esgar feio. — Quando te pões a olhar assim para
— Sabes quantas vezes já l i esta tabuleta desde que aqui es- as mulheres, sinto-me tão mal. Não penses que é por m i m , tenho
tou? Umas cem vezes. Deviam proibir estas malditas tabuletas. é pena de t i , se visses como ficas ridículo. O h , deixa lá — disse,
Desviou os olhos para os sacos pousados na cadeira. ajeitando o cabelo, u m gesto que só fazia quando estava enervada.
— Não queres ver o que te comprei, espero que gostes, pas- Galou-se abruptamente.
sei a manhã em lojas, não tenho paciência nenhuma para as em- Ficaram calados. Ele baixou a cabeça submisso.
pregadas, no início entrava nas lojas a medo, tinha medo daque- — Desculpa, não sabia que era assim tão... tão ridículo. Des-
las empregadas, do silêncio, das perguntas que me faziam, de não culpa.
saber dizer o que queria. Sonhava com o dia em que me conhe- Eva não lhe respondeu imediatamente. Manteve-se calada e
cessem e me dessem o tratamento que via dar às outras clientes, as depois falou muito alto.
antigas, de berço. — Eva riu-se amarga. — Agora já não as su- — Desculpa, desculpa, pensas que não percebo que pedes
porto. Lojas e empregadas. Já não as su-por-to. Já viste como so- deseulpa como poderias dizer outra coisa qualquer. Passas a vida
mos absurdos, como valem pouco os nossos sonhos? Já viste como a pedir deseulpa. É o mais fácil.
somos absurdos? A rapariga acenou para o dono da esplanada e foi ao seu
Ele espreitou para os sacos e viu roupas frescas de verão, cal- encontro ficando de costas para eles. Beijou-o demoradamente
ças, camisas, meias, u m pijama. Não disse nada. Nunca soube agra- na boea. O h o m e m era mais velho do que ela, tinha a pele bron-
decer coisas concretas. O l h o u novamente para o relógio e depois zeada e u m corpo alto e magro. Logo quando se sentaram na
parou os olhos na tabuleta. L e u para si, Não são admitidos animais esplanada, Eva t i n h a comentado que o h o m e m devia ter sido
que não saibam agradecer. Obrigado. A vida. E disse em volta alta: marinheiro, deve ter andado no mar, vê como ele se balança,
— Tens razão, deviam proibir as tabuletas. ainda não se habituou a andar em terra firme. Ele tinha olhado
U m a rapariga entrou na esplanada. Pareceu-lhe muito bo- para o h o m e m e não tinha visto nada de especial na maneira de
nita apesar de não a poder ver bem porque surgiu em contraluz. andar, poderia ter sido marinheiro ou outra coisa qualquer, mas
D e m o r o u os olhos nessa cegueira momentânea. concordou que deveria ser o dono. Agora olhavam sérios para o
—Agrada-te? — perguntou Eva atenta. casal que se beijava. Eva apontou para uma mota encostada ao
— G o m o é que posso saber? — respondeu atrapalhado. — muro da esplanada.
Não a conheço. — A p o s t o que a mota é dele e que se vão embora nela. Estas
— É muito novinha. raparigas gostam de andar de mota.
F i n g i u que não ouviu. A rapariga e o h o m e m passaram por eles e dirigiram-se para

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a mota como Eva tinha previsto. O dono da esplanada pôs a mota
a trabalhar e passados segundos apenas se via no fim de u m car-
reiro feito de ripas de madeiras o corpo da rapariga abraçado ao
h o m e m e os cabelos louros estendidos ao vento.
Quando a mota desapareceu, Eva falou de uma rapariga que
em tempos t i n h a m conhecido e depois falou de outra coisa qual-
quer. Repetiu muitas vezes que tinha pressa e que não gostava de
jantares familiares. Acendeu u m cigarro, bebeu o resto do vinho,
já estava esquecida da rapariga bonita e do dono da esplanada,
para Eva eles deixaram de existir no preciso m o m e n t o em que
desapareeeram no carreiro de tábuas, nunea mais pensaria neles.
Eva voltou a ser a outra pessoa que ele costumava conhecer,
ou desconhecer, nunca t i n h a conhecido verdadeiramente al-
guém, Eva continuava a ser uma estranha, foi essa estranha que
guardou o maço de eigarros na carteira e lhe perguntou à quei- T i n h a na mesa uma garrafa de v i n h o branco quase vazia e
ma-roupa sem olhar para ele, há quanto tempo não tens ninguém, u m einzeiro cheio de eigarros que Eva tinha desperdiçado. Na
e se levantou debruçando-se sobre ele. eadeira estavam os sacos c o m a roupa nova de verão. T i n h a a
Ele não lhe conseguiu responder, o l h o u para o relógio, o mão esquerda pousada na mesa e tornou a ver as horas, 1 8 : 1 7 . 0
ponteiro mais pequeno afastava-se definitivamente do número relógio era u m objecto tão inútil no pulso dele, tinha o tempo
einco e o maior estava pousado no número nove, o ponteiro dos que quisesse, a única coisa que fazia era decidir onde gastar o
segundos prosseguia rigoroso tracinho por tracinho no mostrador tempo.
branco e plano, Eva continuava debruçada sobre ele, não lhe Eva tinha partido para férias. Voltaria passado u m mês e tele-
podia dizer que até o cheiro dela tinha mudado, dantes cheirava a fonar-lhe-ia logo que chegasse dizendo que preeisava urgente-
uma eoisa parecida com relva acabada de aparar tão diferente dos mente de o ver. Só por isso ele saberia que estava tudo bem. E n -
perfumes doces que agora usava, todos mudamos, qualquer dia quanto estivesse no estrangeiro mandar-lhe-ia cartas que teriam
poderás estar eomo a mulher que tanto te assustou, todos muda- no remetente u m é e u m esse e por baixo o nome de uma terra. As
mos, pensava nisso quando Eva se despediu beijando-o nos lábios, cartas que Eva lhe mandava v i n h a m de u m mundo paralelo que
violando a regra principal dos amantes. não se organizava em moradas. Pensou que devia aproveitar estas
férias para se afastar de Eva. Sempre que Eva partia pensava nisso,
deviam afastar-se, o marido de Eva podia descobri-los. Mas ambos
gostavam de se portarem como amantes, não tendo a obrigação
de fingir que se amavam, de se mostrarem felizes. Não se conse-

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guiam afastar porque a única obrigação que tinham era a de se por- Bebeu mais vinho, a cidade estava desesperadamente longe,
tarem como amantes. o calor erguia uma parede de ar trémulo que o paralisava, no verão
Os banhistas recolheram os guarda-sóis. Chegaram pessoas a cidade esvaziava-se, sobravam as moscas, muitas moscas zonzas
da cidade que se sentaram na esplanada a olharem gulosas para o que voavam sobre o alcatrão amolecido, esvaziou o copo, as goti-
mar. Ele bebeu o resto do vinho branco, o l h o u para o relógio, nhas frescas presas ao vidro eram bonitas, deixou que lhe escorres-
podia pedir outra garrafa de vinho e embebedar-se, podia regres- sem para as mãos, fez rodar o gelo que embateu no vidro de gotas,
sar à cidade, sempre que possível partia a horas certas, era outra u m vidro de água, acendeu u m cigarro, olhou para o relógio, par-
mania, outra forma de enganar o tempo, 18:25, levantar-se-ia às tiria às sete, o calor que se elevava no céu também distorcia o hori-
18.30, se perdesse essa oportunidade partiria às 19:00. zonte, a eidade estava tão longe, dois cães proeuraram o fresco da
Sempre fizera estes jogos, se passar uma mulher de saia cas- esplanada para repousarem as línguas rosa-bebé, as línguas dos
tanha hoje arranjo emprego, aquela saia será castanha ou será cor cães esticadas no chão eram lisinhas, pasta de morango, doee de
de tijolo, se aquele h o m e m tropeçar no pedregulho é que é, na crianças, demoraria m u i t o a chegar à cidade, o céu estava tão
verdade deu u m passo em falso, será que se pode considerar ape- azul, o céu da cidade estaria tão azul? se estivesse, os velhos apro-
nas cambalear, oh, este sim, tropeçou de verdade, desequilibrou-se veitariam para escanearar as janelas, repousariam os braços mir-
e tudo, mas era o outro que interessava. À noite regressava a casa, rados nos peitoris, os vagabundos deitar-se-iam ao sol, se estivesse
hoje também não consegui nada, Eva respondia-lhe com voz can- assim u m céu tão azul a cidade tornava-se mais perigosa, a beleza
sada e o corpo ainda mais cansado, cá nos havemos de arranjar, é u m b o m pretexto para se enlouquecer, o pecado da beleza, no
amanhã é outro dia, Eva duvidava que realmente fosse. N o dia verão a eidade está vazia, a solidão é u m b o m pretexto para se
seguinte também não se esforçava na entrevista, mas não se sen- enlouquecer, o pecado da solidão, no verão a cidade pertence aos
tia culpado, outra vez a voz cansada de Eva, deixa lá, vamos jan- vagabundos e velhos, aos que são obrigados a fiear, aos que não
tar, ele apesar de tudo tinha fome, tinha vergonha de ter tanta fo- podem partir, todos irmanados no ventre infindo de tamanho e
me perto de Eva que brineava c o m a comida, juntava-a em segredo, eom o calor há sempre quem mate por razões alheias à
m o n t i n h o s na borda do prato para os desfazer depois c o m a vontade, o ealor ferve o sangue que uma vez derramado é rapida-
mesma minúcia, enrolava a comida na boca sem apetite mas mente pó, u m pó que se entranha facilmente na calçada, a beleza
mesmo assim ele servia-se novamente, Eva desistia, não tenho e a solidão são bons pretextos para se enlouquecer, sempre foram,
fome, levantava-se apressada para ir trabalhar, ele acompanhava-a pensava nisso e continuava sentado à espera de se ir embora,
à porta e ficava a vê-la afastar-se no corredor, ela gritava-lhe fora quando não se tem para onde ir o tempo gasta-se à espera da von-
dos olhos dele, deixa estar a cozinha que eu depois arrumo, ele tade de partir, gasta-se apenas.
fechava a porta e deixava-se cair no sofá, as molas chiavam e a Pegou n u m a beata que tinha os restos de bâton de Eva e
pequena coberta esticada por Eva enrodilhava-se-lhe nas costas, aeendeu-a. Concentrou-se para descobrir o sabor de Eva no ci-
quando se deitava no sofá dava razão a Eva, amanhã seria outro dia garro mas o cigarro ardia sem que soubesse ou cheirasse a nada
e com sorte u m dia diferente. mais que tabaco. A roupa humedecida pelo suor colava-se ao

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corpo. Levantou ligeiramente u m braço e aproximou o nariz da o tempo do cigarro chegar ao filtro, a suspeita do homicídio con-
axila, a mancha de suor que alastrava eheirava m a l , muito mal, tinuou a beber café na mesa ao lado e ele pensou noutra coisa.
todo o seu corpo cheirava igualmente m a l , sentia o suor na bar- Entre ele e a cidade havia a distâneia do r i o , u m chão de
riga, nas costas, nas pernas, a pele tinha deixado de o vedar, nele limos e barro, não tinha nada para fazer quando ehegasse à cidade
existiam poucas coisas mais verdadeiras e essenciais do que mas tinha tempo, 18:47, talvez entrasse n u m café e comesse qual-
aquele cheiro que lhe fugia, a pele rota expunha-o, denunciava-o, quer coisa ao balcão, talvez se sentasse n u m restaurante, talvez
o ar quente e seco arranhava-lhe as narinas, secava-lhe a boca e descesse as eseadas do metro, sentia-se bem debaixo do ehão, cres-
inchava-lhe a língua como às vezes lhe acontecia durante o sono, cera n u m a cave, q u e m o visse diria que era u m h o m e m eom
ao acordar raspava c o m as unhas a saliva grossa, mas estava na rua pressa, u m h o m e m que tinha que ir a u m sítio qualquer, se al-
e as unhas estavam tão sujas, esfregou as mãos c o m a ponta dos guém o visse a correr apressado para as escadas do metro não podia
dedos até formar rolos pretos de surro que sacudiu, distraida- dizer que ele não tinha sítio para aonde ir, que se escondia no
mente, para o chão. lugar que naturalmente pertence aos mortos, se pudesse escon-
U m banhista da mesa ao lado tossiu para demonstrar a sua der-se-ia no céu ou no mar. Debaixo do chão fazia o percurso com-
reprovação. Pensou se o corpo daquele banhista, se todos os cor- pleto, uma linha, outra linha, ninguém deseonfiava que gastava
pos que estavam ali na esplanada seriam iguais ao seu ou se por muitos serões a andar de metro de u m lado para o outro, umas ve-
algum motivo o dele era excessivamente imperfeito e sujo. Não zes olhava para os passageiros, outras eram apenas silhuetas que
lhe pareceu que as mãos do banhista também cheirassem a sebo entravam e se apeavam nas estações. Quando chegasse à cidade
n e m que a língua estivesse coberta de saliva grossa e amarga. Des- teria tempo para decidir o que fazer, podia acompanhar a recolha
viou os olhos do banhista e virou os braços para si à procura do que do lixo da cidade em procissão, juntava-se aos fatos azuis, às capas
de mais perfeito havia no seu corpo, as veias, finos traços azulados de plástieo amarelo, saeerdotes do esseneial, de nós não sobrará
ou arroxeados que se cruzavam limpos e definidos sob a pele, fios nada mais do que lixo, dizia a Eva c o m u m sorriso aparvalhado na
às vezes eelestes outras erepusculares, o princípio e o fim de tudo. cara que lhe assentava tão bem, era a sua maneira mais autêntica
Mas as veias estavam intumescidas e palpitantes, e ele desistiu de se rir, Eva respondia-lhe que não gostava de o ver rir-se assim,
recolhendo o braço, apanhou mais uma ponta de cigarro de Eva Eva nunca soube o que ele fazia de tanto tempo, nunca soube
e colocou-a nos lábios, aeendeu u m fósforo que deixou apagar, eomo gastava os dias, as noites, as estações, os anos, como esban-
olhou para o relógio, riscou outro fósforo, deixou que o cigarro se java o tempo, o tal material perigoso nas mãos de quem não o sabe
queimasse no eanto do lábio, assobiou baixinho para imitar os utilizar, nas mãos dele.
pássaros, era u m actor a filmar uma cena de u m filme, semicerrou Levantou-se. Foi até à vedação da esplanada e as ondas do fim
o olho esquerdo, assim uma varejeira podia ser uma borboleta de tarde espraiavam-se mansas na areia. V i u quase ao pé da água
verde, os sentidos são tão insensatos que deve ser por isso que os uma rapariga que lhe pareeeu ser a que tinha saído com o dono da
homens aprenderam a fé, deixou o cigarro no canto do lábio, era esplanada. O l h o u para dentro da esplanada à procura do dono
u m filme policial a preto e braneo e ele era detective, a ilusão teve nias não o encontrou. Não tinha a certeza se era a mesma rapari-

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ga, só mais perto poderia confirmar, tinha o cabelo louro, donde sacos e cadeiras dividido entre o futuro e o passado, os pais carre-
ele estava parecia ser ela mas o dono da esplanada ainda não tinha gados de cadeiras vigiavam a corrida dos filhos e a dificuldade do
voltado, talvez não fosse a rapariga, o dono da esplanada poderia velho, esforçavam-se por não perderem nada, daqui a pouco serão
ter ido a outro sítio, seriam os mesmos cabelos louros que se esten- eles que caminharão mais atrás enterrando-se na areia, as crianças
deram ao vento no atalho de ripas de madeira, o meu cabelo é de carregar-se-ão de cadeiras e sacos e ficarão cansadas, os que hão-de
estopa e arde, costumava dizer a mãe, cabelo cor de estopa passou vir correrão à frente, a família desapareceu, os namorados de ve-
ele a dizer apesar de não saber o que era estopa, o meu eabelo é de rão enroscavam-se na areia julgando-se escondidos, beijavam-se
estopa e arde, há frases que só fazem sentido na memória, que se enquanto o mar recuava e a areia se apoderava da praia existindo
perdem quando ditas em voz alta, frases que se passeiam na ca- cada vez mais, no seu recuo o mar deixava u m deserto, os namo-
beça, frases de andar por casa. De pé, 18:59, decidia se regressava rados eram pequenas conchinhas que se deseobriam incomple-
à cidade ou se corria para o mar, para a rapariga que estava perto tas, bivalves que se feehavam para os outros.
do mar. Sem ainda se ter decidido pegou nos saeos com as com- Foi nesse deserto de areia que reparou, surpreendido, que há
pras de Eva, descalçou-se, arregaçou as ealças e caminhou apres- muito tempo não eortava as unhas, os pés assim nus mostravam as
sadamente até às ondas. Ainda a arfar m o l h o u os pés na água fria unhas enegrecidas e curvas, umas unhas de eão, tenho de cortar
e contemplou a beleza da praia quase deserta. Deixou-se fiear as- as unhas, repetiu duas ou três vezes para não se esqueeer, logo à
sim a medir a lonjura do azul e concluiu que este contentamento noite tenho de cortar as unhas. Levantou-se e começou a andar,
seria próximo do sentido pelos homens que se dizem em paz. sentiu prazer quando os pés frios se enterraram na areia morna e
Recuou até fugir da água do mar, sentou-se na areia p o u - por isso retardou os passos, coneentrou-se no simples acto de
sando os sacos e sapatos. Apetecia-lhe deitar-se mas se o fizesse caminhar, enterrava u m pé na areia e deixava-o ficar mais à frente
ficaria incomodado c o m a areia que se enfiaria na roupa. T i r o u desprotegido, seguia-se-lhe o outro, e assim fez u m rasto das suas
u m cigarro e fumou-o rapidamente com a consciência de que não pegadas, os seus pés ainda eram pequenos quando eriaram este
se pode ficar para sempre no paraíso, nada se mantém paraíso, o hábito, foi quando conheceram o mar da eolónia balnear. N o dia
sol daqui a pouco estaria do outro lado do m u n d o e a lua que já t i - em que chegou à eolónia balnear deram-lhe sopas de leite e dei-
nha aparecido no mesmo céu faria a noite, se andasse com o sol... taram-no no primeiro andar de uma cama, u m beliche, a exeita-
mas h o m e m algum poderá aeompanhar o sol, h o m e m algum po- ção de estar deitado numa cama com escadas não o deixava ador-
derá permanecer no paraíso. meeer, na manhã seguinte iria conhecer o mar, parecia que ia
U m grupo de adolescentes passou por ele dando toques conhecer uma pessoa. Gostou mais do beliehe que do mar, mas
numa bola de futebol. U m a família tardia abandonava a praia car- não se atreveu a dizê-lo, na semana em que dormiu no beliche ha-
regada de tralha, as crianças corriam à frente, os pais no meio can- bituou-se a vigiar as marcas dos pés na areia, procurava-as no dia
sados das cadeiras e sacos, o velho mais atrás a enterrar-se na areia, seguinte, seria mais fácil se tivesse querido esvaziar o mar, no
a fila familiar reproduzia a ordem natural da vida, o futuro eorria último dia de férias os colegas deixaram na areia uma fila ordeira
à frente, o passado pesava atrás, o presente limitava-se a carregar de pés tristes, que será feito do rapaz que d o r m i u na cama de baixo.

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como é que se chamava, avançava sobre a areia atento ao seu rasto, a beleza não se deixa recordar, precisa de ser vista, a rapariga
o que será feito dele, os pés cresceram e têm unhas de cão mas às bonita desafiou o miúdo para jogarem novamente, não dês as ear-
vezes a felicidade também ataca pés destes, às 19:05 deixava na tas que eu perco neste jogo, aposta a corrente de prata que eu
areia passos felizes. aposto o coração, a rapariga continuava de pé, dispunha de mais
Aproximou-se do corta-vento onde a rapariga dos cabelos alguns segundos para lhe roubar toda a beleza que pudesse, a
louros se tinha resguardado. Verificou que era a mesma rapariga rapariga baralhou as cartas, o miúdo cortou o baralho em dois e
e evitou que os seus olhos, decerto ridículos como Eva disse, fos- ela deu, mais atrás estava uma mulher sem nada de espeeial, seria
sem apanhados pelos da rapariga que jogava às cartas c o m u m a mãe, eneostada a u m h o m e m forte que lia u m jornal, seria o pai,
miúdo. D o outro lado do corta-vento o u v i u a voz da rapariga, a rapariga sentou-se e pôs a mão direita sobre a testa a servir de
trunfo, depois uma gargalhada, a voz de u m miúdo, batoteira estú- pala, ajudada pela sombra que eriou apanhou-o a roubar a sua
pida, uma voz adulta de mulher, não fales assim c o m a tua irmã, beleza. Podia ter gritado mas não o fez, deixou-se roubar em silên-
não se ehama estúpida a ninguém, outra vez a voz do miúdo, cio, estava demasiado vaidosa para o denuneiar, aquele h o m e m é
então chamo o quê, a voz de u m h o m e m adulto, vamos lá ver, e u m ladrão, podia ter gritado, mas estava demasiado vaidosa, sen-
nada mais foi dito. , - tou-se, recomeçou a jogar, ele continuou parado, Eva tinha razão,
Quase parado podia olhar para a rapariga sem parecer ridí- não podia ser mais ridículo do que ali especado no areal com as
culo porque não era visto. Reparou no pé direito dela, u m pé per- calças da cidade arregaçadas e os pés nus, as mãos cheias de sacos
feito com uma corrente prateada no tornozelo donde pendia u m e sapatos, os pais olharam-no desconfiados, o h o m e m forte parou
coração também prateado. O pé esquerdo remexia indolente a de ler o jornal, a mãe e h a m o u pelos filhos, teve a pressa dos
areia. As nádegas eram muito redondas e pequenas, as costas dese- ladrões, já não era nada mau voltar para a cidade eom os olhos tão
nhadas, os ombros estreitos de criança. Fixou os olhos e susteve a cheios de beleza, estava feliz, deu quatro passos apressados, o l h o u
respiração para que ninguém desse conta que roubava tão facil- para trás mais uma vez, uma última vez que durasse para sempre,
mente beleza daquele corpo. É realmente bonita, muito bonita, a beleza não se deixa recordar, pede que se olhe constantemente,
pensou, disposto a eontinuar o seu caminho. Mas a rapariga riu-se u m vício, continuou a caminhar enquanto olhava para trás, sen-
e pôs-se de pé para sacudir a areia, o corpo ao alto era ainda mais tiu qualquer coisa a espetar-se a meio do pé direito, tropeçou, lar-
belo. A rapariga franziu os olhos por causa do sol e ele aprovei- gou os sacos, quando levantou o pé v i u u m pedaço de vidro cra-
tou-se desse encandeamento para se demorar nos dois peitozi- vado na carne branca e sangue que começava a eorrer.
nhos tesos eom os mamilos espetados por baixo de u m paninho
cor de m e l . A b r i u muito a boca para acalmar o coração com o ar
salgado, é m u i t o raro estar-se assim tão perto da beleza e no
entanto aqui está ao meu aleance, se esticasse a mão podia tocar-
Ihe, será veludo, se estendesse a língua podia saboreá-la, será sal,
fechou os olhos para a tornar memória, quis decorar o corpo mas

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tada no mesmo torpor. A rapariga levanta-se eomo quem vai aju-
dar, mas abeira-se da janela. Asenhoria agarra-se instintivamente
à sua earteira de verniz branco e verifica se o fecho está corrido. A
ex-mulher recolhe as coisas e atira-as apressadamente para o saco
que depois dobra sobre a barriga. Poderiam ter começado a falar,
o barulho dos objectos que caíram no chão poderia ter sido o pre-
texto para que falassem, as vozes já não seriam despropositadas
porque a queda do saco tinha afastado o silêncio da sala, poderiam
ter começado a falar mas a mãe retoma as suas orações. Deus te
fez. Deus te criou. Deus perdoa a quem mal te olhou, a rapariga
regressa ao seu lugar, rói as unhas, arranca cutículas até que se fere
e quando isso acontece ehupa o sangue deixando o dedo na boca.
A outra mão está pousada sobre a barriga. A ex-mulher observa os
cabelos louros de criança despenteados e a pele lisa, uma pomba
As quatro mulheres c o n t i n u a m na sala. Neste m o m e n t o , pousa no beiral da janela desviando os olhos da ex-mulher mas
por coincidência, o l h a m todas para o chão que é de mosaicos cin- levanta voo de seguida e pousa noutra janela mais acima. A senho-
zentos c o m pintas pretas. Já não são olhos atentos, são olhos ean- ria boceja, abre a boea, saem-lhe dois fios de água dos olhos e
sados de deambular pelo desconforto da sala quadrada que além estremece n u m arrepio que a desperta. .
delas, das duas manchas castanhas de humidade, do fio eléctrieo
C o n t i n u a m sentadas, ocupando ordeiramente eada u m dos
que passa colado ao rodapé e que sobe ao umbral da porta para
lados da sala quadrada, quando u m funcionário entra na sala,
depois se estender até ao interruptor redondo e preto, tem quatro
olha-as por instantes escolhendo. Abeira-se da senhoria e pede-
bancos corridos de madeira, u m candeeiro no tecto, uma mesi-
Ihe a senha. A senhoria entrega-lhe o bocado de papel azul que
nha com jornais antigos e dois avisos na parede. Proibido Fumar
lhe deram à entrada. Pereebe-se que há qualquer coisa que i n -
e Aguarde a Sua Vez c o m Educação.
quieta o funcionário. Temos aqui u m problema, esta senha não
Mas a ex-mulher fuma muito. A senhoria para demonstrar o pertenee a este serviço, aqui só recebemos senhas verdes e esta é
seu desagrado tosse, tapa a boca c o m os dedos gordos, torna a tos- azul, diz monoeórdico, temos de a identificar outra vez, as outras
sir, agita a papada, proeura o cheiro das rosas do toalhete. Aex-mu- mulheres olham para as suas senhas que também são azuis. Te-
Iher sussurra indiferente u m pedido de desculpa e tenta espalhar nho aqui o m e u bilhete de identidade, diz a senhoria nervosa,
o f u m o c o m a mão. Quando improvisa este leque feito de dedos pode ver, está aqui, a senhoria retira o cartão plastificado da car-
deixa cairá saco que derrama a cigarreira, isqueiro, porta-moedas, teira de verniz branco. Agradeço mas não serve de nada, a identi-
livro de cheques, o livro guardado, o porta-chaves e outros objec- ficação tem de ser feita pelo eolega lá de baixo no guiehet próprio.
tos. Por causa do barulho a mãe levanta os olhos, mas fiea espan- Mas não vê que sou eu? Claro que vejo mas não é assim que se faz.

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se não se i m p o r t a aeompanhe-me lá a baixo, diz c o m p o n d o o
cabelo preto, muito liso, que lhe cai sobre a testa.
Asenhoria levanta-se, segue o funcionário nos tornos de ver-
niz branco que já lhe i n c h a m as pernas. À frente, o h o m e m cami-
nha mas não se ouvem os seus passos, tem solas de silêncio pró-
prias para andarem naquele loeal. Quando saem da sala feeham
a porta, a rapariga levanta-se, abre a porta, não podem atender
outra enquanto não resolvem esse problema, pergunta para o cor-
redor, o funcionário pára, lamento mas tenho de tratar primeiro
deste assunto, há uma ordem que não posso trocar. É que já aqui
estou há mais de duas horas, reclama a ex-mulher mantendo-se
sentada no banco. O funcionário regressa do corredor iluminado
pela clarabóia, não posso fazer nada, não depende de m i m . Aex-mu-
Iher acende outro eigarro e fica c o m o isqueiro aeeso na mão a
contemplar a ehama trémula. O funcionário diz, desculpe, a Merda, merda, foi eastigo, o l h o u para o vidro castanho cra-
senhora não pode fumar, são ordens que tenho. A ex-mulher res- vado na carne, o pedaço de uma garrafa de cerveja espetado na car-
ponde com displicência que as ordens são feitas porque há sem- ne mole do meio do pé, quem terá sido o estupor que, rodou o pé
pre alguém disposto a desobedecer e continua a fumar. O funcio- com cuidado e tentou puxar o vidro mas não conseguiu, o vidro
nário vai-se embora deseansado porque c u m p r i u o seu dever, o estava eravado na carne, que merda de azar, foi castigo, se não
resto já não é com ele. tivesse olhado para trás isto não acontecia, passou por aqui tanta
gente hoje e logo eu, disse mais uma vez enquanto se sentava, ati-
rando os sacos para longe, 19:20.
O sangue corria mais abundante, o eoração batia apressado,
começou a transpirar, t i n h a medo do sangue que lhe saía do
corpo, do vidro eravado no pé, que raio de azar, acalma-te que isto
resolve-se, as gotas de sangue eram cada vez mais grossas, o pé tor-
nava-se lentamente n u m pedaço de earne ensanguentado, e se
lhe doesse, a dor da carne quando se fere, a dor aguda que se pro-
paga pelo corpo, u m veneno lento, o coração batia aflito, respirou
para se concentrar, não fiques em pânico, estava enjoado, os intes-
tinos revolviam-se, o corpo fora de controlo, os lábios dormentes,
as mãos geladas, respirou devagar, o mar, se olhar para o mar, fe-

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chou os olhos com muita força para que tudo voltasse ao normal, caiu na passadeira também era uma emergência e ninguém lhe
para que o vidro desaparecesse da sua carne, de olhos fechados valeu, a cabeça do h o m e m aberta a jorrar sangue sobre os traços
sentia as têmporas a latejar, o pescoço rígido, ia desmaiar, se abrir brancos e as pessoas continuavam a passar apressadas, a culpa era
os olhos desmaio, vergou o pescoço até ficar com a cabeça para dos horários de trabalho que têm que ser cumpridos, todos que-
baixo, abriu a medo os olhos, fixou-os nos grãos de areia que bri- riam ajudar o h o m e m desmaiado mas não podiam, u m polícia
lhavam, a luz reflectida na areia era brilhante demais, não posso chamou uma ambulância para o remover da passadeira e descon-
desmaiar, não posso desmaiar, 19:23. gestionar o trânsito, mas as pessoas da esplanada estavam de férias
As ondas ressoavam ameaçadoras, u m búzio gigante nos ouvi- e podiam ajudá-lo, alguém faria o favor de chamar u m táxi, tinha
dos, levantou a cabeça e o movimento irregular da água nauseou-o, era de conseguir andar, estava mais calmo mas olhou para as unhas
não posso olhar para nada, o medo cega, tornou a fechar os olhos, enegrecidas e curvas, unhas de cão, e disse, outra vez, merda.
contou até dez para se acalmar, quando estiveres nervoso deves Ninguém lhe podia ver as unhas, sentiu uma vergonha tão
contar até dez, seguiu o conselho de Eva, contou até dez, era a sua grande que o fez corar, pedaços de vermelho que lhe queimavam
última oportunidade, pegou cuidadosamente no pé ferido e pou- a cara, não queria que ninguém soubesse que tinha unhas de cão,
sou-o sobre a coxa da perna esquerda que se manchou de sangue. tinha que esconder as unhas antes de mais, mas de qualquer
C o m o pé mais perto veio o cheiro do sangue, quer dizer u m cheiro forma teria que as mostrar no hospital, podia calçar as meias, seria
que ele julgou ser de sangue, o eoração batia descontrolado, as uma maneira de proteger a carne ferida da areia, trémulo puxou
mãos tremiam-lhe, o pássaro moribundo estrebuchava no passeio, o saco que tinha as meias para junto de si e vestiu depressa o pé
ele contornou o pássaro para não o ver de perto, não olhou para esquerdo para o tapar, pegou eom cautela no pé ferido vestindo-o
trás, não viu as asas pararem de bater, tenho de ir a u m hospital, o apenas o suficiente para esconder as unhas, ninguém lhe veria as
areal era intransponível, quantos passos são daqui à esplanada, não unhas, agora tinha de chegar à esplanada, 19:27.
vou conseguir, como é que eu saio daqui, tenho que pedir ajuda, C o m as unhas tapadas e o medo cronometrado, 19:28, tinha
tinha medo, o pé continuava a sangrar, a areia não se manchava de de se levantar, o taxista podia não querer levar u m h o m e m que lhe
sangue como que a desmentir-lhe o pânico, 19:2 5, os olhos no reló- sujasse o carro de sangue, se lhe calhasse u m antigo que traba-
gio, a cabeça baixa apoiada nas mãos, não conseguia pensar em lhasse por eonta própria talvez tivesse sorte, os taxistas antigos
nada, se tivesse coragem para arrancar o pedaço de vidro do pé, se ainda cobrem os estofos com resguardos de napa lavável, se fosse
tivesse coragem. u m dos novos inscritos na companhia de certeza que não o trans-
Podia levantar-se e tentar apoiar-se no pé esquerdo deixando portaria nos estofos de tecido, não o podia censurar, ninguém
no ar o direito. Se não conseguisse fazer o caminho todo a pé-coxi- gosta do visco do sangue, o taxista no dia de folga tem que passear
nho, podia utilizar a parte dianteira do pé ferido apoiando apenas a família no carro, uma ambulância seria o transporte certo, uma
os dedos, talvez fosse capaz, tinha de se acalmar, tinha de se pôr ambulância pode ser suja de sangue, iria deitado na maca, o inte-
de pé e andar até à esplanada, lá alguém chamaria u m táxi, na rior das ambulâncias é tão branco, o branco é a cor das mortes i n -
esplanada haveria u m telefone, é uma emergência, o h o m e m que completas, adiadas, pelo menos é o que dizem os mortos adiados,

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falam de u m túnel e uma luz muito branca ao fiindo, apesar de eido, se fosse corajoso não estava todo a tremer, pensou e m peque-
tanto braneo as ambulâncias entretém a morte c o m luzes azuis nos truques, conto até três e puxo o vidro, u m , dois, três e nada,
rodopiantes, sirenes agudas, ele via-as quase todos os dias na ci- continuava a tremer, outro truque, tenho u m minuto para arran-
dade, tinha tempo para reparar nelas, quando se tem tempo vê-se car o vidro senão morro e ficava a ver o ponteiro mais fino do reló-
passar muitas ambulâncias nas ruas da cidade, são carros prioritá- gio a pereorrer o mostrador branco, sessenta segundos gastos no
rios que afastam os outros, não param nos semáforos vermelhos medo de arranear o vidro, 19:32, tenho de ir de gatas, se for de
n e m e m cruzamentos, a urgência da morte abre sempre rasto, a gatas toda a gente se r i de m i m , não haverá nada mais patético do
morte t a m b é m t e m o seu transporte próprio, quando se t e m que u m h o m e m de gatas pela praia, de gatas não, mas já te tinhas
tempo vê-se passar nas ruas muitos carros escuros e vagarosos, car- lembrado de andar ao pé-coxinho, controla-te, não fiques em
ros quase sempre c o m cortinas roxas e flores esborrachadas con- pânico, o coração batia c o m mais dificuldade, se tivesse u m ata-
tra os vidros, a morte deixa-se olhar pousada no centro do earro, que cardíaco, se o coração não resistisse, o eoração é o múseulo
assume a forma de rectângulo e tapa-se c o m panos c o m galões mais forte do corpo, o pássaro m o r i b u n d o ficou tanto tempo no
dourados, assim paramentada os que se c r u z a m c o m ela até a passeio, a água crescia-lhe abundantemente na boca, não tarda-
ignoram, ninguém a teme, ninguém grita vai ali u m morto, os car- riam os vómitos, quanto mais tempo demoro pior, c o m e ç o u a
ros da morte não têm urgência nem prioridade, transportam o defi- falar em voz alta, não podes fiear à espera que o sangue fuja pelo
nitivo e o infinito, mas se chamasse uma ambulância quando os pé, tens de ir até à esplanada, chamas u m táxi e pagas o que for pre-
bombeiros vissem o vidro eravado no pé rir-se-iam, diriam entre ciso, há u m preço para tudo até para se sujar u m earro de sangue,
dentes, o que nos havia de calhar, u m cortezinho no pé, olhá-lo-iam ou então arrancas o vidro, decide-te, és u m h o m e m , já tens eabe-
c o m desprezo e de certeza que n e m se despediam dele no hospi- los brancos, mas a voz recuou e o pensamento foi mais sineero,
tal, 19:29. tenho u m vidro espetado no pé e os cabelos braneos nada podem
E se pedisse boleia, havia o dono da esplanada, se o dono da contra o medo, aliás nunea me gabei de ser corajoso, sempre fugi
esplanada o levasse na mota ficariam apenas umas gotas de san- das doenças, apressei o passo quando vi o pássaro m o r i b u n d o e
gue no asfalto, n e m isso ficaria porque o vento atiraria tudo para nem sequer olhei para trás, nunca fui buscar Eva ao hospital ape-
longe, mas o dono da esplanada não abandonaria o seu negócio sar de, todos os maridos das minhas colegas as vão buscar, só tu é
para levar u m ferido ao hospital, e durante a viagem podia dese- que nunca foste, vai ao menos u m a vez para te c o n h e c e r e m ,
quilibrar-se, podia ter medo de eair e agarrar-se às costas do dono qualquer dia pensam que t u não existes, não gosto de hospitais,
da esplanada como a rapariga fez, podia ter de eneostar a eabeça mas aquilo é u m hospital de ossos e nem tem serviço de urgência,
para não desmaiar, se tal aconteeesse o dono da esplanada senti- mas cheira na mesma a hospital e é do cheiro que não gosto, não
ria asco, os homens não querem conheeer o medo dos outros ho- sei como fizeste a tropa, fiquei sempre na secretaria por causa do
mens, 19:30, quando anoitecesse seria mais difícil sair dali. sopro, nunca percebi isso do sopro, tens u m coração óptimo, as

Se fosse corajoso arrancava o vidro da carne e calcava a areia palavras deslizavam pela eabeça baixa, estava quase a chorar, sê

c o m o pé ferido, punha-se a andar como se nada tivesse aconte- u m homenzinho e arranca o vidro, levanta-te e anda, faz u m mila-

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gre, nunca tive fé, e continuou parado, as palavras afluíam confli-
tuosas, tens que ser prudente, se o vidro está a servir de tampão a
uma veia muito importante posso esvair-me em sangue, nunea
sabemos a importância que as coisas têm no corpo, não é só uma
questão de eoragem, a prudência salvava-o da cobardia, o sol cada
vez mais baixo mas ainda excessivamente brilhante para os olhos
amedrontados, o frio da água, o mar mais prateado do que o aço
de u m punhal, as ondas mansas que durante a tarde lambiam a
areia, precisava da doçura das ondas do mar, precisava de qual-
quer eoisa que lhe afugentasse o pânico do corpo mas o que viu foi
espuma, conchas e limos, enormes limos verdes pegajosos que
secavam ao sol, 19:34, o sol e a lua no mesmo céu, se calhar era
isso que estava errado, o sol e a lua no mesmo céu, os dentes cer-
ravam-se, vou gritar, não entres em pânico, controla-te, tu és ca-
paz, e se virem as minhas unhas, não entres em pânico, acalma-te la sentado no lugar do morto c o m as unhas de cão à mostra.

que já chamámos a tua mãe, estava deitado no ehão a sangrar do O h o m e m forte carregava no eláxon e gritava pela janela aberta,

nariz, os colegas rodeavam-no n u m círculo, quem c o m e ç o u a levo aqui u m h o m e m para o hospital, os outros carros afastavam-se

briga, perguntava a professora da instrução primária, o sangue e ele lá manobrava o seu de forma a passar por entre os outros car-

saía quente do nariz mas não o conseguia cheirar, era só u m ros que olhavam curiosos para a mancha de sangue pousada no

líquido tépido a sair do nariz, põe a eabeça para trás, alguém o tablier, para o seu pé pousado numa toalha de praia.

segurou, não lhe doía nada, os colegas vistos com os olhos revira- Quando o h o m e m forte se chegou ao pé dele e lhe pergun-

dos pareciam-lhe enormes, foi ele que me bateu, disse fechando tou, oh amigo precisa de ajuda?, acenou imediatamente que sim,

rapidamente a boea para não engolir sangue, mentiroso, respon- a mãe abeirou-se dele, foi ele, a mãe disse-lhe, falamos em casa e

deu o miúdo que o tinha socado, não entres em pânico, eontrola- sacudiu-o violentamente para ele se pôr direito, porta-te eomo u m

te, a tua mãe está a chegar, 19:35, estava paralisado, às vezes acon- h o m e m , os colegas desfizeram o círculo que formavam, entre-

tecia-lhe estar assim ao sonhar, queria gritar mas era tarde demais, gou-se ao desconhecido, afastou-se eom a mãe, o h o m e m forte

o pé sangrava, já não conseguia ver o vidro, se estivesse a sonhar olhou para o pé e disse, então amigo como foi isso?, e com u m asso-

estaria quase a acordar, e foi então que o h o m e m forte se aproxi- bio chamou o miúdo que veio a correr.

m o u dele. O h o m e m forte estendeu-lhe a mão que ele agarrou para se


içar. De pé, apoiou-se no ombro do h o m e m , tinha consciêneia de
que o agarrava eom demasiada força mas não conseguia evitar, deu
o primeiro passo e a meia saltou do pé ferido e as unhas de cão.

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unhas muito negras e curvas, ficaram irremediavelmente desco- homem forte rodou a chave na ignição, o carro não pegou logo,
bertas. Ainda pensou em escondê-las novamente, mas não teve está a c o n f u n d i r - m e eom outra pessoa, não c o n h e ç o ninguém
coragem de dizer ao h o m e m forte que tinha que parar para escon- aqui, muito menos o dono da esplanada, o carro pegou e o pai ajei-
der as unhas e caminhou envergonhado das unhas de cão até ao tou o retrovisor.
carro. A rapariga bonita mantinha-se uns passos mais atrás, acom- A mãe pôs o braço por detrás do miúdo para o abraçar, o pai
panhava os passos lentos da mãe, não as via, mas ouvia-lhes o riso, fez marcha-atrás, o earro derrapou para se soltar do monte de areia
de que se riam, as mulheres riem-se de tudo, as mulheres só se onde estava estacionado. O miúdo libertou-se da mãe e abriu o
riem de coisas sérias, dizia-lhe Eva, mãe e filha riam-se atrás dele, vidro, pediu para ir c o m o pai ao hospital, deixe-me ir consigo, o
o cheiro a eoeo do bronzeador da rapariga bonita era agradável, a homem forte disse, pergunta à tua mãe, mãe posso ir, se quiseres,
sombra dela alongada a passar-lhe ã frente, a estender-se na areia, o h o m e m forte sorriu, assim c o m o pé ao alto essa sangria pára já.
se estivesse bem disposto atropelava-lhe a sombra, se não tivesse A mulher e a rapariga continuaram caladas, o carro passou por u m
tanta vergonha, mas de que se riam as mulheres? atalho levantando m u i t o pó e desembocou numa estrada mais
Sentaram-no no lugar do morto, 19:48, e eoloearam-lhe o pé larga de terra batida. Ao longe já se avistava a vedação do parque
em cima do tablier que resguardaram com uma toalha de praia de campismo e nessa mesma estrada larga e amarela caminhavam
com patos amarelos a perderem a cor. Mãe e filhos guardaram no campistas com as mochilas às costas, o pai apoiou o braço na porta
porta-bagagens as esteiras e o guarda-sol e entraram todos para o do carro, conduzia c o m uma só mão, a mãe fechou o vidro por
banco de trás apertando-se uns contra os outros. Se olhasse para causa do pó, o pai disse, assim abafamos cá dentro, a mãe tornou
o espelho lateral do carro podia vê-los mas não o fez. Se olhasse a abrir o vidro e o pai conduziu o carro devagar para não comerem
teria visto duas caras novas divertidas e outra mais velha ligeira- o pó amarelo que vinha de todo o lado e que manchava o céu.
mente contrariada. O h o m e m forte foi o último a sentar-se porque Então como é que isso lhe aconteceu? U m vidro no meio da
se demorou mais a sacudir a areia dos chinelos e ainda retirou o praia, nós por acaso reparámos que estava ali sentado mas pensá-
folheto publicitário que tinham deixado preso no limpa-pára-bri- mos que estava a descansar, foi o miúdo que viu o pé, imagine se
sas. Amarrotou o papel e atirou-o para o ehão, o dinheiro que se tivesse sido uma criança a cair com a cabeça em cima do vidro, se
gastam nestas porcarias, disse quando se sentou, tenho de passar lhe deixou o pé assim imagine espetado na fonte de uma criança,
pelo parque de campismo para os deixar, também não é caso de ficava logo ali, é por isso que detesto a praia, é por isso...
vida ou de morte, e se não for assim o jantar atrasa-se, no parque Não sabia o que responder, podia apresentar-se, dizer o
os banhos são u m problema, demoram que se fartam, o amigo não nome, ao menos o nome que é o que se diz sempre apesar de dizer
se importa, pois não? Claro que não, não quero causar mais incó- tão pouco de cada u m , o nome é muito importante, já lho pergun-
modo, na verdade posso, e virou-se para a rapariga, talvez o seu taram tantas vezes, o seu nome por favor e ele diz o nome que lhe
amigo, o dono da esplanada, conheça alguém, ou possa, talvez o puseram aquando da fotografia em que se conhece mais pe-
seu amigo, deixe lá isso, o parque fica em caminho e depois en- queno, a fotografia que só foi feita porque se baptizou outra crian-
quanto fazem o jantar levo-o ao hospital, não me custa nada, o ça no mesmo dia, os pais da outra criança contrataram o fotógrafo

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para eternizar a entrada do fdho no reino dos eéus, os seus ainda a cabeça, não sei nadar e a água está sempre gelada, nunca sei
não se tinham desgraçado, mas nunca se lembrariam de contratar onde me hei-de pôr, ao sol tenho calor e na água, frio, há sempre
o fotógrafo, diz ao menos o nome, se disseres o nome pensam que tão pouco espaço para as sombras, faço este sacrifício pela família,
te conhecem, na fotografia os pais, que ainda não t i n h a m estra- se fosse sozinho nunca me apanhavam aqui, ficava sossegado na
gado a vida, ladeavam-no, diz o nome, não conseguia falar, a lín- minha terra, há quem lá vá só para ver a planície, é uma medida
gua tinha-se colado ao céu-da-boca, acontecia-lhe quando se de terra que consola o coração, os da cidade têm comprado tudo,
enervava, perdeste a língua, perguntava-lhe Eva, olha o que eu como aquilo é perto escapam-se para lá, metem-se no ferry e
achei aqui, uma língua atrás da cómoda e riam-se, faziam as depois é u m bocadito de estrada boa, eu nunca f u i capaz de me
pazes, se calhar até foram felizes, o passado quando se recorda é meter com o carro no ferry, tenho medo que aquilo se afunde eom
sempre outro, mais feliz, agora que já não tinha medo n e m vergo- tanto peso, andei uma vez n u m de passageiros e até gostei de atra-
nha sentia apenas a dor no pé, o seu corpo agitava-se, descontro- vessar o rio, tive medo porque se aquilo fosse ao fundo eu ia tam-
lava-se, o pulsar apressado do coração, o enjoo, o pé pousado no bém, quando f u i à tropa foram treze dias sobre água, de tudo foi
tablier sobre os patos amarelos adoecia o corpo, o h o m e m forte do que tive mais medo, treze dias e só via água, o que gosto é de
avançava lentamente na estrada de terra, chegaram ao portão do estar na minha terra, se u m dia for para aqueles lados, disse o nome
parque de campismo e a m u l h e r e a rapariga saíram sem dizer da terra e ele respondeu, eom dificuldade, não conheço, mas o
uma palavra, foram buscar os sacos ao porta-bagagens, a rapariga h o m e m forte c o n t i n u o u como se ele tivesse dito que conhecia,
veio pelo lado dele, ficou muito perto dele, viu-lhe perfeitamente que costumava ir para aqueles lados, depois de passar a igrejinha
as unhas de eão, ele baixou os olhos envergonhado e a rapariga na beira da estrada avista dali uma lonjura de terra que não lhe
riu-se, de que se riem as mulheres, a mãe disse que ia grelhar cabe nos olhos, se for no tempo das searas e se estiver u m pouco
peixe, não te demores que a comida fria não tem graça nenhuma de vento garanto que nunea viu nada tão lindo, e tem os campos
e os miúdos querem ir à feira andar nos carrinhos de choque, o pai de alfazema, e de girassóis, gritou o miúdo do banco de trás, o pai
acenou e fez inversão de marcha, os outros campistas que entra- continuou, também gosto da terra à espera da sementeira, gosto
vam e saíam do parque ficaram cobertos de pó, criaturas espanta- mais da terra do que do mar, o mar é para os peixes, quando me re-
das, 20:02, o h o m e m forte chegou à estrada p r i n c i p a l , mais formar vou plantar oliveiras, são as árvores mais bonitas que
depressa pai, disse o miúdo, se a tua mãe sabe disto é u m caso sério, conheço, ainda me faltam muitos anos para a reforma mas quan-
não sabe, prometeu o miúdo, o pai sem a família completa ficou do me reformar vou plantar oliveiras n u m bocado de terra que
só u m h o m e m preocupado c o m o engarrafamento, olhe para a l i , para lá tenho, ou então, nunca se sabe daqui a dez anos como esta-
já estão todos parados. remos, se calhar já não tenho força para pegar no sacho, mas
Ajeitou o pé no tablier, já não tinha vergonha das unhas de quando me reformar v o u . . .
cão, a única coisa que queria era fechar os olhos, mas o h o m e m O h o m e m forte calou-se abruptamente e ficou a inventar os
forte queria conversar, só faço este sacrifício da praia pela família, seus dias de reformado. Ele fechou os olhos, sabia-lhe bem o silên-
não suporto a areia a enfiar-se-me no corpo n e m o sol a furar-me cio, desejou que mais ninguém falasse no earro, o h o m e m forte

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continuou calado a antecipar a nova vida que teria, o miúdo tinha folegou, o miúdo no banco de trás abriu os olhos, tenho fome, o pai
adormecido no banco de trás, mas ele sabia que dali a pouco, a ralhou-lhe, quiseste vir aguentas, tivesses ficado no parque c o m a
propósito do engarrafamento ou do calor, o h o m e m forte recome- tua mãe, isto da família é u m easo sério, então três, eu tenho estes
çaria a falar, poucos suportam o silêncio, quando está c o m Eva dois e já me ehegam, dois ou três vai dar ao mesmo, o h o m e m forte
também ele foge dos olhos calados, temos aqui para u m b o m bo- olhou-o espantado e eoneordou de seguida, dois ou três é de facto
cado, disse o h o m e m forte, veja como isto está, n e m se mexem. a mesma coisa, basta u m e já temos a vida lixada, vivemos para os
A b r i u os olhos c o m dificuldade e viu três faixas de carros parados. filhos e eles mortinhos por fazerem a vida deles, fizemos o mesmo
O h o m e m forte pôs o carro em ponto morto e cuspiu ruidosamen- aos nossos pais, não os podemos critiear, é a roda da vida, não os
te pela janela a secura da tarde que se alojava na garganta. O pior podemos criticar, repetiu o h o m e m forte para se eonformar.
é a vida do campo, continuou, é uma miséria, quando me empre- A dor do pé, o cheiro do limão de plástico pendurado no re-
guei queria fugir da vida dos meus pais, vi-os sempre de enxada na trovisor, o calor, o h o m e m forte, tudo lhe provocava vómitos. O
mão e sempre c o m fome, quem é que não quer fugir da miséria, o h o m e m forte perguntou-lhe pela m u l h e r que possivelmente o
h o m e m forte abanou a eabeça e perguntou-lhe, você não está de esperava em casa para jantar mas ele não lhe eonseguiu respon-
férias, pois não? der. O h o m e m forte riu-se, oh amigo, também não é caso para
Se bebesse qualquer eoisa conseguiria falar melhor, os carros ficar assim, ele concordou abanando a cabeça, as moscas entra-
continuavam parados com o sol a incidir nos tejadilhos, às vezes vam e saíam do earro, z u m b i a m à volta da cabeça dele, o vinho
metal e sol combinavam-se no alcatrão amolecido n u m feixe de branco, os bocados de polvo e os eigarros da tarde revolviam-se no
luz m u i t o b r i l h a n t e que o estonteava mais, o carro cheirava a estômago e vinham-lhe à boca, uma varejeira voou ruidosamente
limão do fruto plástico pendurado no retrovisor, o pé doía-lhe mas até que encontrou a carne ferida onde pousar, arrepiou-se repug-
o h o m e m forte continuava à espera, queria ouvi-lo falar na famí- nado, devia enxotá-la mas não conseguia executar este m o v i -
lia, nas férias, no trabalho, tinham tempo para conversar, olhou mento tão simples de mexer o braço, fechou os olhos, deviam
para o relógio, os minutos arrastavam-se, 20:10, os carros estavam estar quase a chegar ao hospital, os carros avançavam lentamente,
parados na estrada no dia mais quente do ano, não corria uma o h o m e m forte de vez em quando carregava no eláxon mas não
brisa, começou, v i m visitar o m e u mais novo à colónia de férias, havia sítio por onde passar, os patos amarelos da toalha de praia
ah! tem filhos?, o h o m e m forte ficou satisfeito por o reconhecer tingiam-se de sangue, tinha as unhas de eão destapadas, pareeia-lhe
igual, três, tenho três, duas meninas e u m rapaz, já está bem ser- que t a m b é m t i n h a sujado o tablier do earro, as fotografias da
vido, o h o m e m forte deixou o sorriso na cara e carregou mais uma mulher e dos dois filhos que lá estavam imanadas, três quadrados,
vez no eláxon, gritou, dêem u m jeitinho, levo u m h o m e m para o a mulher ao centro, a menina de u m lado e o bebé do outro, na pa-
hospital, uns carros afastaram-se c o m esforço, ficaram oblíquos rede da sala havia de estar emoldurada a ampliação que o fotó-
em relação à estrada, desordenaram a fila eompacta, eles conse- grafo ofereceu de brinde, podia perguntar em que circunstâneias
guiram avançar mas ficaram presos pouco mais à frente, houve é que foram tiradas aquelas fotografias, u m assunto rentável, o pas-
u m h o m e m que disse, passa por cima, o carro do h o m e m forte res- sado demora sempre algum tempo a ser reinventado, o h o m e m

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forte achou estranha a pergunta, não se lembrava, tinha passado nunca andava em carros de estranhos, não podia fumar e receava
muito tempo, o bebé era o miúdo gordo amolecido no banco de ter as solas sujas, nunea aeeitava boleia de ninguém, n e m mesmo
trás, a menina desdentada era a rapariga bonita que beijara o dono óe Eva, gostava de transportes públicos que não cheiravam a
da esplanada e que depois lhe mentira ao garantir que não conhe- limão nem t i n h a m fotografias no tablier, mas agora ia sentado no
cia ninguém naquela praia, a mulher já não tinha aquele sorriso lugar do morto de u m carro estranho e tão próximo de u m estra-
amável n e m o cabelo tão escuro, eram outras pessoas mas o ho- nho que não suspeitava que ele estava prestes a vomitar.
m e m forte estava convencido que eram as mesmas, todas as pes- Não posso desviar os olhos da estrada, se mantiver os olhos
soas se prestam a esta eonfusão, lembrou-se da fotografia que Eva presos na estrada não vomito, o h o m e m forte desistira por m i n u -
lhe ofereceu quando começaram a namorar e da cara de Eva à tos de apressar os carros, o miúdo continuava amolecido no banco
tarde na esplanada, tão diferente, da cara dele nos muitos cartões de trás, o h o m e m forte deixou as mãos caídas no volante, ele fixou
que foi tendo ao longo dos anos, de estudante, de utente de trans- os olhos na estrada, o h o m e m forte não tirava as mãos do volante,
portes públicos, de sócio de inúmeras associações, gostava de se a cabeça dele rebentava, queria sair do carro, se tivesse chamado
associar a tudo quanto pudesse, quando se tem tempo faz-se parte um táxi, o alcatrão derretia nas bermas apesar da hora tardia, esta
de qualquer eoisa, gostava de preeneher formulários, de entregar seria a noite mais quente do ano, ele devia ter chamado u m táxi,
os impressos às funcionárias, se era preciso fotografia prendia-a no não gostava de andar em carros de estranhos, se tivesse chamado
canto superior esquerdo eom u m clip, dantes deixava que as caras um táxi não estava aflito com a ideia de ensanguentar a toalha de
se repetissem, a fotografia do bilhete de identidade era a mesma praia da família que o olhava nos quadrados do tablier, pagava o
que estava na mesinha da sala da mãe numa moldura de vidro que fosse preciso, tudo tem u m preço dizia Eva, o carro virou com
baço ao lado da fotografia do pai, t i n h a m os dois o mesmo sorriso uma guinada e depois acelerou, entraram finalmente na estrada
aparvalhado, já não se lembrava como se tinha obrigado a mudar do hospital, seguiram os sinais, o miúdo acordou e agarrou-se ao
de cara, quando se tem tempo, já tinha ido tantas vezes ao fotó- banco, urgência é ali, ficaram setas para trás, ortopedia e cirurgia,
grafo, também gostava de ir às máquinas, a menina puxava o eor- o homem forte contornava os obstáculos, u m polícia mandou-o
tinado e fieava à espera do clarão, dos cinco minutos que demo- avançar, o h o m e m forte travou em frente às portas de vidro, as
rava a sair a tira das quatro earas, a menina dizia-lhe sempre que letras vermelhas da urgêneia já longe, o miúdo saiu imediata-
ele ficou muito bem e isso bastava-lhe, pedia que cortassem a tira mente batendo com força a porta do carro, chegara a altura de se
de imagens, deixava que lhe dividissem as caras c o m cuidado, despedir mas a garganta doía-lhe de tão seca, começou a frase mas
repetia a que ficou de olhos feehados, mais quatro, tinha guarda- o h o m e m forte meneou a cabeça n u m gesto de simpatia, isto é
das dúzias de caras em formato passe na gaveta do guarda-fatos, assim mesmo, amanhã posso ser eu, temos de ser uns para os ou-
u m dia destes tenho que deitar tudo fora, u m dia destes... hos, o miúdo abriu a porta para o ajudar a sair, as earas do pai e do
Apesar de se sentir tão mal lamentou que a rapariga bonita filho muito perto, demasiado perto, o pé pousado no tablier, as
tivesse ficado no parque de campismo, afastou a toalha e o pé para portas de vidro m u i t o próximas, uma varejeira z u m b i u e ficou
longe das fotografias, não podia manchar a família de sangue. hido escuro.

