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A Era Da Incerteza - Galbraith PDF
A Era Da Incerteza - Galbraith PDF
Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP
CDD-330.(
1 -3300~
Prefácio o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o xv
1
Os Profetas e a Promessa do Capitalismo Clássico o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 1
2
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 35
3
A Dissidência de Karl Marx o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 71
4
A Idéia Colonial o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 105
5
Lenin e a Grande Descolagem o o o o o o o o o o o o o o o o o 000 o o o o o o o o o o o o o o o o o 129
6
Ascensão e Queda do Dinheiro o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 159
7
A Revolução dos Mandarins o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 195
8
A Competição Final o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 227
9
A Grande Empresa Multinacional o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 259
A Era da Incerteza
10
Terra e Gente '. . . . . . . . . . . . . . . . .. 285
11
A Metrópole ' . . . . .. 309
12
Democracia, Liderançaç.Comprornisso 331
relação à sua longa, intensa, variada e prodigiosamente ativa vida, é nada mais
que um minuto. O problema não está na simplificação; pode-se expor um
argumento central rapidamente e com precisão e clareza, e deve-se também
esperar ser responsabilizado se assim não se fizer. A disciplina do tempo se
manifesta na necessidade de escolher - concentrar-se nos pontos principais e
até mesmo fazer uma escolha entre eles. Tudo que o autor escolher será muito
pessoal; ninguém deve alegar que o que ele escolheu para falar a respeito de
Adam Smith, de Ricardo ou de Karl Marx, Lenin ouJohn Maynard Keynes, ou
mesmo a escolha destes em lugar de outros, reflete uma sabedoria imutável e
objetiva. Na televisão não se pode ser abrangente. Só se pode esperar que a
escolha que se fez seja razoavelmente acatada pelo público. A prova a que a
gente deve submeter-se com toda diplomacia e tacto perante os críticos -
aqueles que, pela tradição de sua especialidade, associam uma generosidade
afetuosa e infalível a um senso de profunda percepção - é saber se acrescentou
algo válido aos conhecimentos humanos'.
Num programa de televisão, parte da história é transmitida pela ima-
gem, outra parte pelas palavras. Ninguém pensaria em publicar um livro com
ilustrações e sem texto, embora essa proposição deva ser apresentada com
cautela. Nos dias atuais, os editores são capazes de publicar quase tudo. Da
mesma forma, ninguém deveria publicar um texto escrito especialmente para a
tela. Um filme de cinema ou um roteiro de televisão é uma coisa mutilada, é
uma forma sem rosto. Deve ser escrito com a noção de que o espectador só tem
uma única chance de vê-Io. Talvez para programas como este devesse haver,
nos pontos mais difíceis, um dispositivo para um imediato replay, a critério do
espectador. Mas isso não existe. O escritor de livros, ao contrário, parte do prin-
cípio de que o leitor, vez por outra, voltará atrás para verificar o que o autor
está dizendo ou tentando dizer.
Ao preparar esta série, em primeiro lugar escrevi meticulosos esboços
de cada um dos assuntos a serem abordados. Estes se constituíram na matéria
básica da qual os scripts de televisão foram produzidos. A partir dos esboços
originais, modificados pelos roteiros, eu então escrevi o livro propriamente
dito. Em inúmeras ocasiões, o livro vai além das idéias ou dos eventos cobertos
pelos programas de TV. Felizmente não se precisa limitar o capítulo àquilo que
se consegue ler numa hora - por enquanto. Existe uma porção de fotos no
livro, mas servem apenas para ilustrar o tema. O texto foi escrito de modo a ser
completo por si só. Encerrei meus três anos de trabalho junto à BBC com um
respeito muito maior pela televisão. No entanto, não quero crer que a palavra
impressa seja obsoleta ou esteja em vias de sê-lo.
XVII
-
UM i
Os Profetas e a
Promessa do Capitalismo Clássico
Numa das derradeiras páginas de seu último e mais famoso livro, ]ohn
Maynard Keynes - por unanimidade considerado o mais influente economista
deste século - fez a observação de que' , .. , as idéias dos economistas e dos filó-
sofos políticos, tanto quando estão certos como quando estão errados, são
muito mais poderosas do que normalmente se imagina. Na verdade, o mundo
é governado quase que exclusivamente por elas. Homens práticos, que se
julgam imunes a quaisquer influências intelectuais, geralmente são escravos de
algum economista já falecido."l· Isto foi escrito em 1935. Pensando então na
oratória de Adolf Hitler, de ]oseph Goebbels e ]ulius Streicher, que na época
•. estavam na moda, e de Alfred Rosenberg e Houston Stewart Chamberlain, de
cujas obras aqueles oradores extraíram suas doutrinas racistas, aduziu Keynes:
"Loucos pelo poder, que ouvem vozes no ar, estão destilando seu delírio de
algum escrevinhador acadêmico de uns poucos anos atrás." 2 Então surgiu a sua
afirmação solene: " ... o poder de interesses escusos é muito exagerado quando
comparado à gradativa usurpação das idéias." 3
Keynes proporciona a oportunidade de se examinar as idéias que inter-
pretam o moderno capitalismo - ou o moderno socialismo - e que dirigem as
nossas ações por conseqüência. É de se presumir que se saiba pelo que se é
governado.
Isso é verdadeiro, embora Keynes tenha exagerado em sua argumen-
ração. Pois que, em assuntos econômicos, as decisões não são influenciadas
somente por idéias e interesses econômicos escusos. Ficam sujeitas também à
tirania das circunstâncias. Esta também é uma verdade cruel. Em nossas discus-
sões políticas diárias, achamos muito importante saber se um indivíduo é da
direita ou da esquerda, liberal ou conservador, um expoente da livre iniciativa
ou do socialismo. Não percebemos que, amiúde, as circunstâncias sobrevêm e
orçam todos a uma mesma atitude - ou todos que se preocupam em sobre-
- er. Se for preciso acabar com a poluição do ar a fim de que possamos respirar,
ou evitar o desemprego ou a inflação para provar nossa competência na admi-
nistração econômica, então não existe grande diferença entre o que conserva-
A Origem
A Paisagem
Os economistas repetidas vezes têm procurado apresentar o sistema
econômico aos leigos como sendo uma máquina. Matérias-primas são intro-
duzidas na máquina; os operários fazem-na funcionar; o capitalista é o dono; o
Estado, os proprietários das terras, os capitalistas e os operários partilham o seu
produto, geralmente de uma forma flagrantemente desigual. Pode-se ter uma
noção mais real imaginando o mundo econômico como sendo uma paisagem.
Antes da Revolução Industrial, era um cenário eminentemente rural. Os traba-
lhadores eram principalmente empregados na agricultura. A renda e o poder,
duas coisas que sempre andaram de mãos dadas, eram indicados pelo tamanho
e magnificência das residências; as casas dos lavradores eram muitas e péssimas.
A abundância da mão-de-obra e a relativa falta de terras favoreciam o latifun-
diário. E assim também lhe eram favoráveis a tradição, a posição social, as leis e
a educação. A casa do dono das terras espelhava o seu status privilegiado.
Exercendo importante influência tanto sobre o proprietário das terras
como sobre o lavrador, estava o governo. O poder ia desde o governante até o
senhor das terras, e deste ao trabalhador rural. À medida em que esse poder se
transferia em sentido descendente, a renda extraída por esse processo fluía em
sentido ascendente. É uma norma que se deve ter em mente. A renda quase
sempre flui ao longo do mesmo eixo que o poder, só que em sentido contrário.
Nem o poder do Estado nem o dos senhores das terras era completo ou
absoluto. Na Inglaterra, ao tempo da Revolução Industrial, por obra da lei e
dos costumes, os colonos e até mesmo os lavradores haviam adquirido certos
direitos perante o poder de seus patrões. Instituíram-se regulamentos mediante
os quais a remuneração e expulsão das terras tinham que obedecer cenas
normas. Tanto que em Runnymede, já em !fi), um importante conclave
havia conjugado um compromisso histórico para com a liberdade do homem
com uma preocupação ainda mais imediata, qual seja, a dos direitos perti-
nentes à posse das terras. Em conseqüência disso, a posição dos latifundiários
ficou solidamente protegida contra as incursões da Coroa. A Inglaterra, entre-
tanto, era um caso avançado. Na França, os campônios que trabalhavam a terra
estavam bem menos protegidos contra seus senhorios; tanto os que não tinham
como os que possuíam terras ficavam muito mais vulneráveis às reivindicações
cada vez mais insistentes do Rei. Assim era na maior parte da Europa, e isso se
tornava ainda mais aparente à medida em que se avançasse para o Leste e, prin-
cipalmente, para a Ásia. Na Índia, um distante. domínio dos mongóis - a
cujas suntuosas cones, artística e arquiteturalmente mais primitivas, no século
XVII os europeus começaram a se dirigir -, toda a terra era considerada de
propriedade, à maneira das grandes fazendas ou plantações, do Grão-Mongol.
o Fundador
Seria temerário, e talvez até um tanto perigoso nos dias de hoje, propor
uma teoria étnica de economistas. Todas as raças produziram notáveis econo- . 3
A Era da Incerteza
mistas, com exceção dos irlandeses que indubitavelmente podem dedicar sua
devoção a artes mais elevadas. 4 Mas em relação à sua população, ninguém pode
contestar a eminência dos escoceses, como devem ser chamados com toda pro-
priedade. (Foi somente neste último século que o uísque conseguiu por inteiro
esse direito.) A única concorrência mais séria seria da parte dos judeus .