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família» não posso faltar ao trabalho, a médica chamou pelo m i -
crofone da secretária outro doente, a voz da médiea ouvir-se-ia
na sala de espera das urgências, há qualquer coisa de errado, pen-
sou, sala de espera das urgêneias, ele, felizmente, tinha desmaiado
e não teve que ficar na sala de espera a mostrar as unhas de eão, a
niédica ehegou para trás o mierofone, não o posso ajudar em mais
nada, se não tem família nem médico de família é u m problema
que só a si lhe diz respeito, se quer andar, ande. A médica olhara de
relance para as unhas de cão quando disse isto, os olhos eumpri-
ram a tarefa das palavras, disseram-lhe, seu miserável, tratei-te
apesar dessas unhas de cão. O doente que entrou disse o nome que
tinha sido dito pelo mierofone e queixou-se de uma dor aguda u m
poueo abaixo do eoração, uma dor que o mordia há umas sema-
nas mas que agora não o deixava respirar, a médiea levantou-se e
o taxista parou à porta da pensão, 00:47, e ele saiu do car- rodeou a secretária para se abeirar das eostelas do doente e ele,
ro com dificuldade porque tinha as mãos oeupadas e o pé envolto mesmo ao lado da dor que mordia o doente u m pouco abaixo do
numa ligadura branca, quase bonita. Não tinha dores. A médiea coração, pediu desculpa à médica e por pouco não chorou, estava
que tinha tratado a ferida disse-lhe que não era nada de espeeial, agradecido por o ter tratado apesar das unhas de eão, a enfermeira
precisava de repousar o pé durante uns dias evitando esforços tinha-lhe colocado no pé uma ligadura branca, curaram-lhe a
especialmente o de andar. Vou ficar sem andar, perguntou aflito, ferida mas não lhe cortaram as unhas, não lhes tocaram como
talvez três dias sejam suficientes mas consulte o seu médico de doença incurável que era, a médica sorriu novamente e ele teve
família, tem de lá ir por causa da baixa, pegou na ficha dele e guar- pena de realmente ser o que as unhas denunciavam, o doente dei-
dou-a com o mesmo desprendimento com que tinha atirado para tou-se na marquesa para mostrar a dor que o mordia e ele afastou-se
o cesto do lixo o pedaço de vidro. Ao cair o pedaço de vidro produ- quase a chorar, foi por pouco que não chorou, foi por tão pouco.
ziu u m barulho abafado, teve u m eair quase mudo que se parecia Quando o taxista se foi embora, tocou no botão do interco-
com o de não existir, se o cesto fosse metálieo talvez fizesse u m municador da pensão para que lhe abrissem a porta. T i n h a ehave
barulho mais adequado mas era de plástico e estava forrado a mas apeteeeu-lhe toear apesar de saber que a senhoria não gostava
papel, o pedaço de vidro fez apenas plof sem indiciar a sua perigo- que os seus hóspedes permanentes (era assim que chamava aos
sidade, ninguém teme uma coisa que faz apenas plof quando eai que arrendavam o quarto ao mês) toeassem em vez de usarem
n u m eesto de lixo, aquele pedaço de vidro devia... estava irritado chave. 00:50, lido como uma menos dez, considerou que a senho-
com a calma da médica e com o barulho inofensivo que o vidro fez ria poderia estar a dormir mas se assim fosse tanto lhe fazia e car-
ao eair, foi por isso que gritou, não tenho família nem médico de regou mais uma vez no botão do intereomunieador.

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Enquanto esperava, indiferente ao ineómodo que causava à imensa massa negra que se estendia à sua frente, a luz sempre o
senhoria, o l h o u para a avenida onde morava há quantos anos, confundiu, desconfortado continuava à porta da pensão à espera
cinco, seis, não lhe apetecia contar o tempo, lembrar-se de todos que lhe abrissem a porta.
os sítios onde tinha morado, veio para a cidade quando se separou Estranhou a demora da senhoria, se calhar pensa que é u m
de Eva, tinha medo que lhe aeontecesse o mesmo que à mãe, a hóspede novo que tocou à campainha, u m viajante para uma só
mãe há-de morar a vida toda no mesmo bairro e na mesma eave, noite, já estava de robe e tem que se vestir para o receber, é por eausa
uma sepultura, a avenida estava deserta, já a devia ter visto assim, disso que se demora mas daqui a nada abre a porta, não pousou os
noutros verões, sobravam lugares de estacionamento, noutra noite sacos no chão, não procurou a chave, n u m prédio eomo aquele
não se teria incomodado com a avenida vazia, não teria reparado seria natural que a porta estivesse sempre aberta mas a senhoria
nos carros estacionados numa desordem rigorosa, no verão os car- considerava u m perigo e fazia cópias de chaves, zelava pela segu-
ros ficam-se pela desordem de uns em espinha outros não, não rança do seu prédio apesar de o terem declarado irrecuperável e de
existem as segunda e tereeira fdas, os contentores do lixo estavam terem dado a ordem de demolição, a senhoria eontinuava a fazer
quase vazios, não havia quem os enchesse, quem deixasse sacos ao chaves para a porta de entrada do prédio em risco de ruir.
lado, os cães não t i n h a m o que remexer, não se viam pelo ehão A lâmpada do candeeiro mais próximo estava fundida. U m
paeotes de leite espalmados e caseas de fruta, o lixo do verão é mo- pouco mais à frente outro candeeiro apagado. Se todas as luzes se
nótono, as famílias em férias deixam os seus restos noutros lados, o apagassem não veria nada e talvez descansasse os olhos, talvez
lixo do verão entedia, no princípio de outono aparecem as bone- descansasse o corpo, durante a sua vida só tinha vivido uma noite
cas desmembradas e as roupas velhas das arrumações, no inverno sem luz, a noite do eorte geral de electricidade, e não era provável
sobras e mais sobras, no natal os contentores ficam cheios de papel que essa noite se repetisse, não era provável que nada se repetisse,
de embrulho e de fitas coloridas, muitos pais-natal pelo chão, mas as vidas podem ser muito parecidas mas nunca repetidas.
no verão só o tédio que toma conta de tudo. O ar muito quente de verão levantou papéis da rua, pedaços
Noutras noites, diferentes desta, as grades nos vidros das lojas de braneo que se elevaram delicados, rodopiaram rasteiros, dan-
não o assustavam, não o faziam pensar em crimes, os néones apa- çaram graeiosos no passeio, se o vento fosse mais forte voariam
gados não eram sinais de pobreza, noutras noites ignorava os com o barulho de pássaros aflitos, noutras noites teria pensado
vagabundos que de tão encostados às paredes eonfundiam-se ne- assim, mas nesta noite os papéis eram apenas lixo no ar, a avenida
las, os vagabundos em repouso são uma espécie de camaleões, estava eheia de lixo e de silêneio, os prédios tinham todos o mes-
noutras noites os velhos ou os bêbados que d o r m i a m profunda- mo t o m de sujidade, u m creme doentio, as árvores do passeio
mente nas enxergas de cartão não pareciam mortos, se não tivesse morreram na rodela de terra em que haviam sido plantadas, cam-
espetado o vidro no pé esta noite seria igual às outras, se não lhe pas geometricamente ordenadas no passeio, a madeira há-de ser
tivesse acontecido nada agradeceria a generosidade da noite que serrada e enfiada em contentores por homenzinhos fardados de
inocenta o que o dia culpa, continuaria à espera que lhe abrissem verde, já os conhecia, quando se tem tempo vêem-se os homenzi-
a porta, queria deitar-se, noutras noites sentir-se-ia muito bem na nhos fardados de verde por toda a cidade, os prédios também hão-de

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ruir, deixando algumas paredes suspensas a desafiar a lei e o subiam-nas pela eseada de incêndio, ainda se matam e depois
estado de gravidade, lei e estado numa estranha coincidência, pe- quero ver, dizia, deviam roubar à do segundo andar que não dá
lo chão bocados de cozinhas, de quartos e salas, cadeiras mistura- conta de nada, continuava, aborreço-me pelo abuso, se u m dia al-
das eom lava-louças de inox, pedras de muitas cores, amarelo-pin- gum cair lá em baixo quero ver, a porta estava finalmente aberta
tainho do quarto do bebé e verde-garrafa da sala de estar, livros por e o velho continuava à sua frente, ouvia os gritos da criatura do
estrear, uma torneira ainda aproveitável, u m bidé intacto, panelas segundo andar, a senhoria pedia sempre a Deus que levasse
amolgadas, as molas de u m sofá, uma vassoura, uma colcha com depressa a eriatura, que lhe fizesse uma esmola, a senhoria tinha
u m leão bordado, u m pinóquio c o m as pernas partidas, pedras, medo da loucura que ecoava na caixa de escada e a aproximava do
muitas pedras, cacos, muitos cacos, uma boneca espanhola sem purgatório, faz-lhe uma esmola Senhor, dizia quando ouvia u m
cabeça, os prédios precipitar-se-ão no ar, u m estrondo, as paredes grito mais lancinante e benzia-se rapidamente.
suspensas, os bombeiros vedarão a zona com plásticos de cores for- — Houve azar? — perguntou o velho, olhando para a liga-
tes, quando a televisão filmar tudo isto terá aeontecido, mas por dura branca enquanto abanava as mãos c o m os sacos plásticos
enquanto as árvores e os prédios da avenida ali permanecem, as vazios.
madeiras apodreeidas já não são janelas porque já não se abrem — Não, foi só u m cortezito, mas não encontro a chave — res-
para a rua, as folhas das árvores são papel vegetal, a lua em quarto pondeu — , toquei à campainha.
minguante é ainda u m sorriso bonito no céu, uma mulher passa — A h ! — Riu-se escancarando a boca de forma a mostrar os
vestida de azul-eelestial, a saia esvoaça destapando-lhe as pernas, dentes de roedor. — Não sabe que isto não toca? N e m sei se algum
afasta-se dele, caminha para longe, se calhar deveria ir atrás dela, dia tocou, mas desde que eá estamos nunea t o c o u — l i b e r t o u uma
a senhoria estará a dormir, quando ia tocar novamente no botão mão dos sacos para coçar a cabeça e a outra apertou c o m mais
da eampainha ouviu alguém dentro do prédio e a porta abriu-se. força o m o l h o de sacos de plástico. — Se quiser alguma ajuda
Reconheceu o velho que estava à sua frente eom muitos posso...
sacos de plástico vazios nas mãos, era o vizinho do terceiro andar, — Não, não.
eumprimentou-o, o velho saía àquela hora para roubar flores e Estava envergonhado do medo que tinha sentido na praia, se
fruta que a mulher vendia mais tarde no passeio da avenida, uma aquele h o m e m soubesse rir-se-ia até sufocar e depois com a mesma
voz sonsa que comovia os que passavam, a pele leite-creme resse- mão que passava na eabeça limparia as lágrimas de riso enquanto
quido e as rugas carreirinhos de canela, a senhoria não sabia quem dava os últimos soluços. Conheeia bem a maldade e o eheiro da
detestava mais, se os velhos do terceiro ou a família do quarto pele podre, era só isso que eonheeia dos anos, o velho continuava
andar, culpava e detestava os que t i n h a m afixado na entrada do parado diante dele c o m as mãos caídas, mãos demasiado grandes
prédio o edital que dava a ordem de demolição, se não tivessem para o eorpo enfezado, eheias de feridas e arranhões das flores rou-
eolocado o edital aqueles parasitas nunca teriam ocupado as badas à pressa.
casas, não lhe roubariam água todos os dias, a senhoria sabia que — Obrigado. Agora, com a porta aberta já consigo...
os parasitas enehiam bacias de plástieo na torneira da varanda e — Comigo? C o m i g o é que não é nada — replicou o velho

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afastando-se c o m os sacos plásticos pendurados das mãos e o
cheiro a podre na pele.
Dentro do prédio a lâmpada fluoreseente presa no medalhão
central do tecto realçou o branco da ligadura do pé, olhou agrade-
cido para a lâmpada, os suportes de alumínio tinham esmagado as
flores de estuque, as bolhas de salitre inchavam as paredes e
abriam-lhes fendas, diagonais profundas por todo o lado, as pare-
des esboroavam-se com u m simples toque, os miúdos do quarto
andar escavavam-nas para brinear aos tesouros, abriam grutas e
achavam barrotes carunchosos de madeira, barro e areia, saíam
para a rua à procura de outras brincadeiras mas aeabavam sempre
por voltar para as paredes do prédio, queixavam-se da brincadeira
mas continuavam a escavar, as paredes cediam às mãos pequenas
das erianças. Agarrou-se ao corrimão, quando chegasse lá acima
teria a mão enferrujada, o corrimão soltava-se aos poucos das esca- Estava deitado na cama. O quarto cheirava a insectieida e
das, subiu os degraus de madeira protegendo o pé ferido, evitando por isso estava mais calmo. T i n h a pavor de insectos. Bastava ima-
que a ligadura tocasse na passadeira de linóleo que atravessava a ginar uma meiga a chupar-lhe o sangue, uma aranha a percorrer
escada a meio, os degraus chiavam por baixo da passadeira a i m i - o seu corpo marcando-o com picadas envenenadas de u m verme-
tar mármore, as baratas atravessavam-se-lhe à frente e desapare- Iho-escuro, a carne a ferver intumescida, para começar logo a
ciam nas frinchas das paredes, o pé entrapado galgava os degraus coçar-se, não precisava de ser mordido, não precisava de achar o
c o m dificuldade, a barata diz que t e m sete saias de veludo, na sítio exacto da picada, o pequeno furo donde lhe t i n h a m sugado
borda do linóleo o pó do earuneho erguia-se em miniaturas de sangue, coçava-se violentamente até se magoar, espremia e chu-
pirâmides, alcançou o patamar, descansou a olhar para o pedaço pava a carne dorida, os dedos apertavam a carne com muita força,
de gesso do arranque do corrimão, para o que t i n h a sido u m lambuzava a picada de cuspo, desesperava-se ao sentir a carne tão
menino com u m globo na mão. Não preciso de viver aqui, disse quente, deixava de respirar para ouvir o zumbido, os olhos deviam
enquanto descansava no patamar a olhar para o resto de u m ser preeiosas lupas capazes de descobrir pulgas ou aranhas, não
menino a segurar o m u n d o ainda intacto, uma bola perfeita, 1:02, estes olhos eegos para insectos, não via nada mas de repente a
entrou no quarto independente e chamou pela senhoria. carne pulsava e a mancha branca alastrava apesar da raiva, coça-
va-se ainda mais violentamente, aleijava-se, amaldiçoava os i n -
sectos, enchia a pele de cuspo, de azeite, de pomada, rendia-se, fu-
gia, os inseetos ganhavam-lhe sempre e isso ainda o revoltava
niais, ele nada podia contra eles a não ser odiá-los.

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Quando procurava quartos para alugar perguntava logo aos morriam à sua frente os insectos deixavam-no quase moribundo,
senhorios se estavam dispostos a pôr diariamente insecticida no os olhos ardiam-lhe, tossia enquanto explicava aos senhorios des-
seu quarto, os senhorios estranhavam, diziam que nunca tinham confiados que também era alérgico ao insecticida.
tido queixas enquanto franziam o nariz desconfiados, ele insistia, Quando respondeu ao anúncio da senhoria já tinha perdido
invocava uma alergia gravíssima que o fazia pagar o que fosse pre- a esperança de encontrar alguém verdadeiramente conscien-
ciso, tudo tem u m preço, os senhorios tornavam-se mais compreen- cioso, mas a senhoria surpreendeu-o por ter recebido o pedido
sivos, quase se eondoíam, avisavam que não podiam garantir nada, sem sequer o estranhar. Limitou-se a informá-lo que teria de pagar
iam fazer o melhor que podiam mas nada de responsabilidades, às um extra pelo serviço, foi assim que disse, u m extra, claro que pa-
vezes basta u m descuido, com o calor há mosquitos por todo o lado, garia o que fosse necessário, a senhoria enlaçou os dedos gordos e
mas para si deve ser u m inferno, sinceramente nunca tinha conhe- fê-los estalar, t i n h a m de falar de assuntos sérios, ele manteve-se
cido n e n h u m caso igual ao seu, é quase como se fosse alérgico ao sentado na cadeira Queen Anne, a senhoria avisou-o que tinha de
ar, e olhe que há quem seja, noutro dia mostraram na televisão u m lhe fazer umas perguntas, hoje em dia todo o cuidado é pouco,
rapazinho... primeiro tinha de saber se trabalhava, os seus hóspedes t i n h a m
Desde que se divorciou de Eva passou por muitos quartos, que ter u m emprego fixo, não aceitava desempregados, foi a se-
mas os senhorios nunca c u m p r i a m o acordado, começavam m u i - nhoria que o obrigou a mentir, trabalhava há muitos anos na sec-
to bem mas depois esqueciam-se, olhe que pus, diziam, não sei co- ção de contabilidade numa empresa de dimensão razoável, gos-
mo é que o foram picar dessa maneira, olhavam espantados para tou de se ouvir apesar de considerar que de todos os empregos este
as manchas vermelhas, se calhar deixou a porta do quarto aberta seria o mais improvável que podia ter, óptimo, a senhoria estalou
e a luz acesa, ou então abriu a janela, já gastei não sei quantas latas novamente os dedos, cruzou os pés gordos, a papada subia e des-
de produto, nunca me esqueço mas não mando nos bichos, desa- cia satisfeita, repetia, contabilista, mas olhe que t a m b é m não
fiadores e já maçados com a grave alergia do hóspede, o que devia aceito homens com vícios, e abriu muito os olhos n u m gesto que
era tomar comprimidos, o meu cunhado é alérgico ao pó e tem de devia ser esclarecedor, bebo u m copo de vinho de vez em quando
tomar comprimidos na primavera. Ele ouvia-os e no dia seguinte e fumo, isso não são vícios, c o n c l u i u a senhoria depois de u m si-
mudava-se para outra pensão, não lhe interessava se o colchão era lêncio, falo de vícios, e abriu novamente os olhos, ele deixou os
de molas ou se o quarto apanhava sol, expunha o seu pedido, agra- dele pousados nos dela numa prova de sinceridade, a senhoria sor-
vava a alergia e os senhorios esticavam novamente os lábios de riu convencida, passou à família, desculpe mas tenho que saber,
pena e surpresa mas tornavam a esquecer-se, p u n h a m o insecti- hoje em dia, a minha mãe vive na província e tenho uma namo-
cida quando o sentiam chegar, lá iam eles a eorrer, vou só pôr mais rada, ah, uma namorada, a senhoria ouvia-o satisfeita, problemas
u m bocadinho para não ter problemas, e pulverizavam-no a ele e de saúde, perguntou a medo, nenhuns, a senhoria respirou ali-
ao quarto por desconhecerem que ele era quase tão vulnerável ao viada, a papada ficou por instantes parada, sabe que já me morreu
insecticida quanto os seus inimigos, tossia aflito enquanto as meigas 3qui u m pobre coitado, devia ter tido coragem para o pôr na rua
se debatiam no chão ou as pulgas saltavam dos lençóis, quando "ias, a senhoria levantou-se para lhe apresentar os outros dois hós-

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pedes permanentes, o gordo e o reformado. Mudou-se nesse mes- sala, os quartos eram para uso exclusivo dos hóspedes, a senhoria
mo dia e desde então a senhoria tinha cumprido com brio o seu evitava tentações, falava muito nos vícios dos homens, ele nunca
dever de exterminar insectos, porque também ela os detestava, só recebera visitas mas a senhoria considerava normal porque mais
que agora era paga generosamente para os matar. ninguém as recebia, os familiares estavam longe e os outros casos,
Naquela pensão os hóspedes permanentes podiam tomar dia- por pudor, não frequentavam a pensão, há por aí muitos jardins, e
riamente banho mediante u m pequeno acréscimo já que a renda também não faltam bordeis por essa avenida fora, pensões que
mensal apenas contemplava dois banhos completos por semana. eram sérias mas que agora alugam quartos à hora, não na minha
Também podiam marear ou prescindir de todas as refeições, i n - pensão, não admito porcarias, os hóspedes concordavam que po-
c l u i n d o o pequeno-almoço, sem que a senhoria mostrasse má dia faltar tudo à pensão menos decência.
cara. De resto eram as regras habituais, a sala de televisão das 13:00 Mas o que o fez ficar, além da eficácia c o m que a senhoria
às 24:00, excepcionalmente até às 2:00, o telefone estava no corre- exterminava os inseetos, foi o que t i n h a inventado ser. T i n h a
dor ao dispor de quem o quisesse usar, o contador metálico marca- construido uma vida que lhe agradava, cumpria u m horário de
va os períodos que pagavam de acordo com a tabela afixada ao lado, trabalho, levantava-se sempre à mesma hora, quando regressava
ao princípio nunca telefonava e raramente recebia telefonemas contava histórias da empresa, a secretária que se amantizara eom
mas a senhoria deu-lhe a entender que considerava anormal e até o mecânico responsável, u m acidente que feriu u m colega, indig-
perigoso u m h o m e m que não telefonasse nem recebesse telefone- nava-se com o pequeno aumento do ordenado, não queria perder
mas, para evitar suspeitas telefonava a Eva ou à mãe, eram telefone- esta vida, sentia-se bem apesar dos avisos de perigo de derrocada
mas breves de duas ou três palavras que ele prolongava inventando afixados pelos fiscais da câmara ou pelos bombeiros na entrada do
conversas, escusa de se preocupar que me alimento bem, também prédio. Sempre que colocavam u m novo aviso subia as escadas
gosto muito de si, a mãe já não o ouvia porque pousara de imediato apreensivo, as paredes desmoronavam-se, o corrimão solto, os
o auscultador, o que queres, nada, apeteceu-me telefonar, ficavam degraus inclinados, decidia que se mudava no dia seguinte, ama-
sem nada para dizer, a mãe despedia-se e deixava-o sozinho na nhã mudo-me, prometia assustado ao ouvir o barulho da derro-
linha, eontinuava até o apito da linha denunciar que não havia nin- cada, mas quando entrava na pensão, a senhoria, o gordo e o refor-
guém do outro lado. Quando telefonava a Eva para marcar ou des- mado devolviam-no à vida que tinha criado, o cheiro do insecticida
marcar u m encontro fazia a mesma coisa, falava sozinho, estou confortava-o e quando se deitava sentia-se mais seguro e mais feliz
u m bocado cansado, o chefe anda a exigir muito de m i m , qual- naquele quarto do que noutro sítio onde já tivesse estado. Não
quer dia arranjo outra coisa qualquer, a senhoria deixou de des- sabia donde vinha aquela felicidade mas suspeitava que além do
confiar dele e eonsiderava-o u m h o m e m b o m , uma jóia de filho, extermínio dos inseetos preeisava do horário de trabalho, da mãe
comentava com os outros hóspedes, está claro que qualquer dia carinhosa e da namorada que lhe eserevia de todas as partes do
casa-se, a namorada não deve querer outra coisa, também já não niundo, da vida normal que tinha na pensão.
deve ser nova. A senhoria bateu à porta e entrou c o m uma torrada e u m
Ao domingo, das 14:00 às 19:00, podiam receber visitas na copo de leite. Já se tinha recomposto do susto de o ver ferido e o

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Levantou-se para trancar a porta. A senhoria não gostava de
reformado já t i n h a regressado à sala de televisão depois de ter
portas trancadas mas aceitava-as como u m direito natural dos hós-
lamentado o que lhe tinha aeonteeido. Asenhoria estava em robe,
pedes. Ouviu-a a conversar c o m o reformado, daqui a pouco che-
o sono fazia-a piscar as pálpebras verde-esmeralda, sentou-se aos
garia o gordo de vender cervejas, durante o dia angariava seguros e
pés da cama e começou a enrolar distraidamente uma madeixa de
vendia férias, o gordo ehegaria daqui a pouco e falaria mais uma
cabelo, pedia-lhe pormenores do que lhe tinha acontecido. Ele
vez da sua margem de lucro na venda das cervejas, o reformado la-
tinha fome e a torrada besuntada de manteiga e m e l soube-lhe
mentaria a falta do trabalho, e a eriatura gritaria no segundo andar.
bem. Aos poucos levou o leite à boca evitando as pálpebras ver-
O dia estranho que tinha tido pareeia-lhe igual a outro qualquer,
de-esmeralda que esperavam por uma explieação eoerente, bebia
quando se deitava na cama os dias ficavam todos iguais, as vozes na
o leite a pensar que não queria a senhoria sentada aos pés da cama,
sala da televisão, devagarinho puxou u m eigarro e acendeu-o,
mas não podia mandá-la embora, a senhoria fingia-se muito preo-
1:38, a noite estava muito quente, foi a noite mais quente do ano, a
cupada mas ele sabia que estava apenas curiosa, desconfiada,
ligadura fazia-lhe mais calor, tenho de comprar uma. ventoinha,
como é que foi cortar o pé assim no emprego, parece que trouxe
pensou, ouviu vozes na avenida, u m riso semelhante ao da rapa-
areia da praia, deixe cá ver o sapato para ver como o malvado do
riga bonita, se não tivesse medo dos insectos e se não estivesse tão
vidro conseguiu cortar a sola, os dedos eontinuavam a enrolar a
cansado abria a janela para verse era a rapariga bonita que passeava
mesma madeixa de cabelo e ele tinha sono, muito sono, noutra
na avenida, f u m o u o último eigarro da noite expelindo o f u m o
noite inventaria o que fosse neeessário para conveneer a senhoria
devagar, 1:47, mastigou dois calmantes para ter a certeza de dormir
mas estava cansado, os dedos da senhoria a enrolar a madeixa de
bem, apagou a luz e ficou de olhos abertos no escuro até distinguir
cabelo ainda o adormeciam mais, eram uma história de embalar,
os contornos das coisas, os calmantes fariam o efeito desejado,
a senhoria levantou-se pegando no copo e no pires com restos de
dar-lhe-iam u m sono pesado sem sonhos, os dias dele eram todos
manteiga e mel e já rodando a maçaneta da porta, e quando é que
iguais, a única novidade eram os sonhos, hoje não queria saber de
vai trabalhar, daqui a uns dias, ah então dou ordens na cozinha pa-
mais nada.
ra acrescentar uma refeição, tem de se alimentar. Ele acenou que
A mão esquerda pegou carinhosamente no pénis e a outra
sim, era a senhoria que se encarregava de todo o trabalho, mas ele
acarieiou-o c o m os olhos fechados, muito perto do sono profundo
acreditava na cozinha com que ela sonhava, uma eozinha cheia
reviu a rapariga bonita, a penugem loura que lhe cobria as pernas,
de empregadas, uma pensão com muitos hóspedes, aereditava na
os mamilos tesos nos peitozinhos cobertos com o paninho cor de
avenida ainda rica, na pensão próspera antes de ser trespassada,
mel, saboreou a maresia, deixou que o prazer o sujasse, abriu os
uma, duas, três, dez vezes, a avenida das senhoras de chapéu e
braços pronto a expiar o pecado de se sentir tão bem.
sombrinha, dos cavalheiros de relógio de corrente em ouro, acre-
ditava em tudo o que a senhoria aereditasse apesar das rachas e da
humidade das paredes, apesar de tudo. A senhoria fechou suave-
mente a porta, ele agradeceu mas a senhoria já não o ouviu e ele
achou melhor assim.

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A ex-mulher quer dizer mais qualquer eoisa mas a rapariga per-
gunta ao funcionário se pode ir comer qualquer eoisa. O funcio-
nário diz que não pode sair do edifíeio porque a qualquer m o -
mento os doutores podem chamá-la, nunca se sabe quando é que
os doutores chamam, os doutores têm ainda mais trabalho do que
ele simples funcionário. A ex-mulher está cada vez mais irritada e
apaga o cigarro no chão com o pé. N o mosaico fica uma mancha
cinzenta e o cilindro espalmado e bege da beata. Exige falar com
o superior hierárquico. Para?, responde o funcionário que finge
que não vê o lixo que ficou no chão. Para lhe dizer que não pode
ser, que não nos podem, demarca-se das outras que despreza, que
não me podem tratar assim, quero reclamar. O funcionário diz que
não podem receber reclamações mas que de qualquer maneira vai
perguntar ao superior hierárquico se a pode atender. A ex-mulher
Na sala as três mulheres continuam à espera mas já se can- afirma que se pode reclamar em todo o lado e que se o superior hie-
saram de se evitarem umas às outras. O funcionário, o que só está rárquico não a receber se vai embora sem prestar deelarações. O
ali para cumprir ordens, entra com a senhoria. As três mulheres funcionário abana pacientemente a cabeça e fala numa infracção
olham-nos curiosas. A senhoria está apreensiva porque veio de fora punida por lei. Aerescenta que o serviço não tem u m só responsá-
e basta isso para se sentir a mais naquela sala. As três mulheres con- vel, por isso não sabe com quem ela deseja falar. A ex-mulher torce
tinuam caladas. Asenhoria senta-se no lugar que ocupava antes de a alça do saco e as outras percebem que desistiu. Vencida. O f u n -
abandonar a sala e formam de novo u m quadrado. O funcionário, cionário informa que o colega reponsável pelas identificações se
o executor de ordens, diz que houve u m erro e que por isso terão ausentou temporariamente do edifício e que não sabe quando
todas de ser identificadas novamente. Justifiea-se com uma frase poderão ser novamente identificadas.
que diz sem qualquer entoação, temos muito trabalho e aeonte- A rapariga insiste que tem fome e que precisa de comer. O
cem enganos destes, as senhoras têm de aguardar para serem nova- funcionário lamenta, a mãe solta as garras do rosário e estica o
mente identificadas. indicador para pedir a palavra mas arrepende-se e fica a olhá-los
Quando o funcionário diz isto, já está preparado para sair da através da névoa que lhe franze a testa. Antes de falar a senhoria
sala e olha à volta só para confirmar que as quatro mulheres per- limpa os cantos da boca com a ponta dos dedos gordos, livra-se do
ceberam o que ele lhes disse. A mãe está isolada pelo seu véu de bâton acumulado nos cantos dos lábios, os tornos de verniz
cataratas e os lábios sibilam. A ex-mulher destraça a perna e torna branco chiam u m contra o outro, tem de telefonar para a pensão,
a traçá-la, levanta o pescoço, mexe-se muito até que diz que não "s hóspedes esperam-na. O funcionário solícito informa que há
pode ser. O funcionário abana os ombros em sinal de impotência. Uma cabina de moedas no andar de baixo. A senhoria abre a ear-

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teira, retira u m porta-moedas que tem buracos na malha de prata dada, o eiúme ainda a perturba. Ela também devia ser presa, con-
e como todos vêem não tem trocos, n e m uma moeda, por isso terá clui a senhoria estendendo os pés, devia ser presa. A mãe fecha os
de usar outro telefone. O funcionário lamenta mas tem ordens olhos e agarra-se eom mais força às contas do rosário. A ex-mulher
para informar os depoentes que só podem utilizar o telefone pú- vai até à janela do saguão e começa a contar baixinho as janelas
blico porque o outro telefone é para uso exclusivo dos funcioná- que estão viradas para si. A senhoria ajeita o vestido, passa os dedos
rios. A senhoria olha para as outras mas elas não se mexem, não gordos no canto dos lábios, repõe o sorriso que ainda há pouco
fazem qualquer esforço para verificarem se têm moedas. A senho- tinha na cara e que é só u m esgar maldoso. E u que vi tudo, que
ria está zangada mas não desmancha o sorriso que se lhe colou à assisti a tudo desde o princípio, acho que aquela desgraçada é tão
cara, u m animal inofensivo pronto a ataear, não somos nós as cri- culpada eomo ele, tem tanta eulpa eomo ele. A ex-mulher conti-
minosas, não fomos nós, diz rancorosa, conservando a beatitude de nua de costas a contar as janelas e, sem se virar, diz que ninguém
animal sorridente, estamos a ser tratadas como criminosas mas não pode ter visto tudo sem ser igualmente culpado.
fomos nós que, que fizemos aquilo.
As outras mulheres não lhe ligam e o funcionário abana os
ombros, está impaciente. A senhoria refreia-se e acrescenta que
sabe que estas coisas são precisas mas não tem nada eom isto, não
o conheço de lado n e n h u m , era meu hóspede como já foram tan-
tos, se a gente fosse culpada do que os hóspedes fazem, quando se
aluga u m quarto. A senhoria muda de t o m , lamenta-se, maldita a
hora em que tudo aconteceu, o que eu tenho passado, só jornalis-
tas já lá foram uns poueos, fica à espera que reparem no que disse,
insiste, foram lá uns poucos de jornalistas, mas ninguém se surpre-
ende com o interesse dos jornalistas, ninguém se surpreende. A se-
nhoria mesmo assim não desiste, eompreende os jornalistas, quem
é que não se ehoca com uma coisa destas, u m crime desta natu-
reza, quem não se ehoca com u m crime sem explicação, há crimes
que se pereebem mas este não tem explieação, mesmo que ela, a
senhoria cala-se porque sempre temeu o poder dos mortos.
A rapariga sai da sala sem dizer nada. O funeionário dirige-se
para a porta. As outras entreolham-se. A senhoria espreita para o
corredor para verificar se a rapariga já desapareeeu. Cá para m i m ,
a eulpa é só daquela, foi ela que o endoidou. N e n h u m a das outras
mulheres responde mas a ex-mulher está visivelmente incomo-

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pano, casas que se podiam rasgar com facilidade, que desaparece-
riam com a mesma leveza com que existiam. Caminhava do lado
de fora da vedação, o parque estava todo vedado com aquele arame
grosso, nunca tinha acampado, o campo parecia-lhe uma prisão,
de vez em quando surgiam blocos de eimento, as easas de banho,
o restaurante, os blocos de cimento destoavam das easas de pano
com portas de fechos de correr, os campistas nunca têm chaves,
caminhava, a aragem levantava pó amarelo que o sujava, os sapa-
tos cobriam-se de pó muito fino, o mesmo pó que eobria os cam-
pistas que regressavam da praia e sentiu-se mais próximo deles.
Sentiu vergonha perante a pele bronzeada dos campistas
que se eruzavam com ele e que se riam sem protegerem os olhos
e as bocas do pó, caminhavam naturalmente sobre a terra ama-
rela, os pés enfiados em chinelos plásticos c o m passos seguros, os
18:48, eram quase sete horas quando entrou no parque de panos enrolados à volta do corpo, pertenciam ao parque, tinham-se
campismo à procura da rapariga bonita. Fechado no quarto inde- libertado das casas de cimento e tijolo do resto do ano, fora do par-
pendente enquanto o pé sarava pensou nela todos os dias, u m que seriam pessoas iguais às outras com as mensalidades do con-
jogo, uma distracção, o que lhe diria quando a tornasse a ver, te- domínio para pagar, aquela mulher, por exemplo, todos os meses
nho pensado em t i todos os dias, chegou a sentir-se mal quando a compraria o passe combinado que lhe daria acesso a três tipos de
recordava a beijar o dono da esplanada e a desaparecer na mota transporte, à noite poria remédio dos calos nos pés e ficaria a chei-
no fim do carreiro c o m os cabelos louros estendidos ao vento. Des- rar a enxofre, fora do parque os eampistas são iguais aos outros,
ceu do autocarro e dirigiu-se para o parque, o pé ainda lhe doía proteger-se-ão do pó amarelo, descalçarão os chinelos, despirão
ligeiramente, queria agradecer à família que o tinha ajudado, foi os panos e caminharão como ele, a úniea eoisa verdadeiramente
o motivo que arranjou para rever a rapariga bonita, não podia che- efémera é a vida, as casas de pano com portas de feehos de correr
gar lá e dizer simplesmente que não tinha pensado noutra coisa. nada podem contra os dias do resto do ano.
Aproximou-se da vedação, as pequenas casas de pano estavam do Na fila para o banho os campistas não pensam em nada. Des-
lado de lá do arame, o parque não era nada parecido c o m o que se cansam. Uns sentam-se no chão, outros desistem da fila e ser-
imagina ser u m sítio de férias, era u m amontoado de construções vem-se dos duches exteriores, esfregam-se mostrando o eorpo
de pano presas c o m estacas ao chão de terra seca, roulottes, cara- coberto de espuma, quando se passam por água fria gritam ou
vanas, uma tenda maior ao longe, será que a da família é igual cantam e os que assistem riem-se. Uns e outros deixarão de existir
àquela, será que tem uns vasos com flores à entrada, u m cão de logo que desmontem as tendas e dobrem os panos, guardar-se-ão
guarda e o carro estacionado ao lado, avançava para as casas de "as arrecadações dos prédios juntamente c o m as tendas, guarda-

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-sóis e geleiras, regressarão nas férias seguintes, sentar-se-ão outra Ele teve receio de nunca mais a ver e avançou, a rapariga an-
vez nas filas do banho, outra vez a eantar nos duches ensaboados, dava devagar e ele eom pressa, seguia-a, a rapariga percebeu e
voltar-se-ão a rir, nas férias seguintes voltar-se-ão a rir das mesmas abrandou ainda mais os passos, aproximaram-se, ele baixou os
coisas, existirão outra vez assim. olhos, a rapariga estava tão perto dele, t i n h a de pensar rapida-
Passou as bandeiras c o m muitas cores dos vários países, as mente no que lhe ia dizer, e se fosse sincero, tenho pensado muito
cores erguiam-se eontra o eéu azul-clarinho, as cores continua- em t i , e se fosse sincero, a rapariga olhava para ele sem o reeonhe-
ram a esvoaçar e ele entrou no parque. Apagou o cigarro. Antes da cer, não tinha posto essa hipótese e no entanto era tão provável, a
recepção uma família tinha estendido uma toalha aos quadrados rapariga já lhe tinha mentido, não conheeia o dono da esplanada
debaixo de u m p i n h e i r o manso, sentada n u m pequeno banco e agora também não o conhecia, a rapariga continuava intrigada,
uma mulher preparava mexilhões, retirando-os, pretos e luzidios, ele disse a custo, lembra-se de m i m , f u i eu que eortei o pé na praia,
duma baeia plástica, a mão ágil batia-lhes com o dedo e se a con- e levantou o pé, ficou tão patético c o m aquele sorriso aparvalhado
cha se fechasse a outra mão começava a raspá-los c o m uma faca a equilibrar-se n u m único pé, a rapariga riu-se, estava admirada,
que tinha u m cabo forte de madeira e depois a primeira mão ati- não o conheço, o seu pai levou-me ao hospital há uns dez dias atrás,
rava-os para outra bacia, as mãos estavam muito habituadas àque- é impossível só chegámos há três dias, ficou calado, olhando bem
les gestos porque nunca se enganavam e os mexilhões eram rapi- a rapariga era diferente da outra, anda à procura de alguém, a rapa-
damente transferidos de uma bacia para a outra. A t i r o u os olhos riga perguntou entre a dúvida e o riso, como é que se confundiu
para longe e viu uma rapariga loura que caminhava entre as ten- assim, aquela rapariga não era a rapariga bonita, ainda procurou
das. O estômago contraiu-se, apressou o passo em direeção a ela, os pais e o miúdo para confirmar o engano mas não os v i u , elaro
durante os últimos dias tinha pensado em tantas maneiras de a que não era a rapariga bonita, deseulpe, eonfundi-a eom outra
eumprimentar, mas não se tinha decidido por nenhuma. À medi- pessoa, ainda não sabia como mas tinha-a confundido, os últimos
da que se aproximava ia fieando sem palavras, sobravam-lhe os dias preenchidos por ela e n e m sequer a certeza de a reconheeer,
olhos ridículos, os olhos ridículos de que Eva o acusara, não tinha estou à procura de umas pessoas e por momentos pareceu-me
nada para dizer à família, estava agradecido mas o estado de agra- que, a rapariga o l h o u para ele, o parque está tão eheio que o mais
decimento para ele requeria silêncio, a partir do momento em que fáeil é ir à recepção, lá podem chamar pelo altifalante, doutra ma-
dissesse agradeço muito fiearia menos agradecido, quando cum- neira não me pareee, só por u m acaso, concordou, agradeceu,
prisse a obrigação de agradeeer deixaria de estar agradeeido, as claro, mas não sei o nome, lembrou-se, a rapariga franziu a testa,
palavras espantavam quase t u d o , Eva dir-lhe-ia, agradece em ele justificou-se, foi uma família que me ajudou mas não os co-
dinheiro, só há uma coisa no m u n d o que ninguém t e m em ex- nheço, quero agradecer-lhes, a rapariga recuou desconfiada, ele
cesso, dinheiro, mesmo os que têm muito querem sempre mais, estava aliviado por ela não ser a rapariga que procurava, a dos últi-
quanto mais estes pobres coitados, ouvia a voz de Eva, pega numas "los dias era muito mais bonita, 19:02, eomo é que me confundi
notas e dá-lhas, com umas notas livras-te deles para sempre, pen- assim, continuou a andar por entre as tendas, a rapariga ainda o olha-
sava voltar para trás quando viu que a rapariga loura se afastava. da, as famílias preparavam o jantar e ouviam rádio, o parque chei-

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rava a grelhados e ouvia-se por todo o lado canções alegres de se deixavam estar em fato de banho e calções, têm a pele quente do
verão. sol, pensou, continuou a andar, protegia o pé magoado com medo
Mais à frente, u m casal desmontava uma tenda familiar eom que lhe começasse a doer mais, fieava com u m andar esquisito,
gestos bruseos, acabavam as férias, a mulher guardava as estacas e cómico, há muito riso na simples ideia de alguém com u m andar
os esticadores no saco e o marido dobrava metodicamente os pa- esquisito, começou a pensar que a rapariga tinha razão, o parque
nos, os sacos-camas estavam estendidos numa corda atada de u m era demasiado grande e dali a poueo anoitecia, só por acaso é que
eandeeiro a outro, os dois rapazes do easal eram pequenos e brin- descobriria a família, acatou o seu eonselho e encaminhou-se
cavam com os objectos que estavam pelo ehão, quando o viram para a reeepção que era logo à entrada, foi até ao casinhoto de
pegaram n u m pau, luta ou rende-te, o pau tornou-se espada, os madeira que também tinha várias bandeiras espetadas no beiral
pais repreenderam os filhos, o mais velho deitou-lhe a língua de do telhado, mais cores contra o céu azul-clarinho e uma placa
fora e a mãe pousou aborrecida o saco das estacas e dos esticadores Recepção e em vários idiomas Bem-vindo.
e deu-lhe u m a bofetada, q u e m te m a n d o u seres mal-educado N o caminho manteve-se atento a todos os campistas que se
para o senhor, preeisa de alguma coisa, não, muito obrigado, já não cruzaram com ele, espreitou para dentro das tendas, tentou abran-
se atreveu a dizer que andava à procura de uma pessoa de quem ger com os olhos o maior número de atalhos, não v i u ninguém
não sabia o nome nem se a reeonheceria, disse, v i m visitar os meus que se parecesse com a rapariga, mas à medida que ia procurando
pais que estão cá de férias, oh, quem nos dera continuar, mas esta- sentia que se confundia mais, já não a conseguia ver na memória,
mos de partida, se os seus pais quiserem aproveitar este lugar é é normal, se a vir reconheço-a, quando a vir reeonheço-a logo, foi
óptimo, o sol só bate de tarde e o chão é liso, não sabia por que é que dizendo para si para se aealmar, chegou à recepção e explicou o
o sol a bater de tarde e o chão liso tornavam o lugar tão b o m , nun- que queria. O recepcionista pediu-lhe para aguardar, t i n h a de
ca tinha acampado, o muro dos tanques protegem-nos, apontava a preencher a ficha daquele casal acabado de chegar do estran-
mulher, se os seus pais quiserem já sabe, muito obrigado mas penso geiro, ele esperou pacientemente que o recepcionista acabasse de
que estão bem, estão para a l i , depois daquele poste de eleetrici- lhes falar, que o casal bocejasse inúmeras vezes, que as letras len-
dade, e apontou para longe, a mulher voltou ao saco dos esticado- tas do reeepeionista lhes atribuísse u m número de tenda e u m ear-
res e os filhos deitaram-lhe mais uma vez a língua de fora. tão para entrar e sair do parque, esperou até que o recepcionista
Afastou-se. O dia estava menos quente que os anteriores. Ves- lhe pediu, diga-me então o nome, se faz favor, aí é que está o pro-
tiu o easaco de malha fresca que Eva lhe eomprara, sentiu o per- blema, não sei o nome, o recepcionista olhou-o incrédulo e fez-lhe
fume dela e pôde imaginar as mãos de cera a escolherem cuidado- sinal com a mão, tinha que atender u m grupo de miúdas que se
samente o casaco, a examinarem a malha à procura de qualquer " a m , seriam as primeiras férias sem pais, ele esperou mantendo-
ponto incerto, u m defeito, nada nesta vida existe sem defeito, era o se de pé, de que se riem as mulheres, 19:20, as raparigas preen-
que Eva eostumava dizer, nada, ouviste bem, abria os olhos e os lá- chiam as fichas, mãos gordas de crianças cheias de anéis e pulsei-
bios cor de romã, vagarosos, nada nesta vida existe sem defeito, o •^"s, o recepcionista informou-as sobre os preços e c o m e ç o u a
tempo tinha arrefecido mas os campistas não sentiam frio porque Verificar as fichas, resolveu dizer desesperado que tinha pressa,

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ainda ia trabalhar, fazia o turno da noite, faço o que posso, respon- centou, quando ele já estava de costas para se ir embora, que guia

deu indiferente o recepcionista que desembrulhou uma pastilha turística era uma boa profissão mas nada adequada a quem queria

elástica e a meteu na boea, diga lá então o que quer. Percebeu que criar família. Só passado uns instantes é que se lembrou da profis-

o que sabia era realmente pouco para encontrar alguém, o recep- são que inventara para justifiear as cartas de Eva que ao longo dos

cionista começou a mexer nas teclas do computador enquanto ia anos chegavam de muitos sítios do m u n d o .

abanando a cabeça e ele não sabia se aquele movimento de ca- Demorava-se sempre a abrir as cartas de Eva. Recebia-as e
beça acompanhava a música ou se queria dizer que não estava a guardava-as no bolso do casaco durante dias, sabia que as cartas de
encontrar nada, quatro pessoas, não me parece que seja possível Eva nunca lhe diriam nada de especial mas ele precisava de gas-
eneontrá-las assim, ele lembrou-se da terra do h o m e m , do eami- tar tempo, de ficar à espera de qualquer coisa, de ficar à espera de
nho dos arrozais, a igreja, tem a certeza, elaro, mas só com isso o ler uma carta que não diria nada de espeeial. Acendeu u m cigarro,
c o m p u t a d o r não consegue, t e m que ter mais dados, não sabe a rapariga apareceria bonita como ele se lembrava, deixou-se cair
mesmo mais nada, não, o h o m e m falou-me nesse lugar, disse-me no sofá estampado com arco-íris e gaivotas, o corpo afúndava-se-lhe
que, o reeepcionista ouviu-o atento, isso não é o nome da terra desconfortável na esponja mole, rasgou o envelope enviado por
percebe, nós aqui pedimos o concelho, por exemplo, o reeepeio- Eva com cuidado e retirou u m postal, a einza do seu cigarro caiu
nista mexia nas teclas do computador, tenho aqui uns que são des- sobre o postal, sujou duas das oito fotografias em que o postal se
ses lados, meteu mais uma pastilha na boca, estava entusiasmado repartia, soprou a einza, olhou fixamente para o areal, a vista aérea
de poder mostrar a destreza dos dedos no teelado, mas se chamar de cabanas de colmo, a cascata rodeada por árvores enormes, u m
por estes pode apareeer a pessoa errada, podemos estar a incomo- mergulhador a passar sobre u m coral, virou as imagens e leu nas
dar as pessoas erradas, é u m risco, o recepcionista falava com gra- costas do postal sem ouvir a voz de Eva como acontece nos filmes:
vidade mas começou a passar os nomes para uma folha de papel, M e u querido: Tens razão, numa viagem perde-se tudo me-
ainda por cima é hora de jantar, muito obrigado, o reeepeionista nos a saudade que se tem de voltar. Só numa ilha é que se eonse-
carregou n u m botão e c o m voz de rádio disse para o parque de gue perceber a vida. Pensamos que podemos fugir mas resta-nos
campismo vários nomes que se ouviram chamar estupefactos. andar às voltas e por mais voltas que se dê só temos o mar e a morte
Pediu u m minuto e desapareceu atrás da porta. como saída. U m a ausêneia de água rodeada de água. O J. está bem

T i n h a no bolso da eamisa uma carta que reeebera de Eva. e parece divertir-se. Tenho muitas saudades tuas. A comida é i n -

Além do destinatário tinha apenas u m selo carimbado, a senhoria tragável e o cheiro e o comportamento dos nativos insuportáveis.

entregou-lha maliciosa, cartinha da namorada, disse com os olhi- U m beijo eheio de amor. C o m o vês estou igual a m i m o que quer

nhos a piscar e os lábios descaídos a espantarem a alegria, ele agra- dizer que estou bem.

deceu e guardou-a rapidamente no bolso com receio que a senho- Não assinava e insistia em tratar o marido apenas por uma ini-

ria descobrisse qualquer coisa estranha. E u bem digo que não há Ual. Tornou a virar o postal e surgiram as imagens, u m nativo eom

homens romântieos, brineou a senhoria, uma carta de amor guar- " m peixe enorme na mão, seriam homens como aquele que t i -

dada no bolso, se fosse eu abria-a já, ele sorriu e a senhoria acres- nham cheiros e comportamentos detestáveis. Guardou o postal no

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bolso do casaco quando entrou na reeepção u m h o m e m que se fora a pastilha elástica e virou as costas, fim de conversa, disseram
dirigiu ao recepcionista entretanto regressado ao outro lado do bal- as costas franzinas.
cão. O recepcionista perguntou se era aquele senhor e ele abanou Ele olhou para o relógio, acendeu u m cigarro, os dias já eram
a cabeça indeciso, o h o m e m respondeu, nunca o vi na vida não de- mais pequenos, sem sol não se veria nada no parque, deixou-se
ve ser a m i m que procura e ele confirmou que não era. Chegaram cair no sofá, estava cansado, o recepcionista fora-se embora, pe-
mais homens que se olharam uns aos outros e o recepcionista gou novamente no postal, tens razão numa viagem perde-se tudo
explicou divertido a situação, é que este senhor anda à procura de menos a saudade que se tem de voltar, sentia que também tinha
uma pessoa de que não sabe o nome, eu avisei-o que ia ser difíeil perdido uma coisa muito importante apesar de não saber o que
e que íamos incomodar pessoas que, os homens olhavam para ele, era, abandonou a recepção, o escuro descia sobre as tendas, u m
nunca o vi mas se é para dar alguma eoisa posso ser eu, os outros casal comia iluminado por velas, não gostava da luz feita por velas,
riram-se, foram-se embora e ele ficou novamente entregue ao a luz amarelada e trémula do velório do pai, dos olhos da mãe na
recepcionista, fiz o que pude, disseram as mãos abertas do recep- noite do eorte geral de electricidade, a mãe levou-o à porta na p r i -
cionista. Não pode procurar em mais lado n e n h u m , é que sabe eles meira noite que dormiu em casa de Eva, a vela muda que os acom-
levaram-me ao hospital por causa deste pé, o recepcionista esprei- panhou acentuava a névoa dos olhos da mãe, não gostava dos
tou para o pé e ele eontinuou a falar, de certeza que se lembra, uma olhos tão baços perto dele, o brilho da chama ressaltava-lhes o des-
rapariga muito bonita, loura, u m miúdo gordo, o h o m e m tinha prezo para que ele mais tarde não se pudesse desculpar, u m a
uma tatuagem no braço, o recepcionista pegou em papéis que mulher que aceita u m h o m e m em casa só pode ser uma, nunea
estavam sobre o balcão, se tivesse c e m escudos por eada loura disse a palavra, certamente medo de se contaminar, de conspur-
bonita que passa por aqui estava rico, então miúdos gordos, já foi car a língua, não contes comigo, a porta fechou-se impiedosa, ca-
há algum tempo, já cá não devem estar, há gente que fica cá u m m i n h o u às escuras até alcançar a porta do prédio, as lanternas dos
mês mas há gente que não se demora, se eram quatro, fez u m gesto vizinhos desencontravam os círculos de luz no passeio, os vizinhos
c o m a cabeça eomo se o facto de serem quatro tivesse alguma discutiam animados o eorte geral de electricidade sem saberem
importância, fez u m balão eom a pastilha elástica e tornou ao que Eva esperava em casa por u m futuro que nunea teve, que ele
computador, olhe só se for este, o l h o u pensativo para o ecrã, só se não lhe deu, ninguém pode dar o que não tem, sem conheceram
forem estes, mas já cá não estão, foram-se embora há, fez contas, o desprezo da mãe, uma mulher que recebe em casa u m h o m e m
cinco dias precisamente, devem ser estes, o recepcionista batia sem ser casada, tornou-o a lembrar quando se divorciou, ninguém
com os dedos no balcão, não me pode dar a morada, não, isso não, peca sem consequências, e outra vez, não contes comigo, foi ter
disse o recepcionista cada vez mais orgulhoso porque tinha solu- com Eva apesar dos olhos agourentos da mãe, os vizinhos aumen-
cionado u m problema e arranjado outro de seguida, moradas, tavam o temporal que a televisão anunciara, os círculos de luz das
nem pensar, o senhor podia querer, o senhor podia ser u m , é muito lanternas sobrepunham-se, interrompiam-se, afastavam-se, os cães
perigoso dar as moradas dos nossos clientes, e se eu falar com o seu uivavam às lanternas e ao temporal, as sarjetas regurgitavam com
chefe, bem o chefe neste momento sou eu, o recepcionista deitou violência, foi a primeira noite em que dormiu com Eva, dormiu na

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noite seguinte e nas outras que se seguiram, ainda hoje dormiria se na vida, fugiu da água podre, passou por muitas tendas que esta-
Eva não tivesse encontrado u m h o m e m prático, o h o m e m mais vam presas do lado de lá do arame, u m h o m e m atiçava o fogareiro
prático que tinha conhecido, a mãe mudou a fechadura da porta com u m abano de palha, ao lado peixes que se prateavam à luz do
para o informar, não és bem-vindo a esta casa, apesar do azulejo candeeiro a gás, mais à frente juntou-se-lhe u m cãozito, olhou-o
que continuava na parede e que tinha escrito a azul, sê bem-vindo de perto e viu pulgas no dorso magro, tinha a certeza que as p u l -
a esta casa se és deveras meu amigo, entra, senta-te e descansa, co- gas saltariam para as suas pernas, ameaçou o cão com u m pon-
me à mesa comigo, a mãe discordava do azulejo mas nunca o reti- tapé, o cão ladrou-lhe, o h o m e m do fogareiro ficou entregue aos
rou da parede, quando se casaram Eva não foi de noiva, u m ves- peixes prateados, o pó da estrada secava-lhe a garganta, o cão
tido amarelinho e uma capeline, não levou bouquet, não tiveram acompanhava-o a uma distância ainda perigosa, não sabia que dis-
o bolo de andares terminado c o m noivos de plástico, casaram-se tância uma pulga saltava, os olhos do cão tão castanhos, andou
n u m balcão de conservatória em frente a u m h o m e m que tinha mais depressa, o cão desistiu dele, alcançou a paragem do auto-
u m fato de três peças e uma caneta cinza e prata, a ele faltava-lhe carro que o levaria de volta à cidade, pensamos que podemos fugir
o colete e a caneta, assinaram eom a do h o m e m do fato de três mas resta-nos andar às voltas, ando às voltas mesmo se caminho
peças, passaram três dias fora, a lua-de-mel de que Eva não se em linha recta, ando às voltas quando não te digo que não tenho
esqueceu, uma semana em casa e de novo o hospital, à noite ainda saudades tuas, uma ausência de amor rodeada de amor, não me
consertava os ossos das vizinhas precisadas, dois empregos e ele fazes falta, ainda bem que nunca me perguntaste se sinto a tua
quase sempre sem n e n h u m , nunca compraram casa, nem o con- falta, há muitas eoisas que nunca te consegui dizer e n e m sequer
junto de sofás, a máquina de café, ele pedia desculpa mas Eva ga- é por medo de te perder, antes fosse, não tenho saudades tuas,
rantia-lhe que mais tarde, durante muito tempo Eva acreditou que sabes que sou u m easo perdido, não sei por que não me levas a
mais tarde, saía do parque do campismo, ouvia o eco dos seus pas- sério, se algum dia me perguntares se me fazes falta, minto, mas
sos e não se atrevia a desafiá-lo mudando a orientação, a aragem ainda bem que não me perguntas, que não queres ouvir que não
trazia-lhe o perfume de Eva no casaco, as mãos de eera à procura tenho saudades tuas, ainda bem que precisas tanto como eu de te
dos defeitos, nada nesta vida existe sem defeitos, passou a entrada enganar.
do parque de campismo, é sempre triste ver u m casamento des-
feito, era o que a mãe costumava dizer dos outros casamentos que
acabavam, do deles nunca falou, o casamento deles tinha muitos
defeitos e não era triste vê-lo desfeito, podia ter-se sentado na
esplanada do parque para comer qualquer coisa mas inquietava-o
o charco que tinha visto do outro lado da vedação, uma elipse de
água podre, u m exército de mosquitos à espera da sua earne, olhou
outra vez para o relógio, era inútil contar o tempo mas o rigor dos
ponteiros situava-o na vida, o tempo contado dava-lhe u m lugar

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sítio luxuoso. Asenhoria lamenta não ter sabido isso quando a teve
sentada no sofá da sua pensão. A rapariga intriga-se com o facto de
a mãe só ter dois nomes e dos pais da mãe também só terem dois
nomes. Olha-a de forma diferente porque nunca conheceu n i n -
guém que tivesse apenas dois nomes. A mãe pereebeu que a
senhoria é viúva. Olha-a de forma diferente porque é uma mulher
só e a solidão mereee-lhe respeito. A mãe nunca ouviu falar do
sítio luxuoso onde a ex-mulher vive, a senhoria não sabe de eor os
signos e não liga ao facto da rapariga ser Escorpião, a ex-mulher
conheceu muitas pessoas apenas c o m dois nomes, a rapariga não
sabe nada, não ouviu nada, pensa que o filho tem que ter u m no-
me que não o envergonhe quando tiver de o dizer em voz alta
como lhe aconteceu agora.
A ex-mulher não consegue parar de olhar para a barriga onde
o funcionário, que está a l i para as identificar, termina a cresce o filho dele. Acende mais u m cigarro. A rapariga levanta-se.
tarefa e retira-se da sala rabiscando letras, assinalando cruzes em A ex-mulher tem vontade de colocar u m pé à frente da rapariga
impressos verde-clarinho. Por causa do erro, o funcionário foi ter para a fazer tropeçar. Se a rapariga caísse talvez a criança não che-
com elas à sala e agora tem nas mãos os impressos, bonitos papeis gasse a nascer. A ex-mulher não quer que aquela criança viva. A ra-
fininhos e engelhados com químicos negros arroxeados escondi- pariga abeira-se da janela. Podia empurrá-la, o pensamento tão
dos, espacinhos para dividir os nomes em letras maiúsculas, o fun- veloz ultrapassando a ideia de bem e de mal, podia empurrá-la, a
cionário leva os impressos pelo corredor, as folhas agitam-se nas ex-mulher assusta-se, tem que deixar de pensar nisso, não pode ser
copas das árvores. assim tão má, ninguém saberá o que pensou, acalma-se, ninguém
As quatro mulheres estão novamente sós depois de terem dito saberá que desejei empurrar a rapariga, a maldade é u m senti-
o nome, a morada, a data de nascimento, a filiação, o estado civil, mento que não precisa dos outros para existir, que pode morrer
o número, a data e o arquivo do bilhete de identidade, o telefone, em nós.
tudo o que o funcionário quis saber para as identificar. A mãe continua com os olhos fechados mas sem a expressão
A ex-mulher olha para a rapariga de forma diferente agora apaziguada dos que acreditam em Deus ou noutra eoisa qualquer,
que sabe o nome dos pais, uma morada e o signo. A rapariga é tanto faz, desde que o sofrimento desapareça. A ex-mulher não
Escorpião. Faz contas para apurar rapidamente a idade, mas olha-a compreende o sofrimento da mãe mas sempre o conheceu e tem
de forma diferente porque sabe que ela é Escorpião. A senhoria "ledo de u m dia sofrer assim tão profunda e inexplicavelmente.
reconhece o apelido da ex-mulher das capas de revista e espanta-se. O coração da mãe não bate descontrolado como o da ex-mulher
Olha-a de forma diferente porque ela é realmente rica e vive n u m porque há muito que adormeceu o coração. A mãe não sente nada

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pela criança que cresce naquela sala, ao pé dela, pela criança que
se completa segundo a segundo. Mexe-se à procura de outra posi-
ção, os ossos estalam contra o banco de madeira, a mãe leva as
mãos deformadas a cada u m dos rins. As outras mulheres perce-
bem a dor mas viram a cara sem complacência. Os ossos secam e
desfazem-se c o m a mesma fatalidade com que a criança se com-
pleta mergulhada no ventre da rapariga. Se a mãe não tivesse
adormecido o coração talvez ainda se pudesse salvar através da
criança que se completa ao lado dela. Mas a mãe quer que o eorpo
onde dorme o coração desista, é uma questão de tempo, quando
reza a mãe pede que venha depressa e doee, espera que o corpo
desista, de nada servirá amar a eriança, t u és ferro e eu sou aço,
foge diabo que te embaço.

Proeurou-a na cidade durante muitos dias. Se tudo aconte-


cesse eomo ele aehava que tinha que acontecer a rapariga bonita
também andava à proeura dele na cidade. Acreditava tanto que
assim seria que nos primeiros dias ficou desesperado por não a
conseguir encontrar por mais que andasse. C o m o tempo habi-
tuou-se a proeurá-la apenas pelo prazer da busea e quando quis
desistir já se tinha vieiado, o tempo por gastar é tão perigoso, o
tempo só existe para se gastar rapidamente, o tempo sobejava-lhe
de uns dias para os outros, mesmo se apanhasse uma bebedeira, se
entrasse numa igreja, se roubasse alguma coisa. Fazia qualquer
coisa para curar o enjoo de tantas sobras, o tempo por gastar é
muito perigoso.
Sempre que via alguém que se parecesse, ainda que vaga-
mente, eom a rapariga bonita o eoração batia mais depressa, as
pernas tremiam-lhe, eustava-lhe a respirar, sentia a eara a enrubes-
cer, mas apesar disso corria esperançado, aproximava-se, falava-lhe
c verificava que não era a rapariga. Aconteceu-lhe tantas vezes que
Com o tempo restou da rapariga bonita apenas uma ideia, uma

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ideia de beleza que ele continuava diariamente a perseguir, certo idiotas é que não têm segredos, respondia Eva e mudava de
que ideia e objecto coincidiriam quando a visse. assunto, as folhas das árvores caíram e os passeios atulhavam-se de
Acordava cedo, muito antes do despertador tocar, e corria folhas que ele pisava c o m satisfação, folhas de todas as eores e for-
para a rua, tinha que vasculhar urgentemente a eidade, sentia que matos, nunca se interessou por árvores, podia ter escolhido essa
ela estava perto, muito perto, procurou-a em todas as ruas, os pés tarefa, saber o nome de todas as árvores, ele e Eva na esplanada
eheios de bolhas de tanto andarem e mesmo assim c o n t i n u o u , apesar do mar tão agitado contra as escarpas, Eva punha-se a olhar
inventou jogos, viro esta esquina e ela há-de estar a l i , marcou em silêncio para a massa de água espumosa e dizia, não consigo
locais, u m parque, uma sala de cinema, uma igreja, marcou datas, viver longe da água, sou Peixes, ele ouvia-a sem lhe prestar aten-
dia vinte e dois, capieuas, dia justos como sete, traidores como ção, os olhos sempre atentos, procurava a rapariga bonita durante
trinta, marcou horas, dia oito às oito horas para sermos donos do os eneontros com Eva, a toda a hora, estás mais magro, Eva era pa-
i n f i n i t o , passou muitos dias à procura, doíam-lhe as pernas e ciente, pediam vinho tinto que Eva bebia com prazer, os lábios
mesmo assim continuava, dias inteiros em que não fez mais nada, cor de romã ainda mais generosos, tens a certeza que não me que-
também quase não comia, estava demasiado excitado c o m a res contar o que se passa, deseulpava-se, acho que nunea gostei do
tarefa que tinha para cumprir, uma missão, a cidade encheu-se de outono, é u m tempo cheio de morte, que disparate, ria-se Eva, os
gente para lhe dificultar o trabalho, já não havia ninguém em olhos parados nos dele à proeura do segredo, portavam-se como
férias, passaram muitos dias até começar a proeurá-la sem urgên- amantes, na esplanada quase todas as cadeiras viradas ao contrá-
cia, encarou aquela busca como uma obrigação que lhe podia rio, o vento a abanar os toldos, preciso tanto de água, repetia Eva,
tomar a vida toda, os regressados de férias retomaram as suas vidas se soubesses como me faz bem ver o mar, os dois sozinhos na es-
no ponto exacto onde as deixaram, era mais u m outono, a cidade planada sentados perto do mar, o tempo cada vez mais impiedo-
engarrafada de olhos e de passos, para ele era u m outono comple- so para os encontros furtivos de quem se portava como amantes, o
tamente diferente, tinha u m dever que lhe podia ocupar a vida céu muito escuro, a água a infdtrar-se no chão de madeira da es-
toda, chegava à noite muito cansado mas sentia-se bem, enfiava-se planada, seixos e algas e conehas partidas na areia, a cidade de
no quarto, quando a senhoria lhe fazia perguntas mentia, muito novo tão habitada, os velhos de janelas fechadas contra o frio, os
trabalho, a senhoria suspirava, ele adormecia e no dia seguinte cães escondidos nos vãos de escadas, nos saguões, os passos dele às
recomeçava tudo, mais u m jogo, dou dez passos e encontro-a, viro vezes desesperados, outras esperançados, entre o frio das pessoas,
aquela esquina, tinha no pé a cicatriz que ela lhe tinha deixado, as gaivotas inquietas, as mãos de Eva a baterem palmas para o cha-
u m eoração partido, a marca dela, a certeza que a encontraria. marem, de certeza que não tens nada para me dizer, nada, nunca
Eva também tinha voltado, a pele queimada pelas férias já faço nada de especial, Eva acendia mais u m eigarro, ele outro,
tinha embranqueeido, portavam-se como amantes, andas tão es- Eva rodava desconfortável a aliança, compunha o diamante do
quisito, dizia, e ele sem lhe contar o segredo, sempre calado ape- anel de noivado, o f u m o dos cigarros rapidamente desaparecido
sar da insistência de Eva, sei que me andas a esconder alguma coi- "o vento, e se a rapariga bonita aparecesse, os olhos dele encan-
sa, negava, nunca te escondi nada, não tenho segredos, só os fieados pelo nevoeiro, o nevoeiro que o cegava como o sol o cegou

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no verão, olhava para o dono da esplanada, ela beijaria aquele nomes, a morada, ainda rascunhou u m anúncio para pôr no jor-
h o m e m , sentia ciúmes, os eabelos louros fustigados por rajadas de nal, procura-se rapariga loura que esteve na praia no dia, riscava,
vento norte, t r u n f o , os peitozinhos redondos c o m os mamilos procura-se família que esteve no parque de eampismo de, desis-
espetados por baixo de uma eamisola de lã cor de m e l , a cara dela tiu, Eva só lhe falava de coisas que não o interessavam, nomeava
tornava-se a de todas as raparigas, sempre o perfume de eoeo, o os peixes do seu aquário, u m aquário que ia de parede a parede da
riso, de que se riem as mulheres, a chuva a cair no toldo da espla- sala grande, preciso tanto de água, se tivesse deeorado a matríeula
nada e no mar, a penugem loura escondida em meias de lã, a eor- do carro, Eva cada vez mais elegante, definitivamente livre do
rente de prata com o coração escondida, Eva com u m casaco e bairro, da vida que tiveram, do dia em que deixou as luvas de lã
umas botas que a água não manchava, Eva que se tinha tornado sobre os caixotes da mudança, as mãos de Eva já desabituadas,
impermeável à água desde que morava numa casa longe de tudo mesmo esquecidas, de eonsertarem ossos, mudámos Eva, todos
e perto do mar, apesar de repetir constantemente, sou Peixes pre- nós mudamos, és u m easo perdido, Eva nunca mais repetiu o que
ciso tanto da água, morava numa das casas que desejou ter eom disse no dia em que terminaram de encaixotar a casa, o dia em que
ele, costumavam passear por lá longe de tudo para Eva sonhar, entregaram a chave da easa deles ao senhorio, somos dois casos
gostava de morar numa casa destas, as casas defendiam-se do de- perdidos, t u por não me conseguires amar e eu por não conseguir
sejo de Eva eom grades pontiagudas, agora Eva morava numa deixar de te amar, Eva já tinha no dedo o anel de noivado, o pe-
daquelas easas, tinha u m jardim e uma piscina e u m comando queno diamante que os afastava para sempre, ele como sempre
para abrir o portão, ele ainda por lá passou muitas vezes, o tempo não respondeu, não sentia nada de espeeial, talvez u m alívio, Eva
por gastar fazia-o ir a todos os sítios, de noite havia sempre luz n u m nunea soube que ele se sentiu aliviado quando entregaram a
dos quartos, Eva ainda não conseguia dormir no escuro, ainda chave, acreditava que lhe fazia falta, foram tantos anos, uma ques-
tinha medo, a cigarreira e o isqueiro de ouro com as iniciais grava- tão de hábito, a rapariga bonita e m toda a parte, em todas as
das nada podiam contra o medo do escuro, o perfume que lhe mulheres, u m fantasma que lhe tinha deixado u m coração par-
esconde o cheiro a relva acabada de cortar também não, nunca tido cravado no pé.
lhe perguntou se é feliz, ele já comprou uma casa para morarmos
depois de nos casarmos, Eva tinha tanto receio de o magoar, ele
não respondeu, ele eomprou uma daquelas casas de que nós gos-
távamos, ainda bem, foi só o que lhe ocorreu, Eva ficou triste, não
te importas, não, Eva ainda mais triste, a rapariga bonita de vez em
quando aparecia para o sobressaltar, desaparecia quando apurava
os olhos, tinha-se tornado o seu fantasma, proeurava-a todos os
dias, sentia-a perto, Eva desconfiada dos olhos dele sempre tão
inquietos, não sei o que hei-de fazer contigo, és u m caso perdido,
Eva tinha razão, se não fosse u m caso tão perdido tinha pedido os

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nada u m do outro, portavam-se como estranhos mas nunca senti-
ram necessidade de se portarem de forma diferente.
O l h a v a m para a televisão enquanto almoçavam na mesa
posta com a toalha de pêssegos dourados, a toalha das visitas.
— A earne está muito boa.
Fingiu que não sentia o sabor a queimado e que a carne não
estava tão dura e seca — está tudo muito b o m — repetiu.
— O forno está meio avariado, mas como quase nunca o uso
não vale a pena mandar arranjar — disse a mãe impaciente por-
que queria ouvir as notícias na televisão.
Ele tinha gasto uma semana a preparar esta visita e estava
agora sentado ao lado da mãe sem coragem de olhar para as voltas
que a comida dava na boca dela, uma pasta branca que o enojava
e que de vez em quando ia parar ao prato quando a dentadura se
o Senhor reconheceu que a maldade dos soltava, nessa altura a mãe despejava a comida mastigada para o
homens era grande na terra, que todos os prato e depois colocava com destreza a dentadura no sítio certo,
seus pensamentos e desejos tendiam sempre caleava-a eom a língua e recomeçava a comer, dava voltas e voltas

e unicamente para o mal. com a comida e nunca mais olhava para a pasta mastigada na bor-

Gen.6,5 da do prato, ele tinha nojo, desviava os olhos para o ecrã onde o
olhar opaco da mãe se perdia, os olhos embaciados da mãe te-
miam as águas barrentas do rio que invadiram uma sala, a sala
Portavam-se como estranhos. Viam-se duas ou três vezes
mostrada na televisão podia ser aquela, a cristaleira e a ceia de Cris-
por ano em dias previamente marcados como este. A mãe tinha
to pendurada na parede eram iguais, o jornalista anunciou mais
feito anos na terça-feira mas convidou-o para almoçar no sábado
dois soldados mortos depois de u m curto intervalo, a mãe pegou
seguinte porque lhe dava mais jeito, isto se ele quisesse porque
no comando e m u d o u de canal, ele v i u as mesmas águas noutra
também se podiam ver noutro dia, não faria qualquer diferença, os
estação televisiva, uma escola com as carteiras empilhadas e u m
dias são todos iguais, ele aceitou de imediato o sábado e desligou o enorme atlas encharcado, o rio havia de regressar ao seu leito mas
telefone. N e m se despediram. 3fiuele mundo fiearia distorcido para sempre, miúdos juntavam-se
Fora destas duas ou três vezes em que se viam, falavam-se por 3 porta da escola e brincavam com a água que lhes entrava pelo
telefone muito raramente e apesar de se verem ou falarem tão pou- futuro, a mãe tornou a mudar o canal porque não gostava de notí-
co nunca inventaram qualquer desculpa, nunca se desculparam, eias repetidas, está tudo a dar a mesma eoisa, noutro canal encon-
conheciam-se o suficiente para saberem que não desejavam mais hou u m h o m e m angustiado, foi então que descobri que a m i n h a

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próstata, a sala asséptica de uma clíniea espeeializada, uma bata o jornalista disse muito obrigado e a câmara impiedosa fez desa-
branca imaculada, a próstata do desconhecido em debate, a mãe parecer o espeeialista dos mortos.
desinteressada carregou no comando, passou pela música de u m Depois de se servir a mãe perguntou-lhe se queria mais e pas-
violino, soldados mortos, a mãe disse que já os conhecia, já os tinha sou-lhe imediatamente a colher para a mão, não tinha fome mas
visto muitas vezes na televisão, baixou a cabeça para agarrar u m serviu-se de mais u m pouco de tudo, deixou cair bagos de arroz na
pedaço de pão e nesse instante apareeeram no ecrã outros mortos toalha, esborraehou-os de imediato entre o polegar e o indicador
que não estavam fardados, quando levantou os olhos a mãe ainda com receio que a mãe se zangasse, a toalha das visitas não se podia
se sobressaltou mas apercebeu-se que aqueles mortos vinham sujar, a mãe n e m sequer reparou porque estava atenta às come-
ainda de mais longe e sossegou, os mortos de muito longe e com morações de u m dia internacional.
roupas esquisitas ficaram no ecrã luminoso, mãe e filho continua- — Ainda estás no mesmo emprego? — perguntou a mãe,
vam a almoçar apesar dos mortos, no ecrã até a morte é eheia de sem desviar os olhos da televisão.
luz, a mãe suspirou, não gostava do aspeeto daqueles mortos, uma — Estou. Mato-me a trabalhar mas...
farda contribui muito para o bom aspecto, serviu-se de mais uma — Pagam-tebem?
fatia de carne assada, duas colheres de arroz braneo e duas folhas — Pagam. Pagam-me muito bem. Precisa de dinheiro?
de alface murchas, o jornalista apresentou u m h o m e m que devia — Não. Não preciso de nada. Para m i m sempre tive o sufi-
comentar as imagens porque podia haver mortos nacionais, para ciente.
reconhecerem os mortos as famílias servem-se acima de tudo de — Se preeisar é só dizer.
objeetos pessoais, uma aliança, u m relógio, u m colar, u m melro — Já te disse que não preciso de nada.
cantou na rua cheio de vida, noutros casos tem que ser pelos den- Ele queria falar do emprego mas a mãe fez-lhe novamente
tes ou impressões digitais, há situações em que tem que se recorrer sinal com a mão para ele se calar, ele levou à boea mais u m pedaço
à vala c o m u m , é uma questão de higiene, de saúde, a mãe eoncor- de carne mal saborosa, apeteeeu-lhe cuspi-la para o prato como a
dava, tem que ser, nunca é b o m quando há assim tantos mortos, mãe fazia quando se desentendia com a dentadura, se a mãe sen-
cada morto é u m caso, o h o m e m seria cangalheiro, interrogou-se tisse o mesmo nojo talvez, mas engoliu e l i m p o u os lábios antes

ele, a mãe continuava atenta à explicação, o h o m e m olhava con- de levar o copo à boca, viam televisão sem disfarçarem o silêneio

doído para a câmara, lembrou-se de outra entrevista que tinha entre eles, u m casal exibia uma abóbora, agricultura biológica, o
homem esforçava-se por falar rapidamente, em televisão os se-
ouvido há algum tempo, os mortos têm o seu feitio, uns são tão feios
gundos contam, aproveitamos a oportunidade para dizer a todos
que por muito que os arranjemos nunea fazem u m morto bonito,
US que nos estão a ver que não comprometam o futuro dos nossos
outros são teimosos, outros são tão bonitos que a morte lhes assenta
filhos, a abóbora aos pés do casal, o futuro garantido dos filhos,
bem sem fazermos quase nada, os mortos que gosto menos são as
abóbora-leão aos pés dos caçadores, depois de mais u m eurto i n -
erianças, há mortos que nos levam horas de trabalho para os apre-
tervalo a mulher que sem saber nadar salvou os seus poreos nas
sentarmos às famílias, aquele h o m e m queria continuar a falar mas
uheias da última noite, a mãe a fazer nova ronda aos canais, a dizer

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baixinho, não gosto nada da publicidade, na pensão os hóspedes siderou a hora certa u m b o m presságio para a tarde de sábado.
gostavam de ver os carros novos e as meninas do champô, a senho- Acendeu u m cigarro porque nunca pôde fumar em easa da mãe,
ria gostava das promoções alimentares, o regresso à voz emocio- pegou c o m jeitinho na caixa do bolo e p e n d u r o u no pulso es-
nada do jornalista em contraponto c o m a voz sensata da mulher, querdo u m saco onde trazia o perfume para que a mão esquerda
salvei-os porque precisamos dos animais, os porcos sobreviventes pudesse agarrar o ramo de rosas pálidas que a florista envolveu em
filmados n u m grande plano, a mulher a limpar as lágrimas, a água plástico transparente e fechou com u m laço muito vistoso. Puxou
levou-nos tudo, não teve medo uma vez que não sabia nadar, já mais uma vez o f u m o com força antes de apagar o eigarro com o
lhe disse que quem tem precisão não tem medo, a mulher limpava pé e dirigiu-se para a porta. Q u e m o visse pensaria que era u m
as lágrimas, o repórter disse o nome dele e do operador de câmara filho dedicado que ia visitar a sua mãe e eom este engano aos
e desapareceu c o m a salvadora de porcos, 13:43, tinha tempo, foi olhos dos outros veio o prazer de se pareeer eom quem nunea foi,
só para o gastar que preparou a visita eom tanta antecedência e de se aproximar duma pessoa que poderia ter sido.
cuidado, que eomprou u m fato novo para vestir no dia e u m per- O ramo das rosas pálidas bateu à porta e deixou-se cair ao
fume para oferecer ã mãe, que encomendou u m bolo de aniver- longo do corpo. E n d i r e i t o u a cabeça e esperou que a porta se
sário numa pastelaria, u m bolo que tinha de ser enfeitado com abrisse. O u v i u os passos da mãe do lado de dentro e ensaiou a cara
margaridas, a aniversariante gosta m u i t o de margaridas, nunca que devia ter quando a mãe o visse, inspirou-se na eara que os
soube de que flores a mãe gostava, e de massa de amêndoa re- desertores do bairro faziam quando os encontrava por acaso, caras
cheada a ovos, a aniversariante nunca gostou de pão-de-ló, claro vitoriosas por terem conseguido fugir para onde as casas são p i n -
que não sabia se gostava ou não, mais indicações, quilo e meio e tadas em vez de terem o reboco triste de cimento à mostra e onde
aquelas velas que não se apagam, mágicas, é isso mesmo que os esgotos não são riaehos de merda que correm livres por toda a
quero, velas mágicas, u m naperon dourado como os que estão na parte, os desertores fingiam que nunca t i n h a m ali vivido, não re-
montra, e já agora, desculpe lá, as letras, é que a aniversariante já conheciam ninguém, se alguém lhes falasse viravam a cara c o m
não vê bem, se não der muito transtorno letras grandes, se der mais desprezo, o mesmo desprezo que ele pôs ao olhar para a porta da
jeito o bolo pode ser quadrado ou rectangular se bem que a ani- mãe, a sua expressão estava perfeita, se a mãe não se tivesse demo-
versariante prefira os redondos, gastou tempo e o bloco de notas rado a abrir a porta tinha visto u m vencedor, ele distraiu-se com a
do empregado, na sexta-feira foi à pastelaria para verificar se não demora e quando a mãe abriu a porta viu-o de cabeça baixa h u -
t i n h a m feito o bolo c o m antecedência, u m bolo confeccionado mildemente regressado ao lugar onde pertencia, ainda tentou
de véspera era inaceitável, quando se tem tempo tudo se torna ina- livrar-se da verdade mas era tarde demais.
ceitável, ficou satisfeito quando lhe mostraram o bolo por corres- Logo que a viu deu-lhe u m beijo de parabéns não se impor-
ponder exactamente ao que tinha imaginado, a mãe havia de gos- tando por estarem encurralados entre a camilha de renda e a es-
tar daquele bolo e esse facto só o alegrava na medida em que tante das miniaturas de plástico. Sem dizer mais nada entregou-lhe
demonstrava que ele sabia como agradar à mãe ainda que isso lhe rapidamente o bolo, o perfume e as rosas pálidas e soube que
fosse indiferente. "unca poderia parecer u m filho dedicado porque era necessário
Quando chegou ao bairro eram exactamente 13:00. E con- flue a mãe também se parecesse com uma mãe com saudades do

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filho, uma mãe contente por ver o filho, e isso não acontecia. Tu-
do o que trazia nas mãos lhe pesou por ser tão inútil e teve a cer-
teza que quando a mãe pegou no bolo, no perfume e nas flores
sentiu o peso da mesma inutilidade, a úniea coisa que lhe interes-
sava era pereorrer a easa, eonfirmar que tudo se mantinha nos seus
lugares, u m móvel a menos, uma moldura fora do lugar e o pas-
sado tornava-se inatingível, reviu a manta aos quadrados sobre o
sofá que tinha o braço esquerdo frouxo, a mesinha das fotografias,
os passarinhos de loiça e u m tigre de vidro eom olhos horrivel-
mente verdes, o tempo continuava à espera dele, ainda podia es-
eolher tudo, ainda não tinha esbanjado o futuro, a mãe retirou a
jarra das chinesinhas para guardar as rosas pálidas, quando a flo-
rista lhe entregou o ramo pensou nas duas meninas de vestes lar-
gas que eonversavam na borda do lago e admiravam u m eisne, ofe-
receu as rosas às chinesinhas que a mãe inelinou para encher de
As quatro mulheres permanecem na sala. A senhoria t e m
água, mesmo inelinadas as chinesinhas continuaram a conversa
fome e propõe às outras uma ida ao refeitório mas ninguém lhe
eterna a que estavam obrigadas, o cisne impossibilitado de fugir
responde. A mãe tem os olhos fechados e não vê o raio de sol do
das únicas águas onde existia, a mãe colocou a jarra na mesinha da
meio-dia que lhe aqueee o regaço no qual descansam as mãos e o
eor da madeira que tinha as fotografias, aquelas pessoas sempre ali
rosário. A rapariga desapertou as sandálias e refresca os pés incha-
estiveram, ali ficariam para sempre, pegou no embrulho dourado
dos no chão de mármore pintalgado. Liberta das sandálias que
da perfumaria, não devias ter trazido nada, não preciso de nada, a
lhe marearam a carne, coloca u m pé de eada vez n u m determinado
caixa quadrada do bolo foi posta com cuidado em cima da mesa,
ele deixava que a casa o engolisse, as chinesinhas engoliram as mosaieo e calca-o com força. U m funcionário entra batendo c o m

rosas nas suas vestes de mangas largas e compridas, podia recome- a porta e as quatro mulheres assustam-se. O funcionário não é o
çar tudo, ah! mais u m perfume, disse a mãe sem qualquer emo- mesmo que detectou o problema da identificação n e m o que as
ção, ainda n e m usei os que me deste, não se lembrava de ter ofe- identificou. E outro, mas parece-se c o m os dois primeiros que
recido os perfumes que estavam expostos no psiché do quarto, também são parecidos entre si.
frascos cobertos de pó, e a mãe avisou que o almoço estava pronto. Isto está muito atrasado. Nestes casos podem ir comer ao re-
N o fim do dia, quando estava quase a adormecer, é que se deu feitório. T ê m aqui as senhas, estica-se para entregá-las, não pagam
conta que a mãe não tinha agradecido nada do que lhe oferecera "ada. A ex-mulher mexe-se irritada na cadeira e reeusa a senha.
apesar de se ter espantado com o bolo redondo coberto de marga- Uiz qualquer coisa que ninguém consegue perceber. A senhoria
ridas sobre u m naperon dourado, c o m velas mágicas, as letras sorri para o funcionário e estende a mão com o mesmo contenta-
grandes dos parabéns e massa de amêndoa recheada a ovos. mento eom que u m cão recebe alimento do seu dono. A mãe

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espera que chegue a sua vez, recebe a senha e guarda-a sem mos- passa mais depressa e sempre t e m alguma coisa que contar aos
trar agrado ou irritação. A rapariga que, eom vergonha, enfiara ra- hóspedes ou a algum jornalista que apareça, a senhoria lamenta
pidamente os pés nas sandálias não quer aceitar a senha porque que os jornais já se tenham esquecido do crime da sua pensão, tem
não gosta da comida de cantina. D i z que quer comer no bar. O esperança que se tornem a lembrar no julgamento, talvez mar-
funcionário responde que as senhas não dão para o bar e a rapa- quem de novo entrevistas, a fotografem, talvez lhe fixem a voz
riga insiste que t e m fome mas não gosta da comida de cantina, só naqueles gravadores pequeninos, a senhoria gosta dos jornalistas,
o cheiro a enjoa. O funcionário cala-se e a ex-mulher sorri quando respeita o trabalho de quem pergunta tudo, de quem está disposto
a rapariga aeeita a senha eontrariada. A ex-mulher sorri porque o a ouvir tudo, de qualquer maneira o sítio onde o erime aconteeeu
seu dinheiro lhe permite rejeitar o que não gosta. continua intacto, a mancha de sangue, quase u m altar, ainda está
O funcionário prepara-se para sair, mas a ex-mulher levan- tudo como apareceu na televisão, a senhoria tem pena que o pré-
ta-se, aproxima-se dele, está tão perto dele que lhe sente a respira- dio seja demolido e que nessa altura termine tudo.
ção na faee. Procura os olhos do funcionário e quando pergunta, O funcionário aproveita para se libertar da ex-mulher. Q u a n -
posso vê-lo, o funcionário afasta-se assustado c o m a voz, com os do é que o posso ver, ainda pergunta mais uma vez, mas o funeio-
olhos da ex-mulher. A quem, a ele, ele está cá não está, o funcioná- nário retira-se e os passos ecoam no corredor iluminado pela cla-
rio continua a recuar, está apreensivo, não compreende a ex-mu- rabóia, de longe o funcionário recomenda, os filetes não estão
lher que lhe procura os olhos, que respira demasiado perto da cara grande coisa, as bifanas comem-se melhor, e assobia porque a p r i -
dele, que lhe agarra o braço para o reter na sala. Não são permiti- mavera começou e as árvores-de-Judas floriram.
das visitas fora do horário habitual, mas eu quero vê-lo, tenho de
o ver agora, não tive coragem até hoje mas agora quero vê-lo. A
ex-mulher torna-se ameaçadora. O funcionário recua, já está do
outro lado da porta. Vou perguntar ao m e u chefe, mas no sítio
onde ele está, pareee-me, arrepende-se, vou perguntar ao meu che-
fe. Parece-lhe o quê, parece-lhe o quê?, vou falar c o m o m e u chefe
e já a informo.
A rapariga que se descalça novamente para eolocar os pés nos
mosaicos frescos pergunta, eu não tenho que o ver pois não, a
ex-mulher vira-se com tanta violência que bate sem querer no joe-
l h o da mãe. A mãe abre os olhos, mas desvia-os imediatamente
para a janela do saguão, suspira e torna a baixar a cabeça, fecha os
olhos, não quer saber o que se passa na sala, não quer estar ali ao
eontrário da senhoria que apesar da aflição que finge deseja que
alguém discuta, que se bata, se aeonteeer alguma coisa o tempu

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ajuda que não podemos desperdiçar, no café da estação a prima
que tinha o cabelo em forma de n i n h o de pássaro e u m vestido
amarelo m u i t o curto ofereceu-lhe u m bolo, nunca t i n h a visto
uma montra de bolos, o primo deu-lhe palmadas nas costas e caro-
los na cabeça, as migalhas do bolo eolaram-se à roupa, porta-te
bem, advertia o p r i m o , obedece ã tua mãe, rapazinho, que estou
de olho em t i , mais palmadas nas eostas, se fizeres alguma a tua
mãe diz-me e depois conversamos, ele abanava a eabeça c o m a
boca cheia de açúcar, o p r i m o deu-lhe mais u m earolo, para que
serve a família, rapaz, nunca mais o viu desde o café da estação, a
mãe nessa altura aereditava que ele podia ser alguém, o p r i m o
onde quer que estivesse estava de olho nele, para que serve a famí-
lia, rapaz.
A mãe sentou-se do outro lado do sofá, u m de eada lado, pro-
Mãe e filho acabaram de almoçar sem terem dito mais nada positadamente distantes sem terem que disfarçar qualquer proxi-
u m ao outro. Quando a mãe tirou os pratos da mesa, 13:32, ele midade, a mãe devia preferir que ele se fosse embora, apesar de
deixou-se ficar sentado a ouvir os pratos a empilharem-se na eozi- todos os esforços só conseguira ser ninguém, nunca mais v i u
nha, a artrose tinha tornado os gestos da mãe inseguros, queria aqueles primos n e m os outros que apareceram para o levarem ao
tanto fumar u m cigarro, procurou as duas janelas coladas ao tecto, enterro do pai, nem os que vieram almoçar numa páscoa, n e m os
numa cave ganham-se outros olhos, o chão transforma-se em céu, que passaram antes de emigrarem para o estrangeiro, a mãe fe-
ajeitou-se no sofá apoiando-se no braço frouxo, Eva tinha man- chou os olhos para descansar a refeição, foi assim que disse, vou
dado u m beijo de parabéns, todos os anos mandava u m beijo que descansar a refeição, e recostou a cabeça no sofá, a televisão con-
ele nunca entregou, o que se faz aos beijos que não são entregues, tinuou ligada, na sala u m cheiro desagradável, o que é feito de tan-
pensou em muitas coisas até sentir o frio que vinha das paredes de tos primos, podia perguntar à mãe que adormecia no outro lado
eimento, paredes ásperas e feias, devia ter trazido uma roupa quen- do sofá, nunca mais falaram nos primos nem na casa onde mora-
te em vez do fato que a mãe nem sequer comentou, a mãe conti- ram antes dos primos do café da estação, n e m no pai que conti-
nuava na cozinha, parece que sempre viveram aqui mas já mora- nuava na fotografia da mesinha da cor da madeira, era a única
ram noutro sítio, lembra-se vagamente, a mãe d e c i d i u que ele fotografia que tinha do pai, o eheiro estranho mais forte, a cabeça
tinha de ser alguém e nessa altura mudaram-se para a eidade, paf3 da mãe inclinava para o lado esquerdo, a respiração compassada
esta eave, apanharam o comboio numa manhã muito fria e ao fim do descanso da refeição, o peito que subia e descia fechava-lhe as
do dia os primos esperavam-nos na cidade, a justificação breve da pálpebras, mas que cheiro esquisito, o sono da mãe a adormecê-lo,
mãe, vão-se mudar, cedem-nos a casa e os móveis, é uma grande o fio óe saliva que escorria da boca da mãe a acordar-lhe o nojo.

roo 101
este cheiro, a cabeça da mãe tombou para trás e a boea eseanca- escreviam no eaderno dos meus eolegas, se ouvires dizer que
rou-se, daqui a pouco via as gengivas mirradas, daqui a pouco a morri não tenhas pena m e u bem, se morro é só por t i não é por
dentadura descolava-se silenciosamente, é gás, cheira a gás, o for- mais ninguém, e muitas flores desenhadas, muitos corações assi-
no anda meio avariado, quando ehegou a mãe abriu a porta do métricos.
forno e atirou u m fósforo que incendiou u m dos lados do forno, Não sei o que faça mãe, a mãe sempre soube o que se devia
u m barulho seeo, durante algum tempo a chama f o i amarela e fazer, o que ficava bem que se fizesse, ordenou-me que preparasse
irregular mas estabilizou-se n u m azul bonito, o outro lado do forno um saco com duas mudas de roupa, despaeha-te, gritou, o desgra-
reeusou-se a arder, a mãe enfiou à pressa a carne assada no forno pa- çado que m o r r e u sempre é o teu pai, amanhã ao princípio da
ra a aquecer, anda meio avariado, mais u m fósforo para incendiar tarde vêm cá buscar-te para o funeral, mas de manhã ainda vais às
o lado sem ehama e a porta do forno novamente fechada, se acon- aulas, o teu primo só pode voltar depois de amanhã, fieas a dormir
tecesse alguma coisa todos diriam que tinha sido u m acidente, o uma noite na casa da tua tia, vê lá como te portas, obedece à tua
pai olhava-o da moldura, o peito da mãe subia e descia assobiando tia, a fotografia na mesinha redonda da cor da madeira, o h o m e m
ar, o pai a aconselhá-lo da fotografia c o m o sorriso aparvalhado que tinha morrido de repente,
que ele herdou, vai-te embora como eu, entrega-a ao gás, podia e se a deixar morrer devagar, mãe,
ir-se embora eomo o pai foi antes de morarem nesta casa, a boca tinha preferido que o pai tivesse morrido n u m desastre ou por
da mãe escancarada e ele sem coragem para ficar, para se ir doença, qualquer eausa nomeável, morrer de repente sugeria-lhe
embora, o pai da fotografia apesar de tudo nunea me arrependi, o pouco mais do que a fotografia, também foi de repente que aquele
mesmo nojo de há bocado, se fosse embora era u m aeidente, nin- homem ficou ali para sempre com o braço sobre a mãe e o sorriso
guém podia provar que tinha saído depois de ter identifieado o aparvalhado na cara, a fotografia t a m b é m o t i n h a matado de
cheiro estranho, repente, t i n h a preferido u m desastre ou u m a doença por não
não sei o que faça, mãe, saber imaginar o de repente, atropelado, quando os travões come-
há muito tempo que não sei o que faça mãe, o meu pai soube çaram a chiar o h o m e m deixou de sorrir eomo na fotografia, o
o que fazer, é certo que não adiantou muito, pouco depois de nos condutor ainda tentou guinar o volante mas o h o m e m fieou tão
ter deixado, o teu pai morreu, n e m sequer esperou que eu termi- parado no meio da estrada como está parado há anos na fotogra-
nasse de lanchar, o teu pai morreu repetiu julgando que ele não a fia, a surpresa do h o m e m por ser atropelado, h o m e m e surpresa a
tinha ouvido, não queres saber como foi, quero, foi hoje de manhã morrerem ao mesmo t e m p o , o condutor a sentir o embate do
de repente, até nisso aquele desgraçado teve sorte, ele ainda teve ^orpo, o fato da fotografia ligeiramente ensanguentado, as marcas
esperança que o pai voltasse, que deixasse de ser o h o m e m da foto- fios pneus na estrada, u m acidente seria fácil, de repente não,
grafia, p e r g u n t o u , mas estava doente, se já te disse que foi de leva-se sempre algum tempo a morrer, mãe
repente como é que estava doente, a mãe não reparou que tinha uma doença, u m ataque cardíaco também seria mais fácil, os
feito cantar as palavras, as meninas do liceu faziam cantar as pala- filmes ajudam muito a imaginação, uma dor aguda que lhe dila-
vras para os namorados, nunca namorei nenhuma, mas lia o que tava os olhos semicerrados da fotografia por causa do sol, a boca

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comicamente aberta, a mão que estava sobre os ombros da mãe a giz pela sala, o meu eolega no beiral da janela, a professora disse
calcar o peito, os olhos mais esbugalhados e a boca mais torcida que falava eomigo no fim da aula e que não podia brincar c o m coi-
nunca o sorriso aparvalhado da fotografia, as últimas palavras ten- sas sérias,
tadas e nada, o mesmo silêncio da fotografia para sempre, não se brinca c o m coisas sérias, mãe
de repente é apenas u m fechar de olhos, mãe, ou u m trope- não estava a brinear, ia ao funeral do m e u pai c o m o p r i m o
ção, u m gesto que habitualmente se faz mas que incompreensi- como estava combinado, no dia seguinte o p r i m o apareceu eom
velmente se torna o último, se a mãe morresse sentada na máqui- a mulher, foram simpáticos, disse à professora que voltava no dia
na de costura que lhe embaciou os olhos morria de repente, e voeê seguinte, a professora mandou-me calar, no f i m da aula, tornou
não vai ao funeral, ainda lhe perguntei, não queria ir sozinho, há a dizer, eonversamos no fim da aula, os meus eolegas riam-se bai-
muito que enterrei aquele desgraçado, mas tu és filho dele e tens xinho, agitavam-se nas earteiras e quando tocou, os que passaram
que ir, é dele a tua feitura, eu já o enterrei há muito tempo por m i m fizeram-me sinais, t i n h a m apreciado o que tinha feito,
não sei o que faça, mãe encorajavam-me, nesse dia f u i quase u m herói, os meus colegas
nunca falámos sobre a morte do m e u pai, n e m lhe contei que pensaram que estava a gozar a professora, eomo se eu alguma vez
não consegui adormecer c o m a excitação da viagem, nunca tinha me atrevesse, os meus colegas orgulharam-se de m i m , este gajo
ido para tão longe e nunea mais tornei a ir, nunca tinha ido a um tem cá uma lata, a professora avisou-me que era muito feio m e n -
enterro, para ser totalmente sineero a morte do m e u pai não me tir e que ia ehamar o m e u pai para que ele soubesse como eu era
ineomodou muito, apesar de mais tarde ter querido que ele vol- cruel,
tasse para nos levar do bairro, apesar de o ver todos os dias na mesi- se me for embora também me acha cruel, mãe,
nha das fotografias, lembro-me que tive medo de sonhar eom ele a professora deu-me uma segunda oportunidade, se pedisse
morto, estava ansioso c o m a viagem, naquele dia devia ter-me dei- perdão e me mostrasse arrependido esqueeia tudo, insisti que era
xado faltar às aulas, se me tivesse deixado faltar às aulas talvez eu verdade e a professora impacientou-se e agarrou-me com muita
tivesse sido alguém como a mãe tanto queria, força no braço, pensas que me enganas, se o teu pai tivesse mesmo
acordo-a ou deixo-a morrer, mãe, morrido estavas eom essa eara,
talvez não ficasse agora tão indeciso, na última aula da parte se a deixar morrer que eara ponho, mãe,
da manhã, era a de matemática, copiei os exereícios para casa e brincar c o m a morte é u m pecado grave, com a do pai u m
por me julgar importante naquele dia disse à professora que ia fal- pecado gravíssimo, a professora não sabia que eu tinha aprendido
tar à aula da tarde e no dia seguinte por eausa do funeral, a profes- os pecados na catequese, matar era u m peeado de bradar ao eéu,
sora ficou muito séria, foi a primeira vez que olhou tanto tempo bavia uma lista que ainda hoje sei de eor, se não pedes deseulpa
para m i m , disse que falava comigo no fim da aula e ao fechar o 'mediatamente informo o reitor e vamos ver se eontinuas a achar
parêntesis partiu o giz que g u i n c h o u no quadro, sentou-se na graça à brincadeira, continuei calado, o resto já sabe, foi chamado
secretária e chamou u m colega meu para apagar o quadro, tínha- 30 liceu, a professora queria apurar até onde ia a m i n h a maldade,
mos que bater o apagador c o m jeitinho para não espalhar o pó do o meu pai não pôde ir ao liceu como a professora desejava, tinha

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morrido mesmo e os mortos são muito difíceis de convoear, foi vo- os meus colegas riam-se e abraçavam-me, enganaste-nos b e m ,
cê que disse à professora que era verdade, não deve ter sido fácil, a nunca pensámos que fosses eapaz, até te achávamos u m bocadi-
professora estava muito exaltada quando me deixou, que raio de nho, mas afinal, e olhavam uns para os outros surpreendidos, u m
mentira para inventares, não sabes que Deus eastiga quem mente deles i m i t o u a professora a andar, uma vaca n u m pasto, outro a
e o teu pai pode morrer mesmo, ter sido de repente prejudieou-me, limpar os óculos suspensos na corrente prateada, outro a ditar os
se tivesse pormenores de u m acidente ou o nome de uma doença, exercícios, raramente me senti tão bem, mas depois a mãe foi à
intoxieada com o gás de u m forno que anda meio avariado, escola e estragou tudo, a mãe estragou tudo, foi lá e transformou-
mãe -me n u m monstro, os meus colegas quando souberam a verdade
a mãe foi comprar a fita preta que amarrei no braço, obri- afastaram-se de m i m para sempre, ainda tentei aproximar-me mas
gou-me a andar c o m o f u m o durante o tempo estipulado, n e m um eles fugiam repugnados, amedrontados,
dia a mais n e m a menos, a mãe sabe sempre o que se deve fazer, se a deixar aqui os meus colegas já não se podem afastar, mãe
agora que estás de luto tens que, a professora f i c o u a abanar a o chefe de turma conveneeu-os que eu era u m animal, pior
cabeça e inspirou tão fundo, os pulmões cheios de ar, o gás a alas- que u m animal, o pai dele morreu mesmo e o parvalhão riu-se
trar no seu corpo, para o teu bem espero que seja verdade, se for connosco a fazer de conta que era mentira, gozou a professora,
mentira vou ao reitor pedir que sejas expulso para nunca mais nem u m animal era capaz disso, os outros concordaram assusta-
inventares uma mentira como esta, quando a professora se afas- dos, a mãe estragou tudo quando foi ao liceu, se tivesse dito que o
tou os meus eolegas rodearam-me satisfeitos, levaram-me ao meu pai estava zangado e que me ia moer de tareia, que eu era tão
bufete, pagavam-me o que quisesse, ainda pensei que fosse por ruim que os eastigos não serviam de nada, n e m mesmo as nódoas
causa de o meu pai ter morrido, mas era u m prémio, tinha desa- negras do cinto nas costas, se a mãe naquele dia tivesse mentido
fiado aquela vaca que andava a pedi-las há muito, foi o que eles dis- talvez a m i n h a vida tivesse sido diferente, u m aluno expulso pelo
seram e eu eoncordei, imitaram a voz da professora e eu ri-me por- reitor ganha o respeito dos eolegas, ganha o m u n d o , penso que
que eles t i n h a m muita piada, essa foi a m i n h a única oportunidade de ser alguém como a mãe
é pena que u m forno meio avariado não tenha piada, mãe queria, no ano seguinte teria corrido tudo bem, sempre que eu
os meus eolegas orgulharam-se de m i m , respeitaram-me, passasse os outros diriam em voz baixa, foi este que foi expulso no
não podia voltar atrás, convidaram-me para sair eom eles depois ano passado, já não tinha que provar nada, talvez conseguisse ser
da aula, foi a primeira e única vez que os meus colegas me convi- eleito chefe de turma, se fosse eleito seria convidado para as festas,
daram, foi por isso que cheguei tão atrasado a casa, os primos já talvez as raparigas do lieeu em frente quisessem namorar comigo,
estavam zangados, fartos de esperar, a mãe ralhou-me mas para teria corrido tudo bem, a bravura aprende-se quando se tem ho-
m i m já era tudo mentira, o m e u pai estava vivo, tanto me fazia "lens para ehefiar, foi o que me disseram na tropa, u m h o m e m
uma coisa ou outra e quis que fosse mentira, imitei a professora, sobrevive com pão e o respeito dos seus semelhantes, não preeisa
pensas que me enganas, se o teu pai tivesse morrido n e m conse- fie mais nada, na tropa não falavam de Deus, a fórmula era dife-
guias falar, acrescentei ameaças que a professora poderia ter feito, tonte da que tinha aprendido na catequese, de qualquer maneira

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a mãe estragou tudo, no lieeu n e m nunea mais f u i o que costu- tava, estás a ver, hão-de construir ali a barragem, eu via o m i j o
mava ser, já não era invisível, todos se afastavam, uma doença espumoso dele saltar sobre a terra seea e veio-me também a von-
eontagiosa de que fugiam c o m medo, as professoras comentavam tade, o esguieho do primo descrevia uma trajectória tão perfeita,
pensando que não as ouvia, é muito estranho, parece anormal, tive medo que o m e u m i j o não saltasse em arco sobre a terra seea,
ficaram sempre com medo de m i m , quando entrei na earrinha do que não fosse tão sonoro, além disso tinha que aeabar de me ves-
p r i m o estava satisfeito, ainda não sabia que a mãe iria ao liceu tir, o primo sacudiu a pila e entrou na carrinha a cantarolar, pas-
estragar tudo, sou as mãos pelas pernas da mulher que o afastou, eu tinha von-
acordo-a ou deixo-a morrer, mãe tade mas o primo pôs a carrinha a trabalhar, a carrinha começou
a earrinha era de caixa aberta e eu ia na carroçaria porque na aos solavancos, o f u m o preto de gasóleo, sobe rapaz que estamos
cabina ficávamos os três muito apertados, eles feeharam os vidros atrasados, c o m a roupa nova não podia ir lá atrás, apertámo-nos os
para se protegerem do vento, u m ar muito quente que me espevi- três na cabina, ainda é pequenito, disse a mulher, se fosses tão gor-
tava o corpo, escolhi ir de costas para o destino, estava contente, do como o teu primo não cabíamos, e riu-se muito, se fosses tão
sentia-me b e m , nunca t i n h a visto tantos fios de eleetricidade, gordo como o teu primo, acabei de pôr a braçadeira já com a car-
metros de fios arqueados ao correr da estrada, árvores, amendoei- rinha em movimento, eles não sabem que vi a mão do primo no
ras, disse depois o primo, oliveiras, disse a mulher, árvores, árvores pescoço da mulher, mas t u gostas de gordos, não é, riu-se o primo,
que estranhamente sobreviviam naquela terra tão seea, gretada, é só peso, respondeu a mulher, seguimos viagem, pouco depois a
povoações, velhas sentadas nas soleiras das portas, crianças a ace- mulher adormeceu, o p r i m o eonduzia c o m as mãos sobre o
narem para a carrinha, o ar veloz quase irrespirável, ergui a cabeça volante e os olhos na estrada que não parava de aparecer, não sabia
de forma a ver o céu que andava sobre a m i n h a eabeça, ninhos que existia tanta estrada para andar, a vontade era cada vez mais
c o m cegonhas pasmadas sobre eles, nunca tinha visto cegonhas, forte, pareeia que ia rebentar, já não conseguia olhar para os ban-
acho que nunca mais tornei a ver, as tábuas do chão da carroçaria dos de andorinhas que o primo descobria no céu, apertei as per-
aleijavam-me, pus-me de joelhos eontra a grade, ao longe mulhe- nas para matar a vontade, o p r i m o cantarolava, a gravata sufo-
res formigas em carreiro por caminhos estreitos de terra, pó e céu, cava-me, mais u m pouco e molhava as calças todas, a cabeça
tornar ao pó a que todos perteneemos, mãe adormecida da mulher acompanhava os solavancos da carrinha,
a carrinha parou mais uma vez, o p r i m o saiu e gritou por senti o líquido quente a fugir de m i m , pedi ao primo para parar, a
m i m , rapaz, apronta-te que estamos a chegar, tenho de ir ali mijar, niulher acordou assustada, a carrinha entrou pela berma levan-
virou-se para a berma e gritou para a mulher, não queres esticar as tando m u i t o pó, saí rapidamente, o p r i m o estava espantado, o
pernas, a mulher não lhe respondeu, tirei o pequeno saco e saltei líquido quente nas cuecas, pelas pernas abaixo, abri rapidamente
da carrinha, o p r i m o chamou-me, chega-te aqui, rapaz, aproxi- 3 braguilha e puxei a pila para fora mas não saía uma pinga, tinha
mei-me, tinha que vestir a roupa do funeral, calças pretas, camisa 3s cuecas e as calças molhadas, não queria que eles soubessem,
branca e gravata preta, não me podia esquecer da braçadeira, o fiueres vomitar perguntou-me o p r i m o , o p r i m o deu-me u m a
primo segurava na pila c o m a mão direita e com a esquerda apon- ^'fcelente desculpa, baixei a cabeça e fiquei na posição de vomi-