. O maior dos escoceses foi o primeiro economista, Adam Srnith. Os
economistas não têm grande fama de concordar uns com os outros - porém, l
de Riqueza das Nações, observa ele que "a recente resolução dos quacres na
Pensilvânia de libertar todos os escravos negros faz-nos pensar que esses não
podem ser em grande número". 6 Em 1763, o interesse pessoal sobrepujou seus
princípios morais e tomou conta de Smith. Foi-lhe oferecido o cargo de tutor do
jovem duque de Buccleuch - pertencente a uma família que na época (como
ainda agora) possuía grandes extensões de terra de discutível legitimidade em
seus limites. O cargo representava um bom e seguro salário e a garantia de uma
boa pensão no final. Smith renunciou à cátedra e levou seu tutelado ao conti-
nente europeu na Grande Viagem. À maneira dos jovens aristocratas, o moço
evidentemente sobreviveu a essa educação sem qualquer repercussão histôriea,
Mas, para Smith, a viagem foi realmente uma grande experiência.
Os Homens da Razão
deve em parte ser pura imaginação; mas o que é certo é que se trata da casa de
um homem de posses. É uma bela residência.
Voltaire era um homem - talvez mesmo o homem - da razão. A pala-
vra é do tipo que os estudiosos por vezes hesitam em definir, com receio de pare-
, cerem simplistas. Quando as coisas são simples, deve-se evitar complicá-Ias; há
outras maneiras de demonstrar sutileza de espírito. Tanto para Smith como
para Voltaire, a razão exigia que se chegasse a uma conclusão não recorrendo à
religião, a regulamentos, a preconceitos ou paixões; mas, sim, que se aplicasse a
mente total e amplamente a toda informação importante que estivesse ao
alcance. Assim, tomavam-se decisões. Sob esse aspecto, Adam Smith também
era, acima de tudo, um homem de razão. Ele tinha simplesmente um apetite
ilimitado de informação. Coligia informações, digeria-as e deixava que elas
orientassem seus pensamentos. Isso o levou a novos caminhos, tornando-o um
pioneiro.
o Sistema Agrícola
A França era, para Smith, uma imensa fonte de informações e ensino.
Em 1765, ele viu, como ainda hoje se pode ver, a terra fêrtil, os homens inteli-
gentes, pacientes e bem-humorados que a lavram e os variados produtos do
solo francês. Somente na França é que a qualidade dos produtos agrícolas -
frutas, verduras, queijo, vinho, logicamente -, de diferentes regiões e até
mesmo de diversos povoados, constitui um importante tema de interesse e
preocupação e também de discussão acadêmica. Ao tempo da odisséia em-
preendida por Smith, a fé agrícola da França estava no auge. Refletia-se nas
idéias de um fascinante grupo de filósofos da economia conhecidos na história
do pensamento econômico como os fisiocratas,
Os fisiocratas afirmavam que, toda a riqueza provinha da agricultura.
Somente aí, como dádiva da natureza, o esforço produtivo podia oferecer um
excedente sobre o custo. O comércio e a indústria não propiciavam esse lucro.
Eles eram necessários, porém estéreis. O excedente, ou saldo, produzido na
agricultura - seu' 'produit net' - mantinha todos os demais produtores. A
agricultura era, pois, a indústria básica, ou melhor, a única indústria de base.
Isso corrobora a assertiva de Keynes, de que nenhuma idéia econômica
jamais morre. Durante algum tempo, em minha juventude, trabalhei como
diretor de pesquisa da American Farm Bureau Federation, a grande e conserva-
dora organização agrícola, cooperativa de abastecimento e arma política, então
no ápice de sua influência e poder. Todo mês de dezembro os funcionários se
reuniam em convenção. Nos dias que se seguiam, a voz da fisiocracia - a afir-
mação de que a agricultura é a fonte de toda a riqueza - se fazia ouvir pelos
salões e corredores. Eu próprio escrevi vários dos discursos. E essa voz ainda não
silenciou. Sempre que os políticos fazem suas campanhas para arregimentar os
poucos votos rurais que restam, a mensagem de fisiocracia ainda pode ser
ouvida. "Meus amigos, a vossa atividade é fundamental: o lavrador é quem
8 alimenta todo o mundo!" '
édico, fisiocrata: Eis François Quesnay, médico de Luís XV, pioneiro do relacionamento
econômico quantitativo. Ao lado, o seu Tableau Économique, mostrando como a renda flui
através do sistema econômico. .
quão ostensivos possam parecer aos outros, constituem direitos solenes, funda-
mentais, que Ihes cabem por obra de Deus. A sensibilidade dos pobres à injus-
tiça é insignificante, de somenos, quando comparada à dos ricos. E assim era no
Ancien Régime. Quando a reforma a partir de cima tornou-se impraticável, a
revolução a partir de baixo tornou-se inevitável.
A Era da Incerteza
Conspirações e Multinacionais
pena que Adam Smith não possa fazer uma visita à próxima
Câmara de Comércio dos Estados Unidos, da Associação Nacional
as f..::c':S!9::t;-LS_ da primeira reunião conjunta das duas entidades ou de um con-
ederação Britânica das Indústrias. Ele ficaria espantado de ouvir
,;c:sa::~:resde grandes empresas - ou, ainda, dos grandes conglomerados
'--'--....:~LJ-lInais- proclamando suas virtudes de economistas em seu nome.
ez, ficariam estupefatos se Smith - dentre todos os profetas -
e suas empresas não deveriam existir.
Gente de todas as panes era atraída dos campos, dos vilarejos, para as
cidades e para empregos nas usinas e fábricas. Na Escócia, essas pessoas eram
até expulsas inopinadamente do campo, em conseqüência da crescente
demanda da principal matéria-prima da indústria, que era a lã.
O mais espetacular exemplo desse processo de expulsão deu-se em
Sutherland. Ê o mais setentrional dos condados escoceses, uma vasta planície
de colinas ondulantes; horizontal e verticalmente, essa província constitui pane
apreciável das terras escocesas. No verão, ela é verde, solitária e encantadora,
com a cambiante luminosidade do setentrião distante. Quando visitei aquelas
paragens no verão de 1975, lembrei-me de um comentário feito pelo falecido
Richard Crossman: "Nenhum americano realmente imagina quanto campo
aberto existe na Grã-Bretanha". No início do século passado, cerca de 2/3
dessas terras pertenciam à Condessa de Sutherland e seu marido, o Marquês de
Stafford.
De 1811 a 1820, segundo estimativas genéricas, cerca de 15.000 habi-
tantes da região (chamados Highlanders) foram expulsos dessa propriedade,
para dar lugar à criação de ovelhas. O Naver é um riacho escuro que corre em
direção ao norte, -atravessando o condado numa distância de trinta a quarenta
milhas, até atingir o Pentland Firth, um estuário situado a umas cinqüenta
milhas de Scapa Flow. Seu estreito e descarnado vale era densamente habitado
naquela época. Quase toda essa gente era desprovida de posses.
Em Strathnaver (como em outros lugares), em maio de 1814, a opera-
ção de limpeza assumiu aspectos definitivos de solução final. Em março
daquele ano, os ocupantes haviam recebido uma notificação para se retirar no
prazo de dois meses. Mas continuavam por ali, pois não tinham para onde ir.
Assim, os agentes do latifundiário resolveram entrar à força, com fogo e cães.
Tiveram o cuidado especial de queimar o madeiramento do teto das casas, pois
isso significava; numa região carente de árvores, que as vivendas não podiam
ser recónstruídas e; por isso, os moradores não mais poderiam voltar a elas.
Algumas das casas, segundo se soube mais tarde, foram incendiadas, sem que
fosse tomada a precaução de remover os idosos e os inválidos.
Os rebanhos de ovelhas que tomaram o lugar doscampônios davam '
um lucro muito maior aos proprietários das terras - segundo cálculos feitos,
umas três vezes mais. E ainda ofereciam outra vantagem ao dono das terras. As
ovelhas Cheviot, pastando pelas colinas, enfeitavam muito mais a paisagem do
que os Highlanders. Pode ser que sim.
Embora fossem cruéis, os Despejos exemplificaram de maneira brilhante
um problema do desenvolvimento econômico que permanece sem solução até
-os nossos dias. Ê possível haver uma desproporção tão grande entre gente e
terra - muita gente, pouca terra utilizável - que o progresso seja inteiramente
impossível. Mesmo o melhor resultado, dado o número de pessoas, ainda assim
é mau. Existe um certo equilíbrio na pobreza. ASsim é na Índia e em Bangladesh,
na Indonésia e em outras áreas densamente povoadas. Não há mais terras para
ninguém. A técnica das Highlands para reduzir a população não mais é reco-
18 mendável. O controle da natalidade serve perfeitamente para belos discursos,
A Era da Incerteza
20 DavidDale.
Formando o caráter em New Lanark. A Instituição de Owen para Formação do Caráter em ação,
após 10!h horas de trabalho na tecelagem.