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tar, o p r i m o gritava, então isso vai ou não vai, continuava de de m i m , aproximei-me do morto e encontrei o h o m e m da fotogra-
cabeça baixa e a mão sobre o estômago, n e m o p r i m o n e m a fia, eram iguais, na verdade o morto era mais severo, estava zan-
mulher se aproximaram de m i m , nunca souberam que não vomi- gado com a morte, o fato era semelhante, se o morto se risse da sua
tei, disse-lhes que era melhor ir na carroçaria, prometi-lhes que condição, se entrasse sol dentro do quarto, se tivesse o braço
tinha euidado, o p r i m o encolheu os ombros e eu subi para a car- erguido acima do ombro, se tudo isso acontecesse, o morto era
roçaria, a carrinha r e c o m e ç o u a andar e tive esperança que o igualzinho ao h o m e m da fotografia, tinha a cor amarelecida do
vento me secasse as calças, fiquei de cócoras muito tempo até que papel e a rigidez do vidro da moldura, a velha que chorava mais
a vontade regressou devagarinho, proeurei uma fenda entre as do que as outras levantou-se para me abraçar, disse que era a
tábuas e agachei-me, de olhos feehados c o m a pila na mão dei- minha avó, os meus braços ficaram caídos, as outras mulheres dis-
xei-me escorrer sem sentir que o vento me devolvia o mijo, seram que eu era tão parecido c o m o morto que lhes fazia impres-
quando acabei l i m p e i a cara e os sapatos c o m as mãos e pus-me de são, não havia flores, •
pé para que as calças secassem mais depressa, os fios de electrici- prometo que lhe encho a casa de flores, mãe
dade à beira da estrada, continuámos até que nos aproximámos de a sua morte pode cheirar a flores, as flores hão-de apagar o
uma povoação onde a carrinha abrandou para se enfiar numa rua cheiro a gás, uma mulher pegou-me no braço e mandou-me dar
estreita, as calças estavam húmidas mas ainda não cheiravam a um beijo ao meu pai para me despedir, dei-lhe u m beijo para me
m i j o , o p r i m o parou a carrinha mesmo e m frente a u m a casa lembrar dele, o meu pai tinha a cara gelada e a barba mal feita,
pequena toda pintada de branco, a mulher abriu a porta da carri- naquele momento pensei que o m e u pai tinha a barba mal feita e
nha, preparei-me para saltar, os homens todos de preto conversa- que nunca mais se podia barbear, ao perto a morte era azulada e
vam e m roda à porta da casa, saltei da carroçaria e os homens cheirava m a l , afastei-me e outra mulher ofereeeu-me biscoitos, a
empurraram-me para dentro da casa depois de me terem esten- morte cheirou a manteiga e canela,
dido as mãos, eumprimentei-os c o m o mijo entranhado na pele, não sei o que faça, mãe
passei por uma sala aeanhada onde as mulheres choravam e che- esfreguei os lábios com muita força para os limpar da morte,
guei ao quarto, penso que era o único que a casa tinha, e vi o morto trinquei u m biseoito que tinha forma de u m oito, a morte soube a
sobre a cama, manteiga e eanela, o biscoito afastou o travo da morte, fiquei com
os mortos já não se velam e m easa, mãe outro biscoito na mão, a morte empapou-se na m i n h a boca até
numa mesa de madeira eolada à cama ardia u m candeeiro de que a quis cuspir, a luz consumia o azeite, o tempo esgotava-se,
azeite com três pavios, aos pés do morto outro, não havia flores, nem a morte dura para sempre, mãe
sentada por baixo do Cristo na cruz estava uma velha, era uma a m i n h a avó tinha regressado ao mesmo lugar c o m cara e
velha igual às outras só que chorava mais, mandaram-me aproxi- oorpo contorcidos numa pintura de igreja, uma mulher mais nova
mar do morto e eu obedeci, o cheiro do m i j o fermentava nas mi- 3braçou-me, aproveitei para roçar os meus lábios pelo braço, pre-
nhas mãos, foi quase como há bocado com o cheiro do gás, u m chei- oisava tanto de sentir carne quente, fiz do biscoito u m amuleto
ro desagradável que não identifiquei logo, u m cheiro que vinha fiue apertava c o m m u i t a força, as pessoas i a m e v i n h a m , toca-

uo 111
vam-me, agarrei-me ao amuleto, hoje sou tão parecido com o mulheres moviam-se n u m únieo passo e vestiam-se numa única
morto, tornei-me cada vez mais parecido, as sobrancelhas, a covi- cor, a mancha preta avançava para a igreja, todas as easas fecha-
nha do queixo e as mãos traçadas sobre o peito como ainda faço ram as portas à morte, os homens caminhavam com os chapéus
para adormecer, naquele dia não me apercebi que éramos tão nas mãos apesar do sol, arfavam desesperados no c a m i n h o
pareeidos, o azeite ardia, as pessoas começaram a inquietar-se íngreme, suavam, foi u m alívio quando entrámos na igreja fresca
eom o atraso do padre, por onde é que andará, perguntavam e escura, todos os presentes descansaram na última ida daquele
ansiosos, andavam de u m lado para o outro, fugiam da morte, corpo à igreja, a urna foi colocada perto do altar, as mulheres can-
tenho de me ir embora, mãe taram, tirei os pés dos sapatos novos, fechei os olhos, passou tempo
o padre chegou, vinde a m i m , vós todos os que vos afadigais até que alguém me empurrou para a comunhão, no regresso ao
e andais sobrecarregados, vinde a m i m , e todos os presentes se des- banco passei pelo morto c o m o Corpo de Deus colado no céu da
viavam, aquele sono profundo era para sempre, o padre aspergiu boca, descobri uma santa que nunca tinha visto, tenho descoberto
o morto com água benta e as pessoas aproveitaram os salpicos para tantas santas ao longo da vida mas nunca lhes sei os nomes, o
se benzerem, o padre rezava mas n e m sempre se entendiam as padre aspergiu novamente o morto e depois incensou-o, as vozes
suas palavras, perante a morte responderam sempre em uníssono, recomeçaram em uníssono, somos pó semelhantes ao feno e à flor
a morte leva mais faeilmente uma voz solitária, todos receavam do campo, na procissão para o cemitério as vespas eercaram-nos,
que a morte os descobrisse e repetiam em uníssono, que te rece- naquela altura ainda não tinha medo dos insectos, o acólito parou
bam no paraíso, já t i n h a m ensaiado noutros velórios, n e m uma à porta do cemitério para que o padre dissesse, esta é a porta, os jus-
voz isolada, o padre falou para que todos o entendessem, têm tos entrarão por ela, o morto foi colocado no túmulo, foi aí que as
mãos e não palpam, têm boca e não falam, têm ouvidos e não mulheres se deseoneentraram para gritar, puseram-me uma pá
ouvem, os seus ídolos são ouro e prata, e todos numa única voz nas mãos c o m que atirei terra, u m som seco sobre a madeira e
mandaram a morte embora, que te recebam no paraíso, tinham mais nada, no monte de terra que se ia formando descobri bichos
de pôr o morto na urna, os homens abeiraram-se da eama quando escondidos, foram eles que receberem o corpo bento e incensado,
chegou o carpinteiro com a caixa de madeira clara, a morte chei- atirámos terra até que o caixão desapareceu, tínhamos os gestos
rou bem, a madeira, f u i para a rua, as vozes continuaram ame- coordenados, no fim o morto era apenas aquele monte de terra,
drontadas em uníssono, ninguém se atrevia a desafiar a morte, as sobre o monte de terra as mulheres pararam de chorar e coloca-
minhas pernas tremiam e apertei mais o m e u amuleto, u m oito ram flores do eampo em leque sobre a terra, o eterno descanso
deitado, u m infinito imprestável, mas dos muitos eheiros que a deve depender da maneira como se colocam as flores
morte do meu pai teve o mais forte foi o do mijo, u m b o m deseanso, mãe
apesar de tudo a morte é tão solitária, mãe a mãe mexeu ligeiramente a cabeça, mas eontinuou a dor-
fizemos u m cortejo a pé pela aldeia, à frente da urna u m "•ir, a boca escancarada, as pernas esticadas c o m as varizes tão
h o m e m abria caminho com a cruz, acompanhei a urna mas não 3ZUÍS, pequenos rios em relevo sob a pele engelhada, a televisão
a carreguei porque era m u i t o f r a n z i n o , foi o que disseram, as r^ontinuava ligada, o passado regressava, os olhos da mãe embacia-

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dos na máquina de costura, a mãe não nasceu com os olhos opa- dadeiramente pertenço, apesar de já não ter o m e u pijama do-
cos que o confundem, os olhos velaram-se eom os enxovais das brado no armário, podíamos ficar a ver televisão até se retirar para
noivas que v i n h a m de fora do bairro, traziam peças de pano as suas orações, nunca mais me deixou transformar este sofá do
braneo que a mãe transformava em lençóis bordados para as noi- braço estragado na m i n h a eama, adormeeia c o m o barulho da
vas se oferecerem aos maridos, entregavam-se sobre as flores bor- chuva cinzenta no ecrã, esperava pela lua, às vezes a lua aparecia
dadas que cegaram os olhos da mãe, os olhos encheram-se de flo- nesta casa onde o céu é chão, houve uma noite de lua vermelha,
res bordadas até não conseguirem ver mais nada, este é o lençol uma lua cheia de vermelho, os meus sonhos de agora não têm
das núpcias mostrava a mãe e as noivas coravam, nunca percebi a vista para a lua, se me deixasse ficar talvez,
satisfação daquelas eriaturas transitórias, nunca percebi a lingua- não morra assim na m i n h a eama, mãe
gem dos bordados, fundos ajourados, ponto de eetim, as noivas levantava-me bem disposto e dobrava os lençóis pelos vincos
escolhiam desenhos para toalhas de mesa, em ponto de Assis, do ferro para os guardar, levantou-se devagarinho para não aeor-
mais flores e mais passarinhos numa inocência enjoativa, a mãe a dar a mãe, u m forno meio avariado é u m acidente, ninguém me
encher os riscos a lápis c o m linhas de cores, as noivas diziam as ini- pode acusar de nada, todos os dias acontecem acidentes, a mãe
ciais dos nomes dos noivos, o monograma era bordado no peito do estremeceu e abriu os olhos, aeordou sobressaltada porque sentiu
futuro marido, u m roupão com u m eme e u m efe entrelaçados, o um estranho a andar na sua easa, onde vais, a lado n e n h u m , dei-
pé da mãe no pedal e a máquina na lengalenga, não posso conti- xe-se estar a descansar, a mãe endireitou-se, abriu e fechou as
nuar a sustentar-te, estou eansada, quadrículas pela sala, dese- mãos, deixe-se estar, mãe, a mãe ensonada a esfregar a perna
nhos aumentados e diminuídos, sacos de ir ao pão, bolsas de guar- direita, esta perna fica-me sempre dormente, e se dá conta do
danapos, tudo em verde-clarinho que é a cor da cozinha, tudo em cheiro a gás, tenho de fingir que não me apercebi, a mãe bocejou,
rosa que é a cor da sala, as transitórias criaturas transitoriamente os olhos sonolentos à procura da televisão, a mãe a reencontrar-se
felizes, quando tinha a tua idade já tu tinhas naseido, as criaturas numa corrida de carros, e se não dá conta do cheiro do forno meio
passado algum tempo regressavam com u m amargo definitivo e avariado, a mãe pergunta-lhe quando o vê a olhar para o relógio,
eom mais pano, pediam babetes em ponto cruz, cueiros, favos, a estás eom pressa, a mãe parece que não nota o eheiro esquisito,
mãe abriu os olhos compôs a dentadura e disse que lhe estava a teve medo que ficassem ali os dois para sempre, foi mais forte do
saber bem descansar, que ele, a mãe não sente u m eheiro diferente, a mãe franze o nariz
descanse para sempre, mãe e boeeja novamente, é do forno, acontece sempre isto, o canaliza-
nesta easa só me pertence o passado, a mãe manda-me estar dor já cá veio, o forno anda meio avariado, daqui a pouco já passa,
quieto para eu perceber a m i n h a condição de visita, daqui a pouco se não estivesse tanto frio abria-se a janela mas daqui a pouco já
convida-me a sair a pretexto de u m cansaço que lhe dá sempre que passa, vamos abrir o bolo?
cá venho, já n e m se lembra de cozer castanhas c o m erva doce, Quando finalmente se libertou da dormência do sono, a mãe
não me convida para jantar, não me deixa dormir aqui uma noite, foi até à cristaleira e tirou de lá uma faca muito prateada, quando
uma única noite, a mãe não sabe, mas este é o único sítio a que ver- ^ S'iu c o m a faca brilhante na mão ainda suspeitou que a mãe

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tivesse adivinhado os seus pensamentos de há poueo, já que estás lha, claro que sim, continuou a responder às perguntas da mãe
com pressa não quero prender-te mais tempo, tens a tua vida, não, que o ouvia atentamente e isso dava-lhe ainda mais prazer que a
não tenho pressa, deixe-se estar, a mãe estava a dormir, só ia tomar doçura do bolo na boca.
u m café, queres u m café, a mãe, definitivamente aeordada, afas- Tenho a certeza que vai gostar dela, é mais nova do que eu,
tou-se e pôs água ao l u m e para o café instantâneo, vamos cortar o mas se quisermos ter filhos até é melhor, olhe foi ela que eseolheu
bolo, tem de apagar as velas, a mãe abanou a cabeça, se ealhar o perfume que lhe trouxe, riu-se embaraçado, se é para uma se-
contrariada, se calhar divertida, ele afastou uma margarida e espe- nhora de idade leve este que é suave, jasmim e folhas de fam-
tou as duas velas no centro do bolo, acendeu-as, nada de cantorias, broesa, a empregada da perfumaria aconselhou-o e ele aceitou o
a mãe soprou e apagou as duas velas sem dificuldade, as velas rea- frasco que estava no psiché, as senhoras idosas apreciam fragrân-
cenderam-se, são velas mágicas, lembram-se de eada coisa, e tor- cias leves, as mais pesadas dão-lhes dores de cabeça, são mais para
nou a soprar, as velas reacenderam-se e a mãe impaciente, eomo gente nova que gosta de sair à noite, ambientes c o m f u m o , ele
é que isto se apaga de vez, não sei, a mãe pegou nas velas aeesas e ouviu a empregada da perfumaria a decompor os perfumes, tinha
levou-as para a cozinha, ouviu a torneira, pronto não se acendem tempo, sândalo, gengibre e almíscar, foi ela que escolheu o per-
mais, trouxe a água quente e o frasco do café instantâneo, ele que- fume tornou a dizer satisfeito apagando definitivamente a voz da
ria tanto fumar u m cigarro, faltavam quinze minutos para as três, empregada da perfumaria, flor de l i n h o , cedro e noz moscada,
o cheiro a gás na sala, u m cigarro, foi para se esquecer da vontade acho que finalmente encontrei a pessoa certa, afirmou, acho que
de fumar e do cheiro a gás que anuneiou à mãe que se ia casar finalmente encontrei a pessoa certa, e estava realmente conven-
novamente. cido que a tinha eneontrado.
Encontrei uma rapariga, a mãe não se interessou logo, todos A mãe mastigava c o m satisfação a massa de amêndoa re-
os dias se eneontram raparigas, estamos a pensar casar, a mãe cheada a ovos, ele acompanhava-a, já não se sentia o cheiro a gás,
virou-se rapidamente, ainda não t i n h a m partido o bolo que con- comiam o bolo com apetite e bebiam o eafé de má qualidade eo-
tinuava c o m os dois buracos das velas mágicas no centro, a mãe mo se fosse b o m , ele tinha conseguido agradar à mãe, era tão fáeil
estendeu-lhe a faea muito prateada, e se a mãe descobriu tudo e o ser outro h o m e m capaz de agradar à mãe.
ameaça, encosta-lhe a faca ao pescoço, grita-lhe, seu desgraçado, — Ela veio cá noutro dia — disse a mãe sem qualquer entoa-
desapareee daqui antes que, e se a mãe sabe de tudo, a mãe deu-lhe ção, pousando o prato do bolo e ealcando as migalhas com a polpa
a faca para a mão, ele puxou o bolo para si e começou a cortá-lo do indicador direito.
com rigor a partir do centro, e quem é, perguntou a mãe, é uma Apesar de a mãe não ter dito o nome, ele sabia que se referia
rapariga que conheei este verão na praia, a mãe estendeu-lhe u m a Eva que era desde há muito inomeável.
prato onde ele depositou a fatia do bolo, cortou outra, onde é que — N u n c a mais a vi — disse. — Não mais a tornei a ver. E n -
ela mora, perto de m i m mas os pais são de longe, este fim-de-semana contramos tantas pessoas mas a ela nunca mais a vi — afirmou
foi visitá-los por isso é que pude vir, tenho cada vez menos tempo, Convicto. — V e i o cá a casa?
trabalho muito, não tenho tempo para nada, e ela também traba- — Não, foi ver a tia. Ela sabe que não a quero cá.

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Ficou descansado porque não queria que a mãe e Eva falas- — A vizinhança diz que ela sempre gostou de luxos e que já
sem e no entanto tinha conheeido Eva por causa da mãe, se não andava com ele há muito tempo — a mãe parou numa notícia de
fossem os ossos doentes da mãe nunca mais a teria voltado a ver, última hora na televisão — e que t u não sabias de nada. N u n c a
estava sentado no sofá à frente da televisão quando Eva saiu do gostei dela mas não a critieo por querer luxo. Q u e m é que não
quarto da mãe, já a tinha visto numa das tardes em que se sentou quer uma vida melhor se a puder ter? Nunca gostei dela mas nisso
no muro do bairro eom os rapazes, quase não conhecia ninguém, não a posso criticar.
tinha-se mudado há pouco, os rapazes do bairro ficavam tardes Não podia contrariar a mãe, se a lembrasse do que tinha dito,
inteiras no muro à espera das raparigas que passavam, tardes lon- é boa pequena, há-de ser alguém na vida porque não foge ao tra-
gas e tristes em que não acontecia mais nada além das raparigas balho, se a lembrasse a mãe invocaria o cansaço que lhe aeonte-
que passavam, quando Eva passou os rapazes gritaram, magricela, cia sempre que ele a visitava, 16:04, se conseguisse ficar mais u m
e ele o l h o u para a rapariga desengonçada eom calças à boca de pouco o sábado não era tão grande.
sino e socas altas de madeira que se enterravam na lama, os rapa- — T e m razão, ela sempre gostou de dinheiro.
zes assobiaram, magricela, Eva mandou-os ã merda sem olhar Não se incomodou por falar assim de Eva, atraiçoava-a por
para trás, os rapazes dobraram-se a rir, Eva, a magricela, pisou ter decidido agradar à mãe, estava noivo, ia-se casar, a mãe regres-
com mais força a lama e escorregou das socas de madeira, os rapa- sou à televisão, ainda disse, o que lá vai, lá vai, se ela está bem tanto
zes agarraram-se ao sexo e gritavam cada vez mais alto, queres melhor para ela, no iníeio ainda me tocou à porta umas vezes mas
disto, Eva, a magricela, fugiu com o corpo desengonçado em ci- depois nunea mais, fez bem, não tenho nada para lhe dizer. Ape-
ma das socas que lhe escapavam dos pés, tinha o fundo das calças sar de a mãe não ter nada para lhe dizer, Eva mandava sempre u m
enlameadas, anda chupá-lo, pediram os rapazes sufocados de riso, beijo de parabéns, preoeupava-se, não te esqueças de comprar
naquela noite quando saiu do quarto da mãe Eva já não era magri- qualquer coisa à tua mãe, e os ossos da tua mãe, os olhos, a mãe
cela e era bonita, aproximou-se para o cumprimentar, ainda lhe retribuia a preocupação de Eva com, nunca gostei dela, sem qual-
estendeu a mão, uma mão magra eom a pele muito branca que quer dúvida, sem se desculpar, a voz seca da mãe, nunca gostei
ficou suspensa no ar quando se cumprimentaram eom dois bei- dela, e no entanto eomeu com satisfação o bolo que tinha sido pa-
jos, os lábios generosos de romã aproximaram-se dos dele, até para go com o dinheiro da que sempre gostou de luxos, e se ele dissesse
a semana, a mãe acompanhou-a à porta, é boa pequena, muito tra- que tudo, o fato, o bolo, as rosas, os perfumes expostos no psiché,
balhadora, há-de ser alguém na vida porque não foge do trabalho, tudo o que lhe ofereci foi pago com o dinheiro de Eva, mas a mãe
disse quando voltou, durante o dia Eva trabalhava no hospital e à via televisão e ele tinha anunciado o casamento, ela sempre quis
noite eonsertava ossos no bairro, mais tarde soube que Eva jun- luxos que não lhe podia dar, só se fosse roubar, continuou sem sen-
tava todo o dinheiro que podia para sair do bairro e dos gritos dos tir remorsos, podia ter escolhido a verdade, uma parte já que a ver-
rapazes, que ainda ficava enraivecida cada vez que falava dos gri- dade nunca se deixa apanhar da mesma maneira por pessoas dife-
tos dos rapazes, magrieela, das mãos deles no sexo, queres disto?, •"^ntes, Eva trabalhou muito e ainda me sustenta apesar de tudo,
mais tarde soube. fira dinheiro ao marido para me dar, não me deixa faltar nada, mas

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escolheu dizer, nunca mais a vi, há pessoas que infelizmente não tos adoeeeriam ou morreriam antes de serem adultos, apesar de
sabem viver com o que têm, não se sentia eulpado, a mãe olhava-o todos se julgarem adultos, outros seriam presos, sobrariam poucos,
agradada mas levantou-se, apesar de ter anunciado o casamento e o bairro tornara-se u m sítio perigoso, os pais dos novos rapazes tam-
de ter traído Eva, a visita ehegava ao fim, ainda tinha tanto sábado bém já tinham deixado de sonhar, entregaram-se à vida eomo era.
para gastar, olhou para as janelas coladas ao tecto, chovia, numa Quando entrava no carro Eva ainda pensava uns segundos neles,
cave quase não se ouve a ehuva, o novo h o m e m que ele eseolheu estão condenados, não saberiam viver noutro sítio, eoneluía para
ser perguntou: se deseansar e acelerava c o m medo de ficar ali presa novamente.
— Quando é que eles fazem a estrada nova? A visita tinha ehegado ao fim. Não lhe apeteeia ir embora mas
O novo h o m e m devia preocupar-se c o m a construção da a mãe bocejava para o avisar que estava eansada, ele fingiu-se sur-
nova estrada mas a mãe não o ouviu, no bairro ninguém acredi- preendido eom as horas, quase einco, tenho que ir andando, a mãe
tara na estrada, ninguém acreditava em nada, no bairro os sonhos perguntou-lhe, e eomo é que ela se chama, quem, ah! sim a, disse
apesar de individuais e secretos eram só u m , o sonho de fugir para o primeiro nome que lhe veio à cabeça, a mãe comentou, pelo
os prédios novos, a realidade também só admitia uma diferença, menos o nome é bonito, e foi indo para a porta, abriu-a para ele
os que t i n h a m e os que não t i n h a m conseguido fugir, ele e Eva sair, a mãe ficou do lado de dentro eom os braços caídos, incapaz
eram dos que t i n h a m conseguido sair do bairro, Eva tinha-se de o abraçar, de lhe acenar, despediram-se c o m u m encosto de
esforçado muito mas ele nunca fez nada para de lá sair, viveram cara, ele afastou-se, a porta fechou-se, u m som seco na tarde de
no rés-do-chão que tinha sido da mãe de Eva, dormiram todas as sábado, ainda estava no corredor quando ouviu as duas voltas à
noites em frente ao néon da serração de madeira que os abraçava chave, não podia voltar atrás, a mãe tinha mudado a fechadura
numa luz alaranjada intermitente, ainda havemos de nos rir des- quando foi viver c o m Eva, ele só apareeia quando era convidado
tes tempos, dizia Eva, nunca se ehegaram a rir, quando se tornou e saía a horas decentes, se tivesse sono nunca se esticaria no sofá,
a casar Eva foi viver com o marido para uma casa muito longe do se tivesse sede pedia cerimoniosamente u m eopo de água, acen-
bairro e perto do mar, quis libertar-se para sempre do bairro e deu u m cigarro, puxou o f u m o , ainda era cedo, em vez de sair do
assim teria acontecido se a tia de Eva tivesse conseguido sair do bairro subiu a rua, o fato era frio, estava mal agasalhado mas tinha
bairro, não conseguiu, não se sentia bem noutro sítio, a pobreza é tempo, eontinuou a subir a rua enlameada, nas paredes t i n h a m
uma doença difícil de curar a partir de certa idade, quando Eva pintado a preto muitos ás de anarquistas, alguém tinha escrito, o
visitava a tia os rapazes, outros rapazes que se sentavam no muro, Beto esteve aqui, Ana loves Américo, vão todos à merda, corações
invejavam-lhe o carro, não se riam nem gritavam pela magricela, riscados, nomes de claques de futebol, muitas mamas, pilas e
aproximavam-se do carro e tocavam-lhe c o m prazer, os novos rabos, os novos rapazes desconheeiam que havia poueas coisas
rapazes do m u r o já não t i n h a m todos o mesmo sonho, já não mais obscenas do que o próprio bairro, mais mamas desenhadas
sonhavam em sair do bairro, dispersavam-se em carros e outros "as casas clandestinas que continuavam a crescer nos baldios,
luxos, tinham sido treinados para ali viverem, animais treinados de •Cogumelos venenosos que matavam q u e m neles se atrevesse a
que não se conheciam os sonhos, isto se os animais sonham, mui- íocar, as casas tinham plásticos a servir de janelas e o cimento e o

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tijolo à vista, por entre as casas carcaças de carros onde os novos bairro continuavam longas e tristes mas os rapazes tinham desco-
rapazes se protegiam do frio ou do calor, ao longe u m grande cemi- berto outros sítios, mais espertos, mais corajosos, pensou, afinal
tério de pneus, outro de móveis, de pedras, cemitérios de tudo, eram só mais perdidos, mais tarde soube, sabe-se sempre tudo mais
quando vivia com Eva ainda não existiam tantas casas nos baldios, tarde, demasiado tarde, ele e Eva caminhavam lado a lado embara-
os baldios ainda estavam desocupados, as casas dos prédios eram só çados, entraram no café, aqueceram as mãos nas chávenas de café,
pequenas e velhas, uma pobreza digna, quase comovente, nin- não disseram nada u m ao outro, o silêncio é u m d o m , disse Eva
guém escrevia nas paredes, as paredes ainda eram mansas, os habi- quando ele se tentou justificar, u m dom, saíram quando o dono do
tantes do bairro ainda sonhavam, a vida ainda não os tinha amar- café virou as cadeiras sobre as mesas para lavar ochão c o m u m balde
rado definitivamente ao bairro, aproximou-se do sítio onde beijou de água acastanhada, hesitou em beijá-la, Eva deu-lhe a entender
Eva pela primeira vez, tinha tempo para não se esqueeer de nada, que o podia fazer, há coisas que ou se fazem n u m determinado
do número de telefone do hospital em que Eva trabalhava, inutili- momento ou nunca mais se fazem, disse, beijaram-se protegidos
dades que lhe ocupavam a cabeça e o ajudavam a passar os dias, a por uma aba do prédio, naquele mesmo sítio por onde passava
tabuada de cor, a rede ferroviária da maior parte das colónias, cho- agora com o fato rídiculo, Eva convidou-o a entrar em casa, há coi-
via na noite em que beijou Eva, nessa altura Eva ainda não preci- sas que ou se fazem n u m determinado momento ou nunca mais se
sava dos três níveis de água, nessa altura Eva apenas precisava de fazem, encontraram-se no dia seguinte e nos outros dias que se
ganhar dinheiro, dizia, temos que sair daqui, deixou o chapéu-de- seguiram, raramente falavam, gostavam do silêncio, não t i n h a m
-chuva a escorrer na casa de banho enquanto massajou os ossos da medo, parecia que se amavam, pouco meses depois, na noite do
mãe que se queixava, vamos lá ver se a consigo aliviar, dizia com corte geral de electricidade, Eva pediu-lhe que dormisse em casa
doçura, a mãe continuava a lamentar-se, ele foi esperá-la à saída dela, tinha medo, não conseguia adormecer no escuro, parecia
do prédio, escondeu-se até a ouvir, Eva olhou-o com estranheza uma criança, a mãe acompanhou-o à porta iluminando-o c o m
quando o v i u , ele desejou os lábios de romã nos seus, desculpou- uma vela, uma mulher que aceita em casa u m h o m e m sem se easar
-se, ia tomar u m café mas como está a ehover voltei para trás, Eva só pode ser uma, nessa noite Eva disse-lhe que passava em frente
desfez a interrogação dos olhos, também me apetece u m café, saí- ao muro por eausa dele, os olhos meigos de Eva pediam-lhe que ele
ram protegidos pelo guarda-chuva de cornucópias que tinha também mentisse para que se amassem desde sempre, mas ele
estado a escorrer na easa de banho, a chuva era u m pó que vinha de ficou calado e Eva desistiu do que queria inventar, estendeu-lhe os
todos os lados, não de água, não do céu como habitualmente, cami- firaços, ele aceitou o corpo quente que se lhe ofereeeu, o candeeiro
nhavam próximos sob o círculo de eornueópias, a respiração deles fie petróleo espalhava a renda do cortinado pela parede, relampe-
espalhava-se branea na noite, seria mais fáeil se ele a abraçasse, )ou, a luz intensa do eéu iluminou-lhes os corpos por segundos,
nunca soube o que havia de fazer, a mãe saberia o que era conve- eontavam em voz alta à espera do trovão para se afastarem da tem-
niente, se a devia abraçar ou não, eontinuaram a caminhar, passa- pestade, quando ele se ouvia estrondoso já tinham regressado às
ram pelo muro vazio de rapazes, os anos eresceram os rapazes que Sombras, as mãos mexiam-se e alongavam-se nas paredes, Eva
tiveram outros rapazes que já não se sentavam no muro, as tardes do fiisse, vou-te amar sempre, sempre, o corpo dela cheirava a relva

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acabada de cortar, o cortinado sombreava-lhe o ventre de flores, os
olhos da mãe agourentos, os de Eva tão brilhantes no escuro
mudámos Eva, tu não queres ouvir dizer que mudámos mas já não
somos os dessa noite, nunca mais os seremos, Eva reeolheu-o no seu
corpo, a tempestade foi-se afastando, as lanternas dos vizinhos apa-
garam-se, o céu parou de verter água, o perigo tinha passado,
esqueceu-se dos olhos da mãe e aeordou n u m dia de sol abraçado
a Eva.

A sala está vazia. A ex-mulher espreita do lado de fora da


porta pelo vidro que a rasga, u m quadrado transparente na porta de
madeira. Não vê n e n h u m a das outras mulheres. Abre a porta
devagarinho, eautelosa. Não quer que a vejam eom os olhos ver-
melhos e inchados. Especialmente a rapariga.
Esforça-se por nomear o que sente pela rapariga, odeio-a, diz,
tentando d i m i n u i r o ódio, tentando espalhá-lo nas paredes ein-
zentas para aliviar a alma que lhe pesa. O ódio também lhe magoa
o corpo, odeia-a quando olha para a barriga cheia de vida, quando
a vê passar a mão eom desprendimento sobre a barriga, a rapariga
não faz de propósito mas a ex-mulher acredita que sim, acredita
que os cabelos louros, a blusinha às florinhas, que a rapariga faz
uu tem tudo o que é preciso para a odiar.
Senta-se. U m a nuvem escureceu a sala. Levanta-se e acen-
da o candeeiro do tecto. Distrai-se com estes gestos que considera
'Uiportantes, urgentes. As outras mulheres ainda estão a almoçar.
Estão a falar sobre m i m , pensa. Acende u m eigarro. T e m medo
do que elas possam dizer. D o que ele possa ter contado sobre ela.

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especialmente à rapariga, tem ciúmes de t i , não se vêem, a voz tropeça n u m baneo, a sala tem encolhido desde que ali está, desde
dele embatendo na escuridão, engolida pela noite do quarto, sa- que os pensamentos maus se colaram a ela, a cinza do cigarro cai
bes que ela dava tudo para estar no teu lugar, terá sido isso que ele no chão, apanha-a e limpa o chão com cuidado, se conseguisse
lhe disse. limpar os pensamentos maus, esfrega o mosaico, suja as mãos, só
Sentada no banco, a ex-mulher descansa as mãos de cera tré- pára quando não vê vestígio de sujidade, se lhe pudesse falar, quer
mulas. Penteou-se e está novamente bonita apesar dos olhos ver- saber se é verdade o que d i z e m , se ele a a m o u assim tanto, se
melhos. Espera o regresso das outras, a entrada de u m funcioná- enlouqueeeu, se matou por amor, parece uma coisa banal, uma
rio, qualquer coisa que não a deixe pensar no que quer pensar. Os consequência óbvia, quem ama é capaz de matar, uma lei geral e
maus pensamentos colam-se, enxota-os mas eles regressam pou- abstracta, o coração aperta-se, a vida foge-lhe, os pedaços da erian-
co depois mais fortes, menos perdoáveis, picam-lhe o corpo que ça correm para ela, trepam-lhe pelas pernas e entram dentro dela.
se levanta desesperado, sem qualquer possibilidade de redenção.
U m funeionário, que não é o que distribuiu as senhas de
A ex-mulher procura a janela, os enormes aparelhos de ar
almoço e assobiou contente o iníeio da primavera, que não é o que
condicionado que resfolegam. Acede à vontade do corpo que lhe
descobriu o problema da identificação n e m o que as identificou,
dói ou da alma que lhe pesa, caminha metodicamente pela sala,
mas que é parecido c o m os três, que também se parecem entre
percorre os quatro lados uma, duas, três vezes, até que tem a rapa-
eles, aproxima-se, neste sítio os funcionários são todos parecidos
riga deitada no centro da sala e a criança já foi expelida em boca-
uns com os outros. Mas este é novo, é a primeira vez que entra na
dos ensanguentados que estão pelo chão. Mais tarde tem que se
sala e por isso olha em redor espantado. Pergunta pelas outras. A
reconstruir tudo para se ter a certeza que a criança está eompleta,
ex-mulher responde-lhe que foram almoçar por ordem de outro
as mãos da rapariga querem agarrar os bocados espalhados, grita,
funcionário. A h ! exclama como quem eompreende a rotina do
são meus, os boeados do meu fdho são meus, falta pouco para que
serviço que presta. Então vai ser a primeira a depor.
a rapariga se esvaia em sangue, jorra m u i t o sangue da boca do
corpo, o sangue é quase bonito, uma cereja esmagada que escorre, Expulsa os bocados da criança de dentro de si. Levanta a

a rapariga tem o útero rasgado para sempre, nunca mais poderá rapariga do chão. Foi salva pelo funcionário que nunca saberá que
passar a mão pela barriga, o desprendimento t e m sempre um a salvou.
preço, a ex-mulher guarda os bocados da criança, bastará u m saco T i n h a pedido ao seu colega se o podia ver ainda hoje, eomo
plástico, u m caixão branco de anjinho, u m saeo de plástico, a ex-mu- as outras ainda não chegaram talvez me possa levar até lá. O f u n -
lher ouve barulhos no corredor, espreita a luz da elarabóia, se se cionário sorri, prestável, só a posso levar ao gabinete do doutor, se
puser em determinado sítio a sombra dela atravessa o corredor, cie autorizar levo-a, mas ele é que decide, prometo que não
por uma vez a sombra tem a cor certa, a cor da água suja que e a demoro, é que não acredito no que me dizem, é por isso que pre-
cor da sua alma, a rapariga continua deitada no charco de sangue» ciso de o ver, não consigo acreditar no que me dizem.
parece que está bem, os cabelos louros tingidos de vermelho, a O funeionário mantém-se inflexível, depende do doutor, eu
morte pareee doee, continua a percorrer metodicamente a sala, ^flui mando tanto como a senhora. Então não saio daqui, quer

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dizer mas cala-se, segue o funcionário, as pulseiras pesam-lhe e
quando t i l i n t a m já não é u m barulho de festa, algemas, os sapatos
apertam-lhe os pés, a roupa fere-lhe a pele, se pudesse deitar-se e
arrastar-se pelo fresco do chão, continua a andar submissa atrás do
molho de chaves do funcionário, lá fora é primavera e o ar cheira
a jasmim, lá fora nunca existirá o ar encardido da sala, o funcioná-
rio espera por ela, abre outra porta, avistam dois doentes, a ex-mu-
lher assusta-se, estes são inofensivos, andam por todo o lado, escla-
rece o funcionário, a ex-mulher pára, não se quer cruzar com
aqueles homens, acende u m eigarro, o funcionário enxota-os,
moscas enormes, o funcionário diz que não há nada mais triste do
que perder o juízo, a ex-mulher ouve-o cada vez mais submissa, o
funcionário continua a falar, para si próprio ou para a ex-mulher,
todos os dias os vejo, todos os dias chegam novos, há quase vinte
anos que os vejo e nunea me hei-de habituar à ideia de que se pode Andava pelo bairro disposto a aceitar qualquer eoisa que lhe
perder o juízo, se me habituar à ideia acabo como eles. gastasse o resto do sábado, 18:20, ainda tinha pelo menos cinco
horas para gastar, ao fim-de-semana chegava sempre mais tarde à
pensão, as antenas de televisão abanavam com o vento, a roupa
que estava a secar enrodilhava-se nas cordas, aproximou-se do bar-
racão da catequese, ainda sabia recitar os pecados como t i n h a
aprendido, as listas que o ajudavam a passar o t e m p o , excep-
tuando o original, que é só u m , existem pecados mortais e veniais,
o barraeão da catequese estava abandonado, os pecados amontoa-
ram-se a u m canto juntamente com cadeiras e mesas velhas, exis-
tem quatro maneiras de cometer os pecados actuais, o barracão já
nem porta tinha, pensamentos, palavras, aetos e omissões, esprei-
tou, não via quase nada, o barracão era u m lugar cheio de noite,
os pecados que bradam ao céu são quatro, homicídio voluntário,
pecado sensual contra a natureza, opressão dos pobres, e não
pagar o salário a quem trabalha, afastou-se da noite do barraeão,
os inimigos da alma são três, o m u n d o , o demónio e a earne, em
lado algum se considerava o tempo por gastar, uma mulher ace-

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nou-lhe duma janela, conhecia aquela easa, não conheeia a mu- lhe perguntou, oh querido, o que vieste aqui fazer, não lhe falou
lher que o convidava para entrar, entrou na casa da Alicinha, em da mãe que uns metros mais abaixo via televisão com a tigela dos
lado algum consta o pecado de ter muito tempo para gastar. flocos de aveia no colo, passei por aqui, isto não é u m sítio por
A mulher recebeu-o sorridente na easa da Alieinha, não és de onde se passe, tem razão, o novo h o m e m tinha de falar na estrada,
eá, pois não, querido, a mulher não era nova n e m velha, existia nem sequer tem estrada, tem toda a razão, a mulher não deu pela
sem idade, a carne quando pendurada no talho também fiea sem mudança, mas o que aconteceu à tal A l i c i n h a , não sei, nunca
idade, a earne u m dos inimigos da alma, tão diferente da Alicinha mais a vi, e tens a eerteza que era esta casa, m e n t i u , se calhar não
que era uma santa, e se esta mulher fosse a carne que sobrou da era, aqui as casas sempre foram quase iguais, a mulher descruzou
Alicinha, uns metros mais abaixo a mãe fervia o leite para os flo- as pernas e o vestido subiu ainda mais, a mãe tinha razão, uma
cos de aveia, não sabia o que fazia em casa daquela mulher, o mulher que aceita u m h o m e m em sua casa sem se casar é, a m u -
mundo ficava para lá do bairro, a mulher insistia, tu não és de cá, lher deixou que ele lhe visse as cuecas muito rendadas, os vestidos
pois não, querido, podia ter dito, já fui e quando se é de cá nunca de domingo da Alicinha também eram rendados, a m u l h e r pe-
mais se deixa de ser, ealou-se, conheceu a Alieinha que morava diu-lhe que pusesse o dinheiro em cima da mesinha de cabeceira,
nesta easa, perguntou, a mulher pôs-se a pensar, A l i c i n h a , como não é que desconfie querido mas, ele pôs as notas na mesinha de
é que ela era, cereava-o, o vestido )usto enrolava-se e trepava as cabeceira sem as eontar, a mulher avisou-o que só fazia eoisas nor-
pernas, a Alicinha nunca usaria u m vestido daqueles, vestia-se de mais, só preciso de coisas normais, a mulher de novo satisfeita sus-
muito branco, meias até ao joelho muito braneas, sapatos muito surrou-lhe que não se ia arrepender, e se esta mulher fosse o que
brancos, laços m u i t o brancos, t i n h a sempre a mãe à espera à restou da Alicinha, deitou-se sobre os lençóis que eram tão dife-
porta da catequese, estou à espera da m i n h a santinha, a mulher rentes dos lençóis nupciais que a mãe bordava, só bordo lençóis
fungava, se calhar do vestido tão fino, se calhar de tanto tempo à para mulheres que cheguem ao casamento em condições, ele e
janela. Eva nunca tiveram lençóis bordados, a Alicinha era imune aos i n i -
Alicinha, não me lembro de nenhuma Alicinha, uns metros migos da alma, tão diferente da mulher que destapa os mamilos,
mais abaixo a mãe juntava ao leite os flocos de aveia, mora cá há armas escuras que lhe aponta, a mãe terminou de comer os flocos
muito tempo, a mulher negou c o m a cabeça e riu-se, de que se de aveia e comeu mais uma fatia de bolo de amêndoa reeheado a
riem as mulheres, não querido, essa Alicinha já não é do meu tem- ovos, admirou o naperon dourado, daqui a pouco fará as orações
po, como é que aquela mulher podia falar assim na Alicinha, era da noite, pedirá pelos pecadores e pela paz no m u n d o , o sexo
tua namorada, querido, ninguém podia namorar com uma santi- fluente e pegajoso da m u l h e r colado à barriga dele, a A l i c i n h a
nha, era só uma conheeida que morava aqui, seria melhor dizer substituiu temporariamente a catequista que se desgraçou n u m
deseonhecida, a mãe da Alicinha tinha cara de passarinho e o pai» assomo de loucura, atirou-se para as fundações de u m prédio em
do pai não me lembro bem, raramente o via, Alicinha também Construção, caiu, a pobre catequista eseorregou, disseram os do
sabia de cor o catecismo inteiro, era a única que o sabia também àe fiairro, especialmente as mulheres, u m barulho no quarto ao lado,
eoração, foi por isso que substituiu a catequista, quando a mulher ^ mulher tapou o eandeeiro c o m u m pano vermelho, se a mãe

130
soubesse que ele estava n u m quarto da cor do inferno, da eor que floze frutos do Espírito Santo, caridade, mansidão, castidade, o
a Alicinha nunca há-de conhecer, as pernas da mulher enrosca- homem que seria o irmão tossiu novamente, as virtudes cardeais,
das no seu tronco, serpentes, ninguém consegue cair em funda- a prudência, não devia ter entrado, obras de miserieórdia, corpo-
ções vedadas c o m arame, é preeiso vontade, ninguém se descalça rais e espirituais, a mulher arranhava-lhe o peito misericordiosa-
antes de cair, é preciso premeditar a queda, todos mandariam mente, no dia seguinte seriam marcas de desespero, ele tão casto
calar q u e m se lembrasse disso, mas ninguém dizia lembrar-se, que murchava dentro dela, a mulher sussurrava obscenidades, a
uma catequista não se atira para as fundações de u m prédio, todos voz sábia da Alieinha, para se ganhar o eéu temos de fugir dos
aeeitam u m acidente, u m acidente é só vontade de Deus. pecados da carne, durante algum tempo a mulher fingiu que não
U m h o m e m tossiu no quarto ao lado, está mais alguém eá em sentia a falta de desejo dele, o h o m e m que seria o irmão andava
casa, o m e u irmão, a m u l h e r arfava, então querido, o dinheiro pela casa, o calor da m u l h e r incomodava-o, a mãe da A l i c i n h a
pousado na mesinha de cabeceira, a mãe também reza pelo fdho, ainda terá cara de passarinho, u m passarinho que teve uma santi-
é u m hábito como outro qualquer, diz, protege-o Senhor de todo nha que não é deste mundo, a eatequista atirou-se às fundações do
o mal, a mulher apressou-o, o h o m e m que seria o irmão da mulher prédio, caiu, a Alicinha convenceu-se que a catequista teve uma
tossiu novamente, a luz verjnelha trouxe-lhe outra vez o sarampo, tontura que a fez cair, tinha-se esquecido dos sapatos deixados na
a mulher não percebeu a eomichão súbita, ele só queria falar da beira do precipício, na vedação, a m u l h e r despiu-o completa-
Alicinha, uma santinha muito branca, o quarto azedava os chei- mente, deve ser a roupa que te atrapalha, o fato novo amarfanhado
ros dos corpos, não tinha janela, os lençóis amarrotados, a mulher numa cadeira, os sapatos aos pés da cama, a camisa no chão, estava
eontinuava deitada sobre ele, o monte de earne sem idade engo- nu, o corpo do pai sobre a eama tão rígido como o dele agora, a
lia-lhe o sexo, o ramo de rosas pálidas engolido pelas chinesinhas catequista rapidamente esquecida, na missa do primeiro aniversá-
que conversavam à beira do lago, a mulher esforçada e ele cada rio quase ninguém se lembrava dela, quem não aparece esquece,
vez mais envergonhado por fazer tão má figura, então, querido, a não existe outra razão para os fantasmas, a m u l h e r impaeiente,
Alicinha promovida a catequista efeetiva enumerava para os miú- sabes, querido, aeho que tens problemas, se me deixasse dormir
dos do bairro os pecados de bradar ao céu, ele já não assistia, mas um bocado, posso oferecer-lhe mais dinheiro, a lista original de
tinha a certeza que a santinha muito branca não se esquecia de pecados e de virtudes enterrada nas fundações do prédio, a mãe
n e n h u m , não pagar o salário a quem trabalha, as notas pousadas 3pagou a luz para dormir, as roupas dele pelo quarto da mulher,
na mesinha de eabeeeira e os saltos altos da mulher espetados nas pára, pára, a mulher saiu de cima dele, disse, já percebi, estás ner-
coxas, está a aleijar-me, a mulher ajeitou-se melhor, uma equili- voso, querido, acarieiou-lhe o sexo frouxo, se a catequista morreu
brista n u m circo, a ele coube-lhe ser o palhaço, então, querido, a ^ui peeado mortal teve que se confessar logo que ehegou à outra
voz perplexa da mulher, os mamilos escuros apontados para ele, vida, nunca fez esta pergunta mas tem a certeza que a voz caridosa
armas, as pernas a apertarem-lhe o tronco, serpentes, então, que- fiu A l i c i n h a conseguiria explicar, u m a santinha sabe tudo das
rido, Alicinha também ensinava os sete dons do Espírito Santo, duas vidas e das várias mortes, o sexo m i r r o u até ser outra vez
sapiência, piedade, a m u l h e r baloiçava-se piedosa sobre ele, os Criança, estou n u , como é que saio daqui, de qualquer forma a

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catequista morreu na graça dos pilares de betão e dos ferros retor- bebida e falou baixinho com o h o m e m que seria o irmão, a luz lei-
cidos, não conseguia andar n u à frente de desconhecidos, foi a tosa azedava o quarto, o dinheiro sobre a mesa, a mulher voltou
tentação de voar que atirou a catequista para as profundezas do com u m copo e uma garrafa, bebe, querido, que te faz bem, engo-
inferno, foi u m engano, pode parecer mas ao eéu não se chega a liu a bebida sem lhe tomar o sabor, encheu novamente o eopo, a
voar, a Alicinha sabe de certeza eomo é que se chega ao céu, se mulher pôs os olhos gulosos no relógio dele, foi a minha noiva que
calhar até conhece o caminho mais rápido e o mais demorado, mo ofereceu, outra vez a tosse do homem que seria o irmão, a cara
uma santinha sabe tudo, uma santinha ajuda sempre quem pre- e o corpo da mulher a ganharem idade, velhos, tudo na vida tem u m
eisa, se me ajudasse a sair daqui podia fazer u m xis na lista das preço, a voz de Eva não podia ser ouvida naquele quarto, os olhos
obras de caridade. da mulher a ganharem ganância, o h o m e m que seria o irmão apa-
A mulher deitou-se ao lado dele, querido, assim não consigo, receu no quarto e viu-o nu com sexo de eriança, a mulher levan-
olhou para o dinheiro, a culpa não é m i n h a , não pagar o salário a tou-se rapidamente da eama, deixou-o a sós c o m o h o m e m que
quem trabalha, u m dos pecados que bradam ao céu, levantou-se, seria o irmão, ele percebeu tudo e facilitou-lhes o trabalho, entre-
recolheu as roupas e tapou envergonhado o sexo mirrado, o gou voluntariamente a carteira e o relógio, o fato, recebeu as cal-
quarto i l u m i n a d o pelo inferno do sarampo, os olhos fundos da ças e a camisola das mãos do homem que seria o irmão, cambaleou
m u l h e r demasiado atentos, tens problemas c o m a tua mulher, quando saiu do quarto nas roupas velhas, não chegou a ser u m
querido, não sou casado, então deve ser disso, querido, os homens
assalto apesar do fato novo, o relógio e a earteira terem ficado no
quando ficam sem mulher muito tempo, queria vestir-se, a mu-
quarto de luz azeda, até se sentia mais agasalhado eom a roupa
lher ficou em cuecas e soutien rendados, retirou o lenço verme-
que lhe t i n h a m dado, prometeu silêneio para salvar a vida, o
lho do candeeiro, a luz branea afugentou o sarampo e o inferno
homem hesitou se lhe dava ou não uma tareia para o amedrontar,
mas não lhes trouxe a luz do céu, os homens precisam de mulher,
acreditou na cobardia que via, a mulher não tornou a aparecer,
vou-me casar daqui a dias, ah, então vieste comemorar, querido,
saiu da casa da Alicinha sabendo que os dois se estavam a rir por o
sim, foi isso mesmo, a mulher de gatas sobre a cama para o agar-
roubarem tão facilmente, o l h o u para o pulso, fez o gesto por
rar, então vamos lá tentar novamente, querido, fala-me da tua
hábito, deixara de ter horas, mas não preeisava, conhecia o tempo
noiva, irritava-o que ela lhe chamasse querido, desereveu-lhe a
de cor, afastou-se rapidamente da casa da Alicinha, o pulso sem
beleza da rapariga da praia, querido, vê-se mesmo que estás apai-
relógio não era o dele, não lhe pertencia, passou novamente no
xonado, de certeza que a Alieinha mudou de easa, foi-se embora
escuro do barraeão abandonado, o monte dos pecados tinha d i m i -
do bairro, foi das que conseguiu sair, ainda será catequista, se o vir
nuído, alguém lhes tinha arranjado serventia, alguém que não se
na rua não lhe fala apesar de todas as semanas mandar as crianças
repetir, amai-vos uns aos outros, a mãe uns metros mais abaixo 'rnportasse de usar pecados em segunda mão, alguns ainda em

adormeceu depois de ter rezado, a mulher colou-se a ele, queres fiom estado, talvez u m antiquário de almas, talvez, dirigiu-se para

beber alguma coisa, querido, as mamilos escuros debaixo da n prédio onde a catequista se matou, estava a precisar de ser p i n -

renda do soutien, a m u l h e r saiu do quarto para ir buscar um^ ado, o alumínio brilhava nas marquises fechadas, algumas easas

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t i n h a m l u z , possivelmente ninguém sabe que mora sobre os res-
tos mortais de uma catequista.
Estava fora do bairro com calças roxas e uma camisola azul-
-claro, no bairro a roupa até lhe ficava bem, se a mãe o visse outro
h o m e m , mais u m dos muitos que podia ser, u m que eheirava a
sexo de mulher, que não usava relógio, que nunea tinha visto a Ali-
cinha, continuou a caminhar, ia até à casa onde morou com Eva,
talvez o néon da serração acendesse e apagasse noutra cor, ia sen-
tar-se no muro dos rapazes, as noites no bairro continuam longas
e tristes, caminhava, se a catequista tivesse deixado u m bilhete nos
sapatos que ensinasse o que fazer c o m a vida, se a catequista
tivesse deixado o bilhete teria salvo muitas almas e talvez a sua
também.