A. Era da Incerteza
-se que as tecelagens também tinham que dar lucro; o que agora é considerado
como ética trabalhista naquele tempo tinha de ser protegido e incentivado. Por
isso, as aulas eram dadas à noite, após treze horas de um bom e honrado traba-
lho diário nas fábricas.
Mas que ninguém se espante. Pelas normas da época, New Lanark era
realmente um lugar de compaixão e cultura, se não exatamente de descanso.
Isso se tornou ainda mais patente em 1799, quando o genro de Dale, Robert
Owen, assumiu a direção. Owen era um filósofo, um socialista utópico, um
cético religioso e um espiritualisra. Reformadores passaram a vir de toda a
Europa para conhecer New Lanark e ver com os próprios olhos a grande prova
de que a indústria podia ter seu lado humanitário. Sob a administração de
Owen, foi criada a Instituição para Formação do Caráter, que promovia pales-
tras para adultos, festas, recitais de canto e outras recreações para os órfãos, uma
escola maternal para crianças muito novas. Os prostíbulos foram fechados e a
venda de bebidas alcoólicas proibida. Com o passar do tempo, o trabalho diário
das crianças foi reduzido para dez horas e meia, sendo que menores de 12 anos
não eram empregadas na indústria. Por aí se percebe como as coisas eram nos
outros lugares, pois isto era considerado suave e condescendente. Devido à sua
compaixão, Owen volta e meia tinha problemas com seus sócios. Estes prefe-
riam muito mais um administrador inflexível, realista, que fizesse esses peque-
nos órfãos realmente trabalharem.
Indiana: Um Complemento
do e Malthus
mente, quanto mais numerosa fosse a gente do campo, mais ricos ficavam os
proprietários ou locadores das terras. Estes engordavam, enquanto aqueles
morriam à míngua. E uma vez mais, nada podia ser feito para melhorar a
situação; devolver parte do aluguel aos lavradores só faria aumentar o número
deles.
No mundo ricardiano, o Estado tinha cada vez menos importância e
poder. Era a continuidade da lição de Adam Smith de que assim deveria ser. A
intervenção governamental não iria, conforme ressaltado, ajudar os pobres.
Mas limitaria a liberdade econômica e a defesa dos interesses próprios e, com
isso, iria piorar ainda mais as coisas. David Ricardo não era, por seus próprios
padrões, um homem cruel. Num mundo naturalmente cruel, ele simplesmente
se batia contra a luta fútil e' .inôcua ao inevitável e pela aceitação do menos
ruim. Ele forneceu aos ricos uma fórmula plenamente satisfatória de se confor-
marem com a infelicidade dos pobres.
Havia uma divergência de opinião de grande importância futura entre
os dois amigos quanto ao que aconteceria ao belo acúmulo de renda dos senho-
rios. Ricardo afirmava que essa renda ou seria gasta ou então guardada e inves-
tida na melhoria das terras, na construção de edifícios, na expansão industrial,
e nesse caso também seria gasta. Ele acatou a sugestão feita anteriormente por
Jean Baptiste Say, o grande intérprete francês de Adam Smith. Segundo a Lei
de Say, a produção sempre provia a renda para aquisição do que era produzido.
Tudo o que era poupado também era gasto, só que de maneira diferente, de
modo que jamais haveria falta de poder aquisitivo.
Sobre isso, Malthus tinha suas dúvidas. Talvez a renda não pudesse ser
gasta; talvez, em conseqüência disso, pudesse ocorrer uma redução no poder
aquisitivo; talvez, ainda em conseqüência disso, a economia, vez por outra,
pudesse sofrer abalos e entrar em colapso. Haveria crises econômicas resultantes
da falta de poder aquisitivo, como parte da ordem natural das coisas.
Tudo isso era bastante imaginoso, mas não foi aceito. O ponto de vista
de Ricardo, como diria Keynes mais tarde, conquistou a Grã-Bretanha como a
Santa Inquisição conquistou a Espanha. Nos cem anos que se seguiram, até a
década da Grande Depressão, Say e Ricardo foram absolutos. Todos aqueles
que afirmassem que poderia haver falta de poder aquisitivo não entendiam
nada de economia; na verdade, eram considerados malucos. Então, com o
aparecimento de John Maynard Keynes, a tese de Malthus de uma escassez ou
falta de poder aquisitivo tornou-se uma doutrina plenamente aceita. A tarefa
mais urgente do governo era então a de compensar essa falta, de contrabalançar
a poupança exagerada. A economia não é uma ciência exata.
Inglaterra e Irlanda
Uma das formas 'de se medir ou avaliar uma idéia, embora os econo-
mistas nem sempre tenham pensado nisso, é saber se ela funciona ou não. No
26 mesmo ano em que A Riqueza das Nações foi publicado, ou seja, em 1776, a
o reverendo Thomas Robert Malthus.
A Era da Incerteza
A Fuga
Smith Atualmente
Os ricos, por outro lado, davam mais valor aos prazeres deste mundo.
Não pode haver dúvida, creio eu, que a posse de dinheiro faz com que as 35
A Era da Incerteza
pessoas tenham uma visão mais favorável deste mundo em relação ao além. E,
afinal, também é uma estratégia lógica. Pois existe aquele terrível fundo de
agulha pelo qual o rico precisa passar antes de chegar ao paraíso. Por conse-
guinte, se você for rico ou for um camelo, deve, por mera precaução ou para se
garantir, aproveitar ao máximo a vida terrena.
Neste capítulo eu gostaria de dar uma olhada nos prazeres dos ricos no
último século e examinar as idéias que os santificaram. Qual o código moral
pelo qual o rico vivia? Como ele afetou o acúmulo e, a utilização da riqueza?
Baseado em que idéia o homem defendia sua condição de rico? Lembrando que
as idéias, assim como os velhos soldados (e, sem dúvida, também os velhos
políticos), nunca morrem, podemos estar certos de que estas continuam
influindo em nosso modo de pensar, nossas vidas e nossos conceitos morais.
Spencer e Sumner
William Graham Surnner: "Os milionários Carl Schurz: "Se a Estática Social, de Spencer,
são produto da seleção natural". tivesse sido melhor interpretada no Sul, a
Guerra Civil não teria ocorrido".
-
A Era da Incerteza
mente escolhidos pela sociedade para realizar determinado trabalho. Eles recebem
altos salários e vivem luxuosamente, e isso é um bom negócio para a sociedade. 5
Era uma tristeza para o homem de posses quando ele não mais pudesse
enviar o filho para estudar em Yale e educar-se dessa forma.
A Vinda
jovens, "só pode ser cultivada de modo a atingir o máximo esplendor e fragrân-
cia que dão grande alegria a quem a apreciar, se os primeiros botões que
nascem ao seu redor forem sacrificados."6 Os mesmos sacrifícios ocorriam no
mundo dos negócios e justificavam, pro tanto, o esplendor de um Rockefeller.
"Essa não é, entretanto, uma tendência maléfica dos negócios. É apenas a
execução de uma lei da Natureza e de uma lei de Deus." 7 A questão, logica-
mente, era saber se essa mesma lei natural e lei de Deus também explicaria o
esplendor simplesmente herdado de ]ohn D.,]r., ou ainda de ]ohn D. III, de
Nelson, Laurance, Winthrop e David. Sem dúvida, muito ao contrário, uma
herança dos Rockefellers, mais que uma doação aos pobres, esfriaria o ardor da
luta pela sobrevivência, devastaria a condição moral e física dos legatários e
justificaria um imposto para confisco de herança que pouparia seus esforços em
benefício da sociedade. Um problema realmente desagradável.
Mas ninguém deve supor que Spencer e Sumner sejam relíquias inteira-
mente do passado. Eles ainda refreiam a mão de um bem situado cidadão quando
este é abordado por um pedinte. Talvez isso abale o moral de um homem. As
doutrinas dos dois ainda se entranham nas células da consciência dos Rocke-
fellers. Ou talvez somente nas dos redatores de seus discursos. Falando em
Dallas, no dia 12 de setembro de 1975, perante um conclave de delegados
conservadores, o Vice-Presidente Nelson Rockefeller fez uma advertência
contra os perigos persistentes da compaixão, dizendo:
Vejamos agora como os ricos foram escolhidos para serem bem suce-
didos na vida. Isso nos traz inevitavelmente às ferrovias. Nada no século
passado, e nada até agora no século XX, influiu tanto na sorte e fortuna de
tanta gente, de maneira tão súbita, como a ferrovia americana ou canadense.
Os empreiteiros que a construíram, aqueles cujas propriedades se achavam em
seu caminho, os donos da ferrovia, aqueles que a usavam para despachar suas
mercadorias e aqueles que a assaltavam para roubar, todos ficaram ricos, alguns
em apenas uma semana. As únicas pessoas ligadas às ferrovias que foram salvas
do ônus da riqueza eram aqueles que colocavam os trilhos e dirigiam os trens.
Trabalhar numa estrada de ferro no século passado não era um emprego bem
remunerado, era ainda muito perigoso. A média de acidentes sofridos por
aqueles que trabalhavam nos trens ~ a incidência de invalidez ou morte -
chegava perto da registrada numa guerra de primeira categoria.
As ferrovias foram construídas. Muita gente honesta se empenhou a
fundo em sua construção e funcionamento; isso não deveria ser esquecido. Mas 41
A Era da Incerteza
Jim Fisk.
Cornelius Vanderbilt:
Embora derrotado, tratou-se
o "Chefe" Tweed. de uma batalha, não de uma guerra.
A Era da Incerteza
o •• ,p.,.d _bL;,
'-'»orkkE'ritR.n.úntpfln'Q .
• u••.•.
o '0
. ,
As Ações.
nentes para a cadeia. Estes reagiram pegando os livros da ferrovia (sem esque-
cer-se do dinheiro em caixa) e fugindo para o outro lado , do rio, para Jersey
City. Jim Fisk, homem sentimental, levou consigo também sua amante,
mulher não tão virginal, de nome Josie Mansfield. Dizia-se que os capangas de
Vanderbilt poderiam tentar raptar esses refugiados e trazê-los de volta sob a
jurisdição do Juiz Barnard. Por isso, foi recrutada uma força de defesa e enviada
aos pátios de manobras da ferrovia, tendo também sido hasteada uma bandeira
no novo centro de operações, o Hotel Taylor, que passou a chamar-se Fone
Taylor. A Guerra da Erie, como veio a ser conhecida, estava no auge.
Do Fone Taylor, Gould, Drew e Fisk contra-atacaram. Numa manobra
emocionante e audaz, eles compraram. a Assembléia Legislativa do Estado de
Nova York - ou, pelo menos, um número suficiente de seus membros para
que as ações que haviam impresso fossem tornadas legais. Mais tarde, conse-
guiram até comprar oJuiz Barnard, que assim abandonou Vanderbilt. Mais do
que dinheiro estava em jogo; até batizaram uma das locomotivas com o nome
do juiz. E uma aquisição mais importante ainda: compraram William Tweed
- conhecido como "Chefe" Tweed -, líder do Tammany Hall ", tornando-o
um dos diretores da Erie. Vanderbilt bateu em retirada. Surgiu uma espécie de
trégua. Fisk conseguiu trazer a sede da Erie de volta :1. Nova York, instalando-a
no teatro lírico, onde conjugou a administração da ferrovia com espetáculos de
ópera. As perspectivas pareciam sorrir-lhe quando foi morto a tiros por Edward
A Era da Incerteza
Stokes, seu rival no amor de Josie Mansfield, embora, pobrezinha, ela demons-
trasse estar mais que interessada em agradar a ambos ... O corpo de Fisk foi
levado para Brattleboro, noEstado de Vermont, onde ele havia iniciado sua
rumorosa carreira, tendo a cidade inteira ido recebê-lo na estação com honras
de herói. Foi ali enterrado; quatro carpideiras de pedra zelam pelo seu jazigo.
Uma delas parece estar derramando moedas sobre o túmulo.
A Reputação Pública
Nelson. David.
A Era da Incerteza
distinção social. Mesmo durante suas vidas, muitos dos mais notáveis prati-
cantes dessa técnica granjearam a reputação de impolutos homens de bem,
tementes a Deus.
O envolvimento da rapinagem capitalista com Deus no século passado
exige uma palavra especial.
Deus, como muitos já disseram, ama os pobres, e é por isso que Ele fez
tantos. É uma das razões por que a pobreza sempre foi encarada com equani-
midade no último século e, até certo ponto, ainda o é. Mas no século pas-
, sado também havia a tese ricardiana de que a pobreza era inevitável; que ela
refletia o funcionamento imutável da lei econômica. E, como acabamos de ver,
havia um outro modo de pensar, de que por meio de uma seleção natural, os
pobres eram eliminados, pura e simplesmente. No devido tempo, os pobres
que não o merecessem, como dizia com razão Alfred Doolittle (personagem de
George Bernard Shaw) de si mesmo, desapareceriam.
Esta última doutrina era socialmente tranqüilizante e, de certa forma,
admirável. Porém, representava um problema alarmante para os fiéis. A dou-
trina provinha de Darwin, e para todos os comungantes de mente decente-
mente literal isso significava a negação peremptória da verdade bíblica. O
homem foi criado à imagem de Deus; não descende do macaco. A Criação não
é produto da evolução; levou exatamente seis dias, porque a Bíblia diz que foi
assim. A seleção natural era um remédio salutar para o problema da miséria no
mundo, mas as idéias ou conceitos de onde ela provinha estavam drasticamente
opostas à crença religiosa. Em 1925, o julgamento deJohn T. Scopes, realizado
no Tennessee, por ter ele ensinado a seus alunos de ginásio que as doutrinas de
Darwin continham certa dose de verdade, colocaria Clarence Darrow contra
WilliamJennings Bryan numa das grandes pelejas judiciais da época. Mostrou
quão sensível era o nervo que a simples menção da evolução darwiniana havia
tocado.
Mas as apostas continuavam altas; se a seleção natural pudesse conci-
liar-se com a fé cristã, então o leigo abastado poderia realmente ficar tranqüilo
e descansar. Não é de espantar que tal esforço tenha sido feito, na Igreja
Plymouth, de Brooklyn. A igreja ainda está lá, defronte à Ponte de Brooklyn,
em meio ao que é agora um bairro decente, embora não luxuoso. Acontece
que, em 1860-1870, essa paróquia estava se tornando uma das mais ricas de
todo o país, e Henry Ward Beecher, precisamente o homem que havia marcado
um encontro com Herbert Spencer no céu, era o pastor. Os ricos, os ambiciosos
e aqueles que eram apenas diligentes e laboriosos acotovelavam-se para ouvi-lo
no púlpito, em números incríveis; tanto que Henry Adams calculou que
ninguém havia pregado com tamanha persuasão e influência a tantos, desde o
tempo de São Paulo apóstolo. Em 1866, Beecher escreveu a Spencer, dizendo
48 que "a condição peculiar da sociedade americana tornou as suas obras bem
o reverendo Henry Ward Beecher: "Deus quis que os grandes fossem grandes e os pequenos
fossem pequenos".
A Era da Incerteza
Thorstein Veblen
Havia um certo regozijo encantador nas idéias pelas quais os ricos justi-
ficavam sua condição no século passado. O mesmo se pode dizer da maneira
pela qual eles gastavam o dinheiro. É um campo de estudo de que eu sempre
gostei muito. Mas seria completamente errado pensar que toda essa alegria era
um mero produto da falta de visão - daquela perspectiva que o tempo nos dá.
De longe a mais interessante e penetrante visão dos ricos americanos em seus
dias de glória foi-nos dada por um observador contemporâneo. Escreveu sobre
eles quando se encontravam no auge do poder e ostentação. Trata-se de
Thorstein Veblen, herói de meus professores na Universidade da Califórnia nos
anos trinta. Tomei conhecimento de seus livros simultaneamente com a obra de
50 Alfred MarshalI, Principies, a bíblia da ortodoxia econômica dos últimos anos
Thorsten Veblen, 18S7·1929;
A Era da Incerteza
• Sigla que significa White Anglo-Saxon Protestant e se refere à elite tradicional nos
52 Estados Unidos. (N.T.)
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo
ritos sociais poderiam ser diferentes na forma e nos detalhes, mas seus objetivos
eram os mesmos - autopromoção e exibicionismo. E para cada tipo de exibi-
cionismo ou diversão dos ricos, Veblen apresentava um congênere deplorável e
bárbaro. Os Vanderbilts, por exemplo, punham suas mulheres em espartilhos,
provando assim que elas não passavam de objetos de prazer e ostentação. Os
chefes das tribos da Nova Guiné tatuavam os rostos e seios de suas muitas
esposas com o mesmo fim. Os ricos se reuniam em finos jantares e espetáculos
elegantes. O ritual equivalente dos aborígines americanos era a festa na taba
ou a orgia que se lhe seguia. Veblen fazia verdadeiros milagres com uma
simples bengala. Vejamos:
A bengala serve para anunciar que as mãos de seu possuidor são usadas num
esforço inútil e que ela, por isso mesmo, só tem utilidade como prova de indolência e
lazer. Mas também é uma arma e preenche uma necessidade premente do bárbaro
nesse particular. A utilização de um meio de ataque tão palpável e primitivo é muito
confonador para todo aquele dotado, mesmo que moderadamente, de um instinto de
ferocidade. 10
tado pelo reitor Abbott Lawrence Lowell - que abordou o assunto um tanto
constrangido, já que para ele não existiam sexo nem o pecado - de que alguns
dos futuros colegas de Veblen estavam preocupados com a honra de suas
esposas. Isso fora uma sutil insinuação de que Veblen deveria prometer, se
aprovado, comportar-se bem. Veblen respondeu delicadamente que não havia
necessidade de se preocuparem com isso, pois já tinha visto as esposas. Investi-
guei a história e parece-me, infelizmente, carecer de toda e qualquer veraci-
dade. Veblen, solitário e triste no fim da vida, morreu em 1929.