A ex-mulher segue o funeionário por corredores sombrios


que vão dar a outros corredores. Os corredores têm muitas portas.
As portas estão todas fechadas. A ex-mulher quer parar mas t e m
vergonha de dizer ao funcionário que está muito nervosa, que u m
calmante a ajudava, que não costuma tomar calmantes mas tam-
bém nunca esteve n u m sítio destes.
Quando o funeionário abre a porta de mais u m corredor, a
ex-mulher vê a mãe. A mãe dirige-se para a sala. Apesar dos olhos
baços e da pouca luz do corredor, a mãe caminha com segurança.
A ex-mulher sabe que mais à frente vão passar uma pela outra.
Pensa que poderá aproveitar para parar e que deixará de tremer.
Avança. A mãe ainda não os v i u . Há muito que a mãe só vê o que
quer.
Os passos da mãe são silenciosos. A mãe é uma sombra negra
que se desloca junto à parede do corredor. Os saltos da ex-mulher
^30 ruidosos, as solas do funcionário chiam. A mãe não os vê mas
ouve-os e eneosta-se ainda mais à parede.
A ex-mulher pára. D i z ao funcionário que precisa de dar u m

136 137
f
recado àquela senhora. O funcionário olha para o relógio, o dou- andar, c u m p r e ordens, há m u i t o que acompanha m a q u i n a l -
tor está à espera, não se demore, o doutor não gosta que o façam mente as pessoas, não quer saber o que se passou, há muito que
esperar. Podia ter dito, mas eu esperei tanto, mas agarra o braço da não é curioso, que não se comove, há muito que é apenas u m f u n -
mãe, obriga-a a olhar para ela. O funcionário pára mais à frente. cionário que daqui a pouco termina o turno.
A mãe levanta a cabeça, mas os olhos opaeos não mostram surpresa
nem zanga, os olhos opacos mostram apenas a rotina de esperarem.
A ex-mulher escolhe as palavras. As palavras que surgem são
as que sempre quis dizer, que são as únieas que não serão ditas.
Procura outras. T e m pouco tempo e está nervosa. A mãe deseja
continuar a andar, talvez perder-se no labirinto de corredores. O
funcionário aguarda. As duas mulheres têm pouco tempo para
corrigir o silêncio de que se fez o passado. Baixinho, a ex-mulher
pergunta, não quer ver o seu fdho, depois mais alto, não quer ver
o seu fdho, até quase gritar, não quer ver o seu fdho.
A mãe não baixa os olhos, não receia as palavras da ex-mu-
lher e espera que lhe seja dada u m a razão para ver o f i l h o . A
ex-mulher não a dá, perde-se outra vez nas palavras que sempre
lhe quis dizer. A mãe responde que não preeisa de ver o filho. Não
há qualquer mágoa n e m raiva nessa decisão. E apenas a não von-
tade de o ver. A ex-mulher morde os lábios. Se a mãe desejasse ver
o fdho talvez fosse mais fácil obter a autorização do doutor, qual-
quer pessoa eompreende a dor de uma mãe, o parto torna a dor de
uma mãe verdadeira para sempre. Mas a mãe não quer ver o fdho,
não há nada para ver, acrescenta.
A ex-mulher sabe que assim é, mas não eompreende. A ver-
dade é sempre muito difícil de compreender. A mentira é sempre
mais compreensível, mais lógiea, mais correcta como tudo o que
é construído. A mãe segue o seu caminho, quer sentar-se a des-
cansar no banco de madeira da sala. A ex-mulher fica a ver a mãe
afastar-se, os passos silenciosos misturam-se no escuro do corre-
dor, a mãe torna-se uma sombra que se move devagar até desapa-
recer por detrás de u m guarda-vento. O funcionário recomeça a

138
horário flexível, não tinha horas para entrar n e m para sair, as
empresas mais competitivas funcionam assim, a senhoria aprovei-
tou para lhe pedir u m aumentozinho, claro que podia pagar u m
pouco mais pelo quarto, a senhoria fieou m u i t o agradecida e
durante algum tempo não lhe fez perguntas.
Evitou que a porta batesse, pousou cautelosamente os pés nas
tábuas roídas pelo caruncho para que não chiassem, o menino par-
tido continuava com o globo intacto na mão, quanto tempo aguen-
taria, atingiu o primeiro patamar e ouviu vozes alteradas, parou
para escutar, era na pensão, pensou que seria uma discussão entre
a senhoria e os parasitas por causa da água roubada ou outra coisa
semelhante, a eriatura do segundo andar gritava u m pouco mais
alto do que o habitual, ficou à escuta, e se a senhoria tivesse desco-
berto a verdade, aquela gritaria podia ser a partilha com os hóspe-
Entrou c o m cuidado na pensão porque não queria que nin-
des da raiva de ter sido enganada, continuou parado no patamar,
guém o sentisse entrar, não podia saber que o tempo não se deixa
estava indeciso se havia ou não de se ir embora, podia voltar mais
contar de cor e foi-se desacertando com a vida, sem o relógio no
tarde, a senhoria andava desconfiada, a senhoria podia estar muito
pulso voltava cada vez mais tarde para a pensão, ainda pensou em
irritada por ele ter violado u m dos princípios fundamentais da sua
comprar outro, chegou a entrar numa loja, mas os dias foram pas-
pensão, era poueo provável mas pessoas como a senhoria têm reac-
sando e sem se dar eonta desacertou-se de vez com a vida.
ções imprevisíveis, a senhoria falava muito alto e ele parou para ver
A senhoria não desconfiou logo, andar desacertado com a
se conseguia perceber o que se passava.
vida não é imediatamente visível, durante u m tempo ainda conse-
Estava parado no patamar quando apareceu, vindo da rua,
g u i u manter os horários, começou por chegar u m pouco mais
um dos rapazes da família do quarto andar, o que o incomodava
tarde à noite, desculpava-se, estive com u m amigo que já não via
há muito tempo, mais tarde inventou horas extraordinárias, mu- niais por ser injustamente tão bonito, desagradou-lhe ter sido apa-

danças profundas no emprego, a senhoria não acreditou mas fin- nhado a escutar a conversa no patamar, disfarçou recomeçando a

giu que sim, mais tarde também deixou de cumprir o horário da subir os degraus, fez de eonta que verificava qualquer coisa na sola

manhã, a senhoria inquietou-se, ele estava a violar u m dos princí- fio sapato, mas o rapaz n e m olhou para ele, subiu mais depressa e
pios fundamentais da pensão, u m hóspede permanente tem de nltrapassou-o. Quando chegou à porta da pensão é que lhe falou
estar empregado, a senhoria encheu-se de eoragem e pergun- o ainda lhe pareceu mais bonito, vieram cá outra vez hoje, é desta
tou-lhe se tinha sido despedido, ele riu-se, antes pelo contrário, flue isto vai mesmo abaixo, fui lá fora comprar bebidas, está tudo
finalmente f u i promovido, a senhoria felieitou-o, ele falou d " tounido, não disse mais nada, empurrou a porta e entrou c o m o

140 141
saco das bebidas, ele ainda respondeu, ah, vieram cá outra vez, vão deitar o prédio abaixo estão enganados, a senhoria hesitou, se
mas o rapaz não o ouviu. pensam, amoleceu a voz até ao choro, a papada parou de se agitar,
Entrou no seu quarto independente que tinha a vantagem de os dedos gordos cairam no colo, digam-me para onde é que vou,
poder entrar sem ser visto por ninguém. C o l o u o ouvido à porta, para a rua, sem esta pensão vivo de quê, digam-me, a voz da senho-
esperava que o rapaz falasse nele, que dissesse, ehegou o hóspede ria já quase não se ouvia, daqui a pouco teria que chorar u m bocado
que faltava, mas o rapaz ignorou-o e ele ainda se irritou mais. Esta- para se aealmar, quando terminasse de chorar a senhoria diria, dei-
vam todos reunidos, só faltava ele e a criatura do segundo andar, tando tudo cá para fora sinto-me logo melhor, assoava-se, estes ner-
se calhar queria dizer alguma coisa, talvez fossem igualmente dis- vos dão cabo de m i m , o reformado dava-lhe palmadinhas nas cos-
pensáveis, pensar nisso quase o magoou, os rapazes do muro tam- tas curvas, o gordo abanava a cabeça, repetia, só a morte é que não
bém o tinham dispensado rapidamente, os colegas de liceu nunca tem solução, a senhoria quando ouvia a palavra morte tinha que
chegaram a chamá-lo, estava na categoria dos dispensáveis, o bater três vezes na madeira, já lhe disse para não dizer essa palavra
mundo sempre se dividiu entre os que são indispensáveis e os que cá em casa, se fosse mais atento teria percebido, a senhoria tinha
não o são, houve u m tempo em que a senhoria acreditou que ele arejado os quartos e encerado os móveis e o soalho, os tapetes
tinha amigos influentes, nesse tempo era completamente indis- tinham sido postos nas cordas e batidos violentamente, os cortina-
pensável, os amigos influentes podiam salvar o prédio, a senhoria dos ainda estavam lisinhos do ferro, se não fosse tão desinteressado
andava sempre atrás dele, se me fizesse o favor de falar c o m os seus teria percebido que a senhoria preparava a casa para as visitas da
amigos, o reformado também o respeitava, dizia-lhe várias vezes, câmara, iria receber outra ordem de despejo, mas não pensou em
m e u amigo quem tem padrinhos tem a vida governada, o gordo mais nada do que no cheiro anormal de lixívia e óleo de cedro, con-
justificava-se por ter que vender cervejas pela noite fora, o traba- tinuava a procurar a rapariga bonita, andava o dia todo.
lho não deve envergonhar ninguém, vergonha é roubar, ele con- De manhã tinha acordado com barulhos anormais, a senho-
cordava, mas agora quase não lhe falavam, o reformado às vezes ria andava de u m lado para o outro e mexia em tudo, ele levantou-
até se ria trocista quando ele falava nos amigos influentes, o gordo se e quando foi à casa de banho c u m p r i m e n t o u a senhoria e o
dizia conversa vejo eu m u i t a , desrespeitavam-no mas a falta de reformado, arranjou-se rapidamente e saiu, ninguém lhe disse
dinheiro da senhoria permitia-o na pensão, a senhoria fingia que que esperavam visitas, que pouco depois de ele ter saído o enge-
ele tinha u m emprego honesto, mas vivia em sobressalto, será que nheiro e o funcionário do tribunal bateram à porta, a senhoria
este mês paga, a senhoria não podia adivinhar que Eva o susten- apareceu com o cabelo alto pulverizado de laca, mise, era assim
tava com o dinheiro do marido, que ele tinha cheques em branco flue a senhoria se referia ao seu cabelo alto, uma saia de veludo
que podia preeneher no montante que quisesse, a senhoria que preto e sapatos de sair, pérolas plásticas nas orelhas e perfume de
gritava na sala, querem-nos pôr daqui para fora, não conhecia Eva, agua de rosas, a senhoria quando abriu a porta ao engenheiro e ao
imaginava uma guia turística, o engenheiro veio c o m o funcioná- funcionário do tribunal estava muito nervosa, entrem, entrem,
rio do tribunal para nos assustar, eles querem-nos pôr daqui par3 fiisse com u m sorriso que lhe custou muito fazer, os dois homens
fora mas eu já me informei, estou bem informada, se julgam que entraram e ficaram parados no corredor. C o m e ç o u por lhes ofe-

142
H3
recer u m café mas eles não aceitaram, acabámos de tomar, disse- corriam nas paredes, estou farta de ver casas com os fios assim, na
ram quase em uníssono eomo se não estivessem a mentir. Enca- televisão fartam-se de mostrar casas assim, queria ver se as deitas-
minhou-os para a sala de entrada, então o que me dizem, esperava sem todas abaixo, o engenheiro abanou a cabeça, o funcionário do
que eles reparassem nos tapetes sacudidos, nos cortinados limpos tribunal também, percorreram a pensão em sentido eontrário, a
no soalho encerado mas eles olhavam desagradados para as pare- senhoria acompanhava-os martelando o soalho eom os sapatos de
des, espreitavam para o fundo do corredor, os senhores devem ter sair, ajeitando as pérolas nas orelhas, a água de colónia provocava
pressa, hoje em dia tudo tem pressa, esta senhoria apesar da mise tosse ao engenheiro que punha e tirava os óeulos, insistia numa
e dos sapatos altos contorcia as mãos como a dos chinelos de andar cedência grave, veja isto são fendas a quarenta e einco graus, para-
por easa, tinha o mesmo medo, os homens percorreram a pensão, ram na sala grande que tinha os frisos de estuque estalados, os
os quartos dos hóspedes, a eozinha, casa de banho, o quarto da homens não repararam nos sofás sem as mantas de protecção e no
senhoria que pega com outro que é para o caso de u m fdho ou um televisor desligado, não estranharam que u m velho estivesse sen-
familiar precisar, os homens não eomentaram a generosidade, a tado de fato e gravata no sofá, o velho estava muito direito, a senho-
senhoria mostrou a marquise fechada de novo há menos de cinco ria apresentou-o, é u m dos meus hóspedes, u m hóspede da pensão,
anos, o tecto está u m bocado escuro porque chove na varanda de tenho outros mas este já está reformado, os outros elaro estão a tra-
cima, a senhora que lá vive, ouviram gritos nas escadas, pobrezi- balhar, nunca admiti vadios nem, os senhores sabem como vivem
nha aquilo é u m sofrimento, esta pensão já oeupou o prédio essas pensões da rua, somos quase uma família, o engenheiro
inteiro, já foi muito importante, tem mais de cem anos, a senho- olhou apressado para a parede da sala, o funeionário do tribunal
ria apontou para uma fotografia na parede, vejam, os homens não dizia nem fazia nada limitando-se a transportar uma pasta e
olharam desinteressados, tenho recortes de jornais, posso mostrar um papel que a senhoria deveria assinar, o engenheiro não repa-
aos senhores, deitar isto abaixo, nem sei eomo é que podem pen- rou na mesa Queen Anne sem o oleado de frutos, quis ver de novo
sar nisso, os homens t i n h a m pressa, em 1946 uma cantora fran- a casa de banho, a senhoria referiu orgulhosa o esquentador que
cesa viveu aqui seis meses, o engenheiro disse, aposto que agora um familiar trouxe do estrangeiro, o engenheiro passou à cozinha,
não ficava cá u m dia, os homens riram-se muito da piada, a se- rejeitou de novo o cafezinho que a senhoria insistentemente ofere-
nhora quer ver como isto está, disse o engenheiro retomando o ar ceu, ainda olhou para o bolo de ehoeolate que amolecia n u m prato
sério, arrancou u m pedaço de estuque eom a unha, isto desfaz-se fie vidro, a senhoria avisou que o advogado lhe tinha dito para não
assim porque está podre, entrou aqui muita água, o prédio cedeu, assinar nada, o engenheiro respondeu entre dentes, a senhora é que
olhe para isto, as fendas na parede, a senhoria não olhou, se não sabe, a senhoria assustou-se com a indiferença do engenheiro, os
olhasse as fendas não existiam, a senhoria falou no soalho, ainda lábios da senhoria tremeram de choro, o funcionário do tribunal
é de casquinha, u m soalho destes, vejam este tecto, o estucador "lanteve-se calado, carregava a pasta e olhava com nojo para tudo
que o fez foi o mesmo que esteve a trabalhar n u m palacete muito " que via, às vezes substituía o nojo pelo medo que tinha de perma-
importante, não me lembro agora do nome mas é aqui perto, o necer n u m prédio em risco de ruir.
engenheiro criticou a instalação eléctrica, os fios descarnados que Quando os homens se foram embora, a senhoria descalçou-se

H5
imediatamente, eorreu para o quarto e reapareceu passados se- gordo, estava furiosa com os parasitas, se as casas fossem vossas não
gundos de bata e ehinelos, tinha voltado ao que era, da senhoria estavam tão descansados, o velho do tereeiro andar levantou-se,
que acompanhou os homens só ficaram as pérolas plásticas nas tenho de ir andando, a senhoria gritou, todos os dias me roubam
orelhas, a senhoria colocou o oleado sobre a mesa Queen Anne, e agora fogem todos, o velho não respondeu por pressa de se dei-
tapou os sofás, o reformado retirou-se e voltou de pijama, sentou-se tar, os do quarto andar ainda resmungaram, a senhoria insistiu,
no sofá novamente coberto, quando a ordem foi reposta, quando pensam que não me custa a pagar a água que me roubam, e a luz,
tudo voltou ao n o r m a l , a senhoria pôde chorar. O reformado a comida que os miúdos me pedem, devia era ter feito queixa
ouviu-a ehorar sem a interromper, a senhoria l i m p o u os olhos quando vieram para cá, a senhoria arrancou as pérolas das orelhas,
com raiva, jurou que havia de se vingar na televisão, mais calma começou a chorar, os parasitas levantaram-se e saíram, quando já
ligou para os fiscais camarários que mensalmente a visitavam, estavam na porta a senhoria falou n u m requerimento, se estiver-
n e n h u m a atendeu, a senhoria compreendeu que o envelope que mos todos juntos, se formos muitos não nos conseguem pôr daqui
dava aos filhos, que nestas idades precisam de tanta coisa, já não para fora, ninguém lhe respondeu, foram-se embora e o velho do
tinha qualquer importância, mais tarde lembrou-se de falar eom terceiro andar bocejou alto ao subir as escadas.
os vizinhos, apesar de tudo se o prédio fosse demolido eles tam- C o n t i n u o u fechado no quarto, viu uma carta de Eva que a se-
bém fieavam sem teeto. nhoria lhe deixara em cima da cómoda, não a abriu, acendeu u m
Foi por isso que se reuniram na sala grande, os velhos do ter- cigarro, daqui a pouco iam todos deitar-se, o reformado disse que
eeiro andar t i n h a m pressa, queriam ir dormir, bocejavam, quanto aquelas reuniões não serviam para nada, estes vagabundos tanto
a nós logo se vê, a senhoria não compreendia, depois logo se vê, lhes faz fiearem aqui ou noutro sítio qualquer, a senhoria deu-lhe
depois, o velho boeejava, fieamos bem em qualquer lado, não fal- razão, tinha que ser ela sozinha a tratar de tudo, ele apagou a luz
tam por aí casas, isto não é nosso, como achámos isto havemos de com receio que percebessem que estava no quarto, qual é a lei que
achar outro sítio qualquer, não queremos complicações, vamos fi- deixa que tirem as casas às pessoas, repetia a senhoria para se con-
cando até, ainda não tinha ouvido ninguém da família do quarto vencer, qual é a l e i , o gordo despediu-se, ia à easa de banho, a
andar, o gordo confessou que a pensão era uma solução temporá- senhoria andava de u m lado para o outro, arrumava a sala, falava
ria e que queria comprar u m apartamentozinho, o reformado alto, se pensam que me tiram daqui, arrumava as cadeiras e despe-
estava calado, a senhoria enervou-se, o rapaz do quarto andar que lava os cinzeiros, recolhia garrafas, maldito vício, amanhã tenho de
o tinha apanhado a escutar nas escadas disse, a m i m só me levam arejar esta easa, estes vadios só têm vícios, ele eontinuou no escuro
daqui à força, e o pai zangou-se, cala-te seu estúpido, sabes lá o que à espera, ouviu o autoclismo, os gritos da criatura do segundo andar.
dizes, quando eles quiserem pegamos nas nossas coisinhas e Um dia tinha que subir a eseada de incêndio para a ver, o reformado
fazemo-nos à vida, na rua é que não ficamos, o gordo continuava dizia que a tinha visto uma vez e que esperava ter sido a última, é
a falar, chegam-me duas assoalhadas, não queria era ir para os pior do que u m animal, dizia assustado. Esperava que todos se dei-
arredores, com o negócio da cerveja não me dá muito jeito, a se- tassem, se a senhoria o visse perguntava-lhe como correu o dia de
nhoria não queria saber n e m dos planos n e m dos problemas do trabalho, perguntava-lhe sempre para poderem continuar a fingir

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que nada se tinha alterado, ele respondia eom uma frase que ouvia rava à saída da casa de banho e o prendia no corredor exactamente
aos outros, cada vez mais trabalho e menos tempo, a senhoria ficava no mesmo sufoco, falava dos filhos, os filhos não são da gente são do
satisfeita, se o reformado o ouvisse diria que sentia a falta do traba- mundo, tenho netos que nem conheço e os outros se os vir na rua, o
lho, nesta idade sente-se falta de tudo, o gordo foi para o quarto e dei- reformado contava a vida dos filhos, o gordo aproximava-se, limpava
tou-se sobre a cama que ehiou, ele aguardava que todos se deitassem o suor da testa, dizia, oh homem, você de manhã fica a dormir, mas
fazia sempre isso, não gostava que o esperassem à porta da easa de nós temos que trabalhar, o reformado pedia desculpa, afastava-se
banho, ficava aflito, teria ou não puxado o autoclismo, a sanita esta- humilhado com a escova de dentes no bolso do robe à laia de flor,
ria suja, e o cheiro, o lavatório teria restos de pasta dentífrica, voltava era por isso que não gostava que o esperassem à porta da easa de
atrás para confirmar, arranjava uma desculpa, o hóspede que estava banho, que o obrigassem a conversar, não se importava de esperar
à espera insistia, esteja à vontade, só bati porque a luz podia ter que todos se deitassem, tinha tempo, se a senhoria o visse talvez
ficado acesa por esquecimento, ficavam os dois apertados no corre- ainda lhe pedisse que a ajudasse, que falasse com os amigos influen-
dor cada u m com o respectivo saco na mão, o saco do sabonete, da tes que ele conheeia, será que a senhoria ainda acreditava que ele
escova e pasta de dentes, falavam por obrigação, esta noite estou tinha amigos influentes, se a senhoria o visse reeordava-o da pro-
com uma azia desgraçada, era sempre assim que o gordo começava messa, não se preocupe, isto resolve-se, pedia novamente o nome
as eonversas, com a azia, passava rapidamente às cervejas, sabe do engenheiro responsável pelo processo, o número do processo,
quantas cervejas vendi esta noite, claro que não queria saber, não fazia perguntas técnicas, contava qualquer eoisa que a animasse,
lhe interessava mas o gordo explieava-lhe na mesma, ouvia-o eom ainda há poueo tempo queriam despejar uma família e estes meus
atenção e tinha medo de se perder nas contas, de ser apanhado em amigos conseguiram, a senhoria precisava de acreditar, esperava
falso em qualquer custo adicional, na pensão era u m contabilista, que o reformado se deitasse, que a senhoria desligasse o esquenta-
u m h o m e m simples que arranjava a vida para se easar, mesmo que dor que não podia ficar toda a noite a gastar gás, ouvia sempre o
estivesse desempregado u m contabilista percebia sempre os custos estalido do esquentador, quando todos se deitassem podia sair, pas-
e os lucros, nisso não podia ser desmascarado, ficavam apertados no sava no corredor, os gritos da criatura abafavam-lhe os passos, se
corredor, a porta da casa de banho entreaberta, a sanita teria ficado por acaso alguém se levantasse dizia que tinha acabado de chegar,
suja, o gordo continuava nas margens de lucro das cervejas, mar- estava cansado mas o dia seguinte seria outro dia, os dias são quase
gens mais estreitas do que as fendas na parede em frente, ele deses- todos iguais, uns têm sol e outros não.
perava, se não fosse estar investido no papel de contabilista podia gri-
tar como a criatura, o reformado salvava-o, aproximava-se com o
robe enorme que usava dia e noite, dizia ao gordo apontando para a
easa de banho, se não precisa vou eu, o gordo despedia-se contra-
riado e fechava-se na casa de banho, o reformado ficava à porta com
o sabonete na mão e a escova de dentes espetada no bolso do robe a
laia de flor, ele afastava-se. Outras vezes era o reformado que o espe-

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veitou a distracção da dona do quiosque para sair sem pagar, não
sabia porque o fazia, tinha dinheiro para comprar as revistas que
quisesse, o tempo por gastar é realmente perigoso, afastou-se, per-
correu o jardim e escolheu u m baneo que ficava na parte dos
namorados. Se a trovoada que a televisão tinha anunciado che-
gasse rapidamente podia salvá-lo do tédio, desejou que nevasse ou
que a eidade se inundasse, talvez fosse hoje que encontrasse a
rapariga bonita, calçou as luvas, enrolou cuidadosamente o cache-
col à volta do pescoço e abriu a revista.
U m a pomba andava numa poça de água de chuva e reflec-
tia-se, duplicando-se. Os namorados pelo eontrário de tal forma
entrelaçados t i n h a m apenas u m corpo. Sorriu para a pomba e
para os namorados. M u i t o perto do jardim, separados pelas grades
de ferro, as pessoas trabalhavam, exasperavam-se, e estavam tão
Quando o tempo fieava muito frio, reeolhia-se no cinema. perto do jardim. Ficou sentado com a revista aberta à espera que
Chegava a ver duas vezes o mesmo filme de seguida. Se não lhe o tempo passasse sem o poder contar. O relógio já não lhe fazia
apetecesse ir ao cinema procurava u m sítio suficientemente aque- falta. Quando lhe apeteceu, começou a andar até passar as grades
cido e deixava-se lá ficar. Mas naquela tarde, apesar do frio, apete- para entrar de novo a cidade, não t i n h a f r i o , n e m fome, n e m
ceu-lhe andar, sentia-se bem, estava agasalhado, tinha almoçado, motivo para sair do jardim a não ser a vontade. Deitou a revista
tinha eigarros, o céu estava muito azul, quais serão os pecados que num caixote de lixo. N o bolso do casaco ainda tinha a carta de Eva
bradam a este céu perfeito, andou algum tempo até que parou na que a senhoria lhe tinha deixado no quarto há alguns dias. Reti-
entrada de u m jardim, não gostava dos jardins na cidade, eram rou-a do bolso e deitou-a no mesmo caixote sem a abrir.
sítios onde se prendiam meia dúzia de árvores e centenas de pom- V i u a entrada de uma estação de metro. Não pensava em
bas que sujam tudo, velhos que jogam às cartas e avós que empur- nada quando desceu. Já lá em baixo sentou-se n u m baneo metá-
ram os baloiços dos netos, não gostava de pombos nem de velhos, lico moderno que era muito diferente do banco de madeira às
das crianças nem tinha opinião, duram tão pouco tempo, dirigiu-se npas do jardim. As pessoas também eram diferentes. Os velhos
para o quiosque das revistas, tinha que se sentar no banco de jar- dos jogos de cartas e as avós do baloiço só existiam no jardim. N o
d i m com as mãos ocupadas, se tivesse u m jornal ou uma revista se- nietro eram atrapalhes, uns desgraçados que andavam devagar e
ria u m h o m e m normal a passar uma tarde de folga no jardim, ape- fine tinham que esperar que os outros lhe dessem passagem, as
sar do frio e das árvores em bonitos esqueletos contra o céu, apesar ^"anças já espetavam os eotovelos para a b r i r e m c a m i n h o , e
dos pombos, dos velhos e das crianças, abriu a boca e o bafo man- àquele pedaço inútil de terreno com árvores era uma ilusão que
chou o ar, o céu azul tão cheio de frio, pegou numa revista, apro- estava presa pelas grades de ferro. Na realidade, no metro era
segunda-feira e com esse pretexto todos se mostravam mais into- sem reparar que os outros passageiros o olhavam assustados. Mas
lerantes do que habitualmente. Justificavam-se com o início de quando olhou novamente a rapariga bonita não tinha desapare-
mais uma semana. cido, continuava do outro lado, o que faria ali sem ninguém, esta-
Deixou que passassem vários comboios até entrar n u m . As vam separados pelas linhas electrificadas, u m fosso da morte que
segundas-feiras nunca poderiam ser dias piores porque os dias dispensava o monstro que nas fábulas guardava a princesa. Ace-
sempre foram todos iguais por muito que todos os queiram sem- nou, a rapariga sorriu, tinha-o reconhecido, era a rapariga bonita
pre diferentes. Sentou-se do lado da janela a olhar para o túnel de que ali estava.
cimento que sustinha a terra. Não queria ver ninguém. A carrua- Avançou para depois da linha amarela. Estava como ã beira do
gem parou, recomeçou a andar, tornou a parar sem que ele des- precipíeio, se perdesse a consciência caía na morte como a cate-
viasse o olhar. C o m o olhar virado para fora conseguiu não ver quista nas fundações, gritou, espera por m i m , mas u m apito anun-
ninguém mas ainda assim aborreceu-se por ter reparado nos bor- ciou o comboio que ehegava, a rapariga riu-se, de que se riem as
botos da camisola da mulher que se sentou ao lado. Não queria ver mulheres, as mulheres riem-se de coisas sérias, da proximidade da
nada mas isso só era possível se ficasse feehado nele, no escuro dos morte. Ele eorreu empurrando os que se eruzavam eom ele. Era
olhos fechados. C o m os olhos abertos não havia sítio onde esti- uma urgência, a rapariga bonita esperava-o do outro lado, no cais
vesse a salvo. U m a carruagem de sentido contrário parou junto terminal, agora tinha a certeza de que ela seria dele, cairiam nos
dele. Estava separado daquelas pessoas por dois vidros e u m sen- braços u m do outro como nos filmes, seriam felizes para sempre
tido. Poderia ter feehado os olhos para não as ver mas não o fez. quando aparecesse o fim, subiu as eseadas, correu, quando atingiu
Fixou-as sabendo que era quase impossível reencontrá-las. O o outro lado o eomboio dele tinha partido, enfiara-se terra adentro
comboio apitou e arrancou. Nunca mais veria as caras retidas na e não viu ninguém. Andou até ao fim do eais ainda com esperança,
memória. Esquecê-las-ia daí a pouco. Deixou-se continuar com a mas não a encontrou. Pensou, foi ter eomigo ao outro lado, correu
cara encostada ao vidro, daí a pouco seria a estação terminal e para m i m , recomeçou a andar, primeiro apenas com pressa e depois
tinha de se levantar. O comboio avançou veloz no túnel escavado novamente a correr, batendo nuns e noutros, nem sequer olhava,
na terra e ele pensou no corpo do pai definitivamente parte da está à minha espera do outro lado, também ela correu para m i m .
terra e nos bichos que o comeram. Fechou depois os olhos até che- Novamente do outro lado, u m polícia mandou-o parar. Ele
gar à estação terminal. Saiu e dirigiu-se para as eseadas rolantes. arfava. Por favor, ando ã procura de uma pessoa, não disse há
Faria a linha em sentido contrário. E quando estava já no outro quanto tempo, quantos dias, o polícia certamente não percebeu,
lado, desatento, à espera do comboio, viu a rapariga bonita na pla- "ao pode correr assim, os passageiros desviavam-se, contorna-
taforma donde tinha vindo, no cais terminal, n u m sítio onde nin- vam-nos, ele arfava, se o polícia o retivesse mais tempo atirá-lo-ia
guém espera, por não ter destino. á linha, tenho que encontrar esta pessoa, é muito importante, o
A b r i u e fechou os olhos a pensar que a cara da rapariga desa- polícia largou-o mas já o tinha feito perder tanto tempo, recome-
pareceria como ultimamente lhe acontecia. Aproximou-se, colo- çou a eorrer, correu muito, de u m lado para o outro, ouviu mais
eou os pés sobre a linha amarela que sinaliza o perigo, inclinou-se " u i apito de comboio, já não sabia de que lado, em que cais a rapa-

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riga bonita o esperava, do comboio recém-chegado saíram muitas
pessoas que encheram o eais, não conseguia andar, o coração sal-
tava-lhe no peito, se pudesse empurrar toda a gente, se pudesse
saltar a linha, viu o casaeo dela, u m casaco preto ao longe, era ela,
afastou todos os que se interpunham entre eles, deixou de a ver
p r o c u r o u os cabelos louros e o casaco preto, o mesmo polícia
mandou-o parar, já o avisei, não pode andar aqui assim, está
mesmo a l i , fugiu do polícia, uma mulher disse, há eada doido,
correu, a rapariga bonita t i n h a desaparecido, ela está à minha
espera tenho que a encontrar, teria subido as escadas ou entrado
no comboio, esperava-o mas não sabia onde, subiu e desceu as
escadas, percorreu a estação, parou quando já não conseguia res-
pirar de tanto correr.
Não sabe quanto tempo ficou sentado de cabeça baixa no
cais terminal. Quando levantou os olhos tornou a ver a rapariga O médico ainda é novo e tem u m aspecto saudável. Aponta
bonita sentada do outro lado. Ele gritou mas a rapariga bonita tudo o que a ex-mulher diz. Às vezes repete para ver se percebeu
parecia que não o ouvia. Viu-a levantar-se para entrar no comboio correctamente. C o m o agora. Foram casados e divorciaram-se
que chegava. Se pudesse parar tudo para lhe dizer que a procurava porque não eram felizes, é assim. Sim. O médico olha-a incré-
desde o dia em que a viu na praia, há muitos dias, se pudesse parar dulo. Não há mais razões? Não. Divorciaram-se porque não eram
tudo, gritou desesperado mas o eomboio afastou-se levando-a para felizes. A ex-mulher responde, não acha que basta? O médico fica
dentro da terra. calado. Pensa se é feliz. Mas volta ao interrogatório. Depois de se
divorciarem mantiveram u m relacionamento estranho, conti-
nuaram muito próximos. A ex-mulher pergunta se pode fumar. O
niédico diz que não. Justifiea-se: sofre de asma e na primavera é
hem pior. A ex-mulher esfrega as mãos que estão frias e diz, que
pena. Depois olha muito séria para o médico que repete a per-
gunta. Finalmente responde, era uma relação sem nada de espe-
^'3l, ajudava-o porque t i n h a pena dele e mesmo assim vivia
"aquela pensão, conhece a pensão? O médico acena negativa-
"^unte, ainda é novo e tem u m aspecto saudável, ninguém diria
fl"u é asmático, que tem medo da primavera, que se não tomar
"Medicamentos sofre m u i t o e pode m o r r e r , ninguém diria. A

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ex-mulher continua, se não o ajudasse tinha ido parar à rua e ape- flico não a pode interrogar sobre os pensamentos maus que se lhe
sar de tudo não queria ter u m vagabundo eomo ex-marido. O colam à pele, sobre a dor que esses pensamentos lhe provocam. N o
médieo anota. C o n t i n u a a pensar se é feliz e como poderá sabê- entanto inquieta-se quando pensa que o médico pode perguntar o
-lo. Os sintomas da infelicidade são inespecíficos, não diagnosti- que sente por ele, que tipo de sentimento os unia, todos conside-
cáveis. E agressivo, eonsidera-o agressivo? A ex-mulher responde ram os sentimentos tipificáveis. Se o médico perguntar a ex-mulher
prontamente que não. N o entanto matou de forma violenta, tem sabe que tem que dizer qualquer coisa muito diferente da verdade
a certeza que nunca percebeu que era u m a pessoa desequili- porque o médico nunca poderá compreender o pacto deles. N i n -
brada, doente? A ex-mulher fica calada. Observa atentamente a guém pode eompreender. Escolhe as palavras que não pode dizer.
secretária do médieo. Procura u m sinal que lhe diga se pode con- Precisávamos u m do outro para nos enganarmos. Sobrevivemos ao
fiar nele mas não o encontra. Por isso mente e não eonta o último bairro e os sobreviventes nunca são boas pessoas porque apesar de
encontro, não diz que esteve à beira de se perder com ele. Diz, tudo sobreviveram. U m a boa pessoa sucumbe se vê coisas terríveis.
nunca lhe vi u m gesto violento, sempre o achei cobarde, nunca Ele nunca me amou, eu nunca o amei. Ele amou-me e eu amei-o.
me foi ver ao hospital porque tinha medo do sangue, não saía de Somos dois casos perdidos. Precisávamos u m do outro para fingir
easa porque tinha vergonha das vizinhas, tinha medo e vergonha coisas diferentes. A ex-mulher escolhe o que não dirá em circuns-
de tudo, sinceramente não percebo, não o posso ajudar porque tância alguma, mas o médico não lhe perguntará o que sente por
não percebo. ele porque diz que não precisa de mais nada, por enquanto não pre-
O médico escreve as palavras da ex-mulher em folhas finas ciso de mais nada.
de papel branco. O bico da caneta arranha o papel e as letras apa- A ex-mulher diz que sempre soube que ele acabaria mal, mas
recem miúdas em filas que sobem e descem. Tem uma letra bo- não assim. Depois pede para o ver. Justifiea-se, preciso de me des-
nita e legível. Conhecia a vítima? Nunca a tinha visto. O médico pedir dele para me esquecer desta história má. O médico cala-se,
olha-a e diz, penso que eram amantes. A ex-mulher sobressalta-se, avalia o motivo, é u m b o m motivo, por isso autoriza a visita, cinco
pensa que o médico a quer apanhar. Amantes, nós? O médico sos- minutos no máximo, os outros doentes sobressaltam-se quando
sega-a, ele e a vítima. A h , responde aliviada, não faço ideia, do vêem estranhos. A ex-mulher agradece e sai. O médieo ainda
erime só sei o que l i nos jornais e dizem que sim. O médico faz pensa se é feliz e como poderá sabê-lo.
mais perguntas a que a ex-mulher responde sem questionar ou
acrescentar o que quer que seja ao que lhe é perguntado. Conta a
verdade apesar de saber que a verdade se apresenta de várias for-
mas. Escolhe a verdade dela, a que lhe convém. O médico sorri
de vez em quando. C u m p r e o seu trabalho. Ainda é novo e tem
u m aspecto saudável. Mas é asmático e a ex-mulher lamenta não
poder fumar u m cigarro.
A ex-mulher sente-se mais segura quando pensa que o me-

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primentou-o de forma discreta e pediu u m ehá de limão. C o n t i -
nuavam a portar-se como amantes. Quando se sentou Eva tirou as
luvas puxando pelos dedos devagar. Fez exactamente o mesmo
gesto do último dia no bairro, quando se preparavam para entregar
a chave da casa deles. As luvas não eram deste cabedal fino, eram
de lã grossa e ficaram pousadas sobre o caixote. Ele guardou-as sem
saber o que fazer eom elas. As mãos de Eva continuavam iguais,
mãos magras de cera, ainda mais falsas por causa do pequeno dia-
mante. Eva deixou as mãos pousadas sobre a mesa do café. Ainda
olharam u m para o outro mas fugiram rapidamente do eneontro
dos olhos. Não podiam arrisear que os olhos os denuneiassem.
Eva finalmente falou, os lábios de romã, a voz pausada, as
palavras soletradas, atrasei-me por causa da chuva, não gosto nada
destes dias, são horríveis, já viste há quantos dias chove sem parar?
Esperava por Eva n u m café. Estava impaciente e batia ritma- E nas notícias dizem que vai continuar, u m mês inteiro de chuva.
damente com os dedos no tampo da mesa. Podia incomodar as Eu não me importo, se calhar até gosto destes dias, respondeu ele,
outras pessoas mas chovia ininterruptamente há quatro dias e as gosto menos dos dias limpos, do céu muito azul. Eva respondeu-lhe
pessoas só reparavam na chuva. Ele e Eva já não se viam há mais como se não o tivesse ouvido, esta manhã fui nadar, faz-me bem
de u m mês e Eva atrasava-se como de eostume. Tentou acalmar-se nadar, ele continuou sem lhe responder, apontou para a rua, já
olhando para a chuva que batia no vidro tocada pelo vento. A estão a enfeitar tudo para o natal, põem as luzes cada vez mais
chuva era feita de muitas gotas redondas que perdiam rapida- cedo, Eva insistiu, não por entusiasmo n e m por desprezo, era ape-
mente a forma e escorregavam pelo vidro n u m risco. Riscos de nas o privilégio de se eonheceram há tanto tempo, de serem tão
água no vidro. Eva devia estar presa no trânsito mas por uma vez próximos, estive a boiar, o tecto da piscina é transparente, quando
ele não podia esperar o tempo que fosse preciso. U m carro buzi- me deito na água vejo o céu, parece que estou dentro das nuvens,
nou a u m h o m e m que atravessava a estrada. U m a mulher abri- um pássaro parado no céu, ele disse, este ano puseram estrelas e
gou-se na entrada de uma loja olhando desesperada para a chuva. 3sas de anjos, no ano passado foram sinos, acho que gostava mais
Outra protegeu o filho apertando-lhe o casaco grosso e puxando dos sinos, Eva interrompeu-o, se pudesse passar os dias dentro de
o carapuço, a criança reclamou porque a lã lhe arranhava a pele- ^gua, ou então devíamos poder voar, ou pelo menos bastava ele-
Nos dias de ehuva as pessoas eram mais bonitas e vistas de dentro varmo-nos u m pouco da terra, levantar os pés do chão para deixar-
do eafé eram peixes n u m aquário. mos de sentir o peso do corpo, nunca sonhaste que voavas, quase
Eva finalmente apareceu. Trazia u m casaco cinzento qoe "unca me lembro dos sonhos, eu sonho tantas vezes que estou a
combinava com o dia. Cheirava a perfume caro e a tabaco. Curn- toar, deve querer dizer alguma coisa, por exemplo, calou-se por-

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que nunca dizia o nome do marido, se não o nomeasse ele não Ele só queria ir-se embora mas era a única coisa que não lhe
existia entre eles e não se pode trair quem não existe, generalizou, podia dizer, nunca lhe tinha falado da rapariga bonita que o espe-
sei de quem nunea tivesse sonhado que voava, aliás há pessoas que rava, falou-lhe da pensão, para Eva tinha inventado que a senhoria
quase não sonham, deve ser tão chato, d o r m e m apenas, é estra- era uma viúva de u m almirante entrevada que ele acompanhava
nho, não é? de vez em quando ao médico, a viúva entrevada tinha u m únieo
Percebeu que o marido de Eva não sonhava, era u m homem filho que vivia no estrangeiro, tinha inventado esta verdade só para
prático, foi assim que Eva o definiu quando o conheceu no hospi- Eva que o ouvia desatenta, da pensão sabia pouco mais que o
tal, estavam a jantar e Eva disse, hoje foi lá ao hospital u m homem número de telefone, nunca tinha lá ido, não corriam riscos desne-
vender equipamento, máquinas, ealhei a falar com ele, e sabes é a cessários, Eva nunca poderia avaliar o trabalho que ele tinha ao
pessoa mais prática que já conheci, nunca tinha conhecido nin- inventar uma verdade para eada pessoa, a calma que era necessá-
guém assim, ele pensou o que seria uma pessoa prátiea, óculos ria, o controlo, a memória, ele tinha sempre que esperar pelo que
pendurados na corrente, sacos plásticos, o comando à distância, precisava de ser dito, nunea se podia antecipar, era u m jogo, a carta
tudo isto são objectos práticos, mas u m h o m e m mais prático não que sai determina a jogada seguinte, tudo dependia do que Eva
conseguia imaginar o que fosse apesar de Eva garantir que tinha perguntasse, cumpria as regras apesar de Eva o ouvir sem dar i m -
conheeido, naquela noite enquanto jantavam Eva não adivinhava portância aos pormenores, aos pequenos detalhes, o mais difícil, o
que se easaria pouco depois com o h o m e m prátieo, que viveriam que é inventado tem de ser rigorosamente certo até ao fim, u m
na casa grande junto ao mar, mais tarde Eva disse, foi mais prático pequeno erro estraga o trabalho todo, só a vida se permite errar, Eva
assim, e ele concordou. não podia avaliar o trabalho de se inventar uma vida lógica e rigo-
Eva continuou a falar de água, que precisava muito de água rosamente certa para cada pessoa, u m jogo difícil mesmo se as car-
mas não desta maldita chuva, deve ser por causa do signo, nunca tas estão marcadas, viciadas, era por isso que não descurava u m
conheci Peixes que gostassem de chuva, ele ouvi-a, Eva conti- pormenor apesar do desinteresse de Eva, falava da pensão quando
nuava, detesto o frio, sou tão infeliz nestes dias, eu não me Eva o interrompeu para lhe dizer que o aehava estranho, u m pres-
importo, as pessoas ficam mais bonitas, há uma higiene no frio sentimento que a ineomodava, ele tossiu atrapalhado porque
que me agrada, u m a higiene, as pessoas c h e i r a m menos mal, receou que Eva soubesse tudo.
transpiram menos, tapam-se mais, agrada-me a decência do frio, Eva podia estar a dar-lhe uma oportunidade, conta-me o que
dizes cada coisa mais disparatada, higiene e decência no frio, eu quiseres que eu faço de conta que acredito, fala-me na tal rapariga
só vejo pessoas exasperadas, não sei que beleza podes ver nestas desde que não me magoes, podia estar a dar-lhe tempo de cons-
pessoas tão incomodadas, acendeu u m cigarro e expirou rapida- huir com os factos outra verdade, sabia o que Eva aceitaria, tinha
mente o f u m o , não devia ter vindo, ando sem paciência, ainda de contar a sua nova vida de forma a agradar Eva, tudo dependia
pensei em desmarcar mas já não te vejo há tanto tempo, não sabia de como construisse a história, tinha que omitir factos, por exem-
nada de t i , estes dias põem-me doida, se pudesse ficava na cama Plo, que procurou desperadamente a rapariga bonita todos os dias,
até, não tens nada para me contar? hnha que omitir tudo o que desagradasse Eva, inventar outra ver-

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dade que Eva aceitasse, mas aeima de tudo queria ir-se embora, forma de Eva lhe dar tempo para que ele lhe mentisse convenien-
tinha q u e m o esperasse e uma verdade demora sempre algum temente, u m jogo que se joga a dois, talvez Eva, o medo aflorou-
tempo a ser inventada, tinha deixado de ter tempo, foi por isso que Ihc aos olhos, u m olhar infeliz posto sobre a mesa do café que fez
deixou Eva com a verdade antiga, quando se conta uma verdade com que Eva dissesse, olha como andas mal agasalhado, ainda apa-
nova t e m de se corrigir tudo o que fica para trás, precisava de nhas uma gripe, vê-se mesmo que não tens quem cuide de ti.
tempo, sabia que Eva queria que ele existisse sem ninguém, gos- Sacudiu da toalha o medo que os olhos estenderam sobre a
tava de lhe poder perguntar, há quanto tempo não tens ninguém, mesa, Eva olhava-o como dantes, preocupava-se com uma gripe,
por isso tinha de ser cauteloso, Eva podia reagir mal e ele precisava de certeza que a mãe não tinha falado c o m a tia, a tia não tinha
daquela vida específica, precisava do cartão de crédito que lhe per- falado c o m Eva, de qualquer maneira tinha sido estupidamente
mitia aquela vida. Eva zangara-se com ele quando aceitou o pe- imprudente, tinha-se aproximado demasiado da verdade, quando
dido de casamento do h o m e m mais prático que tinha conhecido, visitou a mãe procurava a rapariga bonita, era u m a questão de
disse-lhe, sei que estás farto de m i m , que nunca me amaste mas tempo, u m inventor de factos deve precaver-se dos factos que se
penso que é uma limitação tua, com o tempo conseguirei apurar a podem tornar verdadeiros, tinha corrido perigo desnecessaria-
verdade e se assim for perdoo-te, se descobrir que me enganaste mente, as vidas dele dependiam apenas do momento eerto onde
sou capaz de te matar, olha que estou a falar a sério, ele aceitou a parava, nas vidas dele não existia a morte, o único limite era ape-
limitação que Eva lhe impôs, se Eva queria u m caso perdido ele nas o momento certo de parar, u m vício controlado, enquanto se
era capaz de o ser, a única coisa que conseguia fazer era ser o que controlasse tudo correria bem, nunca seria descoberto, sou muito
os outros queriam que fosse, e Eva não podia saber de nada, mas de bom naquilo que faço, imaginou-se a dizer à mãe, sou alguém na
repente lembrou-se que a mãe podia ter comentado com a tia de vida, como a mãe quis, é preciso inventar tudo muito bem para
Eva que o filho se ia casar, e a tia podia ter dito a Eva, assustou-se, que a voz nunca falhe, é u m trabalho árduo fazer c o m que todos
tinha sido imprudente, tinha-se deixado levar pelo entusiasmo dc os factos c o i n c i d a m , u m trabalho minucioso que não admite
ser o que a mãe queria, sempre tinha seguido a regra de nunca se erros, u m trapezista sem rede, o perigo estava em todo o lado, em
aproximar de u m facto que se podia tornar verdadeiro, talvez Eva qualquer pessoa, a memória dos outros era u m perigo sério, a
soubesse de tudo e apenas esperasse a oportunidade de se vingar, argúcia outro, isto para não falar no acaso que nunca se pode con-
de lhe chamar miserável, talvez Eva só se quisesse vingar, sc des- trolar, Eva estava diante de si e olhava-o como dantes, ainda não
cubro que me enganaste sou capaz de te matar, queria ir ter com sabia, continuava a acreditar na verdade que ele lhe tinha ofere-
a rapariga bonita, se tivesse tempo podia inventar outra verdade cido, a mãe acreditava noutra, a senhoria noutra, cada pessoa que
para Eva, se tivesse tempo. se cruzava com ele podia contar com uma verdade feita à sua me-
E se estivesse quase a perder Eva para sempre, se ao menos dida, haverá melhor forma de amar, apesar de tudo sempre a voz
tivesse lido a carta que Eva lhe escreveu em vez de a deitar no cai- de Eva, és u m caso perdido, haverá maior manifestação de amor
xote do lixo, Eva insistia, estás tão estranho, devia ter lido a carta, do que a de não confrontar o ser amado com uma verdade que não
teria percebido a desconfiança, convenceu-se que a carta era uma ^^seja, se assim não fosse Eva daqui a pouco não partiria descan-

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sada para a casa grande perto do mar, não se sentaria na sala da casa desta maneira, ainda era u m aprendiz da arte que veio a ter, ter
grande a admirar a piscina, apesar de estar tapada com plástico por outras vidas é u m trabalho que exige experiência, quando saía à rua
ser inverno, a descansar os olhos no aquário que vai de u m lado ao as vizinhas cochichavam, não faz nada, nunca vi tanta preguiça, a
outro da parede, se assim não fosse Eva não partiria descansada coitadinha merecia bem melhor mas quem corre por gosto não
para os três níveis de água que considerava essenciais, sou Peixes, cansa, o dono do café olhava-o enojado, u m h o m e m não se deixa
preciso de água para demolhar o coração, Eva era injusta quando sustentar pela mulher, foi o agouro dos olhos da mãe que os perdeu,
o acusava de ser u m caso perdido, desconhecia-o profundamente, no tempo que passava em casa podia ter feito o jantar, ter escrito
ele era tudo o que os outros quisessem, quase nada nele era essen- amo-te no armário da casa de banho, ter comprado u m ramo de flo-
cial ao contrário de Eva que ainda deixa a luz acesa no quarto da res, podia ter feito tantas coisas que aliviassem o cansaço de Eva, que
casa grande, Eva continua com medo do escuro, ninguém muda a compensassem da má escolha, mas deixava-se sempre ficar a ver
convence-te, é o que Eva lhe diz, realmente não mudou, ou então televisão, deitava-se no sofá e lia revistas aos quadradinhos, comia
só os seus medos e suas angústias é que são definitivos, tão definiti- bolachas de água e sal, Eva apesar de tudo enternecia-se, pareces
vos que n e m parecem verdadeiros, a verdade pode mudar de um miúdo, nunca soube que ele se demorava a tomar banho, a bar-
segundo a segundo mas a mentira possui artificiosamente o dom bear-se, detinha-se em qualquer coisa, conhecia perfeitamente os
da eternidade, se Eva lhe pedisse para ir dormir com ela, como o passos dos vizinhos de cima, sabia a quem correspondiam, à mãe,
fez na noite do corte geral de electricidade, não seriam capazes de ao pai, a cada u m dos três filhos, é difícil reconhecer os passos de
sentir o mesmo, no entanto o medo do escuro ainda seria igual ao cinco pessoas, são precisos muitos dias atentos, e depois havia
dessa noite, eles também, aquela noite tinha existido de verdade, outras coisas, por exemplo, as nódoas na alcatifa, ordenava-as por
mas a verdade muda, não foram felizes depois dessa noite mas Eva tamanhos, antiguidade e origem, também sabia as horas a que o
conveneeu-se que sim, fomos felizes nos primeiros tempos, afir- sol batia na jarra de vidro martelado, dias inteiros fechado à espera
ma, e é só nisso que quer acreditar, às vezes desculpa-se, a felici- que Eva voltasse do hospital, nunca a foi esperar, as minhas colegas
dade nunca é o que se imagina, fomos felizes só que a felicidade pensam que tu não existes, à noite enquanto Eva consertava ossos
não se descreve, não se toca, não se vê, claro que se esquece dos nas casas das vizinhas ele ia para o café, voltava depois de Eva ter
pequenos gestos em que a felicidade tem por hábito denunciar-se, adormecido, deitava-se e incomodava-se com o hálito de Eva que
flores compradas n u m sábado de manhã, uma caixa de bolos presa lhe perguntava as horas, com o corpo quente que se enroscava no
por u m cordel no domingo à tarde, nunca fizeram isso, não foram seu, o cabelo farto que lhe fazia comichão onde quer que tocasse,
felizes n e m na pequena medida com que a felicidade contenta os ainda havia as ehinelinhas de seda que Eva deixava ao lado da cama
que dela precisam, apesar de Eva dizer que sim, se calhar por se ter ^ que o faziam tropeçar e ficar irritado, as mãos de Eva que se lhe
esforçado muito. Eva esforçou-se muito em tudo, trabalhava de agarravam às costas, polvos, não queria estar ali mas também não
noite e de dia, ele andou por muitos empregos mas a maior parte do sabia para onde ir.
tempo esteve em casa, fechava as janelas e deixava-se lá ficar prote- Eva exigia-lhe tão pouco que foi fácil deixar-se ficar até que
gido dos outros, por ingenuidade pensava que os podia enganar Eva conheceu o h o m e m mais prático do m u n d o e se foi embora,

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as mesmas vizinhas que a lamentavam aeusaram-na, o que ela quer tivesse voltado a querer salvá-los, não tivesse aceitado o pedido de
é luxos, ele concordava, precisa de u m h o m e m rico, ainda hoje o casamento do h o m e m mais prático do m u n d o .
diz à mãe nas raras vezes em que se encontram, Eva sempre o de- Depois de ter dito várias vezes que tinha que se ir embora,
fendeu, apesar de se ter cansado de lutar pelos dois sempre o como sempre fazia, Eva finalmente partiu para a casa grande lon-
defendeu, durante muito tempo julguei que o m e u amor era sufi- ge de tudo e perto do mar. Ele saiu do café apressado, se se despa-
ciente para compensar a falta do t e u , f o i o que Eva lhe disse chasse ainda podia ir com a rapariga bonita ao cinema, t i n h a m
quando se foi embora, ele aborrecia-se daquele amor tão exage- combinado encontrarem-se perto da pensão mas talvez ainda fos-
rado, quase uma doença, para os salvar, algum tempo antes, Eva sem a tempo do cinema, a rapariga bonita gostava de histórias de
desejou uma criança, u m amor tão exagerado, quase uma doen- amor, queria fazer-lhe uma surpresa, se se despachasse ainda t i -
ça, nunca teve coragem de lhe dizer que não tinha qualquer inte- nha tempo de comprar uma dúzia de rosas vermelhas para lhe
resse em dar a vida a alguém, não era generoso n e m sequer vai- oferecer, desatou a correr sem pensar que u m amor tão exagerado,
doso, além disso não gostava de ver as mulheres tão inchadas de quase uma doença, podia ter chegado a vez dele, todos têm a sua
vida, mas para os salvar Eva, generosa, dispôs-se a ter u m filho, u m vez por muitas vidas que tenham, mais tarde ou mais cedo, u m
amor tão exagerado, quase uma doença, durante algum tempo amor tão exagerado, quase uma doença, torna-se fatal.
olhou esperançada para as montras das roupinhas pequenas, as
fotografias de bochechas desdentadas, durante a l g u m tempo
olhou esperançada mas ele eoneentrou-se numa vontade tão forte
que matou qualquer esperança, nunca lhe disse que não a queria
mãe, que o aborrecia aquele amor tão exagerado, que não se dei-
xava salvar assim tão facilmente, assim dito podia parecer tão
cobarde e tão cruel, mas a verdade é que se orgulhava dessa von-
tade que venceu Eva, vacilou uma vez e quase aconteceu, Eva
ficou tão feliz c o m o resultado do teste que compraram na farmá-
cia, as gotas de urina inequivocamente azuis, firmou a vontade e
passado uns dias Eva encheu-se de sangue, depois de ter derrama-
do o filho que tanto queria, foi depois deste acidente que Eva cho-
rou por estar quase morta e desistiu de os salvar, uma morta não
pode salvar ninguém, culpava-se porque o corpo dela não queria
acolher outra vida, dizia que não descansava o suficiente, que
tinha qualquer defeito, depois do acidente Eva aceitou pacifica-
mente a sua condição de imprestável e tornou-se perfeita aos
olhos dele, se tivesse elogiado essa forma de perfeição talvez Eva

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rio. Atravessam, funcionário e sombra, corredores que vão dar a
outros corredores. Os corredores têm muitas portas, mas a mãe
não se detém em nenhuma, não espreita para nenhuma. Avança
sempre. O funcionário olha-a com compaixão. É a mãe, o que
sentirá uma mãe depois do filho ter feito o que fez, depois do filho
ter ficado assim, pensa o funcionário. O que sente uma mãe?
A mãe avança pelo último corredor, acompanha o funcioná-
rio. Apesar de só ver o filho duas vezes por ano, senta-se em frente
ao médico para falar de u m estranho. Mas ainda assim ninguém
pode deixar de sentir compaixão por esta mãe. O médico tam-
bém não.

o mesmo funcionário regressa com a ex-mulher à sala. Pede


à mãe que o acompanhe. A ex-mulher senta-se no banco de
madeira. Acende u m cigarro e prepara-se para esperar que o fun-
cionário a leve até ele. O médico não lhe disse quando é que o
podia ver, disse-lhe apenas que o podia ver e que ainda podia pre-
cisar dela.
A ex-mulher não foi sincera nas declarações que prestou. A
maior parte das vezes a verdade é incompreensível e por isso des-
necessária. O médico nunca a compreenderia. A ex-mulher
nunca teve medo da primavera e t a m b é m não compreende o
medo do médico. A ex-mulher apaga o cigarro e esfrega as mãos
que estão frias.
A mãe levanta-se para acompanhar o funcionário e guarda o
rosário na carteira de cabedal muito lustroso. A senhoria retoca os
lábios c o m a ponta dos dedos gordos. A rapariga dorme com as
mãos sobre a barriga. A luz coada do saguão esconde a figura ma-
gra da mãe que abandona a sala, no corredor a mãe é uma sombra
projectada na parede que acompanha naturalmente o funciona-

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rapariga bonita tinha-o escolhido no m e i o de ursos, coelhos,
quero aquele cão de rabo verde, aquele ali, ele esforçava-se para
apanhá-lo c o m os três ganchos metálicos, carregava no botão,
aproximava as garras do boneco, a rapariga bonita estava pendu-
rada no braço dele o que lhe dificultava os movimentos, podia
mandá-la afastar-se mas não o fez, tinha medo que ela desapare-
cesse outra vez como quando a via em todo o lado. A máquina
parou e os ganchos metálicos desceram e elevaram-se, o cão da
cauda verde-alface tinha escapado.
— Fica para a próxima. Vamos embora — disse a rapariga
bonita que tremia de frio.
— Só mais uma moeda. Se não conseguir desta, desisto, pro-
meto que desisto.
— Gostas mesmo de m i m ? — A voz mimada, a respiração no
Não vos lembreis mais dos acontecimentos passados pescoço a fazer-lhe cócegas. — Gostas assim tanto de mim?
não presteis atenção às coisas antigas. — Desde o primeiro dia em que te vi — pôs uma moeda na
Eis que vou realizar uma obra nova, máquina e as garras de metal recomeçaram a trabalhar — , desde
a qual já começa: Não a vedes? que te vi na praia.
Vou abrir um caminho no deserto, Esforçava-se mas não conseguia prender o cão e içá-lo. Afas-
e fazer correr rios na estepe. taram-se da máquina dos bonecos e abraçaram-se. A rapariga
Is. 43,18-19 bonita não lhe tornou a dizer que nunca tinha ido à praia de que
ele falava. Já se tinha cansado de o dizer e convenceu-se que não
Portavam-se eomo apaixonados. Andavam abraçados na rua. faria diferença ter ido ou não à tal praia de que ele falava.
Bei javam-se. Riam-se de tudo. Não achavam nada de que não gos- — Aonde vamos?
tassem. Falavam ao mesmo tempo e forçavam coincidências. — A u m lado qualquer. Estou bem desde que estejas ao pé de
Quando se deitavam provocavam o desejo com medo de adorme- mim.

cerem sem se terem amado. Quando isso acontecesse a ilusão des- T i n h a copiado esta resposta de Eva, repetia as palavras que
fazia-se e a verdade apareceria intolerável. Seriam apenas dois Eva lhe costumava dizer, estou sempre bem desde que estejas ao
corpos que não sabiam o que faziam ao lado u m do outro. pé de m i m , a rapariga bonita ouvia-o sem saber da existência de

M e t i a u m a moeda e carregava nos botões da máquina, Eva, tremia de frio, entraram numa avenida muito enfeitada de

comandando os ganchos metálicos de forma a apanhar o boneco natal, os troncos das árvores estavam rodeados de luzinhas, as

que a rapariga bonita queria, u m cão com a cauda verde-alface. A copas de estrelas, de u m lado ao outro da avenida anjos enormes

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c o m cornetas, era quase assustador tanto natal, as montras das sempre assim e nunca mais pararia de se rir n e m de caminhar
lojas estavam decoradas de muitas maneiras, havia neve artificial abraçado, não temia a voracidade deste estado feliz, não receava
no chão das montras, a rapariga bonita tremia de frio apesar do ca- nunca ser saciado, caminhavam abraçados e o mundo era perfeito
saco forte e das botas de camurça clarinhas que ele lhe tinha ofe- como nunca fora.
recido, os empregados de u m café andavam às voltas c o m u m Pararam numa montra de uma ourivesaria. A rapariga bonita
pinheirinho plástico que tinha caído ao chão, a caixinha forrada disse que precisava de uma figa em ouro contra o mau-olhado,
de papel prateado com votos de feliz natal e b o m ano novo tinha tinha perdido a que a mãe lhe dera pouco antes de o conhecer. Ele
vertido as moedas todas pelo chão, espreitaram para o café e con- ficou contente por lhe poder oferecer mais uma coisa. A rapariga
tinuaram a andar, ele não lhe largava a mão, quando não a abra- bonita explicou-lhe que a figa de ouro a protegia contra a maldade
çava agarrava-lhe a mão c o m força, continuava com medo que do mundo e que ele também devia comprar uma, que todas as pes-
desaparecesse, tinha demorado tanto a encontrá-la, a rapariga soas precisam de se proteger do mal. Ele disse-lhe que tinha pra-
bonita parou em frente a uma montra. zer em lhe oferecer tudo o que ela quisesse mas que não costu-
— Queres alguma coisa? — perguntou ansioso. — Escolhe mava usar nada. Quando entraram na ourivesaria pediu à rapariga
o que quiseres. bonita que comprasse também uma corrente para o tornozelo e
A rapariga bonita continuou indecisa enquanto ele esperava um coração igual ao que tinha. A rapariga bonita surpreendeu-se,
ansioso. Abanou a cabeça e disse que não queria nada, estava can- nunca tinha usado pulseiras no pé, ele insistiu, compra uma igual
sada e queria dormir u m bocado, ele olhou-a desiludido, queria à que tinhas quando te conheci na praia. A rapariga bonita enco-
sempre que ela quisesse coisas, não se lembrava do enfado com lheu os ombros e mais uma vez não o contrariou, não lhe disse que
que recebia os presentes de Eva, a rapariga bonita insistiu que nunca tinha ido à praia de que ele tanto falava, nunca tinha usado
queria dormir. pulseiras no tornozelo, ele devia estar a confundi-la c o m outra
— Não podemos ir já para pensão — disse contrariado. — pessoa, se não tivesse receio que ele se fosse embora ter-lhe-ia dito,
Não podemos ir já para a pensão porque a senhoria... mas gostava dos dias que passavam juntos, de ser tão desejada, no
A rapariga bonita fez sinal que compreendia, não se mostrou início tinha tentado dizer-lhe mas ele não a quis ouvir, claro que
zangada, seguiu-o, continuaram abraçados, riram-se, paravam nas podia ter insistido, podia ter pedido para que ele olhasse bem para
montras, atrapalhavam as pessoas que andavam apressadas cheias ela, vês como não sou a tal rapariga, há sempre maneira de dizer o
de embrulhos de natal, ouviram uma velha dizer, esta época é um que se quer, mas gostava dos dias que passavam juntos e pensou
inferno, u m verdadeiro inferno, riram-se muito, ele não estranha- que também não haveria grande diferença, se ele se sentia tão
va rir-se tanto de nada, caminharem assim tão abraçados, pare- hem ser ela ou a tal rapariga da praia era a mesma coisa. De resto,
cia-lhe que tinha sido sempre assim, toda a sua vida se rira abra- existiam tantas outras coisas que a rapariga bonita não percebia na
çado à rapariga bonita, o rapaz que passava as tardes no muro ^ida dele que a referência constante a u m dia de praia, ou a u m
tinha desaparecido, o h o m e m que se tinha casado com Eva tam- eorte no pé, era só mais uma dessas coisas, uma rapariga e u m dia
bém, toda a sua vida se rira abraçado à rapariga bonita, tinha sido de praia não podiam encerrar nada de tão grave.