Consumo Ostensivo
o Monumento: Newport
diante da classe privilegiada que serviam. Foi isso também, mais do que por
simples acaso, o que deu fim a esse tipo de vida. Pode-se, aliás, estabelecer
como regra geral e ampla que ninguém passa a vida toda reafirmando a supe-
rioridade dos outros se tiver alguma alternativa. Assim, tão logo possível, os
criados arranjavam outros empregos. Os patrões achavam que eram amados por
seus lacaios até o momento em que um deles peidasse alto ao servir o jantar, e
fosse embora no dia seguinte. A primeira manifestação da sociedade sem classes
é o desaparecimento da classe dos criados.
Os Cerimoniais
o Cassino de Monte Carlo. "Se alguém perdesse dez ou cinqüenta mil, ele apenas demonstrava
aos circunstantes que podia se dar ao luxo de perder tant() dinheiro."
A Era da Incerteza
Publicidade
A Riviera
A Jogatina
toda ou, então, procurar realizar-se por si mesmo em uma dessas áreas ou afins.
Do contrário, ele ficará quase que inteiramente desprezado, jogado às traças.
Existem algumas diferenças regionais; na prática, nesse particular. Em
Boston e na Nova Inglaterra de um modo geral, os homens abastados gostam
de roupa simples, muitas vezes repelente, e de moradias amplas mas um tanto
desleixadas. As mulheres vestem-se da mesma forma, demonstram uma
aparência utilitária, ativa ou atlética, segundo sua personalidade e gosto
pessoal. O destaque social então é procurado através da ligação, embora
inocente, com a música, a arte, a filantropia ou, em certos casos, com ativi-
dades intelectuais ou um serviço público inofensivo. A riqueza por si só não dá
vantagem alguma a uma família, exceto que a torna objeto de atenção dos que
arrecadam dinheiro para fins caritativos ou políticos.
Nova York é praticamente a mesma coisa. Só que aí a 'roupa extrava-
gante ainda é considerada por muitas mulheres de posses como sendo uma
forma eficaz de chamar a atenção. Apartamentos mobiliados e decorados com
excentricidade, bastante desconfortáveis, também são considerados eficazes
nesse sentido. Nos subúrbios de Nova York, as grandes residências, barcos e
entretenimento que não depende muito de criadagem ainda conferem certa
distinção dentro de uma determinada subcultura. Mas, embora essas mesuras
residuais sobrevivam, estão longe de ser o suficiente. Torna-se indispensável
uma reputação mediante ligação reconhecida e amplamente divulgada com as
artes ou campanhas públicas para alguém que tenha um mínimo de ambição.
Nestas últimas décadas, grande prejuízo foi causado por nova-iorquinos ricos,
muitos deles advogados, que procuravam status mediante unia ligação com o
campo da política externa. Não foi por acaso que demonstraram uma infeliz
associação com líderes estrangeiros e potentados que, de certa forma, partilham
de seu empenho em fazer fortunas pessoais. Contudo, o apoio a políticos libe-
rais e a causas radicais de finalidades um tanto inócuas também pode tornar-se
motivo de significativa distinção social.
No Texas, onde a riqueza é relativamente nova e, por isso mesmo, tem
alto grau de novidade, a posição social de uma família ainda é influenciada
pela extensão e pelo valor de suas propriedades - pelo valor tributável ou
venal da casa, pela área da fazenda, pelo tamanho, velocidade e equipamento
do avião particular e pelo custo visível do tratamento e dos jaezes dos cavalos,
bem como dos trajes das mulheres. É dado muito valor a churrascos ao ar livre e
outras festas do gênero, ocasião em que as posses dos anfitriões são exibidas e
admiradas. É uma conseqüência lógica dos hábitos sociais dessíÍ gente que o
melhor mercado do mundo para venda de caros artefatos de consumo seja
Dallas, Texas. Com o passar do tempo, isso também vai mudar.
Uma estreita e até certo ponto imaginária linha divide o que é admi-
rado como elegância daquilo que é condenado como sendo demonstração
exibicionista - consumo ostensivo.
Essa mudança já se manifestou no Sul da Califórnia, especialmente na
zona suburbana de Los Angeles, onde mansões no estilo mourisco, piscinas,
jardins podados de maneira primorosa e inusitada, e automóveis um tanto 65
- --~--
A Era da Incerteza
69
TRÊS I
o Homem Universal
Trier
estava reservado neste mundo, não importando quão miserável fosse essa
condição, e esse era um dos aspectos que Beecher achava muito bom. Evidente-
mente, faz muita diferença a maneira como se diz algo; a forma de Beecher
dizê-lo era muito mais aceitável para o devoto do que a de Marx.
Karl Marx nunca se preocupou em ser popular, mas, quando se tratava
de religião, ele realmente sobressaía. Ser judeu, acusado de anti-semita e
abertamente hostil ao cristianismo bem como às demais doutrinas era um
modo seguro de se livrar do aplauso religioso.
o Jovem Romântico
Berlim e Hegel
Colônia e Jornalismo
Marx foi para Colônia. Assim como Trier, Colônia também fica na
Renânia e, como Trier, havia acabado de ser recuperada da França e era então
um pouco mais liberal devido à experiência vivida. Na França, dizia-se que
tudo o que não fosse proibido era permitido. A Prússia se pautava por uma lei
mais austera: o que não fosse permitido era proibido. Em Colônia,Marx
tornou-se jornalista. O jornal era o recém-fundado Rheinische Zeitung, bem
financiado, imaginem, pelos industriais e comerciantes burgueses da Renânia e
do Ruhr. Marx tornou-se logo um sucesso; primeiro atuou como ativo corres-
pondente e em seguida tornou-se redator-chefe. Nada disso surpreende.
Afinal, ele era inteligente, talentoso e extremamente dedicado e, de certa forma,
representava uma força da moderação. Outrossim, pregava altos padrões morais.
A revolução era um tema muito abordado pelo jornal. A palavra "comunismo",
embora ainda. indefinida quanto ao seu significado, começava a ser usada.
Disse Marx que inúmeras contribuições disso resultantes foram:
Marx ainda seria uma força em favor da decência editorial ao lidar com
escritores esquerdistas altamente motivados hoje em dia.
Sob a direção de Marx, o Rheinische Zeitung aumentou rapidamente a
circulação, e sua influência se estendeu a outros Estados germânicos. Da mesma
forma, tornou-se cada vez mais do interesse dos censores, que todas as noites
reviam as provas antes de irem para impressão. Reagiam desfavoravelmente a
Marx em muitos sentidos; a mais importante reação foi sobre a coleta de lenha.
Aliás, devo reconhecer meu débito em inúmeras questões à recente e muito
lúcida biografia de Marx escrita por David McLellan, inclusive no relato desse
conflito. 7
Desde tempos imernoriais, os habitantes da Renânia haviam se acostu-
mado a entrar nas florestas da região para apanhar madeira caída, que usavam
como lenha. Como o ar e a maioria da água, essa lenha era de graça.· Nessa
ocasião, porém, devido ao aumento da população e à prosperidade, a madeira 79
A Era da Incerteza
o Nascimento de um Socialista
Para Marx, Paris foi o começo de uma vida nova. As ruas de Paris eram
então, como tantas outras vezes, o berço da revolução. Muitos dos revolucioná-
rios nessa época eram alemães, refugiados da censura e repressão prussianas.
Muitos, é claro, eram socialistas. Sua influência sobre Marx durante sua estada
em Paris foi realmente enorme.
.--
-
A Era da Incerteza
Como Marx, Engels era alemão. E como Marx, pertencia à classe média
superior. Aliás, todos os primeiros líderes revolucionários (é difícil sequer
pensar em qualquer exceção) eram intelectuais de classe média. Somente na
esperança e na oratória eles vinham das massas.
Todavia, a família Engels - fabricantes de tecidos no Ruhr e, antes do
tempo, uma empresa multinacional - era bem mais rica do que a de Marx.
Engels passaria a maior parte de sua vida na Inglaterra, em Manchester, onde
unia o pensamento revolucionário à supervisão da filial local da firma perten-
cente à família.
Aliviado de seus compromissos editoriais, Marx dedicou-se a um
período de leitura séria e estudo, talvez mesmo o mais intenso de toda a sua
vida. Inúmeras idéias, que dominariam sua existência mais tarde, teriam
tomado forma nessa ocasião. Não se deve pensar, embora alguns julguem
assim, que o socialismo se iniciou com Marx. Nessa- época, o tema já se encon-
trava sob discussão das mais acirradas. Saint-Simon e Charles Fourier haviam
precedido Marx. Assim também Robert Owen, que já ficamos conhecendo.
Louis Auguste Blanqui (que passou a maior parte da vida preso), Louis Blanc,
P.J. Proudhon, todos franceses, e os alemães Ferdinand Lassalle e Ludwig
Feuerbach, foram contemporâneos. Todos eles, especialmente os alemães,
deram origem ao pensamento de Marx.