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Compraram a figa em ouro, uma pulseira em prata para o mais à frente ficaram duas famílias soterradas nos escombros,
tornozelo e o coração. Ele pagou com u m dos cheques que Eva tinha que lhe fazer ver que era perigoso continuarem ali, não per-
lhe tinha dado para usar em caso de emergência enquanto esti- cebia como é que ele não tinha medo, a rapariga bonita tinha a
vesse no estrangeiro. Foi a primeira vez que ele utilizou u m des- conversa ensaiada mas estava à espera de uma oportunidade, o
ses cheques, mas qualquer desejo da rapariga bonita era para ele êxito de uma conversa depende acima de tudo das circunstâncias,
mais do que u m easo de emergência. Quando saíram da ourivesa- a rapariga bonita não sabia dizer isto assim mas já tinha aprendido
ria, a rapariga pediu-lhe para colocar a figa no cordão que trazia a lição com outros homens, pode-se dizer tudo desde que seja na
ao pescoço e as mãos dele tremiam tanto que quase não conse- melhor altura e da melhor forma.
guia. Depois a rapariga bonita pôs no tornozelo, por cima da meia, Ao entrarem cruzaram-se com o rapaz do quarto andar que
a pulseira com o coração. Beijaram-se. A rapariga bonita ainda o ralhava com os irmãos que brincavam às grutas c o m as paredes do
censurou por não ter comprado uma figa para se proteger do mal prédio, cumprimentaram-se rapidamente, subiram as escadas, os
mas depois começou a rir. Ele disse-lhe que enquanto a tivesse restos do menino continuavam a segurar no mundo no arranque
junto dele nada de mal lhe poderia acontecer. A rapariga bonita do corrimão, a rapariga bonita não reparou nas baratas que se lhe
olhou-o muito séria e ofereceu-lhe o coração, mais uma vez, não atravessavam à frente, no corrimão solto, subia as escadas depressa
tenho nada para te dar mas ofereço-te o meu coração, gostas tanto para deixar de ouvir os gritos da criatura do segundo andar, de
de m i m que o m e u coração é teu. Ele beijou-a e continuaram a tudo o que a incomodava mais eram os gritos, já lhe tinha dito que
andar abraçados pela avenida enfeitada de natal, ele não achava aqueles gritos lhe faziam muita impressão, ficava toda arrepiada,
nenhuma conversa ridícula, n e m sequer esta em que a rapariga nunca tinha ouvido ninguém gritar assim, ele acalmou-a dizendo
bonita lhe ofereceu o coração. que era uma pobre mulher que tinha enlouquecido, é completa-
Regressaram à pensão quando já o p o d i a m fazer. Não se mente inofensiva, não sai de casa há mais de trinta anos, u m dos
podiam afastar dos horários habituais, os olhos da senhoria obri- hóspedes disse-me que tem u m aspecto horrível, parece u m ani-
gavam-nos a viverem de uma maneira decente, a senhoria não mal, ele abanou a cabeça, o reformado adora contar histórias, de
podia permitir que vadios como eles manchassem o nome da sua qualquer maneira a rapariga bonita subia sempre as escadas a cor-
pensão, eles t i n h a m aceitado, enquanto se mantivessem decen- rer, entraram na pensão e foi nesse momento que lhe perguntou
tes a senhoria fechava os olhos e não queria saber de mais nada. quem era o rapaz que t i n h a m visto à entrada.
A rapariga bonita não gostava de viver na pensão n e m da Quando a rapariga bonita lhe perguntou quem era o rapaz
senhoria. Queria conveneê-lo a mudar-se para outro sítio, fa- ele sentiu u m incómodo desconhecido no peito, na cabeça, até
lar-lhe-ia nisso quando surgisse u m a oportunidade, tinha pen- parecia que a criatura tinha começado a gritar mais alto, deu u m
sado várias vezes na maneira de abordar o assunto, começaria rnurro na parede, cala-te sua desgraçada, eomo não conhecia o
assim, não tens medo de viver aqui, e depois dizia-lhe que tinha ciúme não identificou os sintomas, sentia-se m a l , desesperado,
medo que o prédio caísse, tinha lido o aviso que estava afixado na enraivecido, respondeu tentando controlar o mal-estar, os pais
porta do prédio, u m dos hóspedes tinha-lhe dito que n u m prédio Ocuparam o quarto andar, são uns parasitas, os irmãos passam o

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dia a fazer buraeos nas paredes, é gente que não interessa nada olhe que há ciganas louras, só se forem mistas, a senhoria suspi-
apesar de se tentar controlar foi a primeira vez que lhe falou assim, rava, além do dinheiro que lhe fazia muita falta precisava de pes-
a dor desconhecida fê-lo perder a doçura em que besuntava a lín- soas na pensão, quantos mais lá vivessem mais difícil seria a demo-
gua sempre que lhe falava. A rapariga bonita reconheceu o ciúme lição do prédio, o edital continuava afixado na entrada do prédio,
que já tinha conhecido em outros homens e sentiu-se orgulhosa já lhe tinha chovido em cima, os miúdos já lhe t i n h a m rasgado
de o ter provocado, estava satisfeita, ainda b e m que ele tinha um canto mas a ameaça mantinha-se afixada na entrada do pré-
medo de a perder, a rapariga bonita sentiu-se mais segura depois dio, quem não soubesse pensava que se tratava de u m aviso sem
de ter reconhecido nele o ciúme que o desesperava. importância que tinha envelhecido c o m o prédio, na ausência
Quando ele a levou pela primeira vez à pensão apresentou-a deles a senhoria queixava-se, limpava as mãos na bata e acalma-
à senhoria como sendo a namorada que lhe escrevia do estran- va-se repetindo, a culpa fica com quem comete o pecado, a vida
geiro, a senhoria olhou para a rapariga bonita e não acreditou, era deles é lá c o m eles, são eles que hão-de prestar contas, às vezes
muito nova e tinha mau aspecto, o cabelo despenteado, as unhas acrescentava a pena da pobre coitada que lhe escrevia, se não lhe
roídas, as roupas m a l tratadas, uma pessoa c o m aquele aspecto fez o mesmo é bem parva, mas já agora c o m uma coisinha melhor,
não podia ter estado no estrangeiro, possivelmente nunca tinha en- cá se fazem cá se pagam, a papada da senhoria agitava-se e vomi-
trado n u m avião, de certeza que nunca tinha visto os envelopes tava provérbios, depois esquecia-se deles porque tinha coisas mais
das cartas que chegavam à pensão, a senhoria nunca acreditou importantes em que pensar, perguntava ao reformado, diga-me lá
nele mas fingiu que sim porque precisava de dinheiro, se os pu- como é que hei-de arranjar dinheiro para as obras, se conseguir
sesse na rua perdia a renda de dois quartos, ele ajudou-a, compôs fazer umas obritas não deitavam o prédio abaixo, o reformado
uma história que agradou à senhoria, eomo se i a m casar em breve mirrava no robe, o dinheiro é a coisa mais difícil de arranjar, pen-
a noiva tinha pedido uma licença no trabalho, e depois tinham sava, mas acabava sempre por dar o mesmo conselho, vá à televi-
tantas coisas a tratar que o melhor era ficarem os dois na mesma são, nos concursos da televisão é que se ganha muito dinheiro, a
pensão, claro que em quartos separados, haverá melhor forma de senhoria entusiasmava-se, de facto era uma maneira fácil e rápida
amar o próximo do que lhe contar a verdade que ele quer ouvir, de ganhar dinheiro de forma honesta, mas viam u m concurso e a
neste easo, haverá melhor forma de lidar c o m o próximo do que senhoria ficava abatida, não conseguia responder às perguntas, o
lhe dizer o que quer ouvir, ele ajudou a senhoria a aceitá-los, dei- reformado dizia, este só trabalha com a sorte, não precisa de saber
xou que a senhoria pedisse uma quantia exagerada pelo quarto nada, a senhoria chorava, nunca tinha tido sorte, se tivesse sorte a
para em troca poder considerar a rapariga bonita uma noiva. câmara não tinha escolhido aquele prédio para demolir com tan-
Na ausência deles a senhoria queixava-se ao reformado por tos prédios velhos na cidade, se não tentar não pode saber, a senho-
ter que os aceitar, já reparou naqueles cabelos que nunca devem ria afastava a ideia, também não quero fazer má figura na televi-
ter visto u m pente, o reformado concordava, não deviam ser pen- são, o reformado encolhia os ombros, olhe então não sei, muito
teados há mais de u m ano, e as roupas tão sujas, as saias tão com- dinheiro de repente só mesmo nos concursos da televisão, ainda
pridas, ainda deve ser aciganada, é esquisito ser tão loura, mas nm dia destes u m rapazito ganhou tanto dinheiro que ia ficando

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maluco, a senhoria abanava a cabeça, a m i m é que me fazia jeito, notícia, passou u m caso na televisão e inesperadamente estavam
o que eu precisava desse dinheiro, calavam-se e continuavam em ambos de acordo, foi assim que descobriram a maneira de salvar o
frente ao ecrã, viam as notícias, mas as mesmas notícias eram inter- prédio, tinham que denunciar o caso na televisão, era a única espe-
pretadas de forma diferente e as reacções eram diferentes, por rança, iam contar à televisão o risco que corriam, não só eles mas
exemplo, neste caso o jornalista disse, mais casos de tuberculose, várias famílias, crianças inocentes que iriam ficar sem tecto, con-
a senhoria comentou de imediato, se não tirassem as casas às pes- cordaram também que para a televisão não interessava dizer que
soas não t i n h a m tantos casos de tuberculose, o reformado ficou a eram clandestinos, e a pobrezinha do segundo andar?, o refor-
pensar mais u m pouco e depois, na última carta a m i n h a filha mado e a senhoria chegaram a comover-se depois de pensarem
contava que o marido anda com uma tosse esquisita, os casos de bem na desgraça, demorou vários dias mas também chegaram a
tuberculose não eram sentidos da mesma maneira, mas uma acordo na redacção da carta que escreveram para a televisão, o
cidade destruída também não, a senhoria disse, veja lá se aqueles reformado ditou a sua confiança muito individualista na justiça, se
prédios não estão bem pior que o nosso e ninguém os quer deitar não fizerem justiça n u m caso destes então é porque a própria jus-
abaixo, o reformado sempre mais lento, os meus netos estão quase tiça não existe, a senhoria estava mais habituada a rezar e implorou
a ir para a tropa, a senhoria zangava-se c o m o reformado, só pensa a intercessão de quem estivesse a ler esta carta, ambos se orgulha-
nos seus netos, e aqueles não são netos de ninguém, o reformado vam da carta, a senhoria ainda pediu aos parasitas que a assinas-
calava-se amedrontado, nunca respondia à senhoria, continuavam sem também mas eles não quiseram, eram clandestinos e os clan-
em frente ao ecrã, viam as notícias apesar de raramente se enten- destinos não assinam nada que os denuncie, a senhoria zangou-se
derem na interpretação das mesmas, a senhoria relacionava tudo mais uma vez c o m eles, nunca tinha sido clandestina e não con-
c o m o edital afixado na entrada do prédio, o reformado relacio- seguia compreender tão má vontade, não lhes custava nada assi-
nava tudo c o m a família que tinha espalhada pelo m u n d o , claro nar, foi então que a senhoria depositou a sua esperança toda na
que também não queria sair da pensão porque não era fácil miséria do segundo andar, se filmassem a velha a apanhar a
encontrar outro quarto tão barato, mas era u m problema secun- comida que lhe deixava na varanda, se filmassem a velha e não
dário, a vida dele era feita pelos filhos que se t i n h a m espalhado houvesse q u e m se comovesse o m u n d o estava definitivamente
pelo mundo, só os dois é que viam as notícias porque o gordo che- perdido e a senhoria podia morrer sem ter pena de o deixar.
gava cada vez mais tarde, o negócio das cervejas também não cor-
Quando entrou na sala da televisão c o m a rapariga bonita, a
ria b e m , quando as notícias não t i n h a m qualquer interesse a
senhoria e o reformado falavam outra vez da carta que t i n h a m
senhoria e o reformado voltavam ao assunto do dinheiro para as
escrito para a televisão, a senhoria estava sempre a falar na carta
obras, da vadia, dos parasitas que ocuparam as casas, dos vários
porque ainda não tinha havido resposta, se calhar não a recebe-
passados que recriavam conforme os dias, da forma de arranjar
••am, inquietava-se pela morada, o reformado sossegava-a, rece-
dinheiro, da vadia, as conversas entre eles eram circulares, fala-
bem muitas cartas e acontece sempre tanta coisa no m u n d o , não
vam sempre nas mesmas coisas com o mesmo entusiasmo.
lhes falta trabalho, a senhoria tinha prometido que se obtivesse a
Até que n u m serão senhoria e reformado ouviram a mesma graça mandava publicar no jornal uma oração à padroeira dos

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impossíveis, quando a senhoria os viu calou-se, não se podiam ser-
vir dois senhores, a senhoria temia que a vadia afastasse a pa-
droeira dos impossíveis e consequentemente a televisão, se pu-
desse punha-a na rua mas por enquanto eram muito úteis, não era
só pelo dinheiro, quando a televisão viesse filmar quantos mais vi-
vessem no prédio melhor, por enquanto até me fazem jeito, pen-
sava a senhoria para conseguir cumprimentá-los com u m sorriso,
o reformado quase não lhes falava, eram pessoas que não lhe inte-
ressavam, a senhoria fazia o favor de perguntar sempre pelo dia,
ele respondia pelos dois, eu f u i trabalhar como sempre e ela foi
conhecer o novo centro comercial, fez m u i t o b e m , a senhoria
dizia sempre fez muito bem, e ealava-se, se eles não estivessem
presentes teria voltado imediatamente ao seu assunto, gastam
tanto dinheiro só este prédio desgraçado é que não tem direito a
nada, não se podem servir dois senhores, ele e a rapariga bonita O médico recebe a mãe com simpatia. A mãe não agradece
despediam-se, t i n h a m que se deitar cedo, a senhoria e o refor- a simpatia apesar de a reconhecer. A mãe quer que o médico se
mado entreolhavam-se, não hão-de estar cansados c o m as noites despache, precisa de ir para easa jantar os flocos de aveia en-
que passam, a rapariga bonita não gostava de viver na pensão mas quanto vê televisão. Há muito tempo que a única coisa que a mãe
ainda não tinha encontrado uma oportunidade para lhe dizer, quer é repetir todos os dias os mesmos gestos até ao dia em que já
falavam muito pouco, esta noite dir-lhe-ia, e se fôssemos viver não precise de os fazer. O médico não pode conhecer esta von-
para outro sítio, a senhoria não gosta de nós, tenho medo dos gri- tade da mãe.
tos da velha de cima, o reformado é u m ordinário, não gosto deste A mãe começa por dizer que não pode ajudar em nada, não
cheiro a podre, qualquer dia cheiramos nós a podre, esta noite a sabe o que aconteceu, n e m percebe por que a chamaram, não vive
rapariga bonita tinha que arranjar maneira de lhe dizer que não com o filho há muitos anos, educou-o o melhor que pôde, n i n -
queria viver mais a l i , ele tinha que compreender que ninguém guém a pode responsabilizar por nada.
conseguia viver n u m sítio daqueles. O médico depois de a ouvir diz que precisa de lhe fazer umas
perguntas. Poucas. A mãe parece entender a necessidade do mé-
dico de fazer perguntas. Fica à espera sem ouvir a chiadeira man-
sinha na respiração do médico.
O médico repete as perguntas que fez à ex-mulher, considera
o seu filho uma pessoa agressiva, alguma vez reparou n u m com-
portamento mais estranho, a mãe nega tudo, sempre foi u m rapaz

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normal, n e m pior nem melhor do que os outros, sempre foi um Quando lhe acontecer o mesmo a si vai perceber, repete a
rapaz normal. O médico insiste, qualquer coisa que se lembre de mãe e depois fecha a porta com cuidado, afasta-se lentamente no
mais estranho, a mãe não se lembra, não se lembra de quase nada, corredor, o funcionário há-de apanhá-la mais à frente.
n e m do filho, nem dela, não sei o que estou aqui a fazer, diz. O médico pensa nos dois filhos que estão no colégio. A
O médico esforça-se por ser simpático, mas os olhos enevoa- menina tem u m aparelho nos dentes de leite e o rapaz óculos cor-
dos da mãe incomodam-no. A senhora está aqui porque o seu filho rectores. O médico protege-lhes assim o futuro, mas nunca tinha
assassinou uma mulher. A mãe não tem qualquer reacção. Alguma pensado que não existem apetrechos capazes de corrigir almas de
vez lhe tinha falado nela? assassinos e isso assusta-o.
Mais uma vez a mãe nega. N e m os jornais l i , acrescenta. Não Quando deixa de ouvir os passos da mãe, o médico só deseja
sei de nada. O médico ainda tem boa vontade, apesar de tudo é a que o dia acabe depressa, o corpo vai cedendo à primavera que
mãe, aquela mulher é a mãe de u m assassino que abriu o peito de existe lá fora, risca o que tinha escrito na sua letra bonita e legível,
uma m u l h e r à facada, aquela m u l h e r não pode ter u m castigo interrogar novamente a mãe, risca c o m muita força para se esque-
maior. É só por isso que o médico é tão paciente. O seu filho po- cer dos olhos agourentos da mãe.
derá ter matado por ciúmes? A mãe fecha os olhos, responde,
acredito que possa ter matado por o que quer que seja, mas ele de-
ve ser julgado pela lei de Deus e não dos homens.
O médico não quer desistir da mãe porque t e m a certeza que
as mães conhecem os filhos que geram. Pede-lhe que aguarde na
sala porque ainda pode precisar dela. Ainda tem esperança que a
mãe fale com ele, que lhe conte o segredo daquele filho. A mãe
aceita o pedido contrariada. Tem pressa e não tem nada a dizer
mas fará o que lhe mandam, sempre fez o que lhe mandaram.
O médico escreve na sua letra bonita e legível, interrogar ou-
tra vez a mãe, e sorri para a velha que se afasta devagar. O corpo
do médico enfrenta a primavera que existe lá fora.
Antes de fechar a porta, a mãe pergunta ao médico se tem
filhos. Dois, responde o médico, c o m ternura, dois. A mãe diz, en-
tão quando lhe acontecer o mesmo a si verá que não tem nada
para dizer, a única coisa que se tem é tanta vergonha que os olhos
dos outros nos queimam, quando lhe acontecer o mesmo vai per-
ceber que u m filho pode ser u m azar muito grande que ninguém
consegue explicar.

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niuito inquieto, a rapariga bonita achou-o maçador, não gostava
que não a deixassem dormir e foi isso que lhe espantou o sono e
que a fez sentar na cama.
C o m e ç o u , não é nada de especial, é sobre a pensão, há
quanto tempo é que aqui estás. Ele não sabia ao certo, há algum
tempo, bastante, a rapariga bonita continuou com a voz meiga, é
tão desagradável o sítio, e as pessoas são tão más, sinceramente
não percebo por que é que estás aqui. Ele não se lembrou de nada
especial, n e m sequer do insecticida, respondeu, calhou, a rapa-
riga bonita tinha encontrado a oportunidade por que esperou,
podia dizer-lhe tudo que ele não se zangaria, mas se estás aqui há
tanto tempo deves saber porquê, ele continuou calado, não tens
que aqui ficar pois não, a voz da rapariga bonita foi deixando de
ser meiga ao mesmo tempo que sentia o medo dele, ele respondeu
Q uando sentiu que todos se deitaram, foi ter com a rapariga de forma segura, claro que não, posso mudar-me amanhã mesmo,
bonita ao quarto sempre c o m cuidado para que não o ouvissem. a rapariga bonita ficou muito satisfeita, pensou, os homens são
C o m o não podia acender a luz guiou-se pelo tacto, na pensão mesmo assim, deixam-se ficar nos sítios sem razão, para além disso
todos sabiam que dormiam juntos, mas tinham que manter a de- tinha percebido que ele precisava mais dela do que ela dele, podia
cência da pensão, era esse o acordo, entrou no quarto, a rapariga fazer o que quisesse enquanto isso acontecesse, ele começou a fa-
bonita já tinha adormecido, deitou-se ao lado dela, passou-lhe a zer planos, podiam mudar-se para outro sítio, u m quarto de casal,
mão no cabelo, no escuro ainda sentia o mar mais próximo, o mar a rapariga bonita acompanhou-o, os planos iam sendo cada vez
de quando a viu pela primeira vez, as ondas quebravam-se mansas mais ambiciosos, a rapariga bonita foi amolecendo naquele f u -
na areia, a penugem dourada, os mamilos tesos cobertos pelo pani- turo tão bem encaminhado, o sono voltou, antes de adormecer
nho cor de m e l , acordou-a com u m beijo, precisava dela, u m amor disse-lhe que durante a semana tinha de ir visitar uns amigos e que
tão exagerado, quase uma doença, a rapariga bonita deixou-se por isso ficava uns dias fora, agora já lhe podia falar assim, tinha
abraçar, ele colou o seu corpo ao calor do dela, gostou de lhe sen- percebido que ele precisava mais dela do que ela dele.
tir o suor do sono, u m desejo tão sôfrego, quase uma doença. Ele surpreendeu-se, amigos, a rapariga bonita respondeu na-
Depois de se terem amado, a rapariga bonita disse-lhe que no furalmente, sim, amigos, então também vou, quero ir sozinha, mas
dia seguinte precisavam de conversar, ele assustou-se, era a pu- sle queria dizer-lhe que ela já não existia sozinha, eram apenas
meira vez que a rapariga bonita dizia que precisavam de conver- Um, a rapariga bonita ainda se riu de tanto sobressalto, são dois dias,
sar no dia seguinte, diz-me hoje, a rapariga bonita tinha sono, que- ^le tinha tanto medo que ela desaparecesse de novo, é longe?, não,
ria dormir mas ele não a deixou, o que me queres dizer, estava sntão posso ir contigo perfeitamente, como se a distância interes-

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sasse, como se não a seguisse até ao f i m do m u n d o , a rapariga sentiu-o adormecer, u m sono profundo, fechou os olhos muito
bonita tornou a dizer que queria ir sozinha, ele insistiu, vou con- assustado só c o m a ideia de a perder, decidiu segui-la, tenho que
tigo, era uma ordem, vou contigo, a rapariga bonita aborreceu-se, descobrir aonde vai, a respiração da rapariga bonita era pausada,
não vais nada, ele zangou-se, só se te vais encontrar com alguém quase harmoniosa, estava tão desprotegida ao lado dele, e se a
que eu não possa saber, estava desconfiado, sofria, outra vez prendesse, se a obrigasse a aceitar a sua companhia, tenho que a
aquela dor no peito que o desesperava, a rapariga bonita divertia-se seguir, ele e Eva também se portavam como amantes, encontra-
e zangava-se ao mesmo tempo, vou sozinha e tu pensa o que qui- vam-se sem que o marido dela soubesse, quem lhe dizia que, não
seres, ele não queria que isto estivesse a acontecer, era a primeira conseguia aceitar que ela se pudesse encontrar c o m outro ho-
discussão que t i n h a m , ele não queria nada que fosse diferente dos mem, lembrou-se do rapaz do quarto andar, será que, l e m b r o u -
dias perfeitos que t i n h a m passado, quem seriam os amigos, a rapa- -se de muitos rapazes que se cruzaram com eles, a rapariga bonita
riga abraçou-o, nunca conheci ninguém tão ciumento, ele ren- olhava-os, esquecia-se dele, nessas alturas até a compreendia, são
deu-se, deixou-se ficar sobre o peito da rapariga, uma criança mais novos e mais bonitos, mas agora revoltava-se, ele e Eva não
assustada a implorar para não ser deixada, ficas comigo para sem- faziam nada de mal mas mesmo assim, e se a acordasse e lhe dis-
pre, estava quase a chorar, a rapariga bonita sacudiu-o porque não sesse que ela era u m a , quem se deita com u m h o m e m na cama
gostava de homens tão fracos, mesmo assim acalmou a criança sem o conhecer, a voz da mãe na noite do corte geral de electri-
assustada com a brincadeira que costumavam ter, já te dei o meu cidade, os olhos agourentos que ele enxotou violentamente c o m
coração, já não o posso dar a ninguém, mas estava farta de tanto as mãos.
amor, disse-lhe muito séria, se queres viver comigo tens que con- N o escuro as recordações batiam umas nas outras conflituo-
fiar em m i m porque não gosto que me prendam, u m pardal tam- sas, os pensamentos desordenados, o escuro piorava tudo, seria
bém morre se o aprisionam, sobrevive apenas na rua, ele concor- isso que Eva não aguentava, aqueles pensamentos tão desordena-
dou, não tinha outra alternativa, regressou aos planos, tinha que a dos, ele e a rapariga bonita t i n h a m passado dias tão bons, mas o
manter acordada, não te afastes de m i m nem que seja para dormir, comportamento da rapariga bonita sempre foi estranho, nunca
a rapariga bonita olhou-o incrédula, amanhã começamos a procu- lhe tinha perguntado por que mentiam à senhoria, a que noiva se
rar u m sítio novo, por que não uma casa, uma casa a sério, a rapa- referiam, donde vinha tanto dinheiro se ele não trabalhava, como
riga bonita entusiasmou-se, há muito que quero ter uma casa a é que podia aceitar tudo sem nada perguntar, ninguém consegue
sério, u m tapete à entrada, u m telefone, vamos ter telefone, não aceitar uma vida assim, a não ser que não se interessasse nada por
vamos, a rapariga bonita queria u m telefone, precisas de telefonar ^le, que não amasse, começou a transpirar, a rapariga bonita não
a alguém, de novo inquieto, a dor nova que o cegava, a rapariga c amava apesar de lhe oferecer o coração, ia fugir, era por isso que
bonita não lhe respondeu, virou-lhe as costas, não me podes dizer ^le não a podia acompanhar, que aceitava tudo sem perguntar
quem são os teus amigos, aonde vais, era tão patético a implorar, •^ada, no escuro a verdade vê-se mais facilmente, tentava confor-
não me faças isso, a rapariga bonita estava farta e queria dormir, ^ar-se com os dias tão bons que passaram juntos, refazia tudo, gosta
não precisas de ter ciúmes, ele agarrou-se muito ao corpo dela, rnim mas não se quer sentir presa, há pessoas assim, mas ele já

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não podia viver sem ela, uns dias passam-se em qualquer lado, se cer as escadas, a avenida está cheia delas c o m melhor aspecto,
calhar não tinha outro sítio para ir, tentava adormecer repetindo, aqueles desgraçados haviam todos de morrer com o prédio.
ela ama-me, ela também não pode viver sem m i m , mas não se A rapariga bonita mexeu-se e ele abraçou-a com muita força,
conseguia convencer por muito que repetisse, se acendesse a luz um amor tão exagerado, quase uma doença, ninguém ma pode
tudo lhe apareceria diferente, no escuro o medo avoluma-se, tirar, é minha, só minha, a rapariga bonita afastou-o, ele apertou-a
toma conta de tudo, a rapariga bonita continuava adormecida ao mais, sufocava-a, ninguém ma há-de tirar, vamos mudar-nos para
seu lado, não parecia estar de passagem, quem está de passagem uma casa, na easa nova pomos as fotografias u m do outro nas mesi-
não dorme tão profundamente, segui-la-ia e descobriria tudo, e se nhas-de-cabeceira, ao domingo damos u m passeio maior, have-
fosse ter c o m outro, há coisas que se p o d e m aceitar desde que mos de fazer como os outros, u m saco de pão bordado igual aos que
combinadas, aceito o que t u quiseres, imaginou-a c o m outro e a mãe oferecia às noivas, o robe com as iniciais dele, u m amor tão
aquela dor nova que t i n h a conhecido há pouco tempo voltou exagerado, quase uma doença, a rapariga bonita debateu-se até
ainda mais forte, não a podia imaginar c o m mais ninguém, vi- que ele a largou, estás maluco, a rapariga bonita estava assustada,
rou-se na cama e a rapariga bonita protestou, u m gemido, e se a estava a pensar na nossa casa, beija-me, a rapariga bonita deixou
prendesse, podia não ter outra oportunidade, estava desprotegida que ele a beijasse, nunca a t i n h a m desejado assim, não estava
a dormir, nas mãos dele, e se a amarrasse, ouviu passos, pôs-se à apaixonada mas gostava dos dias que t i n h a m , eram dias quase
escuta, era a senhoria, andava de u m lado para o outro na sala, não iguais aos que tinha vivido com outros homens, a única diferença
devia conseguir dormir por causa da ordem de demolição, ama- era ter conhecido aquele amor tão exagerado, quase uma doença.
nhã sigo-a, quanto mais cedo souber a verdade melhor, a senho-
ria continuava de u m lado para o outro mas ele não sentiu pena,
noutra noite tinha-a ouvido a falar com o reformado, aquela vadia
endoidou-o de todo, não é o primeiro n e m há-de ser o último que
se desgraça assim, essas mulheres só servem para isso, por isso
merecia a insónia e o prédio todo em pó, ouvia tão bem os passos
da senhoria porque a criatura do segundo andar estava calada,
teria morrido, a senhoria continuava, cansa-te velha, cansa-te a
andar de u m lado para o outro que não te há-de adiantar nada, a
senhoria tinha dito ao reformado que só tinha pena da coitada
que lhe escreveu durante anos, só tenho pena dessa, se u m dia me
telefonar para aqui ele que não pense que o encubro, anda para ai
sua velha que isto há-de ir tudo abaixo, ele e a rapariga bonita assis-
tiriam a tudo, já teriam uma casa, u m tapete na entrada, u m tele-
fone, e a voz do reformado, se era isso que queria bastava-lhe des-

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o tempo da senhoria pintar os lábios para perguntar ao funcioná-
rio se o doutor já disse quando a pode acompanhar até ele. O f u n -
cionário responde sem olhar, ainda não, tem que aguardar, possi-
velmente só no fim de tudo. A senhoria olha u m e outro enquanto
enche os lábios de cor de sangue desmaiado. Depois guarda cui-
dadosamente na carteira o espelhinho com costas de porcelana.
Quer refrescar-se c o m mais u m toalhete encharcado em rosas
mas o doutor espera-a e também está ansiosa para contar o que
viu, de todas as que ali estão foi a única que viu tudo, que apare-
ceu na televisão e isso fá-la sentir-se muito bem.
Quando a senhoria sai da sala, as três mulheres sentem-se
melhor, mais unidas porque ele foi de cada uma delas durante
algum tempo, unem-se na posse, cada uma delas o usou em deter-
minado tempo para algum fim, ele foi de cada uma daquelas três
A mãe regressa à sala acompanhada pelo funcionário e mulheres e isso deixa sempre alguma saudade mesmo que
senta-se no lugar inicial, no banco de madeira que lhe pertence. nenhuma delas o queira neste m o m e n t o , ele já não lhes serve,
Não olha para as outras, retira devagar o rosário da carteira de aconteceu o mesmo com uma camisola de que a rapariga gostava
cabedal muito lustroso e aperta-o. A mãe encontra no rosário as muito, deixou de lhe servir e a rapariga deitou-a fora, a ex-mulher
razões que levaram o filho a matar, o filho foi mais u m dos que se desfaz-se de muitas coisas no lixo ou nas obras de caridade con-
perdem nesta vida, a mãe agarra-se ao rosário c o m muita força forme lhe apetece, a mãe deixou que a máquina de costura se ava-
para não se perder em pensamentos inúteis, não quer apurar se riasse porque já não lhe serve para nada.
tem alguma culpa no que aconteceu, se podia ter evitado, a mãe Mas cada uma das três mulheres culpa as outras e é isso que
quer ir para easa jantar flocos de aveia em frente à televisão, a mãe as desune, atiram para as outras o dever de o salvar, é acima de
só quer ir para casa descansar. tudo a culpa que as desune.
O funcionário pede à senhoria que o acompanhe. E u , per- A mãe culpa a ex-mulher por o ter desencaminhado antes, na
gunta a senhoria que percebeu tudo mas gosta de fazer perguntas, noite do corte de electricidade, e depois. A mãe tem a certeza que
é uma forma de se tornar mais importante, eu, então chegou a mi- a ex-mulher o fez pecador e u m pecador acaba sempre m a l , a
nha vez, diz triunfante, apesar de querer parecer sofrida e contra- nienos que se arrependa. Para a mãe a ex-mulher ainda vive em
riada, a senhoria até costuma fingir b e m o que sente mas está pecado e dificilmente se arrependerá, é disso que os olhos opacos
demasiado excitada e é isso que a denuncia. Levanta-se e ajeita os da mãe a acusam, e é também disso que fogem porque o pecado é
pés nos tornos de verniz branco, compõe a saia, pede licença par^ guloso, anda sempre à procura de novos corpos.
retocar o bâton antes de falar com o doutor. A ex-mulher aproveita A ex-mulher culpa a mãe por não amar o f i l h o , por não o

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amar c o m o uma mãe deve amar u m f i l h o . Se o amasse eomo ex-mulher, do perfume forte, das unhas pintadas, do isqueiro e da
devia nunca teria deixado de acreditar que o filho podia ser al- cigarreira em ouro. N u n c a se deu c o m pessoas c o m aquele as-
guém na vida, nunca o teria deixado dormir em restos de lençóis pecto. Podia dar-se bem com a mãe, mas assustam-na os dedos en-
por bordar, os que sobravam e que lhe davam azar aos sonhos. Se curvados presos no rosário, garras, o corpo magro que é pouco
a mãe o amasse como devia, teria acreditado que eles podiam ser mais do que uma sombra, u m fantasma.
felizes e a mãe nunca acreditou. A rapariga não gosta delas, mas não as culpa. Carrega na bar-
A mãe não sabe o esforço que a ex-mulher fez para o salvar, a riga a culpa mais pesada que pode sentir, aquele filho é u m estú-
ex-mulher não sabe o esforço que a mãe fez para que ele fosse al- pido acidente na vida que escolheu, daqui a quatro meses livra-se
guém, uma da outra sabem apenas a culpa de que se acusam ape- finalmente daquele contratempo e descansa.
sar de nunca terem falado nisso, sabem o que pensam uma da Mas apesar de tudo sentem-se cúmplices porque todas o tive-
outra e até o que pensam da rapariga que não conhecem. ram e usaram da forma que lhes deu jeito. E eomo cúmplices têm
N e n h u m a delas gosta da rapariga. Algumas razões coinci- um entendimento secreto sobre o crime que cometeram.
dem, outras não. As duas nãos gostam: do vestido às florzinhas, do
cabelo despenteado de criança, das unhas roídas e da maneira
como se mexe. A ex-mulher não gosta: da idade dela. A mãe não
se incomoda c o m a idade porque também estava grávida por volta
da idade dela. A ex-mulher também não gosta: que a rapariga se
tenha deixado engravidar, tem a certeza que fez de propósito. A
mãe pensa que são coisas que acontecem, também ela engravi-
dou sem fazer por isso, é a vontade de Deus. A mãe não gosta: que
a rapariga tire os pés das sandálias e que saia tantas vezes da sala.
A ex-mulher compreende-a, também a ela lhe apertam os sapatos
e a roupa, também ela não sabe estar parada naquela sala. Algu-
mas razões coincidem, outras não, mas nenhuma delas gosta da
rapariga.
A mãe e a ex-mulher também estão de acordo em não culpar
a mulher que foi morta, apesar dos jornais que afirmam que tinha
u m caso com ele, não a podem culpar porque essa já pagou por
todos os erros que cometeu nesta vida. A culpa é u m juízo para os
vivos, os mortos descansem em paz, amém.
A rapariga não as culpa. Também não gosta delas, mas não as
culpa. A rapariga t e m medo da raiva tão escura dos olhos da

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montar, mas foi-se deixando ficar na sala da casa grande, a areia
estava cheia de pedras e limos, os limos são os cabelos das sereias
e nestes dias Eva não queria encontros c o m as sereias de cabelos
verdes, nestes dias podia acompanhá-las sem querer.
T i n h a no colo o número do telefone da pensão e as mãos de
cera agarradas a u m portátil quase sem peso. Eva queria ter nas
mãos u m dos antigos telefones pretos, eram telefones mais confiá-
veis, as vozes estavam mais bem guardadas, se tivesse nas mãos u m
dos antigos telefones da companhia Eva teria onde se agarrar,
quando fizesse o número o marcador redondo voltaria sempre
para trás acompanhando-lhe a indecisão, dar-lhe-ia tempo para a
certeza, no portátil quando carregava numa tecla não ouvia baru-
lho n e n h u m , a tecla permanecia no mesmo sítio, Eva ainda não
sabia se lhe devia telefonar, não tinha o hábito de lhe telefonar,
Da sala da casa grande Eva esteve muito tempo a olhar para portavam-se como amantes, não corriam riscos desnecessários.
o mar. Estava triste porque ele tinha faltado ao encontro. Era a pri- Mas era a primeira vez que ele faltava a u m encontro, tinha
meira vez que ele faltava a u m encontro e por isso Eva também acontecido alguma coisa, o mau pressentimento não a deixava,
estava inquieta, tinha quase a certeza que lhe tinha acontecido Eva agarrava-se ao portátil, tinha que saber o que lhe tinha aconte-
alguma coisa má, ele só faltaria a u m encontro com ela se lhe ti- cido, não conseguia esperar que ele lhe telefonasse a explicar-se,
vesse acontecido alguma coisa má. era a ânsia de u m amor tão exagerado, quase uma doença, estava
Eva também não gostava do inverno que a obrigava a cobrir um dia tão frio e Eva não gostava destes dias iguais àquele em que
a piscina, a lona impedia-a de ver os três níveis de água que a acal- o juiz os declarou divorciados, foi n u m dia destes que o juiz os sepa-
mavam, foi por isso que Eva esteve muito tempo a olhar para o mar rou para sempre, avisou-os que tinham cessado os deveres ou direi-
apesar de não gostar dele tão bravo, das ondas violentas desfeitas tos entre eles, o juiz informou-os de tudo, mas quando saíram do
nas rochas negras. Se o mar estivesse plano e doce talvez tivesse tribunal juraram u m ao outro que nunca se afastariam, foi Eva que
conseguido sossegar o pressentimento m a u , mas a massa de água jurou primeiro, ele como sempre jurou quando Eva lhe pediu, até
raivosa e sem luz não a ajudou, o mar era uma superfície turva sem agora tinham cumprido o juramento, era das poucas coisas que jul-
qualquer beleza, Eva ainda pensou sair, caminhar até à marginal gavam sérias, que Eva julgava séria e ele como sempre acompa-
à procura de uma pequena baía onde repousasse os olhos, se a nhava-a, Eva carregou com jeito nas teclas do portátil, fez quase o
encontrasse podia atirar pedras, uma pedra que provocasse os ha- uúmero inteiro, ia-se desculpando, se ele estivesse doente podia
bituais círculos concêntricos, o mau pressentimento seria engo- precisar dela, telefonava-lhe porque ele podia precisar dela, não
lido pelas dezenas de círculos criados, uma ratoeira que lhe podia porque ela precisasse dele, e se não o encontrasse, Eva interrom-

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peu o número para pensar no que faria, deixaria u m recado, uma gue derramado, a duas ou três botinhas de lã compradas enquanto
hora e u m local para o dia seguinte, Eva pensava no que lhe pode- ainda havia esperança, Eva continua c o m o portátil na mão, se
ria ter acontecido, o tempo estava tão feio, o mar não se distinguia tivessem tido aquele filho se calhar ainda estavam juntos, desejou
do céu, tudo tomado por u m cinzento baço e espesso, o vento sacu- tanto u m rapaz parecido com o pai, más declararam que no casa-
dia as árvores do jardim que se vergavam, iam quase até ao chão, mento não houve filhos, ao tribunal não lhe interessava se Eva
ainda bem que os vidros duplos não a deixavam ouvir a lamúria do desejou u m filho parecido com o pai, ele estava em pé em frente
vento, os uivos que a desesperavam, o que lhe teria acontecido, pre- ao juiz, tinha u m fato cinzento e os sapatos cambados com cheiro
cisava dele apesar de ter pedido ao tribunal que os separasse para a graxa, Eva não gostaria de ter u m filho com os sapatos cambados,
sempre, o juiz declarou-os divorciados, o gabinete do juiz estava as costas dobradas e os olhos no chão, Eva não gostaria de ter tido
m u i t o frio apesar do radiador ligado, duas resistências laranjas o filho parecido c o m o pai apesar de o ter desejado tanto, a verdade
quase iguais ao néon da serração, as resistências não acendiam e muda, quando Eva marcou o número da pensão teve medo de
apagavam, a funcionária esfregava a caneta nas mãos para as aque- saber que lhe tinha acontecido uma coisa grave, tinha de se prepa-
cer e a caneta fazia u m barulho contra a aliança, o juiz tinha os pés rar, desligou carregando no botão maior e iluminado, antecipou o
esticados na direcção do radiador, está ligado, perguntava à funcio- que lhe podiam dizer, se tivesse tido u m acidente, está no hospital
nária, era u m h o m e m velho desagradado com o frio que lhe arro- em estado m u i t o grave, abandonaram o gabinete do juiz e Eva
xeava o nariz, Eva nunca mais se esqueceu do frio do gabinete, da tinha outra vez o nome de solteira, podiam afastar-se para sempre,
funcionária que esfregava a caneta nas mãos, do nariz arroxeado dali a uns meses Eva casar-se-ia c o m o h o m e m mais prático que
do juiz, do radiador, tinha cortado o cabelo e envernizado as unhas, tinha conhecido, ele não t i n h a planos, e se estivesse apenas
escolheu u m fato vermelho que lhe ficava bem com os cabelos e doente, uma gripe, está de cama não pode vir ao telefone, quando
os olhos escuros, os sapatos de salto alto alongavam-lhe as pernas desceram as escadas do tribunal Eva prometeu amá-lo para sempre,
magras, pintou os lábios de vermelho-forte, pôs-se tão bonita para não parou em n e n h u m degrau, não o l h o u para ele, vou amar-te
ele mas não vacilou quando o juiz lhes perguntou se estavam real- para sempre, e depois acrescentou que tinha fome e convidou-o
mente decididos, Eva respondeu que sim enquanto rodava o anel para almoçar, a mesma voz, os mesmos passos, ele aceitou a pro-
de noivado, o diamante que ainda tem no anelar da mão direita, messa e o convite sem nada dizer, Eva descia os degraus com os
Eva repetiu sim com medo que o juiz não a tivesse ouvido. sapatos de salto alto e fazia u m barulho engraçado, tic-tic, foi nisso

Antes de entrarem para o gabinete do juiz Eva ajeitou-lhe as que ele ficou a pensar, no barulho dos saltos de Eva.

golas do casaco, o mesmo gesto de sempre apesar de lá dentro Q u a n d o pensam no mesmo dia recordam-no de maneira
declararem que não tinham bens a partilhar e que no casamento diferente, ele surpreendeu-se por não ter de assinar nada, u m
não houve filhos, não tinham nada porque os gestos de sempre nao papel como quando se casaram, esperava que o juiz pedisse, as-
contam nestas coisas, o nariz arroxeado do juiz ouviu-os sem aten- sine aqui com a assinatura igual à do seu bilhete de identidade, a
ção, estava concentrado a receber o calor das resistências laranjas, secretária do juiz estava cheia de folhas presas por fios grossos, fios
no casamento não houve filhos, não se pode chamar filho ao san- eastanhos em ziguezague, na janela estava uma planta envasada,

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Pediram os cafés, acenderam u m cigarro, ainda partilharam
as paredes eram muito brancas, é disso e do barulho dos saltos de
esse cigarro, o juiz não declarou haver cessado a partilha dos cigar-
Eva nos degraus que ele se lembra, não reparou na funcionária
ros, foi o tempo que lhes retirou o hábito de fumarem a dois, saí-
que esfregava a caneta nas mãos, no nariz arroxeado do juiz, se
ram do restaurante afastados, ainda não sabiam o que eram u m ao
falassem sobre esse dia diriam coisas tão diferentes que quem os
outro, no que se haviam de tornar, já não adormeceriam embala-
ouvisse julgá-los-ia a mentir.
dos pelo néon da serração, nunca mais teriam que dar a pancada
Afastaram-se do t r i b u n a l e Eva levou-o a u m restaurante
no frigorífico para que ele recomeçasse a trabalhar, a fruteira de
caro, vamos a u m restaurante muito caro, o empregado puxou a
vidro que colaram n u m sábado à tarde tinha sido posta no lixo, o
cadeira e Eva sentou-se e agradeceu, ninguém podia dizer que o
recheio da casa já tinha sido posto à venda, a cama com a colcha
lugar de Eva não era naquele restaurante, Eva tinha crescido no
de renda, o sofá com o pano dos elefantes, o gira-discos, as cháve-
bairro mas pertencia àquele restaurante silencioso cheio de talhe-
nas desirmanadas dos pires, decidiram vender tudo o que lhes qui-
res na mesa e copos de pé alto a brilharem, as unhas envernizadas
seram comprar e Eva deixou que ele ficasse c o m o dinheiro todo,
de vermelho combinavam c o m o dourado da ementa, ninguém
nunca mais precisaria de dinheiro feito no bairro, daqui a meia
podia dizer que aquelas mãos deviam estar no conserto dos ossos,
dúzia de meses ia casar-se com o h o m e m mais prático que tinha
ficavam ali tão bem a escolherem o mais caro da ementa, ele tinha
conhecido, ia morar na casa grande perto do mar.
fome e não reparou que Eva escondia de vez em quando a cara
Ele estava desempregado e alugou u m quarto na cidade,
atrás da ementa azul e dourada, tinha fome e não reparou que os
ficou bem, Eva foi de lua-de-mel, u m cruzeiro das montras das
olhos de Eva brilhavam u m pouco mais do que o normal, lágri-
agências de viagem, uma lua-de-mel a sério, quando voltou Eva
mas empoçadas, comeram em silêncio, Eva não tinha fome, con-
disse-lhe, ainda tens as tuas roupas e outras coisas em casa da
tinuava com o hábito de brincar c o m a comida, podiam fazer de
minha tia, não sei se te fazem falta, ele não queria nada, estava
conta que nada tinha mudado, ainda estavam dobradas na gaveta
bem no quarto da pensão, ando à procura de u m sítio maior por-
da mesinha-de-cabeceira as contas da água, luz e telefone, a col-
que neste quarto não tenho espaço, não lhe disse, nada disso me
cha de renda posta na cama, o sofá tapado com o pano dos elefan-
faz falta. As roupas, os discos e os livros do liceu continuam ema-
tes que compraram na feira de artesanato, o saco do lixo amarrado
lados em casa da tia de Eva, há pouco tempo Eva perguntou-lhe,
c o m u m nó para ir para o contentor, as escovas de dentes no mes-
se te comprassem as recordações também as vendias, não lhe res-
mo copo, nada tinha mudado, era u m pouco estranho almoçarem
pondeu, não por cobardia, apenas por indiferença, palavras pou-
naquele restaurante com empregados tão silenciosos, Eva pediu
padas como bens preciosos, vendia, se alguém mais quisesse com-
as sobremesas, ninguém podia dizer que Eva não pertencia ali,
prar claro que vendia, as recordações não nos servem, continuou
que durante anos consertou ossos para pagar as contas que conti-
calado, Eva entristeceu como quando lhe entregou a caneta dou-
nuavam dobradas na gaveta da mesinha-de-cabeceira, que nunca
rada, faz hoje seis meses que nos casámos, desculpa, não me lem-
tinha conseguido comprar o serviço de copos de pé alto com uma
brei, os esquecimentos dele tornaram-se habituais e já n e m eram
percentagem pequenina de cristal, n e m o serviço de jantar em
Comentados, Eva aceitava os esquecimentos como se fizessem
porcelana pouco pintada, nem o faqueiro numa liga inoxidável-

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parte dele, mas apesar de aceitar tudo estava outra vez casada, ti- portátil, entrou no quarto, sentou-se na cama, aealmou-se, pen-
nha acrescentado outro nome ao seu nome de solteira que u m sou, foi engano, uma brincadeira, claro que não existe noiva, onde

juiz de nariz arroxeado podia sempre retirar mais tarde. é que ele ia arranjar uma noiva, riu-se, acendeu u m cigarro, o
N o início Eva mexia muito na aliança, tinha medo de a per- marido não gostava que fumasse no quarto, abriu a janela e f u m o u
der, ele dizia-lhe, se a perderes o teu marido compra-te outra, Eva virada para fora, estava muito frio, as mãos gelavam, foi uma brin-
baixava os olhos e procurava u m sítio onde vincasse riscos e cruzes cadeira, não quis pensar que o reformado parecia eerto do que

c o m as unhas, nunca me vais perdoar, pois não, perguntava-lhe dizia, que o repetiu várias vezes, que os enganos não são assim tão

Eva, tinha falado sem qualquer intenção, nunca tinha nada para seguros, marcou novamente o número, desta vez carregou nas

dizer, Eva ficava com os olhos ainda mais escuros, ainda mais boni- teclas do portátil com força, atendeu-a o mesmo h o m e m , pergun-

tos, fiz isto por nós, podes não acreditar mas fiz o que achei melhor tou por ele não se importando com a voz alta demais, com o facto

para nós, nunca compreendeu mas concordava, eu sei que foi por do h o m e m a ter reconhecido do telefonema anterior, o u v i u a

nós, não sabes nada, nunca soubeste nada, Eva quase lhe gritava, mesma resposta, insistiu, tem a certeza que saiu com a noiva, é o

nunca soubeste nada, ele não a percebia mas pedia desculpa, não que eles dizem, m i n h a senhora, repetiu o reformado, Eva desli-

foi com nenhuma intenção, acho muito bem que te tenhas casado gou, deitou-se na cama e deixou a janela aberta, uma noiva, o cin-

outra vez, não sei por que digo estas coisas, os olhos de Eva cada vez zento espesso sufocava-a, pôs os olhos no tecto à espera de perce-

mais escuros, a sério que acho b e m , Eva dizia baixinho, se ao ber, começou a procurar indícios, achava-o estranho, tinha sempre

menos uma vez sentisse que gostavas de m i m , nunca compreen- pressa quando se encontravam, gastava mais dinheiro, parecia

deu Eva que na casa grande marcou o número da pensão e deixou feliz, era isso, quase parecia feliz, era isso que Eva estranhava, o ar

que o telefone chamasse. ausente tão próprio dos apaixonados, de olhos fixos no tecto ten-

Tinha-se preparado para tudo, quando o reformado a aten- tava apanhar a verdade para a destruir, não pode estar noivo,

deu perguntou por ele c o m a voz certa, n e m demasiado segura encontrava-se com ele sempre que queria, foi a primeira vez que

n e m demasiado tímida, a voz certa de q u e m telefona normal- faltou a u m encontro, sempre teve aquele sorriso tonto, sempre foi

mente sem pressentimentos maus, o reformado disse que não, não u m caso perdido, a verdade, saiu de manhã cedo com a noiva, as

se encontra de momento, Eva insistiu, mas volta, penso que sim, palavras do reformado aos tombos na cabeça, ele desmentiria

saiu de manhã cedo c o m a noiva mas deve voltar, com quem, com tudo, tinha a certeza, quando o visse chegariam à conclusão que

a noiva, tem a certeza que é noiva, eles dizem que sim, minha se- era u m mal-entendido, rir-se-iam, noiva, saiu de manhã c o m a

nhora, saíram de manhã cedo e devem voltar tarde, Eva desligou noiva, ele rir-se-ia, e a estranheza daquele ar quase feliz, a espe-

sem agradecer, ficou parada, saiu de manhã cedo com a noiva, o rança no ano novo, fico sempre assim em vésperas de u m ano

cinzento feio do dia abafou-a na sala, as ondas pararam nas rochas novo, não devia ter acreditado, há quanto tempo não tens n i n -

negras, tudo parou aos olhos de Eva, as árvores endireitaram-se, a guém, sempre ficou calado, deixava que ela o beijasse nos lábios,

lona da piscina imóvel, os peixes esconderam-se no fundo do Estão noivos, eles dizem que sim, as palavras do reformado aos tom-

aquário, Eva fugiu da sala grande, subiu as escadas agarrada ao t>os na cabeça, ele estava noivo e no quarto da casa grande Eva

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enrolou-se sobre si mesma para chorar, não viu mais nada, não quis
compreender, u m easo perdido é capaz de tudo até de trair, se não
morasse tão longe, se não tivesse que esperar pelo marido que viria
jantar eomo noutro dia qualquer, Eva continuou enrolada sobre si
a chorar, o peito tão apertado, há quanto tempo ele a traía, o frio
entrava e enroscava-se em Eva que continuava deitada, deixou-se
ficar, u m vazio tão grande, e se ficasse assim para sempre sem sen-
tir mais nada a não ser aquele vazio, uma noiva, se me aperceber
que tu me enganaste sou capaz de te matar, e ele tinha-a traído, dei-
xou-se ficar a chorar enrolada sobre si mesma, o frio em todo o
corpo, não sabia libertar-se daquele amor tão exagerado, quase
uma doença, o que fazer com a certeza que tinha, és u m easo per-
dido, nunca serás capaz de amar alguém, o que fazer com os casos
perdidos que eram os dois, foi o que Eva lhe disse no dia em que en-
tregaram as chaves da easa, olhava pela última vez para os discos O médico manda calar a senhoria porque não está interes-
inclinados na estante de fórmica, ele nunca mais poria aqueles dis- sado naqueles pormenores. Precisa de respostas rápidas e conci-
cos a tocar, nunca mais o veria a segurar na agulha e a pousá-la com sas, sente que o seu corpo cede à primavera, à vida que ficou lá
jeitinho no início da faixa, nunca mais ouviria os discos riscados fora. ]á mandou retirar a alcatifa do gabinete, já pediu que o pó
que encravavam, nunca mais adormeceriam com a luz do néon da seja diariamente l i m p o , a bata foi feita n u m tecido especial, o
serração, foi a única vez que lhe disse, não consegues amar-me, médico protege-se de tudo mas nada pode contra a vida que
não consigo deixar de te amar, somos dois casos perdidos, se desco- explode em flores.
brir que me enganaste sou capaz de te matar, uma noiva, o frio em A senhoria esperou muito tempo para falar, portanto sente-
todo o corpo, o cinzento cada vez mais espesso, o que somos nunca se no direito de reclamar. Quer ou não saber o que aconteceu? A f i -
está ao alcance da nossa vontade, e se fosse mesmo verdade, se ele nal delas todas fui eu a única que vi tudo.
quebrasse para sempre a ilusão, não podia perdoá-lo, cada pessoa O médico impaeienta-se, quase grita, a senhora responde só
tem a sua utilidade, tinha coberto de mágoa o seu amor tão exage- ao que eu pergunto.
rado, quase uma doença, há muito tempo que se tinha completado Atitudes violentas? A senhoria olha-o de soslaio, ainda agora
c o m aquele amor, o que iria agora colocar no vazio que lhe crescia quase gritou com ela, o que quer que lhe diga, ele ameaçou-me
no peito, Eva chorou durante muito tempo enrolada sobre si, no mas isso só depois daquela, desculpe, daquela moça o ter endoi-
quarto da casa grande junto ao mar e quando anoiteceu, os dias no dado, antes era u m h o m e m muito educado, se não fosse não tinha
inverno são tão pequenos, Eva tinha adormecido. estado tanto tempo na minha pensão, porque eu na m i n h a . . .
O médico impacienta-se novamente, como é que ele a amea-

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çou, quando, por favor, responda só ao que lhe pergunto. A senho- A senhoria eala-se satisfeita, já demonstrou que sabe muito,
ria fica ofendida e fala baixinho. O médieo fixa a versão da senho- que é indispensável, era só isso que queria, mais tarde falará eom
ria na sua letra bonita e legível. os outros médicos, este é tão novo e tão mal-enearado, a senhoria
Comportamentos menos aceitáveis? A senhoria faz u m sinal sai da sala, está satisfeita por saber tanto sobre o caso que lhe
de desespero, tem tanta coisa para contar. Primeiro o ehoque de m u d o u a vida, a senhoria nunca contará a ninguém que este easo
saber que ele andava metido com a pobre mulher que acabou por veio mesmo a calhar, abençoada televisão, abençoados jornais, já
matar. Deus lhe tenha a alma em descanso, quando soube até me fixaram a indemnização que vai receber quando o prédio for
benzi, com u m filhinho tão pequeno, o médico pergunta, mas tem demolido, a senhoria não se sente culpada, se aquela tragédia
a certeza do que diz, eles de facto tinham u m relacionamento amo- tinha que acontecer ainda b e m que foi útil a alguém, ela não
roso, a senhoria responde, não leu nos jornais, e ealou-se porque os pediu nada, não se pode sentir m a l , qualquer pessoa faria o
jornais eram incontestáveis até para u m médico tão mal-educado. mesmo no lugar dela, é o que a senhoria pensa quando caminha
O médico anota que a senhoria entende que a única verdade ao lado do funcionário de regresso à sala.
é a que vem nos jornais. O médico pede ao funcionário que não traga mais ninguém
Quer saber como ele a matou? Não vi desde o princípio, mas porque precisa de fazer uma pausa.
tanto eu como os senhores da televisão ainda vimos a maior parte,
quer saber?
O médieo deixa que a senhoria fale mas não anota nada.
E da ex-mulher, aquela que ali está, sabe que se fez passar por
amiga da noiva para ir lá à pensão buscar as roupas, sabe? Dizem
que também andava metida eom ele, quer dizer os jornais não
falaram nisso porque agora é casada eom u m h o m e m cheio de
influência mas, o médieo deixa de a ouvir.
A senhoria passa à mãe, desde que ali estamos n e m sequer
falou uma vez com a pobre desgraçada que traz o neto na barriga,
o médico já não a ouve, sente-se mal, os corticóides que inala pro-
vocam os seus efeitos, o médico sente-se mal.
O médico quer dispensar a senhoria, ganha coragem, daqui
a pouco quando ela mudar de assunto, acaba a bajulá-la, a se-
nhora é uma testemunha tão importante que estou certo que vai
ser muito útil aos meus colegas, sabe eu só tenho que fazer umas
perguntas prévias, não sou o responsável por este caso, a senhora
vai ter oportunidade de contar tudo mais tarde.

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assim como o viam, escolheu o que queria contar, os amigos não
disfarçavam o riso, então era aquele velho a outra vida que tinha
encontrado, os amigos piscaram-lhe o olho, a rapariga bonita teve
muita vergonha, se pudesse desaparecer, a rapariga bonita sabia
que tinha que passar por várias vidas até encontrar a que procurava,
ele era só mais uma dessas vidas, sempre era melhor que passar as
tardes inteiras no café, tinha conseguido comprar a figa em ouro,
a sorte da vida dela estava a mudar, os amigos apodreceriam
naquele café, a rapariga bonita estava farta da vida que tinha com
eles, tinha decidido ir embora, tinha regressado vitoriosa e ele ti-
nha estragado tudo.
Quando saíram do café, a rapariga bonita ralhou-lhe muito,
segues-me para todo o lado como u m cão, caminhava muitos pas-
sos à frente dele, não permitia que ele lhe tocasse, ainda via a cara
A rapariga bonita não gostava que ele a seguisse eomo u m dos amigos, o riso, os amigos nunca perceberiam que até gostava
cão. Disse-lhe isto a gritar porque estava muito zangada por ele a dos dias que passava com ele, era nova, tinha uma vida inteira à
ter seguido e por ter aparecido aos seus amigos. Ao longo da dis- frente, podia perder tempo assim, ele tentava alcançá-la, pedia-lhe
cussão a rapariga bonita gritou muito, disse-lhe muitas vezes que que o perdoasse apesar de não saber o que lhe tinha feito, a rapa-
ele a seguia eomo u m cão mas nunca falou na vergonha que sen- riga bonita estava muito enervada, não parava de caminhar, ele
tiu quando os amigos o viram. nunca compreenderia o mal que lhe tinha causado e isso ainda a
Estava sentada eom os amigos quando ele apareceu e se sen- irritava mais, gritou-lhe, não vês que eles não sabiam que eu estava
tou na mesa ao lado, os amigos não disseram nada, não costuma- contigo, ninguém precisava de saber que tu existias, ele não perce-
vam comentar os velhos que se sentavam no café, ele sorriu, u m beu a vergonha dela, aquele amor tão exagerado, quase uma
dos amigos ainda disse, outro doido, mas ele aproximou-se dela e doença, toldava-lhe o entendimento, puxou-a, tentou abraçá-la, se
pôs-lhe as mãos sobre os ombros, ao princípio os amigos ainda a quiseres caso-me contigo e eles deixam de falar, queres casar co-
defenderam de u m velho doido mas depois ealaram-se quando migo, a rapariga bonita parou, teve muita pena dele, tinha sentido
perceberam quem ele era, a rapariga bonita corou muito, os ami- tanta vergonha dele e ele oferecia-se para a salvar, se quiseres ca-
gos não conseguiam disfarçar o gozo, a rapariga bonita tinha-lhes so-me contigo, quando ele repetiu o pedido de casamento a rapa-
dito que se ia embora porque queria outra vida, uma vida melhor, riga bonita deixou de ter pena, era tão miserável, a raiva voltou,
tinha regressado para lhes contar que já a tinha encontrado, a rapa- queria gritar, não percebes que eu tenho vergonha de t i , tenho
riga bonita quando falou no papel dele na outra vida que tinha outros planos, nunca me casarei contigo, já vivi c o m outros ho-
encontrado não lhes disse que era velho, que se vestia mal, que era oiens, fartei-me de alguns, alguns também se fartaram de m i m .

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c o m outros desencontrei-me e pronto, sabes que chegou a tua conseguia aehá-lo perigoso, era u m pobre coitado que lhe implo-
hora, que me vou fazer desencontrada, continuava a caminhar, rava que se casasse c o m ele, podia fazê-lo chorar facilmente, por
eomo é que ele podia ter pensado em casamento, estava doido, outro lado donde vinha o dinheiro, ele continuava a tremer, es-
eomo é que ele podia ter pensado que ela se casava com u m velho tava assustado com a ideia de a perder, a rapariga bonita não sabia
como ele c o m os dentes amarelos, o miserável puxava-a para a o que pensar, sabia que os tarados nunca parecem o que são, é por
abraçar, vamo-nos casar, os outros homens nunca a t i n h a m se- isso que enganam as vítimas tão bem, ele correu para ela e agar-
guido, este julgava-a dele, não tinha percebido as regras do jogo, rou-a, tremia, prometeu-lhe tudo o que ela quisesse, uma mota,
gritou-lhe, desaparece da minha vida, empurrou-o, tinha nojo dos queres uma mota, eu sei que gostas de andar de mota, a rapariga
dentes amarelos, ele parou quando a ouviu dizer, desaparece da bonita não percebeu, uma mota igual à do dono da esplanada,
minha vida, a rapariga bonita não se deu conta do rombo que lhe fez, maior, continuou agarrado a ela, e a rapariga bonita pensou que
continuou, olhou para trás e repetiu, casar-me contigo n e m morta, ele a ser alguma coisa era u m louco, u m h o m e m perigoso não
ele continuou parado sem responder. reage assim, deixou-se ficar, deixou que ele falasse no dono da
A rapariga bonita pensou que ele não a ouvia, voltou para esplanada, na mota, na casa nova, recomeçaram a andar.
trás, perguntou, ouviste o que eu disse, ele não reagiu, a rapariga Enquanto caminhavam ele abraçou-a c o m m u i t a força e
bonita vacilou, não esperava aquele silêncio, agora tinha a certeza pediu-lhe que se casasse c o m ele. A rapariga bonita teve ainda
que nunca tinha conhecido ninguém parecido com ele, assustou-se mais vergonha dele, era tão miserável, amo-te, repetia-lhe ele,
c o m os olhos dele tão parados, u m quase sorriso nos lábios, o que sem reparar na vergonha dela, os amigos deviam ter chamado
é que te deu, fez-se de forte, ficaste mudo, ele continuava parado, outros e neste momento contavam-lhes o que tinham visto, riam-se
as mãos t r e m i a m - l h e , a rapariga bonita teve medo, sentiu-se todos do velho, se vissem a cara do velho, a rapariga bonita estava
ameaçada, nunca tinha visto aquela expressão em ninguém, quer sem saber o que fazer, u m pobre coitado ou u m tarado perigoso,
dizer, t i n h a visto nos tarados que apareciam na televisão, de podia ser as duas coisas, olhou bem para ele, não teve dúvidas, era
repente pensou na rapariga da praia de que ele lhe falava, estavam apenas u m pobre coitado, os amigos deviam estar a rir-se dela no
os dois parados no meio do passeio, a rapariga bonita disfarçava o café, ele agarrava-a c o m tanta força, beijava-lhe os cabelos, u m
medo desafiando-o, o que é que te deu, vais ficar aí todo o dia, ele amor tão exagerado, quase uma doença, a rapariga bonita teve
continuava sem reacção, estava pálido, o que teria acontecido à muita pena dele, continuaram a andar, as pessoas que se cruza-
tal rapariga, às outras raparigas, não devia ter pensado que era uma vam c o m eles olhavam-nos admiradas, não eram u m casal nor-
brincadeira, sentiu-se bem a ocupar o lugar de outra pessoa só que mal, a rapariga bonita apertou a figa em ouro, e se for perigoso,
agora era ela que podia desaparecer e outra ocupar o lugar dela, abrandou o passo, se ele fosse perigoso tinha que ter cuidado para
devia ter tido mais cuidado, se ele fosse u m tarado eomo os da tele- não acabar como as outras, não podia deixar que ele desconfiasse
visão, vivia naquela pensão, ninguém vive n u m sítio daqueles sem que ela já sabia o que t i n h a acontecido à rapariga da praia, às
motivo, a rapariga bonita o l h o u bem para ele e acalmou-se, o que outras que também desapareceram, a rapariga bonita lembrou-se
via era tão triste, u m h o m e m destes não pode ser u m tarado, não que as vítimas que se salvam d i z e m sempre nos jornais, fiz de

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conta que não percebi nada, fingi-me de parva, ele não podia des-
confiar de nada, a rapariga bonita olhou bem para ele e desatou a
rir, como é que podia achar u m h o m e m daqueles capaz de lhe fa-
zer mal, u m h o m e m que lhe implorava quase a chorar que casasse
eom ele, u m miserável, a rapariga bonita pensou que podia desa-
tar a correr, se ele a apanhasse e lhe quisesse fazer mal pedia ajuda
a alguém, passavam tantas pessoas, ele pediu-lhe u m beijo, dá-me
u m beijo para ter a certeza que me perdoas, não podia ter medo
de u m desgraçado como ele, a rapariga bonita deixou que ele a
beijasse, desagradou-lhe o sabor da boca dele, os lábios quentes
mas ainda assim deixou-se beijar, ele ficou feliz, aproximava-se
deles u m grupo de homens, e se gritasse, este h o m e m quer fa-
zer-me m a l , o grupo de homens caminhava para eles, a rapariga
bonita tentava decidir se o achava ou não perigoso, de qualquer
forma, sendo ou não perigoso, queria deixá-lo, não gostava que ele Eva p e r f u m o u a água da banheira eom uma mistura de
a seguisse como u m cão, estava farta, a rapariga bonita pensava cipreste e sândalo. Quando pôs o pé na banheira para experimen-
em deixá-lo quando lhe deu a mão e aceitou casar-se c o m ele, os tar a água aehou-a muito quente mas entrou e deitou-se. T i n h a
homens passaram por eles, ele agarrou-lhe com mais força a mão, enrolado uma toalha branca na cabeça que lhe prendia os cabe-
continuaram a caminhar enquanto faziam planos, uma easa no- los escuros. Acendeu u m cigarro e fechou os olhos. A casa grande
va, u m tapete à entrada, a rapariga bonita tinha que esperar, entre longe de tudo e perto do mar cheirava a cipreste e sândalo.
ele e a rua sempre era melhor estar eom ele, a rapariga bonita tam-
Eva levantou uma perna e apreciou-a com olhos de estranha,
bém não queria voltar para os amigos que se riam dela no café,
ainda era bonita, estava bem para a idade, apesar de ele a ter traído
quando arranjar outro sítio, a rapariga bonita decidiu que se ia
continuava bonita, aquele tinha sido o último dia que os tinha
embora logo que pudesse mas continuou a fazer planos eom ele,
seguido, o que tinha visto já era suficiente para o esquecer, ele
u m a casa para os dois c o m u m tapete de flores à entrada, u m
finha-a traído, antes de os ver torturava-se com a certeza de que a
quarto de casal, uma cozinha toda equipada, ele estava entusias-
rival seria mais nova e mais bonita do que ela, quando os viu ficou
mado, caminharam abraçados até se cansarem e depois apanha-
mais calma, teve pena dele, aquela rapariga nunca seria noiva de
ram u m táxi para a pensão como noutro dia qualquer.
um h o m e m a sério, julgou-o doente, continuou a segui-los, foram
precisos muitos dias para não se importar com o que via, foram pre-
cisos muitos dias para conseguir tornar a encher a banheira para
tomar u m banho perfumado com cipreste e sândalo, mesmo assim
3mda lhe veio à cabeça o corpo dele debaixo do chuveiro, estiveram

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casados tantos anos, portavam-se como amantes, ele não a podia e sândalo, Eva entrou no quarto e preparou-se para o marido, a voz
ter traído, ainda por cima c o m u m a rapariga tão desmazelada, do reformado ainda dava tombos na sua cabeça, saiu de manhã
tinham feito u m acordo, u m acordo justo, ele só tinha que ser u m cedo com a noiva, foi difícil encontrar a pensão, também lhe tinha
caso perdido para sempre, o corpo dele continuava a aparecer-lhe mentido, nunca pensou que ele morasse n u m sítio tão miserável,
com o chuveiro encostado ao peito, deixou-se escorregar na ba- nunca o conheceu, Eva pôs o vestido novo e umas meias de renda,
nheira, pousou o cigarro, m o l h o u a toalha que tinha enrolado na ainda era bonita, maquilhou-se c o m cuidado, o risco preto nos
cabeça, o marido estava a chegar e Eva arranjava-se para ele, o olhos para os aumentar, o bâton carregado tornava os lábios de
marido era u m h o m e m muito prático que não gostava de nada que romã ainda mais apetitosos, tinha-o visto abraçar a rapariga, segre-
não fizesse sentido, que não fosse facilmente explicável, o marido dar-lhe coisas ao o u v i d o , o m a r i d o não repararia no vestido
nunca considerou a possibilidade de ser traído, uma m u l h e r a novo, Eva não se zangava, tinha casado c o m o h o m e m mais prá-
quem dava tudo o que queria não o podia trair, essa possibilidade tico que conhecera e os homens práticos não reparam nessas
não era facilmente explicável, Eva t i n h a comprado roupa, ia coisas, Eva não se zangava, nunca tinha discutido c o m o marido,
maquilhar-se e perfumar-se para o marido, saiu da banheira, o eram felizes.
vapor embaciou o espelho, o que a deixou satisfeita, já não gostava
Ao jantar falariam das coisas habituais, depois de jantar o
de se ver nua, o espelho começava a ser u m instrumento de tortura,
marido retirar-se-ia para o escritório, faria exactamente o mesmo
Eva não via qualquer beleza em envelhecer, repugnava-lhe a pele
que todas as noites, os homens práticos seguem rotinas, são-lhes
dos velhos que crescia e sobrava engelhada em todo o lado, a bar-
fieis, mas para Eva parecia tudo diferente, t i n h a decidido que
riga que caía mesmo sem ter por onde, as costas dobradas, os dois
nunca mais o veria, deixava de se portar como amante, naquela
pedaços de carne tristemente pendurados no lugar das mamas,
noite Eva era completamente fiel ao marido que lhe falava dos
Eva nunca v i u qualquer beleza nos corpos dos velhos, protegia o
filhos, de-tes-tam-me, pensou Eva, o marido comia com satisfa-
dela, não havia qualquer benefício em levar a vida até ao fim, as
ção, não podia saber o que Eva tinha decidido, que pela primeira
plantas deitam-se fora logo que murcham, os animais abatem-se
vez a m u l h e r lhe era completamente f i e l , c o m i a m e d o r m i a m
quando deixam de estar aptos, mas por enquanto Eva ainda estava
juntos e no entanto não sabiam quase nada u m do outro, ilhas,
bem, ainda era bonita, menos bonita do que tinha sido no tempo
uma ausência de amor rodeada de amor, acabaram de jantar, o
em que era casada com ele e ele punha u m disco a tocar, dançava
marido pediu-lhe que o acompanhasse no café, Eva seguiu-o até ao
nua pela casa, foram felizes, foram tão felizes como Eva ainda o e
escritório, sentaram-se nas poltronas, Eva p e r g u n t o u , sem ne-
a ouvir as mesmas músicas, o tempo dispensou os gestos dele, ja
n h u m interesse, como c o r r i a m as coisas, b e m , m u i t o b e m ,
não é preciso l i m p a r os discos n e m pegar na agulha, o tempo
enquanto existirem doentes as máquinas vendem-se, e nunca hão-
encarregou-se de o dispensar, gostava de o ouvir cantar por cima
-de faltar doentes, o marido riu-se, estava orgulhoso de ter esco-
da música, a felicidade é pouco mais do que alguém a cantar por
lhido u m negócio tão seguro, Eva não o achava grosseiro, era o
cima de uma música, foram felizes e ele traiu-a com uma rapariga
h o m e m mais prático que tinha conhecido, sorriu, se o marido
desmazelada, Eva saiu do banho, a casa grande cheirava a cipreste
precisasse de ser amado talvez u m dia fosse capaz de o amar, mas

212 213
o marido era u m h o m e m m u i t o prátieo e também para Eva o
ria ainda tinha u m dos telefones pretos da companhia, ouviu a
amor era u m estorvo, entendiam-se bem assim, Eva fez compa-
senhoria gritar, a senhoria gritou para o corredor, queria que a ra-
nhia ao marido como se fosse uma noite igual às outras, provou o
pariga bonita a ouvisse, está ao telefone uma senhora para si, frisou,
digestivo, acendeu u m eigarro, o marido passou-lhe a mão pelas
uma senhora para si. Regressou à sala, a papada subia e descia de
nádegas, não o achava grosseiro, também se entendiam bem no
excitação, disse baixinho ao reformado quem estava ao telefone, se
desejo poueo polido, na carne que satisfazia a carne, Eva deixou-se
calhar só agora é que soube, fez o gesto de cornos c o m a mão,
ficar na poltrona a ler uma revista de decoração, talvez mudasse
tomou-lhes o peso, a senhoria e o reformado riram-se e baixaram a
os cortinados, estava maçada das flores, talvez mudasse os cortina-
televisão para poderem ouvir.
dos para u m padrão liso, o marido fazia contas, Eva decidiu que
Ele pensou logo em Eva, uma senhora para si, pegou no aus-
mudaria os cortinados da casa toda.
cultador, estranhou que Eva lhe telefonasse àquela hora, quando
Esperou que o marido se deitasse, o marido nunca se deitava
a ouviu soube imediatamente que Eva sabia da rapariga bonita,
depois da meia-noite, u m h o m e m prático tem rotinas, e telefonou
era u m privilégio de se conhecerem tão bem, de poderem inter-
para a pensão, tinha que lhe dizer que não o queria ver mais, estava
romper as conversas a qualquer m o m e n t o , disfarçou, tinha sido
agradecida por ele a ter libertado daquele amor tão exagerado,
apanhado, aconteceu alguma coisa, perguntou, isso pergunto eu,
quase uma doença, sentia-se bem, já era tarde mas Eva não consi-
sempre foi b o m neste jogo, mas agora faltavam-lhe as palavras que
derou as horas, tinha que lhe dizer ainda esta noite que não o que-
o podiam salvar, fez-se desentendido para ganhar tempo, tinha
ria ver mais, mareou o número, quando soube onde ele vivia Eva
que perceber o que Eva sabia, se se precipitasse podia estragar
ainda se comoveu, u m prédio tão velho, uma avenida tão feia,
tudo, tinha que a ouvir e depois raciocinar depressa, sempre tinha
espreitou para as escadas do prédio e f u g i u , não v i u o edital da
sido b o m a dizer o que as pessoas querem ouvir, a única coisa que
câmara afixado na entrada, mas mesmo assim fugiu, carregou nas
sabia fazer bem, sempre era alguém como a mãe desejou, o tele-
teclas, já não tinha medo de se confrontar com a verdade, estava
fone dificultava o jogo, não lhe via a cara, não lhe podia procurar
curada, ele tinha-a traído, tinha quebrado o acordo, deixara de ser
os olhos, Eva não os podia ter visto juntos, não costumava vir à
u m caso perdido, estava noivo, o telefone tocou e a senhoria assus-
cidade, a casa grande ficava longe de tudo, tinha de se manter cal-
tou-se, pensou que fosse uma má notícia, quando o telefone tocava
mo até perceber o que Eva sabia, u m jogador não se pode precipi-
assim tão tarde pensava sempre nos filhos e levantava o ausculta-
tar, concentrou-se, do outro lado Eva insistiu, não tens nada para
dor a tremer.
me dizer, nunca lhe tinha falado assim, não lhe conhecia aquele
Eva perguntou por ele, a senhoria ficou aliviada, os filhos
tom, tens a certeza de que não tens nada para me dizer, tornou a
continuavam bem, disse contrariada que era tarde, Eva não pediu
perguntar Eva.
desculpa, tornou a pedir para falar c o m ele, a senhoria reconhe-
Não percebo, a voz tremia-lhe, estava a perder, afinal não era
ceu-lhe a voz, já não esperava que a pobre coitada telefonasse,
suficientemente b o m , nem naquele jogo era alguém, não podia
apertou entusiasmada o cinto do robe, pediu licença para pousar
desconcentrar-se, u m jogador t e m que manter o sangue-frio,
o auscultador e foi chamá-lo, pelo barulho Eva soube que a senho-
tinha que jogar uma carta que o salvasse, não bastava repetir, sin-

215
ceramente não percebo, falhava como a mãe sempre pressentiu, lucro das cervejas do negócio do gordo fosse mais compensador
estava preso no medo, Eva do outro lado disse-lhe que então não ou mesmo uma pensão em risco de ruir, não podia descontrolar-
t i n h a m mais nada que dizer u m ao outro, não esperava que Eva o se, entrou no quarto e enervou-se porque a senhoria tinha-se des-
ameaçasse, não lhe conhecia aquela calma, Eva não estava ener- leixado, não punha insecticida, não mudava os lençóis, devia ter
vada, de eerteza que não puxava o cabelo para trás, se lhe pudesse saído da pensão há mais tempo, tinha que convencer Eva que a ra-
ver os olhos, avançou cauteloso, não é o que t u pensas, é melhor pariga bonita era apenas uma companhia, u m h o m e m precisa de
falarmos pessoalmente, sabia que a senhoria e o reformado escu- companhia, estou a ir para velho, continuava o mesmo caso per-
tavam à porta, Eva disse, não te quero ver mais, foi por isso que dido que tinha muito tempo para gastar, o tempo por gastar é peri-
telefonei, nunca mais te quero ver, Eva desligou o telefone, ele fez goso, ganham-se vícios, pensamentos que não nos saem da ca-
de conta que Eva não t i n h a desligado, c o n t i n u o u ao telefone, beça, Eva tinha que compreender, quando lhe telefonasse tudo se
ganhou confiança, a senhoria e o reformado estavam a ouvir por resolveria, t i n h a m sido casados durante tanto tempo, portavam-se
isso podia continuar a jogar, ensaiou na linha vazia ser outra vez como amantes, Eva não o podia trair agora que precisava tanto dela.
alguém, eu sei que te preocupas quando não te dou notícias mas
tenho tido uma vida, andamos a tratar dos papéis, riu-se, oh que
disparate, sabes que já não tenho idade para festas, apesar de con-
tinuar ao telefone sentia que tudo lhe fugia, tinha perdido o con-
trolo, tinha que se encontrar com Eva, tinha que lhe dizer o que
Eva queria ouvir, Eva não o podia abandonar logo agora que pre-
cisava tanto do dinheiro dela, tinha prometido uma casa à rapari-
ga bonita, tinha prometido o m u n d o à rapariga bonita, estava
quase sem dinheiro, no princípio do mês tinha que pagar à senho-
ria, ninguém podia ficar a dever, u m princípio da pensão ainda
mais importante que a decência, Eva não o podia abandonar,
ainda tinha cheques assinados em branco, quando se encontras-
sem tudo se resolveria, Eva sempre o provocou, há quanto tempo
não tens ninguém, falaria com Eva, havia de encontrar o que Eva
queria ouvir, sempre assim f o i , t e r m i n o u o telefonema despe-
dindo-se afectuosamente, passou pela sala para agradecer à se-
nhoria e ainda a viu espantada, o reformado tossiu para disfarçar,
enfiou-se no quarto, daí a pouco iria ter com a rapariga bonita e
teria que inventar qualquer coisa que justificasse o está ao telefone
uma senhora para si, não tinha escolhido uma vida fácil, talvez o

216 217
perto, pode ser que o jornalista consiga convencer a mãe a dei-
xar-se entrevistar, o c r i m e da pensão pode voltar aos jornais, a
senhoria já tem a vida dela resolvida c o m a indemnização que lhe
propuseram, tem a velhice garantida, mas gosta de aparecer nos
jornais, gosta de dizer ao vendedor de jornais, esta sou eu, a vida
dela mudou tanto desde que a conhecem, as pessoas respeitam-na,
a senhoria agradece sempre à televisão e aos jornais por a terem
salvo, e tem u m carinho especial por este easo, a senhoria evita a
palavra crime, fala em caso, tragédia, evita a palavra crime.
A rapariga sempre conseguira pensar em nada, mas agora
era difícil estar sem pensar em nada, olha para as paredes, pro-
cura a janela, o fio eléctrico, as manchas de humidade, a rapariga
quer distrair-se da criança que se mexe na sua barriga, desde que
tem a criança na barriga não consegue estar a pensar em nada,
Na sala as quatro mulheres continuam sentadas nos bancos daqui a quatro meses estará livre de tudo, a rapariga não se magoa
corridos de madeira. Não se eansam e m gestos inúteis, deixam-se com a indiferença da mãe que não quer saber do neto, c o m a
estar na sala, c o n t i n u a m caladas mas estão distraídas umas das raiva da ex-mulher que a acusa de tudo, c o m a maldade da senho-
outras. ria que considera que foi feita justiça, tiveram os dois o que mere-
A ex-mulher pensa que ainda hoje apurará se é verdade o que ciam, a rapariga sente apenas a criança que cresce dentro dela,
dizem. A ex-mulher não acredita que ele tenha enlouquecido, sem querer afeiçoou-se àqueles movimentos dentro da barriga, à
julga-o capaz de tudo para não pagar pelo que fez. A ex-mulher imagem que v i u no ecrã quando a médica lhe explicava a
quer desmascará-lo. Não sabe donde lhe vem esta raiva tão exage- criança, a rapariga não pode gostar da criança, daqui a quatro
rada, quase uma doença. meses t e m que a expulsar para sempre da vida dela, a criança foi
A mãe pensa que à noite há menos autocarros para o bairro, u m acidente que lhe aconteceu, a vida dela terá que prosseguir
demorará mais a chegar a easa, precisa tanto de descansar as per- como era antes do acidente.
nas, livrar-se daquela roupa, quando se sentar a comer os flocos de
aveia em frente à televisão tudo voltará a ser eomo dantes, a mãe
sabe que em casa consegue não pensar que o filho ficará ali par^
sempre por ter cometido u m erime, em easa a mãe consegue pen-
sar só no que quer.
A senhoria pensa em telefonar a u m jornalista para lhe con-
tar as novidades, ele foi casado c o m uma mulher rica, a mãe vive

2l8 219
nho de voz, os velhos do terceiro andar já se foram, ele também
não sabia, os miseráveis foram-se embora, foram os do quarto que
me disseram agora mesmo, devem ter tido medo do prédio que
andam a deitar abaixo, ou então arranjaram u m sítio melhor, os
parasitas têm sempre sorte, qualquer dia os do quarto andar t a m -
bém se vão e ficamos só nós, nós e a velha aqui de cima, quantos
menos aqui estiverem mais fácil é correrem connosco.
Ele o l h o u para o balde de plástico azul colocado ao pé da
janela para recolher a água que caía do tecto, estava quase cheio,
respondeu, este ano tem chovido muito, a senhoria assustou-se,
também estão a pensar ir embora, por amor de Deus não me fa-
çam isso, esteja descansada, ainda ficamos mais u m t e m p i n h o ,
não costumava dizer tempinho, talvez tenha dito para combinar
com o fiozinho de voz da senhoria, a senhoria falou da carta que
Quando as máquinas começaram a demolir outro prédio do tinha mandado para a televisão, a voz foi-se elevando, ele receou
mesmo quarteirão, os velhos do terceiro andar foram-se embora, pelo sono da rapariga bonita que estava no quarto ao lado, pediu
tinham medo que a casa lhes caísse em cima e não suportavam o à senhoria que falasse mais baixo, quando tinha muito tempo para
barulho e pó, os velhos do terceiro andar pegaram nas suas coisas gastar o desespero dos outros salvava-o do tédio mas agora tinha
e foram-se embora sem se terem despedido de ninguém. tanto que fazer, ainda não tinha conseguido falar com Eva, sentia
A senhoria só se apercebeu uns dias mais tarde que os velhos a rapariga bonita diferente, tinha tanto que fazer, a senhoria con-
do terceiro andar se t i n h a m ido embora, ficou desesperada, ainda tinuava a falar, diga-me o que hei-de fazer, se me deitam abaixo a
gritou, eomo é que aqueles desgraçados puderam fazer-me uma pensão o que será de m i m , lembrou-se que a senhoria deixara de
coisa destas, o reformado coçou o queixo, a televisão continuava pôr insecticida e de mudar os lençóis, foi isso que lhe disse, a se-
sem dar resposta, a senhoria depois de gritar começou a chorar, nhoria desatou a chorar, sentia-se injustiçada, faço tudo o que
estava perdida, a vida dela começava a chegar ao fim, era assim posso, o choro da senhoria enervou-o, tinha pressa, não tem posto
que a senhoria dizia, estou a começar a chegar ao fim das minhas insecticida e não tem mudado os lençóis, a senhoria estava muito
forças, a senhoria utilizava frases compridas e complicadas magoada com a acusação e chorava cada vez mais, ele tinha que
quando queria demonstrar que a situação era grave. se despachar, tinha muito que fazer, a senhoria chorava, faço tudo
Talvez por estar tão desesperada a senhoria bateu-lhe à porta como dantes, a não ser que a minha pobre cabeça se tenha esque-
do quarto, enquanto esperava que ele abrisse torceu as mãos den- cido, ando tão nervosa, ele nunca pensou que u m dia tivesse tanta
tro do bolso do avental, ele nunca tinha visto a senhoria com os lá- pressa, se quiser vou agora buscar o insecticida, se quiser mudo
bios tão caídos e os olhos tão pisados, a senhoria disse n u m fiozi- 3gora mesmo os lençóis, ele estava cada vez mais enervado, ten-

220 221
tou acabar c o m a conversa mas a senhoria não o deixou, agar- quem o visse podia dizer, ali vai u m h o m e m apressado, sentiu-se

rou-lhe no braço, vou mudar os lençóis e pôr insecticida, vai ver bem por estar a ser tão verdadeiro, por não ter que fingir pressa

com os seus olhos para depois não me acusar, a senhoria fungava numa manhã bonita como esta.

e a papada subia e descia, o azul dos olhos escorria para as boche- Entrou n u m banco com os cheques que Eva lhe tinha dado

chas, u m palhaço de avental que o segurava pelo braço. para utilizar em caso de emergência. Preencheu u m dos cheques

A senhoria continuava a prendê-lo pelo braço, não sei eomo no balcão para o efeito e depois aguardou na fila. O l h o u para o

é capaz de me dizer uma coisa dessas, ele arrependeu-se de lhe ter relógio redondo que estava na parede e seguiu os ponteiros dos

falado, t i n h a que resolver muitas coisas antes que a rapariga segundos como costumava fazer. Quando chegou a vez dele, en-

bonita acordasse, a senhoria não o deixava ir embora, foi isso que tregou o cheque ao funcionário. O funcionário pegou no cheque,

o descontrolou, tinha que se libertar da mão gorda que lhe aper- olhou admirado, verificou a assinatura, virou o cheque, tem de pôr

tava o braço, foi isso que o descontrolou, cale-se, gritou, pare com aqui o seu número de telefone e o bilhete de identidade, ele acen-

essa choradeira que já não a posso ouvir, a senhoria estremeceu e deu u m cigarro, o funcionário advertiu-o que não podia fumar, ele

calou-se, mesmo assim ele tornou a gritar, cale-se que não a posso não sabia onde apagar o cigarro, o funcionário foi buscar u m cin-

ouvir, não conseguia filtrar o pensamento, a senhoria assustou-se, zeiro, as pessoas que esperavam na fila olharam-no desagradadas,

ele estava espantado por se ouvir gritar mas gostava e não conse- ele estava a atrasar tudo, o funcionário disse que era u m cheque

guia parar, não a posso ouvir, cada vez se sentia melhor, a senho- de montante muito elevado, vou ter que falar com o gerente, se o

ria recuava, pôs as mãos na cabeça, o que é que lhe deu, ele sentia montante não fosse tão elevado, ele disse em voz alta, fale com

apenas prazer em gritar, não lhe interessava o que dizia, se a se- quem quiser mas despache-se, nunca tinha falado assim com u m

nhoria lhe respondesse era capaz de a esbofetear, raramente se funcionário, o funcionário afastou-se, ele v i u que o fato cinzento

tinha sentido tão bem, a rapariga bonita acordou com os gritos, a estava mal cortado e não lhe assentava bem, teve pena do funcio-

senhoria afastou-se, a rapariga bonita abriu a porta e espreitou, ele nário por andar com u m fato mal cortado, olhou novamente para

olhou-a e sorriu docemente, a rapariga bonita teve muito medo o relógio, e se comprasse u m relógio, ia ter uma casa nova, decidiu

daquele sorriso e confirmou que as suas suspeitas estavam certas, que não, já não precisava de relógio, eram 9:16.

agora sim, tinha a certeza que era verdade tudo o que receava mas Os outros funcionários olharam-no desconfiados, as pessoas
também lhe sorriu c o m a mesma doçura, ele correu para ela, bei- que estavam noutra fila também, contou cinco homens e três m u -
jou-a, a rapariga bonita disse que ainda tinha sono, que ia dormir lheres, dois velhos, a manhã cheirava a café, o céu estava muito
mais u m bocado. azul, qual será o pecado deste céu tão azul, daí a poucos dias era
Desceu os degraus a cantarolar, não o l h o u para as baratas natal e ele e a rapariga bonita iam passar a consoada a casa da mãe
esborrachadas pelos miúdos do quarto andar, saiu da pensão e dei- como t i n h a p r o m e t i d o , u m a família n o r m a l , só faltava a casa
xou que a porta batesse, fez-lhe bem gritar com a senhoria, a dor nova, este era o tempo certo para obras de misericórdia espiritual,
no peito tinha desaparecido, andava com os passos seguros, tinha dar b o m conselho a quem precisa, ensinar os ignorantes, corrigir
pressa de chegar ao banco, tinha realmente uma coisa para fazer, os que erram, o funcionário aproximou-se, o gerente pediu-me

222 223
que telefonasse à titular da conta, compreende que não é uma bom naquilo que fazia, foi a senhoria que o enervou, se a senhoria
situação vulgar, decerto que a titular dirá que está tudo bem, o fun- não o tivesse enervado, parou numa florista para comprar uma
cionário ia falar com Eva e ele ficou muito assustado. dúzia de rosas, a rapariga bonita gostava muito de receber flores, e
Desde que Eva lhe dissera que nunca mais o queria ver ainda se lhe levasse u m presente, ainda tinha algum dinheiro no bolso,
não lhe tinha conseguido falar, não sabia o que Eva seria capaz de mais tarde falaria com Eva e resolveria tudo, comprou uma dúzia
dizer, não conheço esse h o m e m , ou esse h o m e m roubou-me os de rosas vermelhas e correu para a pensão, estava apaixonado e os
eheques, devia ter tentado mais vezes mas tinha sempre tanto que apaixonados nunca temem o futuro.
fazer, a rapariga bonita esgotava-lhe o tempo, tinha ido ao banco Até o ouvir gritar com a senhoria a rapariga bonita não tinha
porque ficara pela primeira vez sem dinheiro no cartão, o cartão a certeza que ele era realmente perigoso, nunca o tinha visto des-
plástico com letras douradas já não servia para nada, o funcioná- controlado, não o achava agressivo, até o ter visto gritar c o m a se-
rio estava afastado, marcava o número, o telefone tocaria na casa nhoria a rapariga bonita tinha-se convencido que ele era u m
grande longe de tudo, podia ser que Eva dissesse que estava tudo pobre coitado que a adorava, foi por isso que se foi deixando ficar,
b e m , e se o marido atendesse, tinha que agir depressa, u m dos ainda não tinha arranjado sítio para onde ir, de qualquer maneira
pecados contra o Espírito Santo, presunção de se salvar sem mere- desde que suspeitou dele a rapariga bonita acautelou-se, era ela sem-
cimentos, se pedisse novamente o cheque o funcionário descon- pre que decidia aonde iam, ele nunca se opunha a nada, estou
fiava, o funcionário marcou novamente o número, ele transpira- sempre bem desde que esteja contigo, a rapariga bonita escolhia
va, tinha a certeza que todos reparavam que ele não se sentia bem, locais movimentados, ele não lhe podia fazer mal, na pensão bas-
tinha que agir depressa, o funcionário virou-se de costas, ainda era tava-lhe falar mais alto e a senhoria aparecia, a rapariga bonita não
pior, não sabia se estava ou não a falar, tinha que agir rapidamente, tinha medo dele mas pensava deixá-lo em breve porque já estava
podiam estar a preparar-lhe uma armadilha, outro pecado, contra- farta, já não gostava dos dias que passavam juntos, daquele amor
dizer a verdade conhecida como tal, o funcionário desligou o tele- tão exagerado, quase uma doença, achou-o inofensivo até ao dia
fone e chamou-o à parte, ele fugiu, bateu nas pessoas que estavam que o ouviu gritar c o m a senhoria, tinha-se enganado, ele não era
atrás dele, carregou c o m força no botão da porta, abriu-a, ficou só u m desgraçado perdido de amor como julgou, ele era de facto
enjaulado numa pequena caixa, medidas de segurança, o funcio- perigoso, aquele sorriso doee tinha-o denunciado, tinha que ir
nário olhava-o espantado, ainda o chamou mas ele carregava no embora antes que fosse demasiado tarde, arranjaria u m sítio qual-
botão da outra porta que finalmente se abriu, empurrou a porta e quer, podia sempre voltar para os amigos que se riram dela no
desatou a correr, tinha a certeza que o queriam prender, Eva tinha café, em último caso voltaria para os amigos.
dito que ele era u m ladrão, só parou de correr longe do banco, Naquela manhã, em vez de se ir deitar eomo lhe tinha dito,
tinha que ir buscar a rapariga bonita à pensão, o nome dele tinha a rapariga bonita abriu o armário e atirou as roupas para cima da
ficado no cheque, como é que se pôde arriscar tanto, e se o pren- cama, tinha pouca coisa, cabia tudo n u m saco, começou a dobrar
dessem, transpirava, tinha que ir à pensão buscar a rapariga bonita as roupas, talvez conseguisse sair antes dele chegar, era mais fácil
e depois resolveria tudo com Eva, não se podia descontrolar, era se ele não a visse, raramente ficava sozinha, a senhoria também

224 225
não daria conta de nada, tinha começado a limpar a pensão frene- trouxesse os netos, a vizinha coneordou desde que não fosse obri-
ticamente, a rapariga bonita meteu tudo no saco, durante a noite gada a falar para a televisão porque tinha medo de se atrapalhar, a
ele tinha-lhe pedido para nunca o deixar, a rapariga bonita pôs-se senhoria sossegou-a, bastava que ficasse sentada na sala e que se
a pensar que ele era capaz de lhe fazer mal se a visse partir, tinha deixasse filmar com os netos como se ali vivesse, se puder traga-os
gritado daquela maneira com a senhoria, a rapariga bonita passou todos, sempre é uma recordação, a vizinha perguntou para que
a mão pela figa de ouro para se proteger, ia-se embora, se se cru- programa era, fieou satisfeita, as notíeias ainda são o melhor, mais
zasse c o m ele logo se veria. tarde a vizinha pediu a u m dos filhos que gravasse o programa, não
Ainda pensou escrever-lhe u m bilhete breve a pedir-lhe que é todos os dias que se aparece na televisão, dali a dois dias a vizinha
não a procurasse, podia dizer que tinha encontrado outra pessoa, apareceria com os netos na televisão, a senhoria afadigava-se nas
talvez fosse mais fácil ele desistir dela, mas não escreveu nada, não limpezas, queria que vissem tudo em condições, o reformado pen-
podia evitar que ele a proeurasse em todo o lado se essa fosse a von- sava se havia ou não de comprar u m fato novo, nunca tinha apare-
tade dele, só se abandonasse a cidade por uns tempos, quando saís- cido na televisão, a senhoria já lhe tinha eontado o telefonema
se dali logo decidiria, se ficasse na cidade ele acabaria por encontrá- várias vezes, primeiro uma menina perguntou por ela, u m a
la, se calhar tinha mesmo que ir para longe, ele não era como os menina muito educada, depois passou-a à jornalista, a senhoria
outros homens c o m quem tinha vivido, nunca tinha conhecido contou várias vezes o que lhe tinha dito, querem deitar abaixo u m
ninguém assim, com os outros homens que teve quando se fartava prédio cheio de crianças e velhos, a jornalista disse que a equipa
ia-se embora, despedia-se normalmente, quando eram eles que se de reportagem passaria da parte da tarde, a senhoria fieou assus-
fartavam dela faziam eles o mesmo, mas ele era diferente, a rapariga tada, tinha que ter tempo para dar u m jeito a tudo, quando soube
bonita bateu a porta e desceu os degraus com jeitinho, não queria que tinha dois dias a senhoria respirou aliviada, o reformado deci-
que ninguém a visse partir, quando saiu do prédio ainda não sabia diu que ia comprar u m fato novo, podia mandar uma cassete aos
para aonde ia, começou a andar, o saco não lhe pesava, a rapariga filhos, foi o que a senhoria lhe disse, o filho da vizinha ia gravar
bonita pensou que c o m u m bocado de sorte encontrava rapida- tudo, o reformado queria que os filhos o vissem com u m fato novo.
mente outro lugar, ainda era nova, continuou a andar, estava outra Quando o gordo soube também ficou muito entusiasmado,
vez por eonta própria, a manhã estava muito bonita, o céu estava mais tarde o gordo disse à senhoria que tinha falado com o sócio e
muito azul, a rapariga bonita desceu contente a avenida. que ele lhe tinha dado uma ideia muito boa, se a senhoria pusesse
Apesar da limpeza a senhoria ouviu bater a porta mas não o nome da companhia de seguros na sala podia ganhar a l g u m
desconfiou que a vadia tivesse ido embora de vez, se assim fosse dinheiro, claro que ninguém precisava de saber, era assim que
tinha tentado impedi-la, preeisava dela na pensão, a televisão tinha faziam nas novelas, a senhoria ouviu-o atentamente e disse que ia
telefonado, iam lá dali a dois dias, o que eram dois dias na vida da estudar a proposta, a papada da senhoria andava alegre para cima
rapariga, se a senhoria tivesse percebido teria tentado impedi-la, e para baixo, a senhoria já não se lamentava, foi por isso que não
mais uma pessoa dá sempre jeito, a senhoria já tinha arranjado deu conta que a vadia se tinha ido embora de vez, n u m dia normal
umas crianças para a televisão, tinha pedido a uma vizinha que ninguém deixaria assim a sua pensão.

226 227
lembre, o médico pensa que se a sua menina tivesse aquela bar-
riga em vez do aparelho nos dentes ele era bem capaz de morrer
de tristeza, é por isso que o médico quer que a rapariga saia de-
pressa da sala.
A rapariga não gosta da pena que sente nos olhos do médico
porque vive como quer e de certeza que o médico não vive como
quer, se vivesse não tinha aquele aspecto.
C o m o é que ele reagiu à sua gravidez? A rapariga pensa que
esta resposta é a mais fácil de todas, diz satisfeita, não soube, não
chegou a saber porque quando me fui embora ainda não sabia que
estava grávida.
O médico espera que a junta médica consiga fazer pergun-
tas pertinentes e obter boas respostas porque será a junta médica
que decidirá se o doente pode ou não ser julgado pela lei dos ho-
o funcionário entra na sala e pede à rapariga para o acom- mens. A ele só lhe cabe escolher as declarações que a junta mé-
panhar. Ela obedece. É uma criança c o m o cabelo despenteado dica deverá ouvir.
que vai pelo corredor sombrio, u m a criança que carrega outra A rapariga não acreseenta nada ao que as outras mulheres
dentro dela. ^^r^^^ , : • . disseram. O médieo pensa que deverá ser dispensada por ter
O médico tem pressa em aeabar o dia, quer ir para casa verifi- pouco interesse. O médico escreve nas folhas brancas na sua letra
car se tudo continua bem, se os filhos e a mulher estão bem, se o bonita e legível em linhas que sobem e descem, viveu uns meses
aparelho dos dentes e os óculos correctores são capazes de preve- com o paciente obviamente por razões de natureza económica,
nir uma alma de assassino, se a sua mulher sabe se são felizes, o atendendo às dificuldades que teve nunca saberá distinguir u m
médico também teme que o seu corpo ceda, está cansado. comportamento saudável de u m doentio, parece encarar c o m
A rapariga não diz nada, espera que o médico a interrogue, normalidade as obsessões do paciente, aliás, encara como normal
voluntariamente não tem nada para dizer. tudo o que é aberrante.
C o m o é que o conheceu? A rapariga já não se lembra onde e O médico quer perguntar à rapariga como pensa criar o filho,
quando o viu pela primeira vez, sabe que parece mal não se lem- mas não o faz porque tem medo da resposta, tem medo que a ra-
brar, inventa, numa festa de amigos comuns, é assim que quase pariga lhe responda, eomo me criaram a m i m , o médico t e m
todos os casais respondem nas revistas que lê. O médico anota medo do que pode ser u m perigo no futuro da sua menina e do
tudo na sua letra bonita e legível. seu menino, tem medo dos que são iguais a esta rapariga, dos que
O médico faz pela última vez as mesmas perguntas, compor- são incapazes de distinguir o bem do mal.
tamentos agressivos ou estranhos, qualquer coisa que a rapariga se

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Meus irmãos: revesti-vos de entranhas de misericórdia, Foi ontem de manhã brutalmente assassinada uma mulher
de bondade, humildade, mansidão e paciência. de 27 anos. O erime ocorreu numa pensão de uma zona degradada
Suportai-vos uns aos outros. e até agora desconhecem-se os motivos que levaram a tal acto. O
Col.3,12-13 crime surpreendeu os restantes moradores uma vez que o homi-
eida é uma pessoa pacata que trabalha há muitos anos como con-
tabilista numa grande empresa. Os familiares da vítima a f i r m a m . . .
(continua na pág. 3)

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n u m sítio daqueles, a senhoria abriu-lhe a porta, correspondia ao
que Eva tinha imaginado depois de ter visto o prédio, era gorda, o
cabelo pintado de caju, Eva reconheceu a cor das embalagens do
supermereado, maquilhada eom sombra muito azul nas pálpe-
bras e u m riseo preto mal traçado que lhe aumentava as olheiras,
muitos anéis nos dedos, o avental plástico queimado n u m dos
lados, a senhoria cumprimentou-a eom u m aperto de mão e enca-
minhou-a para a sala.
Eva percebeu que a senhoria tinha ficado agradada c o m o
seu aspecto e que ao eontrário dela não a tinha imaginado assim,
a senhoria não tinha conseguido disfarçar o espanto, quem diria
que ele conhecia alguém tão fino, a senhoria fê-la entrar na sala
que tinha a televisão ligada. Eva sentou-se e ficou a olhar para as
molduras com fotografias em cima da televisão, uma série de casa-
Era a primeira vez que Eva entrava na pensão. Subiu a medo mentos, outra de baptizados, a família da senhoria emoldurada,
os degraus, não reparou no menino partido que segurava o mundo desviou os olhos, a senhoria pediu-lhe licença, retirou-se. E n -
no arranque do eorrimão, nem na passadeira de linóleo, na água quanto esteve sozinha Eva imaginou-o sentado naquele sofá a ver
que eseorria pelas paredes, nas baratas esborrachadas pelos miú- televisão, cruzou a perna como ele costumava fazer, o l h o u em
dos do quarto andar. Desde que se aborreceram de procurar tesou- volta, a senhoria reapareceu sem o avental, Eva merecia que
ros nas paredes, os miúdos apostam quantas baratas conseguem tirasse o avental, sentou-se no sofá em frente, traçou os pés gordos
matar e divertem-se com o barulho que as baratas fazem quando recuando-os ligeiramente, Eva perguntou se podia fumar, a se-
rebentam. Mesmo assim, Eva achou a pensão ainda mais horrível nhoria estendeu-lhe o einzeiro c o m cerimónia, ele também f u -
do que a imaginou das vezes que a tinha visto por fora. mava muito, disse, com u m ar sofrido, o reformado entrou na sala
Nesses dias Eva estava magoada por ele lhe ter mentido, ti- mas a senhoria mandou-o embora porque se tratava de uma con-
nha-lhe dito que morava no lado oposto da cidade, numa pensão versa particular.
pintada de amarelo sol e janelas verdes de madeira, agora já sabia Disse que ainda não estava nela, e a papada subiu e desceu a
que ele lhe tinha mentido em tudo, já não se sentiu enganada antes confirmar o nervosismo. Recebia-a porque era amiga da namo-
se culpou por não ter desconfiado que ele viveria n u m sítio daque- rada dele que, não desfazendo, sempre tinha sido muito educada,
les, às vezes ele gostava das manhãs outras achava-as demasiado e porque também se queria ver livre das eoisas dele, não gosto de
bonitas, o mar era tão grande que o enervava, as flores tinham mui- nada que não seja meu, só por isso é que a recebo, Eva quase não
tas cores, as árvores monotonamente verdes, não gostava nem falava c o m medo que a senhoria lhe reconhecesse a voz, que
odiava nada em particular, uma pessoa assim tinha que acabar chegasse à conclusão que a namorada e a amiga eram a mesma

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pessoa, noutra altura a senhoria teria reparado mas ainda não taram o lugar, quando viu o quarto e o maldito armário vazio nem
estava nela, o protagonismo que nos últimos tempos se tinha pode imaginar o que aqui foi, parecia que o picavam, eu n e m me
colado a ela desconcentrava-a, a senhoria disse, a sua amiga deve tinha apercebido de nada, se fosse n u m dia n o r m a l , mas como
estar a passar u m mau boeado, nunea a conheci mas deve ser uma disse foi em vésperas de a televisão eá vir, andava ocupada com as
excelente pessoa, parecia gostar muito dele, era pena estar tantas limpezas, ela pôs-se a andar depressa porque tinha pouca coisa,
vezes no estrangeiro por causa da profissão, os homens sozinhos não é para dizer mal mas não sei onde é que ele a foi descobrir, n i n -
fazem sempre asneiras, Eva não sabia o que ele tinha inventado guém me tira da ideia que ela se safou logo atrás dele, deviam ter
acerca dela, mais tarde percebeu que a julgavam guia turística, a tido alguma discussão, nesse dia gritou comigo como u m doido e
senhoria começou a contar o que aconteceu, Eva percebeu que depois saiu porta fora, foi a primeira vez que me gritou, n e m sei
já o t i n h a feito muitas vezes, já t i n h a eneontrado o r i t m o ade- como saiu sem ela, desde que a trouxe para cá que nunca davam
quado, f o i no dia em que a televisão cá veio, elaro que foi por u m passo u m sem o outro, naquele dia deviam estar zangados, e
acaso, calhou ser nesse dia, podia ter sido antes ou depois mas ela já devia ter a ideia de se ir embora, eu estava muito ocupada
ainda bem que foi nesse dia, os senhores da televisão sempre aju- porque vinha cá a televisão, tinha escrito a carta há tanto tempo
daram, se não estivesse cá a televisão não sei o que teria sido, Eva que começava a desanimar e foi nesse mesmo dia que me telefo-
preparou-se para a ouvir relatar tudo, a senhoria tinha que contar naram a dizer que vinham cá, aconteceu tudo ao mesmo tempo,
tudo antes de lhe dar as coisas dele, Eva ainda não sabia para o que por isso é que ainda não estou em m i m , como iam filmar queria
as queria, nunca o julgou capaz de matar, foi à pensão à espera de que vissem tudo l i m p o , estava a limpar aquele quartinho ao fundo
compreender. -^ quando ele entrou, para a senhoria estes pormenores eram impor-
As palavras escorriam oleadas pela boca da senhoria, os tantes, faziam parte do crime, ouvi-o chegar mas como não sabia
lábios finos descaídos mexiam-se muito, Eva pensou que nunca de nada continuei no meu trabalho, ele foi direito ao quarto dela,
simpatizaria c o m uma pessoa de lábios tão finos, de vez em quan- a senhoria parou uns instantes, este silêncio também era impor-
do deixava de a ouvir, se não parecesse mal acendia outro eigarro, tante e tinha que ser respeitado para que nada falhasse, nunca na
a senhoria continuava, para m i m foi tudo por causa daquela, nem minha vida vi nada assim, ele andava sempre, sempre atrás dela,
sei como lhe hei-de chamar, desde que a conheceu parecia em- se ela ainda fosse alguma coisa de especial, sinceramente não per-
bruxado, quando ela o deixou, nunca vi nada assim, Eva reconhe- cebo o que v i u naquela rapariga, andava sempre c o m o cabelo
ceu as palavras da senhoria dos jornais, parecia embruxado, no dia cheio de riças, as saias a arrojarem pelo chão, parecia aciganada.
que ela se foi embora julguei que era a m i m que, só de pensar nisso Deus me perdoe, mas parecia aciganada, tive que a aceitar, aliás,
fico toda arrepiada, olhe, a senhoria mostrou os braços com pêlos aceitei-a por causa dele, e quando se tem uma casa aberta, Eva
escuros eriçados, quando ele entrou por aquela porta, trazia u m acenou compreensiva eom a cabeça, quando entrou no quarto e
grande ramo de rosas e u m embrulho, se ela pedisse o céu dava-lhe percebeu que ela se tinha ido embora deu uns gritos que parecia
o céu, entrou por a l i , a senhoria devia ter feito os mesmos gestos o diabo dentro dele, eu f u i até ao quarto, se visse a minha surpresa
para os jornalistas, para os vizinhos, para todos os euriosos que visi- quando percebi o que se passava, pensei, deve ter arranjado outro.