Durante esses anos, Marx não só reunia idéias como também ponderava
sobre o papel dessas idéias em si. ParaJohn Maynard Keynes, as idéias eram a
força que motivava a mudança na história. Marx, embora não contestasse a
importância das idéias, levou a proposição um pouco mais para trás. As idéias
aceitas de qualquer época são, por estranho que pareça, aquelas que servem aos
interesses econômicos dominantes:
Nunca achei que Marx estivesse errado nesse particular. Nada caracte-
riza de maneira mais segura a grande verdade social, a verdade econômica em
particular, do que a sua tendência de ser agradável ao interesse econômico pre-
dominante. O que os economistas crêem e ensinam, quer nos Estados Unidos
quer na União Soviética, raramente é hostil às instituições - a organização empre-
sarial privada ou o Partido Comunista - que refletem o poder econômico dorni-
nante. Não perceber isso requer muito esforço, embora muitos consigam.
Começaram a tomar forma, também, nesta época os pontos de vista de
Marx sobre o processo pelo qual o próprio capitalismo se modificaria. Sir Eric
Roll, um estudioso inglês de Marx extraordinariamente eclético -foi profes-
sor, funcionário público de categoria, destacado negociador internacional que
dirigiu os entendimentos para implantação do Plano Marshall e da Comu-
nidade Econômica Européia, banqueiro, membro da diretoria do Banco da
84 Inglaterra e respeitado historiador do pensamento econômico - muitos
A Dissidência de Karl Marx
Tinha que ser uma contradição no sistema que provocasse conflito, movi-
mentação e mudança ... Essa contradição básica do capitalismo é a natureza cada vez
mais social, cooperativa da produção, que se tornou necessária através das novas forças
produtivas que a humanidade possui e (em oposição a isso) a propriedade individual
dos meios de produção ... [Daí provém o] inevitável antagonismo ... entre as duas
classes, cujos interesses são incompatíveis. 13
... a Alemanha tem uma vocação para a revolução social que se torna ainda
mais clássica pelo fato de ser incapaz de uma revolução política. Isso porque a impo-
tência da burguesia alemã é a impotência política da Alemanha, e portanto a situa-
ção do proletariado alemão ... é a situação social da Alemanha. A desproporção entre o
desenvolvimento filosófico e político na Alemanha não constitui nenhuma anormali-
dade. É uma desproporção necessária. É somente no socialismo que um povo filosófico
pode encontrar uma atividade correspondente e, assim, somente no proletariado ele
encontra o elemento ativo de sua liberdade. 14
o Manifesto' Comunista
..
KARL IURX and FREDERICK ENGEL8.
=-o=-
S}lECTRE ia haunting Europe-the spectre ct Ç~mmnnism_ ;AUti~e
A Powers of old Europe have cntered ioto a holy alliauce to eXQi'CI$C ti,!?
spectre i Pope aud Cear, Mctteruich and Guiact, Freuch Radrcals aud
Gcnnan police-spies. .
Wbere is the party in opposifion tbat has not bee~ ~lecncd as com-
munistic by lts oppouents iu power 1 \Vher.e lhe OPPOSlt.10Il Lhnt hus not
hurlcd Imck the brandiug reproach of Cornmunism, against thc more
adveueed oppositicu parties, as well as against its re-acnonary advcrsarics ê
I.
DOURGEOIS AND PROLETARIANS. (al
The history oí a.1I hitherto existiug scciety (b) ia the hlstory af das!
struggtes.
Freeman aod slavc, patrician and plcbeian. lord <l:ud scrf, guild.
(li) 3y bourgeoisie ie meant the c1as5 of medem Capitalista, owners (Ir the
meaas of social prcduction and employen.of wage-labour li}' prolcrariat. the
class cf modero wage-labourers ,\\,110, having DO means 1)( producttoe of thelr
own, are reduced to sclling thdr labcur-power ia crdcr to tive.
or~~ni~:~!~~S~~~\i:t~:e~ji~~~l"i~
r:~l"~~~[' ~;tS~tel~;;~\,~~~e
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tben. Haxthausen disccvered commoa owuersbip of lnnd in H,us:.i:l. Maurc-
tr~t~~.
lhe prilnltiv~ fonn cf society
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i!D~Ob~ea~l:tb~~C~~~l~t):ell~~~:U~í~;::Sw~~~:
everywliere
~~~~~ l~~:(~~~il
(com Iadia to Ireíand. Tbe iWl~
nidade e muita atração para os tagarelas. Mas estes não podem nem devem ser
permitidos. Homens desse jaez serão esmagados enquanto discutem.
E, acima de tudo, o outro lado deve ser fraco. Toda revolução bem
sucedida é como o pontapé numa porta já podre. A violência das revoluções é a
violência de. homens que arremetem contra o vácuo. Foi assim na Revolução
Francesa. Foi assim na Revolução Russa de 1917. Assim foi também na Revo-
lução Chinesa após a Segunda Guerra Mundial. E assim não foiem 1848.
No Palácio de Luxemburgo, a liderança era fraca e havia muita conversa
mole. Falava-se em oficinas governamentais em que os homens produziriam
cooperativamente para o bem comum, não importando o que e a que custo..
Ou, então, de obras públicas, um grande canal subterrâneo cruzando Paris, no
qual a imaginação tomava o lugar da engenharia. Os salários foram, em
verdade, aumentados. Mas essa e outras medidas de amparo tiveram o efeito de
aumentar os impostos e de dar aos camponeses a impressão de que eles é que
estavam pagando a revolução. Entrementes, ninguém pensava em apoderar-se
dos instrumentos do poder - a guarda nacional, a polícia, o exército. Toda
essa gente é extremamente importante na hora da verdade de uma revolução.
E esse momento de verdade revolucionária aconteceu nos primeiros
dias do verão de 1848. A 23 de junho, os trabalhadores decidiram abandonar
seu gueto revolucionário e reunir-se em assembléia no Pantheon, a algumas
centenas de passos dali. Desse local marcharam até a Praça da Bastilha para
impor ao governo provisório os direitos de há muito discutidos. o. governo não
carecia de recursos, e já estava olhando para os operários com crescente apreensão.
Os trabalhadores conseguiram chegar à Praça da Bastilha e ai erigir uma
forte barricada. O primeiro ataque da Guarda Nacional foi repelido, e uns
trinta guardas foram mortos. As tendências românticas dos revolucionários
davam-lhes maior confiança. Duas belas prostitutas subiram no topo da barri-
cada, ergueram as saias e perguntaram qual francês, não importando quão
reacionário fosse, atiraria na barriga desnuda de uma mulher. Os franceses
responderam ao desafio com uma saraivada de balas mortíferas.
A essa altura as barricadas eram tomadas de assalto, e os operários
subjugados. Foram feitos prisioneiros, que de início eram fuzilados. Mas a
seguir, pelo que consta, em consideração aos moradores do local, que recla-
mavam do barulho, foram mortos a baioneta. O massacre estendeu-se até os
Jardins. Num outro gesto de consideração, segundo a lenda, o logradouro
público foi mantido fechado durante vários dias, até que o sangue fosse lavado
ou limpado. Como se vê, já em 1848 o pessoal estava se conscientizando do
meio ambiente.
Marx não se surpreendeu muito com esse resultado. A liderança bur-
guesa da revolução não inspirou sua confiança. E quanto aos trabalhadores, ele
achou que tanto a hora como a seqüência cronológica estavam erradas: pri-
meiro, tinha que haver uma revolução burguesa, e depois o triunfo socialista.
Mais tarde, naquele mesmo ano, Marx assinalou que a revolução, pelo menos
simbolicamente, havia tido êxito quanto à bandeira. "A república tricolor
agora tem uma única cor, a cor da derrota, a cor de sangue". 17 91
A Era da Incerteza
Para Londres
o
ano de 1848 realmente provocou grandes mudanças pessoais em
Marx. Os belgas eram mais liberais do que seus vizinhos, mas igualmente ner-
vosos; por isso, decidiram que nem eles podiam abrigar um homem tão peri-
goso. A essa altura, Marx já encabeçava as listas da polícia, constituindo-se em
nome famoso em todos os dossiers.
Por um momento, a disposição revolucionária parecia ter tido certo
efeito. Praticamente no mesmo dia em que fora expulso de Bruxelas, Marx foi
convidado a voltar à França. E ele conseguiu ir dali para Colônia, para ressus-
citar o Rheinische Zeitung, que assim reaparecia como o Neue Rheinische
Zeitung. Sua maior lealdade continuava sendo para com os trabalhadores
alemães.
Todavia, o jornal ressuscitado era, financeiramente falando, muito mais
que uma aventura, já que lhe faltava capital. E só subsistia por causa da
insegurança das forças conservadoras e contra-revolucionárias em suprimi-lo.
Mas, tão logo perceberam a fragilidade da ameaça revolucionária, tomaram
conta novamente. Marx continuava sendo, de certa forma, uma voz que
pregava a moderação. Ele fazia fortes apelos contra a ação imprevidente e
aventureira dos trabalhadores, que só poderia levar a um desastre.
Mesmo assim, teve de arrumar as malas uma vez mais. Só havia dois
países disponíveis, a Inglaterra e os Estados Unidos. Marx pensou muito em ir
para os Estados Unidos, e é interessante especular sobre o seu futuro e o da
República, tivesse ele tomado essa decisão. Mas ele não tinha dinheiro. Por
isso, foi para Londres. Seria a sua última mudança; ficou na capital inglesa o
resto da vida.
Marx cruzou o Canal da Mancha em 24 de agosto de 1849. Embora já
tivesse na bagagem uma experiência de várias vidas, por incrível que pareça, só
tinha trinta e um anos de idade. Diante dele estavam três outras tarefas: a
primeira delas era dar 'forma final às idéias que conduziriam as massas à sua
salvação; a segunda era criar a organização que provocaria e dirigiria a revo-
lução; a terceira era encontrar os meios pelos quais ele :e sua família iriam
comer, alojar-se e sobreviver. Cada uma dessas tarefas interferia lamentavel-
mente com as outras, mas, no fim, todas se realizaram.
A ajuda financeira veio de Engels e de outros amigos. Houve uma
92 herança inesperada de Trier, e também havia o New York Tribune. (Em 1857,
A Era da Incerteza
Em 1856, sete anos após sua mudança para Londres, uma pequena
herança permitiu que a família fugisse, como Jenny Marx disse numa carta a
uma amiga, "dos terríveis, revoltantes aposentos que encerravam toda a nossa
alegria e toda a nossa tristeza". 19 A família mudou-se então, com grande
alegria, para uma ampla casa suburbana em Hampstead, um novo bairro que
ali se desenvolvia. Houve outros problemas financeiros, porém o pior já tinha
passado. Embora o mito diga o contrário, a verdade é que em Londres, em seus
últimos anos de vida, Marx teve uma renda bastante satisfatória pelos padrões
da época.
Nos trinta e tantos anos que viveu na Inglaterra, Marx teve algo mais
94 importante até do que a renda, embora uma renda dificilmente seja coisa
A Dissidência de Karl Marx
secundária para quem não tem nenhuma. Era a quase total segurança e liber-
dade de pensamento e expressão. Os governos sob os quais Marx tinha vivido
antes não compreendiam bem por que ele deveria ser favorecido dessa forma.
Ao chegar a Londres, a despeito dos problemas da sua vida diária,
Yarx dedicou-se imediatamente ao seu trabalho político. Compareceu a
reuniões e comícios; elementos da pior espécie se reuniram em seus esquálidos
entos para estudar a estratégia e táticas revolucionárias. Em 1850, o ernbai-
ndor austríaco fez um protesto oficial junto ao governo britânico. Marx e seus
mpanheiros da Liga Comunista dedicavam-se a toda ordem de discussões
igosas, abordando até mesmo a conveniência ou não do regicídio. O ernbai-
or recebeu uma resposta fleumaticamente indiferente: " ... de acordo com
nossas leis, a simples discussão do regicídio, desde que não diga respeito à
- da Inglaterra e enquanto não houver um plano definitivo nesse sentido,
- constitui motivo suficiente para que se prendam conspiradores". 20 Toda-
num gesto conciliatório, o Secretário do Interior britânico informou que
pronto a fornecer aos revolucionários ajuda financeira para que emigras-
para. os Estados Unidos. Afinal, o regicídio não poderia ser praticado lá.
do, no ano seguinte, quando um pedido oficial conjunto foi apresentado
ustria e Prússia para o transporte de Marx e seus comparsas, o mesmo foi
~lUdo.
Em Londres, Marx dispunha de mais um recurso que tem sido muito
a:lllado. Era a biblioteca do Museu Britânico.
A Internacional
o
primeiro volume de O Capital- no original alemão, Das Kapi.
Kritik der Politischen Oekonomie von Karl Mar.x, Erster Brand, Buch 1: "Der
Produktions Prozess des Kapitals' (Hamburgo: Editado por Otto Meissner) -
foi publicado em 1867. Os dois outros volumes que compõem a obra, cui
número pretendido de leitores é muitas vezes maior do que o verdadeiro, ;;
foram publicados durante a vida de Marx. Foram preparados para o prelo
partir de anotações e manuscritos reunidos pelo sempre fiel Engels e
podiam ter sido completados por ninguém mais.
Uma das razões do atraso foi a miséria dos primeiros tempos e a luta
autor. Outra razão era a erudição; conforme seus amigos diziam, Marx era
incapaz de escrever qualquer coisa sem informar-se amplamente. Entretanto.
outra razão mais foi a interminável discussão, os debates e a polêmica em que
Marx vivia o tempo todo. Tudo o que não apreciava ele o descrevia com grande
prazer e nenhum instinto para condescendência. Assim ele falou de um
conhecido jornal diário de Londres:
Mas a razão mais importante era a de que, nesses anos, Marx estava
lançando as fundações da revolução que ele esperava e, vez por outra,
acreditava estar iminente ~ O instrumento da revolução seria uma organização
que uniria, num propósito comum, a ação dos trabalhadores de todos os países
industrializados - os proletários que, como Marx ardentemente afiançava, não
tinham pátria. Conhecida hoje como Primeira Internacional, essa organização
nasceu em Londres a 28 de setembro de 1864, num comício a que compare-
ceram cerca de 2000 trabalhadores, membros de sindicatos de classe e intelec-
tuais de toda a Europa. Foi eleito um conselho diretivo, do qual Marx, natural-
mente, era o secretário. Sua primeira função foi a de apresentar um estatuto de
princípios e objetivos; isso foi feito, tendo Marx ficado espantado com a verbor-
réia, falta de cultura e baixo nível geral do resultado. Assim, sabendo que o
. assunto era inadiável, convocou os membros do conselho para discutir os
98 regulamentos. Ele próprio redigiu os princípios. O resultado, sua Alocução às
A Era da Incerteza
Paris Novamente
Morte e Vida
Depois da revolta de Paris, Marx viveu mais doze anos. Continuou sua
obra; continuou sendo o juiz supremo, embora não inconteste, do que era
considerado certo e errado no pensamento socialista. Um de seus julgamentos
propiciou uma de suas mais duradouras frases. Nos anos que se seguiram à
Guerra Franco-Prussiana, a classe trabalhista na Alemanha viu sua força política
aumentar rapidamente. Uma vez mais, a conseqüência' de uma guerra. Não
apenas um mas dois partidos trabalhistas surgiram, e em 1875 eles se reuniram
em Gotha, na Alemanha central, para fundir-se e concordar num programa
comum. O resultado foi extremamente desagradável para Marx: o programa
colidia profundamente com os princípios marxistas, e mais uma vez a reforma
substituía a revolução. A sua Crítica do Programa de Gotha afirmava, entre
outras coisas, que depois de os trabalhadores terem assumido o poder, a cicatriz
dos hábitos e do pensamento capitalistas teria que desaparecer primeiro. Só
então viria o grande dia em que a sociedade' 'inscreveria em suas bandeiras: de
,.cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades! ' , 26
É possível que estas últimas quatorze palavras tenham arrebatado para as
fileiras marxistas mais seguidores do que as centenas de milhares que Marx
escreveu em seus três volumes de O Capital.
Os derradeiros anos de Marx não lhe foram propícios. Sua saúde estava
abalada e-não melhorava devido aos abusos a que longamente se submetera em
relação à comida, a noites mal dormidas, ao fumo e ao álcool. (Ele era um
pródigo consumidor de cerveja.) Por diversas vezes ele foi obrigado, segundo o
costume da época, a retirar-se para uma estação de cura. Diversas vezes foi a
Carlsbad, no que era então a Áustria e agora é a Tchecoslováquia, onde a
polícia o vigiava o tempo todo juntamente com os seus médicos e fazia relató-
rios, principalmente sobre a forma muito satisfatôria em que o paciente obser-
vava o regime que lhe fora receitado. Em 1881, sua esposa Jenny contraiu
câncer, e em dezembro daquele mesmo ano vinha a falecer. Alguns meses mais
tarde, ela foi seguida por sua filhaJenny, a filha mais velha e mais querida de
Marx. Profundamente abalado e solitário, Marx também parou suas atividades
em todo o sentido. A 13 de março de 1883, com Engels à cabeceira de seu leito
de morte, ele expirava. Nunca, desde o Profeta, a influência de um homem foi
102 tão pouco diminuída devido à sua morte.
-
QUATRO I
A Idéia Colonial
As idéias das quais vimos falando até aqui tiveram sua aplicação, no
século passado, em apenas um pequeno canto do mundo. Foram importantes
para a Europa Ocidental e para os Estados Unidos. Mas tiveram pouco signifi-
cado ou aplicabilidade para a Índia, a China, o Oriente Médio, a África, a
América Latina e a Europa Oriental. Estas partes do mundo não tinham capi-
talistas, nem proletários, nem muita indústria. Em sua esmagadora maioria, os
povos dessas regiões eram lavradores ou latifundiários; em sua maior parte, era
uma sociedade feudal ainda aguardando a arremetida progressiva do capita-
lismo de que falava Marx. Boa parte desse mundo era, direta ou indiretamente,
uma dependência colonial de uma ou de outra das nações industrializadas. A
independência da China foi mais nominal do que real. A América Latina,
embora libertada da Espanha, continuava sob a influência econômica e prote-
ção (através da Doutrina Monroe) dos Estados Unidos. Nos demais países
pobres, a independência era um convite à salvação por aquilo que ninguém
hesitava em chamar de países civilizados.