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juro que pensei, estas mulheres são mesmo assim, claro que não Chamou-nos todos os nomes que lhe passaram pela cabeça
lho disse mas que pensei, pensei, ele perguntou-me por ela, tinha o e foi-se embora. Nós ainda pensámos chamar a polícia, mas estava
diabo no corpo, olhe que não sei de nada, de manhã ele já tinha tão atrapalhada, e depois podia parecer mal, também não podia
gritado comigo, daí que eu tenha dito logo, olhe que não sei de adivinhar que ele, quem é que pode pensar que uma pessoa nor-
nada, o que t i n h a acontecido era lá entre eles, não me queria mal de repente, b o m , pensei que aquilo era u m arrufo e que ela
meter, olhe que não sei de nada foram as únicas palavras que lhe aeabava por regressar, se aquela vadia, desculpe, mas é assim que
dei, Eva pensou que n e n h u m jornalista tinha ligado a esta frase lhe chamo, se ela tivesse voltado tenho a certeza que ele não tinha
que a senhoria tanto repetia, olhe que não sei de nada, ele come- feito nada, eu só queria que tudo corresse bem com a televisão,
çou a gritar comigo, chamou-me tudo o que lhe apeteceu, Eva isto está assim como vê mas não é culpa minha, é a velhice do pré-
tinha l i d o , vaca e usurária, estava tão enraivecido, em toda a dio, eu bem esfrego as paredes, ainda me doem os braços, faço
minha vida acho que nunca vi ninguém assim, o m e u hóspede, uma bacia de detergente verde e lixívia e com a escova, antes de
aquele que aqui veio há pouco, como já está reformado passa aqui se ir embora ameaçou-nos, se soubesse que nós lhe tínhamos feito
os dias e naturalmente até tinha comprado u m fato novo, o pobre- alguma coisa, não sei se deve contar isto à sua amiga, são coisas tão
zito veio em meu socorro, a senhoria esfregou as mãos e suspirou, tristes, Eva prometeu que não contaria nada à amiga, acendeu
Eva pensou que os suspiros da senhoria também não tináam sido outro cigarro, a senhoria manifestou interesse em saber mais
transcritos para as notícias que l e u , o velhote aproximou-se de sobre a amiga, ainda pensei que os jornalistas a entrevistassem, e
m i m e ele chamou-lhe pedaço de merda, veja lá, Eva tinha lido, à mãe, imagino o desgosto daquela mãe, se u m dos meus filhos me
vai-te embora, seu pedaço de merda, claro que tivemos os dois fizesse uma eoisa igual morria de desgosto e de vergonha, até pen-
muito medo, ele estava louco e u m louco não sabe o que faz, ainda sei que a sua amiga estava zangada, ninguém gosta de ser trocada
tentei sair do quarto, mas ele empurrou-me para cima da cama, ainda por cima por uma rapariga daquelas, mas aquilo foi bru-
tanta força como só o inimigo pode ter, a senhoria bateu três vezes xedo, Eva disse que a amiga não estava zangada, a senhoria aba-
na madeira, desequilibrei-me, caí sobre a cama, o velhote ainda n o u piedosamente a cabeça, até u m assassino merece perdão,
me tentou ajudar mas ele impediu-o, claro que o h o m e m n e m se toda a gente merece perdão, ninguém está livre, nesse dia se tivés-
mexeu, tenho a eerteza que até se m i j o u , deseulpe dizer isto assim semos dado u m passo ou feito qualquer coisa tenho a certeza que
mas tenho a certeza que o velhote se m i j o u todo, u m dia destes também já não estava aqui a falar consigo, tenho a certeza, da
ainda lhe hei-de perguntar, tem sido tanta coisa que me tenho es- forma que estava virado, mas ficámos quietos e como não lhe res-
quecido, Eva pensou que a senhoria já tinha perguntado mas que pondemos ele lá se foi.
gostava de contar assim, se o velhote se tivesse mijado teria sido Eva queria receber as coisas dele para se ir embora, não gos-
uma prova do medo que sentiram, a senhoria há-de sempre la- tava de estar a l i , do cheiro a fruta apodrecida, do poster c o m o
mentar que o velhote se tenha aguentado, para a próxima a senho- m e n i n o a toear piano, Eva não gostava de estar sentada na po-
ria deseja que alguém se mije perante u m a situação de perigo breza, de respirar a pobreza, tinha conseguido fugir do bairro,
para ser tudo mais verídico. nunea mais queria estar perto da pobreza, a senhoria ainda tinha

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muito para contar, Eva traçava a perna, cruzava os braços, fazia montar as luzes, a eoitadinha, era assim que a senhoria se referia
qualquer coisa para deixar de a ouvir, nesse dia voltou muito tarde, à vítima, Eva esperava que a senhoria ehorasse, mas a senhoria
deve ter andado à procura dela, não lhe perguntei nada, tinha prosseguiu de olhos secos, a voz ligeiramente trémula, a coitadi-
decidido que ele se ia embora mas só depois da televisão cá vir, não nha estava aqui nesta sala à m i n h a espera, quando cá vinha nunca
queria que nada corresse m a l , ainda hoje não sei o que aquela se demorava, mas naquele dia por causa da televisão deixou-se
vadia lhe deu, ele era u m h o m e m pacato, durante os anos que fiear mais u m boeadinho, pouco antes ainda me disse, nunca pen-
aqui morou ia e vinha para o emprego, parecia u m relógio, Eva sei que fosse preciso tanta coisa, foram as últimas palavras que me
tinha lido, contabilista numa grande empresa, a senhoria conti- disse, coitadinha, n u m minuto admirada c o m o mar de fios que
nuou, era u m h o m e m pacato, estava a arranjar a vida para se casar andava por aqui e noutro morta, é bem verdade que não somos
com a sua amiga, se se tivessem casado nada disto tinha aconte- ninguém nesta vida, tinha chegado a hora dela, os senhores da
cido, Eva concordou c o m a cabeça, telefonava à mãe, era edu- televisão ligaram as luzes, quando as acenderam parecia que t i -
cado, respeitador, até conhecer aquela vadia não tenho nada a n h a m posto o sol aqui dentro, estavam eá umas vizinhas, uma até
dizer dele, era u m bocado fechado demais para o meu gosto, mas trouxe os netos, as pessoas gostam sempre de ver a televisão, esta-
cada u m tem o seu feitio, nunca nos fazia companhia na televisão, vam cá umas vizinhas, os meus dois hóspedes, o que já se refor-
desculpava-se que tinha que se deitar cedo por causa do enfprego, m o u e o outro que trabalha por conta própria, os parasitas do ter-
ninguém podia adivinhar que era capaz de uma coisa daquelas, ceiro e do quarto é que não, a senhoria apontou para o tecto, a
Eva interrompeu-a de repente para perguntar, a mãe dele alguma desgraçada daqui de eima, deve tê-la ouvido gritar, essa nunca sai
vez o visitou, não, está na terra, é velha, ele é que de vez em quan- de casa, há mais de vinte anos que não sai de easa, é uma miséria,
do lá ia, mas telefonava-lhe todas as semanas, Eva tinha lido, a mas eles foram lá acima filmá-la, Eva tinha visto na televisão uma
mãe ainda vive na sua aldeia natal, ninguém conhecia o bairro, velha desgrenhada de cócoras junto de u m prato de comida, dei-
era u m filho muito dedicado, Eva pensou que ele tinha inventado xo-lhe sempre comida na varanda, isto para dizer, tantas pessoas e
uma vida e que os jornais t i n h a m confirmado essa vida, a senho- ninguém deu conta, quando demos conta já não havia nada a
ria repegou nas palavras, não gostava de ser interrompida, tinha fazer, ele deve-a ter chamado para o quarto e a coitadinha foi, fin-
de contar sem interrupções para não se esquecer de nada, é certo giu que queria comprar alguma coisa, isso penso eu porque o que
que ela o endoidou, mas daí a ser capaz, a senhoria evitava falar se passou nunea se pode saber, quando a ouvimos gritar já era
nas facadas à volta do coração, ainda hoje me custa a aceitar, se tarde, ele já a tinha, olhe fico toda arrepiada, a senhoria mostrou
tivesse visto, ele tinha sido violento comigo, mas nunca pensei outra vez os pêlos eriçados, quando fomos acudir ela estava dei-
que fosse capaz de ir buscar a maldita faca, há anos que a tinha na tada no chão e ele prendia-a eom os joelhos, tinha os joelhos em
cozinha, fazia-me jeito para arranjar u m a galinha, daquelas eima da barriga da pobrezinha, foi por isso que não conseguiu gri-
maiorzinhas para canja, há anos que a tinha na cozinha, agora é a tar mais alto, sim, porque vontade não lhe deve ter faltado quando
polícia que a tem, ele deve ter ido buscá-la já com a ideia de a ma- o viu c o m a faca, pelo menos deve ter gritado quando ele a espe-
tar, quer dizer não sei, não v i , os senhores da televisão estavam a tou, a não ser que tenha desmaiado, mas não me parece que tenha

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desmaiado, deve ter-se apercebido de tudo, espetou-lhe a faca no filho pequenino, Eva tinha lido, a vítima deixa marido e u m filho
peito, Eva t i n h a l i d o os tamanhos e os sítios de eada golpe, se de três anos, até lhe tinha prometido comprar u m casaco de ca-
calhar viu na televisão, Eva tinha visto na televisão o eorpo a ser bedal no princípio do ano se as coisas corressem bem, tinha-os
removido numa maca, na televisão passa depressa mas os jornais muito bons, também vendia algum ouro, ouro de lei, era uma pes-
contaram tudo, tenho ali todos, Eva o l h o u para cima da mesa e soa m u i t o honesta, sabe que me custa usar estes anéis que lhe
v i u o monte de jornais, mesmo depois de lá estarmos ele ainda comprei, estendeu a mão e os dedos para que Eva pudesse ver os
tentou enfiar a mão n u m corte maior que lhe tinha feito, como se anéis, mas a vida continua, ficou uma poça de sangue no quarto,
andasse à procura de qualquer coisa dentro dela, olhe não sei n e m quero pensar, os senhores da televisão agarraram-no mas já
explicar, Eva tinha visto as fotografias da vítima, os senhores da não havia nada a fazer, foi pena não terem filmado, eu vi logo que
televisão, os meus hóspedes, todos os que aqui estávamos fieámos ela não se safava, estava branca como a cal, foram precisos quatro
sem reacção, não nos conseguíamos mexer, a pobrezinha deitada homens para o agarrarem, era a força do mal eom ele, quando o
no chão e ele a, n e m a u m animal consigo fazer o mesmo, uma agarraram não disse nada, até parece que não percebeu o que fez,
galinha ou u m peru o que me custa, tenho que os matar, mas o não estava nele, tenho a certeza que não estava nele, com os ner-
que me custa, os senhores da televisão ainda não t i n h a m as coisas vos desatei a gritar, foi uma aflição tão grande, o quarto cheio de
preparadas para filmar, foi pena, se tivessem filmado é quelfinha sangue, Eva percebeu que a senhoria costumava chorar nesta
visto bem o que aconteceu, u m h o m e m que desata a espetar uma parte e ela assim fez, l i m p o u uma lágrima que criou com dificul-
mulher no peito é obra do inimigo, a senhoria bateu três vezes na dade, ainda a levaram para o hospital, mas chegou lá morta, Eva
madeira, a m i m ninguém me convence que estava nele, a coita- tinha lido, a vítima foi levada ainda eom vida para o hospital mas
dinha veio cá nesse dia porque lhe t i n h a encomendado uma viria a falecer no caminho, os da televisão ajudaram a polícia, j u n -
camisa azul c o m uns botões douradinhos para a missa de ano tou-se aqui u m mar de gente, e agora o que me custa entrar
novo, ainda ontem dei o dinheiro ao marido, contas são contas, naquele quarto, ainda lá está a mancha do sangue, Eva tinha visto
Eva tinha lido, a vítima vendia roupa e outros artigos a prestações, fotografias, então se estou cá sozinha, acontece raramente, claro
a coitadinha trouxe-me uma saia a condizer mas não lha comprei, que se for preciso alguma coisa entro, olhe que ele também não
não me assentava bem, a coitadinha deixou-se ficar por causa da tem muitas coisas, está quase tudo em casa da sua amiga, era o que
televisão, a pessoa tem sempre aquela curiosidade, e foi isso que a ele dizia, comprámos isto e isto mas f i c o u em casa da m i n h a
matou, ainda ontem o marido me contou que ela tinha brincado namorada, Eva lembrou-se dos discos dele ainda encaixotados
c o m ele, vou aparecer na televisão, m a l ela sabia, Eva tinha lido em easa da tia, tem ali roupas e poueo mais, a senhoria tinha aca-
que o marido da vítima não se conformava, a televisão vai hoje à bado a versão oficial, Eva t i n h a que a i n t e r r o m p e r para que a
pensão da fulana tal, foram essas as últimas palavras que disse ao senhoria não começasse a versão pessoal, a senhoria perguntou,
m a r i d o , a senhoria c o n t i n u o u devagar, Eva acendeu outro c i - eram amigos, quer dizer conhecia-o bem, Eva abanou a cabeça,
garro, a senhoria sorriu, olhe que lhe faz mal à saúde, Eva agrade- não, praticamente não nos conhecíamos, sou amiga da namo-
ceu a preocupação, há anos que lhe comprava roupa, deixou u m rada, amigas de infâneia, crescemos juntas, mas tinha boa i m -

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pressão dele, a senhoria ficou satisfeita, mas no f i m de tudo a viva hei-de dizer a toda a gente que foi a televisão que me salvou,
m i n h a pensão até f i c o u b e m na televisão, não sei se v i u , Eva mas não deve ter tempo para estar a ouvir uma velha a falar, deve
negou, não podia dizer o que tinha achado da pensão, não vejo querer as coisinhas dele, Eva sorriu, foi u m prazer, claro que tem
muita televisão, a senhoria o l h o u para a televisão que esteve sem- a sua vida, a senhoria levantou-se e Eva seguiu-a, entraram no
pre ligada enquanto eonversaram, esta humidade quase não se quarto, foi aqui que tudo aconteceu, horas do inimigo, a senhoria
via, não f u i só eu que gostei, os vizinhos também se fartaram de bateu mais três vezes na madeira, quando a sua amiga telefonou
elogiar, ele ainda me prometeu que ia falar com uns engenheiros pus logo as coisas dele em cima da cama, pode ver mas as gavetas
que conhecia, depois meteu-se c o m ela, a sua amiga se calhar estão vazias, Eva v i u em cima da cama as roupas que lhe tinha
também os conhece, Eva disse que não sabia, Eva tinha lido, dona comprado ao longo dos anos, os postais que lhe tinha enviado,
da pensão vai para a rua, a senhoria continuou, agora como o caso umas luvas de lã velhas, Eva começou a juntar as eoisas, a senho-
foi denunciado eles já querem u m acordo, u m dos jornalistas ria observava-a, diga à sua amiga que se faltar alguma coisa n i n -
disse-me que vão fazer andares de luxo porque isto é u m sítio guém mexeu em nada desde que o levaram, a polícia mexeu mas
muito central, nesta avenida já deitaram abaixo uma série de pré- acho que deixou aí tudo, os jornalistas estiveram cá mas eu estive
dios, não sei se reparou n u m espaço dois prédios à frente deste, sempre presente, as eoisas estavam à m i n h a guarda, Eva sentou-
estava lá u m i g u a l z i n h o a este, se calhar u m bocadinho mais se na cama dele para dobrar melhor as roupas, a criatura do andar
pequeno, ainda estava em b o m estado mas também foi abaixo, a de eima gritava, Eva pensou que era muito fáeil enlouqueeer se
televisão foi uma grande ajuda, ainda por cima como aconteceu ficasse ali muito tempo, bastava tempo e u m a distracção, era fácil
o que aconteceu vieram eá outras televisões, pensei que dava em matar naquele quarto, bastava pensar nisso, a senhoria trouxe
maluea, os jornalistas não descansam enquanto não descobrem sacos plásticos para guardar as coisas miúdas, Eva comoveu-se
tudo, acabam sempre por descobrir tudo, os jornalistas desco- com as luvas velhas de lã, nunca mais as tinha visto, não sabia que
brem sempre tudo, não digo que não saio daqui, que não chegue ele as guardara, o passado apareceu inteiro de repente, a senhoria
a u m acordo, estou cansada, uma pensão dá muito trabalho, se não se apercebeu de nada, Eva arrumou tudo, a senhoria eonti-
fosse mais nova, e ganhei medo, a gente pensa que conhece as pes- n u o u , parece que estou a ver a eoitadinha deitada no chão, Eva
soas mas não, quem diria que ele era eapaz de fazer o que fez, ia pegou nos sacos, deu uma gratificação à senhoria, por favor, foi a
fazer seis anos que aqui estava, não foram seis dias, os meus filhos m i n h a amiga que me p e d i u , a senhoria m u d o u de expressão,
ainda ontem me telefonaram para me pedirem para não aceitar sendo assim, olhe diga-lhe que espero que organize depressa a
mais ninguém, se a indemnização fosse u m boeadinho melhor vida dela, se eonseguisse esquecer-se disto tudo era o melhor que
dizia já que sim, tenho que fazer eontas, mas é eomo eu digo, foi fazia, Eva despediu-se, a senhoria acompanhou-a à porta e disse
a televisão que me salvou, ainda por cima c o m o aconteceu três vezes eom licença antes de fechar a porta.
aquilo, a senhoria nunca dizia a palavra crime, falei do m e u pro- Nas escadas Eva esfregou com força as mãos no casaco e saiu
blema a cada jornalista que cá veio, eles vinham mais por causa da pensão aliviada por nunca mais ter que estar naquele sítio ou
do que aconteceu mas sempre deram uma ajuda, enquanto for falar mais c o m a senhoria. Quando entrou no carro abriu os sacos,

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leu pedaços de cartas que lhe escreveu, mexeu em tudo à procura quando saía para consertar ossos, salvou-a dele, o h o m e m abriu a
de qualquer coisa que justificasse o que se tinha passado, u m diá- mala, era u m a n i m a l satisfeito, mexeu na roupa eom as mãos
rio se ele tivesse o hábito de o eserever, u m bilhete a chantageá-lo, encardidas, experimentou u m casaco, ele e este h o m e m eram qua-
u m medicamento que tivesse a loucura como efeito secundário, se da mesma estatura, feitos da mesma massa, o h o m e m não agra-
não encontrou nada, mais tarde abriria a mala que a senhoria deceu, ia-se embora quando perguntou, por aeaso isto é de algum
disse ter só roupa, quem sabe se no bolso de u m casaeo, Eva pôs o morto, dá-me azar vestir roupa dos mortos, Eva surpreendeu-se
carro a trabalhar para se afastar dali, ficou parada na avenida no por aquele h o m e m ainda saber o que lhe dava azar e respondeu
meio de muitos carros, a cidade engarrafada e dois homens empo- que eram eoisas de que o marido não gostava.
leirados numa escada a desfazerem os enfeites de natal, duas cor- Deixou que ele se confundisse com o h o m e m que ficou no
netas de anjo no ehão, Eva ligou o rádio, música romântica, m u - vazio do prédio demolido, ainda o v i u durante algum tempo no
dou, notícias, m u d o u , música de que não gostava, m u d o u , o terço espelho retrovisor, eram quase da mesma estatura, feitos da mes-
transmitido directamente da Capelinha das Aparições, Eva desli- ma massa, Eva voltou para o engarrafamento e desejou sair rapi-
gou o rádio, os carros não se mexiam na avenida, Eva proeurou o damente da cidade, queria voltar para a casa grande longe de tudo
prédio que tinha sido demolido, dois prédios mais abaixo, ainda e perto do mar, Eva reparou numa unha que se tinha partido, e
estavam pedras no chão e restos de cor agarrados à empena do pré- logo hoje que há jantar de família, de-tes-tam-me, vão reparar na
dio ao lado, os reeortes das chaminés na empena do prédio que unha partida, o carro de trás buzinou e Eva arrancou no semáforo.
também haveria de ser demolido, tudo a seu tempo, e se atirasse
tudo para o terreno do prédio demolido, se pudesse estacionar, fez
sinal, virou para uma rua secundária, u m h o m e m indicou-lhe u m
lugar vago, corria à frente do carro protegido por u m chapéu de
chuva, tinha começado a chover, Eva aborreeeu-se, não queria
molhar o cabelo mas queria desfazer-se rapidamente das coisas
dele, não tinha mais nada para ver, nunca seria capaz de com-
preender o que se tinha passado, arrependeu-se de ter ido à pen-
são, de ter fingido que era uma amiga da namorada, de ter confir-
mado o que ele tinha inventado, de ser cúmplice dele até ao fim,
o eheiro horrível da pensão tomava eonta do carro, quando dei-
tasse tudo fora ele sairia para sempre da vida dela, o h o m e m indi-
cou-lhe u m lugar, Eva parou o carro e abriu a porta de trás, fez-lhe
sinal para levar as eoisas, o h o m e m não pereebeu, Eva gritou-lhe,
tire estas coisas daqui, deitou fora alguns sacos, quando percebeu
o h o m e m pegou na mala, salvou-a das luvas de lã que p u n h a

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o crime na pensão da avenida. Eva fechou o jornal. Depois amarrotou-o com força e atirou-o
Fonte segura afirma que o alegado homicida, que se*encon- para o chão. Asenhoria tinha razão, os jornalistas descobrem sem-
tra detido preventivamente, confessou o crime e explicou os moti- pre tudo. Levantou-se do sofá, tirou a cigarreira e o isqueiro do
vos que o impeliram a tão cruel acto. A mesma fonte afirma que bolso do robe e m cetim que Eva gostava de sentir sobre a pele.
se tratou de u m crime passional e que o alegado homicida já tinha Tocou sem querer na carta que recebera há uns dias, a notifieação
ameaçado a vítima várias vezes. Contactado por este jornal, o res- para depor no processo, e isso enervou-a, ajeitou o cabelo eomo
ponsável pelas investigações não eonfirmou n e m desmentiu. O fazia sempre que se enervava. Acendeu u m cigarro e enquanto o
marido da vítima (primeira foto à direita) fieou surpreendido com f u m o u , calcou devagarinho o jornal, quando apagou o cigarro
a notícia, declarou que está disposto a fazer justiça c o m as próprias tinha decidido que nunca mais o procuraria nos jornais.
mãos e nega qualquer envolvimento da vítima com o homicida. Nunca tinha acreditado que se podia começar a vida outra vez,
O resultado da autópsia e vários testemunhos nas páginas centrais. e a carta que a intimava a depor dava-lhe razão. Começar a vida era
u m privilégio de u m recém-nascido ou de u m amnésico, não estava
ao alcance dela nem de ninguém, os que diziam isso estavam enga-
nados ou mentiam. Eva não os criticava porque era fáeil engana-
rem-se e b o m mentirem, em contrapartida acreditava que todos os
erros podiam ser corrigidos desde que se tivesse vontade, a vontade
chegava para corrigir os erros, mas nunea para se começar tudo de
novo, Eva queria corrigir o erro de ter confiado nele.

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Temia que o marido descobrisse que o tinha traído e pensava gem do tempo. Para Eva a única satisfação desses dias foi o facto
no que podia fazer para que nunca soubesse. Sabia que a vida lhe de achar a rapariga desmazelada e nada bonita, a rapariga era
era favorável, os traídos nunca acreditam logo na traição, não pobre e por isso muito banal. N u n c a teria suportado que a rapari-
tinha acreditado que ele estava noivo como o reformado lhe dis- ga fosse bonita, desde que o reformado lhe disse que ele estava noi-
sera, durante algum tempo recusou-se a acreditar que tinha sido vo o que mais temeu foi a juventude e a beleza da noiva. Quando
traída, a vida corria a seu favor, bastava uma história b e m inven- os v i u juntos descansou, a rapariga era nova, quase uma criança
tada para que o marido nunca soubesse o que se tinha passado. ao pé dele, mas desmazelada e nada bonita. Ao princípio doeu-lhe
Eva seguiu-o para confirmar que era mentira e quando o viu vê-lo tão feliz, mas ao fim de alguns dias já não lhe custava. Tam-
com a rapariga surpreendeu-se com a verdade. Depois continuou a bém a distância a que o sentia a magoava, mas ao fim de outros tan-
segui-lo porque pensou que era a maneira mais fáeil de o esquecer tos dias agradeceu a distância que se tinha interposto entre ela e
e de começar a vida outra vez. Quanto mais vezes os visse juntos aquele desgraçado. Foi nesse m o m e n t o , quando já não sentia
mais fácil seria esquecê-lo, era o que pensava, mas o tempo demons- nada, que parou de o seguir.
trou-lhe eomo estava enganada, o esquecimento não tem método e Eva nunca desejou que ele fosse feliz n e m nunca lhe m e n t i u
a vida começa-se uma única vez. a esse respeito. Precisava dele, como o conhecia, para poder fin-
Ele tinha-lhe mentido em relação à pensão, tinha-lhe man- gir que o amava. Não corria riscos nesse fingimento porque ele era
tido m u i t o sem que Eva conseguisse perceber o que o levou a a pessoa certa, u m caso tão perdido como ela, a única coisa que
mentir. Durante muito tempo teve esperança de o compreender realmente a magoou foi ter perdido o recipiente do seu amor tão
mas não foi capaz. Não o encontrou quando lá foi pela primeira b e m fingido que parecia verdadeiro. Se alguém a julgasse pela
vez. N a manhã seguinte esperou-o muito cedo para não o perder, forma como o utilizou, Eva alegaria sempre a sua inocência por-
chovia e Eva ficou dentro do carro a ver a chuva cair no pára-bri- que não era culpada de não ser capaz de outra forma de amar.
sas e a ouvir o barulho no tejadilho. Não fez mais nada. Gostava Releu a carta que a intimava a depor, decorou o número do
das sombras que a chuva fazia à noite quando caía no pára-brisas, processo, o dia e a hora. Continuava sem saber como corrigir o
à noite a água fazia sombras muito bonitas dentro do carro, pelo erro de ter confiado nele. Também tinha que impedir o marido de
menos Eva gostava, mas durante o dia a chuva era monótona por- descobrir a verdade. Não amava o marido que felizmente era u m
que se limitava a cair no vidro e a fazer barulho. h o m e m prátieo que dispensava sentimentos supérfluos, mas
Ele e a rapariga saíram da pensão a meio da manhã. Pelos u m h o m e m prático nunca perdoaria uma traição por ser incapaz
passos pareciam ensonados. C a m i n h a r a m pela avenida abraça- de a compreender.
dos e Eva admirou-se por se rirem tanto. Enquanto estiveram j u n - Os dias que o seguiu forçaram-na a admitir que ele amava a
tos nunca t i n h a m andado abraçados na rua e nunca o tinha visto rapariga, mas o crime continuava por justificar, a vítima tinha sido
tão feliz. Mas isso não foi suficiente para que Eva desistisse dele. outra, Eva tinha ido à pensão na esperança de compreender, se
Foram precisos muitos dias, ele nunca se apercebeu porque estava fosse eapaz de compreender seria capaz de se esquecer de tudo
feliz e a felicidade toldava-lhe os olhos e a consciência da passa- mais facilmente, não havia nada pior do que u m mistério para

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prender pessoas como Eva que gostavam de verdades facilmente de alguém que lhe desse corda. Eva precisava dele, não o amava

demonstráveis, Eva tinha que corrigir o erro de ter confiado nele, mas precisava dele, o que ainda era pior. Por fora a caixa de música

queria vingar-se da memória da dor que ele lhe dera, foram preci- era toda lacada a preto. T i n h a sido muito cara e o antiquário para

sos muitos dias para Eva deixar de sentir a dor de saber que ele justificar o preço tinha-lhe dito que pertencera a alguém famoso,

nunca mais lhe pertenceria e era da memória dessa dor que se u m nome de que Eva já se esqueceu. Possivelmente enganou-a,

queria vingar. mas não preeisava de o ter feito porque Eva teria comprado a caixa

Eva disse ao marido que os velhos do hospital t i n h a m razão, de qualquer maneira.

que a dor é realmente u m fenómeno esquisito. O marido anuiu e A empregada entrou na sala para dar comida aos peixes do

não lhe p e r g u n t o u nada n e m estranhou a conversa porque os aquário, Eva gostava que os peixes comessem a horas certas. O b r i -

homens muito práticos têm essa vantagem, a de aceitarem tudo gava a empregada a andar fardada. Sabia que ela não apreciava,

como normal. Eva contou-lhe que os velhos do hospital deixavam mas não suportava vê-la vestida de maneira diferente todos os dias.

de sentir a dor com o tempo, era estranho como conseguiam habi- Fardada nunca a surpreendia e podia fingir que a conhecia nas ris-

tuar-se tanto à dor até ao ponto de deixarem de a sentir, sofri cas azuis e no avental branco sempre iguais. U m a empregada far-

muito, na altura sofri muito, mas depois a vida continua, diziam dada era sempre igual, não tinha dias bons n e m maus, de melhor

para justificarem a sobrevivência à morte dos que t i n h a m arredo, ou pior gosto. Os peixes do aquário amontoaram-se junto à co-

a uma dor tão forte que quase os matou. N o entanto, Eva nunca mida, o tempo também era importante para eles se bem que não

disse ao marido que tinha sido velha cedo demais por não conse- soubessem o que era o tempo, sabiam apenas que se não fossem

guir sentir mais do que aqueles velhos que consideravam já ter suficientemente rápidos não comiam, a vida dos peixes devia ser

deixado de sentir fosse o que fosse. ' triste porque desconheciam tudo o que não era essencial.

Estava novamente sentada no sofá na sala da casa grande longe Eva tinha mandado destapar a piscina. O calor não tardava a

de tudo e perto do mar com os pés pousados na banqueta. Inquie- começar. A árvore-de-Judas costumava ser a primeira a florir mas

tava-se por se aproximar o dia em que iria depor e ainda não saber este ano tinha sido o pessegueiro. De resto tudo se repetia no jar-

o que tinha que fazer. N u n c a mais o tinha visto e só sabia dele d i m . A água da piscina estava tão azul e tão parada que parecia

pelos jornais. Eva estava rodeada de objectos bonitos, mas gostava falsa. A prancha vista da sala parecia-lhe despropositada. Preci-

particularmente da caixa de música porque a tinha comprado há sava de uma pessoa pronta a saltar, de uma justificação para exis-

pouco tempo e ainda não se tinha habituado a ela. O tempo que tir. Se fosse bela como a bailarina não precisava de mais nada para

habituava os velhos à dor era o mesmo que não permitia que Eva ser vista. Eva sem ele também parecia despropositada apesar da

sentisse a beleza dos objectos mais antigos. fragilidade do sentimento que os unia.

A caixa de música tinha dentro uma bailarina que rodopiava Eva precisava de se sentir desejada, de quem dependesse dela,

quando se levantava a tampa, se tivesse corda, a bela bailarina pre- de quem a esperasse, e até ao dia em que faltou ao encontro ele sem-

cisava de alguém que lhe desse corda. Não existia neste mundo pre a esperou e Eva sempre se atrasou voluntariamente. Ele nunca

uma coisa que não precisasse de nada e a bela bailarina precisava disfarçou a vontade de a beijar mas nunca se atreveu a fazê-lo, ape-

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sar de Eva lhe dizer o que gostaria de sentir, que ele a amava, u m dia, que fosse de forma mediana estragaria tudo, se ele amasse alguém
u m minuto que fosse, para deixar de conhecer as coisas só de ouvir seria mais u m igual aos outros, u m easo irrecuperável, já que Eva
falar, dizia-lhe, vou amar-te para sempre e n e n h u m deles acreditava, não conhecia ninguém que não se tivesse vieiado em sentir fosse
no entanto fingiam que sim, era muito difícil encontrar alguém que o que fosse.
a deixasse fingir tudo o que queria, podia fingir que o amaria para Quando o viu c o m a rapariga teve a eerteza que ele se tinha
sempre sem nunea ter sentido a obrigação de o amar, estiveram jun- deixado contaminar e que já era igual a todos apesar de não acre-
tos tantos anos e sempre se enganaram, foram felizes, mas ele traiu-a ditar que ele amasse a rapariga da forma excessiva que diziam.
e Eva continuava sem compreender e sem querer perdoar. Gostava mais de pensar que foi o tempo por gastar que o perdeu,
Acendeu outro cigarro. Não sabia porque é que ele lhe tinha era indiferente, o que importava era que ele se tinha deixado eon-
mentido tanto, de qualquer maneira Eva nunea soube fingir que taminar e Eva nunca mais poderia confiar nele, teve a certeza que
acreditava no que ele lhe dizia, apesar de ser esse o papel que lhe assim era quando ele a chantageou, quando lhe disse que contava
estava destinado, t i n h a m sobrevivido ao bairro e tinham-se per- tudo ao marido se não se eneontrasse c o m ele, o amor, o que ele
dido por uma rapariga desmazelada e nada bonita, uma coisa de julgava ser amor, fazia-lhe mal.
nada, Eva não conseguia perceber por muito que se esforçasse, e Eva eneontrou-se c o m ele n u m café da avenida, não se eum-
depois o crime, ele não fora uma boa pessoa, Eva também não, primentaram, portavam-se como inimigos mas ele estava de tal
nunca foram capazes de arriscar nada de que gostassem por n i n - forma inebriado c o m o que sentia que n e m disso se apereebeu.
guém, mas daí a matar, sempre foram dois casos perdidos, eram Queria dinheiro, uma casa nova, falou-lhe incessantemente da
quase iguais, devia ter-se afastado dele quando se tornou a casar, rapariga que o esperava na casa nova. Eva contrariou-o e ele aper-
se se tivesse afastado não tinha agora que inventar uma história tou-lhe a mão até que os ossos estalaram. Estava tão transtornado
para contar ao marido. que Eva o julgou capaz de a magoar gravemente, mas sentiu pra-
Eva continuava com a carta na mão e três níveis de água à sua zer no mal que ele lhe fazia porque era uma forma nova de sentir
frente. T i n h a inventado que lhe eram essenciais três níveis de o medo. Quando ele a obrigou a comer, Eva obedeceu, fez tudo
água por causa do signo. Era outra coisa que aehava engraçada o que ele mandou e esteve quase a cometer a imprudência de o
apesar de nunca ter aereditado nos signos. amar verdadeiramente.
C o m o a história de serem ambos casos perdidos. Mas para Ele nunca soube que Eva esteve tão perto de o amar, que foi
que a história se cumprisse ele nunca poderia amar alguém, ele a primeira vez que se aproximou desse perigo, ficou satisfeito com
nunca tinha sentido nada por ela nem por ninguém, tinha vivido o dinheiro que recebeu, eom a promessa que continuaria a ser sus-
sem precisar de nada, era a única coisa que Eva conheceu neste tentado, largou-lhe a mão dorida, Eva levantou-se, ele mandou-a
mundo sem precisar de nada, só tinha que se manter assim, como sentar, quem decidia era ele, tinha descoberto que bastava apertar
contrapartida Eva tomara conta dele, fingia que não era capaz de uma mão c o m força, ou chantagear, ou gritar, tinha aprendido a
deixar de amar a eoisa rara que ele era, que o amava até esse impos- usar o poder que lhe surgia tão elaro e definido, já não era diferen-
sível que faz perder a razão. Se algum dia ele amasse alguém ainda te de ninguém, tinha-se viciado em sentir, faria o que fosse preciso

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para se saciar e foi quando ele se tornou u m h o m e m igual aos
outros que Eva esteve perto de o amar.
Eva amarfanhava, com raiva, a notificação no bolso do robe
de cetim, nunca se podia começar a vida de novo, Eva sabia que
seria feliz na vida que tinha de continuar, inventaria u m a des-
culpa que descansasse o marido, era a mãe dele que me pedia, o
marido era u m h o m e m muito prático que não perdia tempo a des-
confiar de ninguém, Eva conseguiria manter a normalidade da
sua vida desde que tivesse os três níveis de água à sua frente, con-
tinuaria a dizer que lhe eram essenciais por causa do signo, a água
do aquário era verde, a da piscina azul e a do mar salgada e sem
eor definida, mas na essência só havia uma fórmula, Eva tinha que
seguir a sua, não se podia entregar ao desejo de se vingar dele, à
dor de ter sido traída, tinha sobrevivido até aqui, t i n h a que ser
capaz de lhe sobreviver, eonseguiria se nunca se esquecesse^que O crime na pensão da avenida.
se tratava apenas de água, que na essêneia é sempre tudo igual e Depois de vários meses de investigação concluiu-se que o
que os velhos do hospital t i n h a m razão. alegado h o m i c i d a e a vítima do c r i m e da pensão da avenida
t i n h a m u m relacionamento amoroso há já alguns anos. A dona da
pensão onde o bárbaro assassinato teve lugar eonfrontada com as
conclusões deste inquérito não se mostrou surpreendida já que
"sempre achei estranho que ela o tivesse seguido para o quarto tão
faeilmente". O palco deste crime irá ser destruído uma vez que
por ordem eamarária o prédio onde a pensão funcionava irá ser
demolido devido ao seu estado de degradação. A polícia consi-
dera assim o homicídio justificado. Recorde-se que segundo a
autópsia a vítima terá morrido afogada no seu próprio sangue em
consequência... (última página)

254 255
tas vezes, brinca comigo porque sabe que estou à espera, preciso
dela na casa nova, já pus o tapete à entrada como tínhamds com-
binado, comprei uma árvore de borracha como a da minha mãe,
copos de vidro grosso e pratos c o m flores, quis ficar-lhe com o co-
ração para a ter segura mas não f u i capaz, foram os ossos e o san-
gue que me atrapalharam, e o h o m e m do sorteio dos cegos, desde
manhã cedo que o h o m e m anunciava u m sorteio honesto e digno,
ainda hoje oiço a actualização das cadernetas, mastiguei u m cal-
mante, foi antes de perceber que o melhor seria ficar-lhe com o
coração.
Ela estava sentada na sala da televisão a falar eom a senhoria.
Aproximei-me, mas ela fez que não me reconheceu, faz sempre a
mesma coisa, também fingiu que não reconhecia o dono da espla-
nada que andava por lá cheio de fios na mão, se calhar pensou que
N o respectivo processo a fls. 37 e seguintes não percebi que era ele, o andar de quem não se habituou a terra
Pelo responsável • * firme, a pele morena, aproximei-me dela e percebi que ia fugir-me
(assinatura ilegível) outra vez, ainda lhe pedi c o m jeitinho que ficasse comigo mas ela
riu-se, foi então que lhe pedi o coração, foi ela que me deu o cora-
Não é difícil abrir o peito a alguém. Pode exigir a l g u m es- ção, nunca me teria lembrado de o pedir mas ela, só te posso dar
forço físico dependendo da maneira que se escolhe para o fazer. o meu coração, mais tarde quando a lembrei que me tinha dado
N o m e u caso, que decidi fazê-lo c o m uma faca, precisei de al- o coração respondeu-me mal, se to dei vem cá buscá-lo, se o con-
guma força de mãos e braços. seguires levar é teu, riu-se muito, foi ela que mo deu, tinha de o ir
Quando espetei a faca à procura do coração que sempre pen- buscar como ela disse, pensei na faca da cozinha, a pensão estava
sei estar a meio do peito, verifiquei que a carne ainda é mais mole cheia de gente, o dono da esplanada andava de u m lado para o
do que parece. A faca entrou c o m tamanha facilidade que me outro, eu chamei-a com jeitinho e ela veio, tinha escondido a faca,
pareceu estar a espetar u m pedaço maior de pão. Claro que foi só quando me lembrei de pegar na faca para lhe ir buscar o coração
até apanhar os ossos. Os ossos são muito difíceis ou talvez a faca já tinha fumado dezassete cigarros, no dia anterior tinha fumado
não estivesse suficientemente afiada ou não fosse adequada. Mas quarenta e três, não sei desde quando conto os cigarros que f u m o ,
abrir o peito a alguém não é difícil. os passos que d o u , não consigo deixar de contar tudo o que vejo,

Difícil é tirar o coração a alguém. E u tentei tirar-lhe o cora- os miúdos do quarto andar esborrachavam baratas e o h o m e m do

ção, se tivesse conseguido ela já não me aparecia, continua a brin- sorteio dos cegos não parava de falar, às vezes confundo-me e já

car comigo, aparece e desaparece como no princípio, vejo-a m u i - não sei o que estou a contar, mas no dia anterior tinha fumado

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quarenta e três cigarros, disso tenho a certeza, naquela manhã não tive que esperar por ela, quando chegou senti o cheiro do
tinha fumado dezassete cigarros e tinha contado vinte e duas jane-
medo que nem os perfumes caros conseguem disfarçar, o cheiro
las no prédio em frente, é muito cansativo estar sempre a contar
do medo é mais forte do que tudo, Eva acendeu u m cigarro que por
alguma coisa, só descanso quando fecho os olhos.
acaso contei como se tivesse sido eu a fumá-lo, as mãos tremiam-lhe,
Ela assustou-se quando viu a faca, conheço o medo que sou
senti que podia mandar-lhe fazer o que eu quisesse, havia uma
capaz de provocar desde que o vi na senhoria e no reformado, não
árvore de natal no balcão do café com muitas bolas vermelhas, uma
sei eomo não conheci mais cedo o medo que sou capaz de provo-
mesa coberta de bolos-reis, Eva disse que tinha pressa, não gostei
car, todos me o l h a m doutra forma, sempre quis ser respeitado,
que me falasse assim, mandei-a repetir, quando ela o fez mandei-a
desde que descobri esse poder em m i m conseguia tudo o que
repetir até que me fartei, senti-me tão bem, noutra altura agarrei-lhe
queria, só não fui capaz de lhe tirar o coração porque não é fácil,
na mão já não sei porquê, ao princípio ainda lhe queria pedir como
não é nada fácil, nada.
dantes fazia, lembrei-me do meu novo poder e apertei-lhe a mão,
Ainda que se consiga abrir o buraco no peito sem problemas
aleijei-a até que ela me mandou parar, tinha lágrimas nos olhos, não
o coração está escondido, se não me tivessem agarrado talvez con-
me comovi, o empregado aproximou-se de nós, o que vão tomar,
seguisse, tenho a certeza que foi a senhoria que chamou o dono da
perguntou delicado, escolhi pelos dois, escolhi sonhos, Eva não me
esplanada, não sei quem eram os outros, não percebi por que não
contrariou, estava tão surpreendida comigo, ordenei-lhe que os
tiveram medo de m i m , ainda tentei bater-lhes, especialmente à
senhoria, a senhoria merecia que lhe batesse porque não punha eomesse, Eva mastigou o sonho com dificuldade, tinha os lábios

insecticida há muito tempo, é u m pecado que não está na lista, não cheios de açúcar e canela, apeteceu-me beijá-la, sempre gostei de a

pôr insecticida será u m pecado de bradar ao céu ou contra o Espí- beijar, Eva acabou o sonho, pedi mais ao empregado, tinha de

rito Santo, deixei que aqueles homens me agarrassem porque não comer muitos sonhos, Eva queria ir-se embora mas não a deixava,
conseguia encontrar o coração, tinha de a deixar ir enjbora outra apertava-lhe o braço eom força, a pele dela sempre enegreceu com
vez, mas quero que ela venha para a casa nova comigo como tínha- facilidade, senti prazer ao pensar que lhe enegrecia a pele, ficas
mos combinado, já pus o tapete à entrada, desde aquele dia que me aqui, Eva disse que sim, rendeu-se, sentia-me tão bem, apertei-lhe
aparece e desaparece, tenho a certeza que ela acabará por voltar, a o braço eom mais força, procurei-lhe as mãos, as mãos de cera,
senhoria já há muito que não me vem cumprimentar, não me per- podia partir-lhe os ossos, era só apertar mais u m bocadinho, os gatos
gunta como me correu o dia de trabalho, o reformado não me recém-nascidos que a minha mãe afogou n u m alguidar também
retém no corredor à entrada da casa de banho, o gordo não me fala não se debateram, foi então que Eva propôs dar-me muito dinheiro
das margens do negócio da cerveja, fogem todos de m i m , sentem o com a condição de nunca mais me ver, aeeitei, não precisava de a
meu novo poder, Eva também nunca mais apareceu, com Eva foi ver, Eva levantou-se, obriguei-a a sentar-se porque tinha que acabar
mais complicado fazê-la acreditar que tinha mudado, conhece-me o sonho, era natal, não lhe eontei que ia eomprar u m pinheirinho
há muito tempo, mas mesmo assim consegui, obriguei-a a encon- para a casa nova, enfeitá-lo eom luzinhas para que os outros as vis-
trar-se comigo no dia em que f u i ao banco, foi a primeira vez que sem da rua, durante anos fui eu que vi as luzinhas dos outros, dei-

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xei-a ir depois de me ter dado dinheiro, pedi u m café ao empregado
e comi mais dois sonhos, raramente me senti tão bem.
Sei que sempre falaram de m i m nas minhas costas, mas
quando ela se foi embora piorou, na pensão não se calavam, eu
não ligava porque andava m u i t o cansado, deitava-me vestido
sobre a cama e adormecia, acordava muito cedo, levantava-me e
saía para a rua sem passar água na cara, vestia a camisola dela que
tinha ficado esquecida no meu quarto, ficava-me muito justa, ela
t e m ombros estreitinhos de criança, as pessoas olhavam para
m i m , e tenho a certeza que era por causa da camisola, quando a
via ela desaparecia, ainda a agarrei uma vez mas não sei o que
aconteeeu, quando dei por m i m tinha uma mulher presa na mão,
uma mulher horrível que só me gritava, empurrei-a e fugi.
Ela não podia ter desistido da casa nova, do tapete à entrada,
nunca se sabe o que pensam as mulheres, de que se riem, tinha O funcionário dispensa as quatro mulheres. I n f o r m a a ex-
prometido levá-la à minha mãe no natal, quando a vi n^pensão -mulher que excepcionalmente o poderá visitar. A ex-mulher agra-
ainda não me tinha lembrado de lhe arrancar o coração, foi qual- dece mas diz que já não o quer ver, que já não precisa de o ver. O
quer eoisa que o h o m e m do sorteio dos cegos disse que me fez pen- funcionário olha-a espantado. A ex-mulher não lhe diz que tem
sar nisso, roubar-lhe o eoração para o pendurar numa corrente de medo de se deixar contagiar pela doença que o atingiu a ele, sabe
prata, não é difícil abrir o buraco, a carne é bastante mole, se não que são parecidos, quase iguais e basta u m gesto, uma distracção
fossem os ossos, se o coração não estivesse tão escondido, o sangue para que fiquem outra vez iguais.
também não ajuda, e o sorteio dos cegos desconcentrou-me, se As quatro mulheres levantam-se e não disfarçam a pressa de
não me tivessem agarrado talvez lhe encontrasse o coração, ela saírem daquela sala e quando a deixam a única certeza que levam
agora deve andar por aí c o m o buraco no peito, foi ela que me deu é a de que ele é culpado.
o coração, mostrei-lhe a m i n h a cicatriz, tenho o eoração dela de- A ex-mulher culpa-o por a ter abandonado na possibilidade
senhado no pé, foi ela que me deu o coração, mas afinal não é de serem outros que não eles.
assim tão fácil tirá-lo, ela devia saber que era difícil arrancar-lhe o A mãe culpa-o por lhe ter dado a vergonha e a dor que lhe
coração, ainda hoje a vi, a camisola não deixava ver o buraco no acordaram o coração que dormia.
peito, mas era ela, continua a fugir-me, mas já não me importo de A senhoria culpa-o por lhe ter c o n f u n d i d o o pensamento
estar aqui sozinho enquanto a espero, já deixei de a procurar, ela normalmente tão claro.
há-de voltar para vivermos na casa nova como queria, u m tapete A rapariga culpa-o por a ter condenado à criança que cresce
à entrada, eu sei que u m dia ela há-de voltar para m i m . dentro de si.

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N e n h u m a delas o culpa pelo crime que eometeu porque não
estava na mão dele evitá-lo, cada uma tem a sua razão para pensar
assim, a razão não é necessariamente igual.
Saem do edifício principal. Percorrem a alameda. O ar chei-
ra bem e as quatro mulheres apressam-se a distanciarem-se umas
das outras. Não têm nada em c o m u m , estão ali por causa de u m
h o m e m que eometeu u m erime, se por aeaso se encontrassem na
rua n e m sequer se cumprimentariam.
O médico observa-as da janela do gabinete protegido por u m
vidro. As mulheres aproximam-se do local onde a alameda se b i -
furca e contorna u m terreno. O médico interroga-se se, para atingi-
rem a rua, as mulheres atravessarão o terreno atalhando caminho.
As quatro mulheres assim fazem, pisam o terreno que já foi
u m campo relvado e agora está cheio de ervas daninhas. Os pés
enterram-se na terra e as ervas roçam-lhes nas pernas. Abrandam
Está deitado na cama. Olha há mais de uma hora para o tecto
o passo. Mais à frente está o portão de ferro que querem alcançar,
u m portão bonito com rosas desenhadas. tentando seguir o percurso de uma mosca. U m a enfermeira apro-

O médico vê que cada uma das mulheres escolhe u m cami- xima-se silenciosamente. Os sapatos demasiado silenciosos e
nho para atravessar o terreno. A ex-mulher atravessa o terreno demasiado brancos das enfermeiras. A enfermeira cheira a la-
fazendo uma diagonal, a mãe uma linha recta, a senhoria voltas vanda e a mãos desinfectadas.
de serpente e a rapariga desvia-se várias vezes do caminho que pa- — C o m o é que hoje estamos? — diz ajeitando a franja que
recia ter escolhido, possivelmente para ver qualquer coisa, o u lhe cai para os olhos pequenos e afastados.
somente para se entreter.
Não responde. A mosca acaba de ser apanhada na teia da ara-
As quatro mulheres c a m i n h a m e não vêem o pardal que
nha. Debate-se violentamente agitando as asas. Ele sabia que se a
pousa na árvore-de-Judas que está plantada a meio do terreno.
mosca fosse para aquele canto seria apanhada na teia da aranha.
O médico arruma a secretária. Toma o medicamento que
A mosca não sabia por que não tinha visto as outras moscas que
ajuda o eorpo a suportar a primavera. Telefona para casa, diz à m u -
nos dias anteriores t i n h a m caído na armadilha da aranha. Ele
lher que a ama e pede para falar com os filhos. A mulher estranha
porque o médico não tem o hábito de chamar os filhos ao tele- conhecia as moscas dos outros dias. Conhece a aranha e a teia.

fone. O médico chama campeão ao menino que tem óculos cor- Todos os dias a observa. Não faz mais nada do que observar as mos-
rectores e princesa à menina que tem o aparelho nos dentes. Des- cas e a aranha e esperar pelo dia que uma mosca se consiga liber-
liga o telefone. Ganha força para atravessar o terreno e alcançar o tar da teia, ganhar à aranha. Talvez aconteça esse dia, talvez acon-
portão de ferro, u m portão bonito com rosas desenhadas. teça esse dia no meio dos outros todos iguais. Sabe que pode ouvir

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o z u m b i d o desesperado da mosca a tentar salvar-se, mas era Ninguém se engane a si mesmo;se algum entre vós se julga sábio,
necessário que a enfermeira se calasse. segundo este mundo, faça-se louco para se tomar sábio. Porque a
— Portámo-nos mal. Sujámos outra vez a cama. Se não se sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, pois está escrito:
quer levantar peça a arrastadeira. Portámo-nos m u i t o m a l — o "O Senhor sabe que são fúteis os pensamentos dos sábios".
t o m é levemente ameaçador apesar de continuar a sorrir. — Não Cor. 3,18-20
quer fralda mas vai ter que ser, portámo-nos muito mal.
A mosca desiste de lutar. Lentamente. Aceita a derrota.
— L u t a até ao fim — diz com voz alterada. — Luta.
— Q u e m é que tem de lutar até ao fim? — pergunta a enfer- Casas dos Anjos, da Torre e do Campo Crande
meira. M a i o de 2001
— A mosca.
— Que mosca?
— Aquela — aponta para u m canto.
— A h sim. Mais logo vai fazer outra vez exames no pavilhão
grande. Vai dar uma voltinha, está u m dia muito bonito, sabe que
hoje começa o verão, para a outra vez toca a campainha, não toca?
— A aranha vai matar a mosca.
A enfermeira abana a cabeça. Habituou-se a ver tudo da
mesma forma que os doentes vêem. C o m certeza que a aranha vai
matar a mosca.
Chega uma auxiliar para o lavar. E agradável sentir as mãos
mornas da auxiliar nas virilhas e no sexo. A auxiliar é uma mulher
forte com u m nariz ligeiramente adunco e olhos de águia. Cheira
a sabão azul e branco. E quando o está a lavar cantarola e faz os
gestos de quem lava roupa n u m riacho.
Tem sono. Fecha os olhos. Adormece sem esperar que a aranha
mate a mosca. Amanhã é outro dia e com sorte u m dia diferente.

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