Sendo o colonialismo um fenômeno tão generalizado, seria de esperar
que os grandes economistas lhe dessem muita atenção, apresentassem uma
substancial justificativa de seus objetivos e uma pormenorizada análise de seus
métodos. Eles não fizeram nada nesse sentido.
Adam Smith mostrou-se interessado no assunto, como também em
tudo o mais. Mas preocupou-se mais em alertar contra os esforços feitos pela
metrópole no sentido de monopolizar o comércio com suas possessões de além-
-mar. Ela não devia procurar agir dessa forma no comércio geral ou nas merca-
dorias específicas - chamavam-nas de enumeradas - tais como o fumo,
melaço de cana, barbatanas de baleia e, durante algum tempo, o açúcar.
Quanto ao restante, ele se contentou em condenar a Companhia das Índias
Orientais em todas as suas atividades. "Essas empresas exclusivas, portanto, são
uma praga em todos os sentidos; sempre mais ou menos inconvenientes para os
países em que estão estabelecidas e altamente prejudiciais àqueles que têm a
infelicidade de cair sob seus governos". 1 Anteriormente ele havia concluído
que: "Dentro do atual sistema administrativo, portanto, a Grã-Bretanha não
obtém nada senão prejuízo do domínio que mantém sobre suas colônias". 2
Nas modernas universidades inglesas ou americanas, conclusões tão resolutas
poderiam ser consideradas um sirial de falta de cultura. 105
A Era da Incerteza
Marx e o Imperialismo
Marx, por outro lado, fez do mundo colonial uma parte orgânica do
seu sistema. Ele via a corrida às colônias como uma forma de conquistar mer-
cados consumidores para a produção capitalista. Assim, ela adiava por algum
tempo a ainda inevitável crise e colapso do capitalismo. Contudo, como acon-
teceu com outros economistas antes dele, o principal interesse de Marx era o
Estado capitalista avançado em si. Era aí que o clímax da luta entre a burguesia
e o proletariado iria surgir. Esse era o ponto focal de toda a paixão de Marx.
O mundo colonial, ao contrário, não tinha burguesia, nem proleta-
riado. Por isso, para ele, a confrontação final estava muito longe. Tratava-se de
um capitalismo que iria transformar a produção nesses países e criar um prole-
tariado revolucionário disciplinado. Portanto, no mundo colonial, o capita-
lismo era algo a ser promovido - uma força progressista. Se, como aconteceu
na índia, o colonialismo ajudasse a derrocar a estrutura feudal e a alimentar o
capitalismo, isso significava progresso.
A Idéia Colonial
A Missão Colonial
felizes em ser considerados apenas errados; na maioria das vezes, eram tachados
de antipatriotas ou traidores.
A dominação colonial, ou seja, o governo de um povo por uma potên-
cia geográfica e etnicamente distante, apresenta uma outra notável constante.
Mais, cedo ou mais tarde, ela chega ao fim. Geralmente, o fim é sangrento,
tanto para os que partem como para os que ficam. Indefectivelmente, a partida
é menos o resultado do aumento do poder do povo colonizado do que a queda
de interesse daqueles que partem. Todos os modernos impérios - espanhol,
britânico, francês, americano, português, e mais provavelmente o holandês e o
belga - poderiam ter sido mantidos, se o povo do país metropolitano achasse
que valeria a pena. Mas nenhum deles estava disposto a derramar sangue e
gastar suas reservas monetárias para manter as colônias, como aconteceu
quando as conquistaram. Outrossim, e este é um ponto importante, os povos
desses países não estavam mais querendo prolongar o descrédito de seu objetivo
em permanecer nas colônias. Não mais aceitavam o mito de sinceridade de
propósito em contraste com os fatos, menos nobres, de orgulho e prestígio
nacionais, ou o interesse pecuniário dos que haviam comprometido a eles e seu
dinheiro para com as colônias.
Deve-se frisar um último aspecto do colonialismo. Até hoje nos Estados
Unidos e nas outras ex-colônias britânicas na América Latina, na África e Ásia,
muito do que acontece e mais ainda do que não acontece pode ser explicado
pela experiência colonial - pela forma como as terras eram mantidas, pela
maneira como a economia era desenvolvida ou não, pela justiça ou injustiça do
governo colonial. Nenhuma lembrança é tão forte e 'duradoura como a da
humilhação e injustiça coloniais. Mas deve-se também acrescentar que nada
funciona tão bem como álibi. Nos I;>aísesrecém tornados independentes, a
experiência colonial continua sendo a principal desculpa sempre que alguma
coisa não dá certo. E nesses países muita coisa sai errada. Portanto, sob esse
aspecto também, o colonialismo continua sendo uma ativa fonte de mitos.
Antes, o mito era criado pelos colonizadores. Agora, ele o é pelos que foram
colonizados.
Para o Leste
o Aspecto Fisca!
A Conquista Espanhola
A Idéia Colonial
••••••••••••••••••••••••••••••••••••• J
A Era da Incerteza
probabilidade, ele respondeu: "Então não quero ser cristão; pois não gostaria
de ir para um lugar onde encontraria gente tão cruel' , . 9
A Burocracia
México
mente era, e sabiam quão necessário era que o povo fosse governado com pulso
forte. Também era o interesse econômico dos colonizadores que estava direta-
mente envolvido no caso. Após a independência, o poder na América espa-
nhola continuou com os donos da terra. Havia agora constituições e legisla-
turas, mas havia menos do que se podia supor. Era a extensão das terras, e não
o voto, que continuava pesando na balança.
O resultado no México foi uma outra mais prolongada e bem mais
profunda revolta, um século após a primeira. Esta foi a verdadeira revolta
contra o colonialismo. A primeira fora apenas um render da guarda; a de 1910
e depois envolvia terras e gente. Tendo mais interesses envolvidos, esta revo-
lução, evidentemente, foi muito mais sangrenta do que a anterior.
E assim também foi em Cuba. Ali igualmente, quando os espanhóis
saíram, o poder permaneceu em mãos de um punhado de donos das terras. Nos
anos que se seguiram, a propriedade concentrou-se ainda mais, boa parte dela
em Nova York. Foi só quando Fidel Castro apareceu que Cuba finalmente
rompeu com o colonialismo. Na maior parte restante da América Latina, essa
ruptura ainda está incompleta. Ditadores, militares e outros protegem antigos
ou mais recentes privilégios. Os Estados Unidos têm dupla atuação: às vezes,
ajudam os ditadores locais; em outras ocasiões, são acusados de injustiça e
exploração que talvez devessem antes ser atribuídas ao talento local.
Existem razões mais ou menos empíricas para considerar-se os déspotas
nativos mais poderosos. Os dois países geograficamente mais próximos dos
Estados Unidos, México e Cuba, são os que tiveram revoluções realmente pro-
fundas - os dois que acabaram por completo com as antigas estruturas colo-
niais. Eu costumava dizer aos meus muitos alunos latino-americanos que a
infelicidade do resto da América Latina era exatamente estar demasiado dis-
tante da tutela revolucionária dos Estados Unidos. Não me deram crédito.
o Caso da Louisiana
Na Califórnia, no Texas, na Flôrida e nos Estados do sudoeste, os
Estados Unidos também tiveram a experiência do colonialismo espanhol. Mas,
sendo a Flórida uma pequena exceção, tratava-se de terras distantes, esparsa-
mente povoadas, e continuaram sem população e inaproveitadas. O legado
colonial espanhol foi aí bem mais suave e menos duradouro do que no México e
nas Américas Central e do Sul. A influência colonial bem mais interessante
nesses territórios foi por parte da França, embora também houvesse um inter-
lúdio espanhol.
Uma vez mais se reuniam economia política e religião. A procura de
metais preciosos era o objetivo econômico. Em 1719, John Law, de quem
falarei mais tarde, 11 emitia notas de banco aos borbotões em Paris. Essas notas
eram avalizadas pelo ouro e prata que somente tinham que ser extraídos do
Vale do Mississippi. Esse ouro e essa prata ainda não foram encontrados, mas as
perspectivas naquela época pareciam bem melhores. Diversos mapas 117
A Era da Incerteza
almas, protegiam-nos num mundo rude e cruel para o qual, segundo se jul-
gava, por suas condições de crianças inocentes e felizes, estavam inteiramente
despreparados. A religião também entrava em cena de uma outra forma: os
homens falavam dos sagrados direitos de propriedade, e os escravos eram de sua
propriedade. Mas, como acontecia em outras sociedades coloniais, ninguém
duvidava que as pessoas eram muito úteis para cultivar a terra, cuidar da
colheita e fazer fortuna.
Lahore
A Experiência Americana
Não foi o último final desse tipo. Também houve o Congo, Argélia,
Angola e Vietnã.
Para a atual geração de americanos, a experiência no Vietnã parece
única, sem precedentes. Procuramos orientar a vida política de um país distante
do nosso. Fracassamose fomos repudiados. O final foi desastroso, medonho.
Analisado em toda a amplitude da história, a experiência vietnamita
não parece destacar-se, nem o seu final surpreende. Por incrível que possa
parecer, fomos avisados pela mais eloqüente de todas as vozes sobre a idéia
colonial. Ele havia prevenido, não porque fosse contra o colonialismo, mas sim
porque tinha sido parte integrante do mesmo.
Nenhum americano em mil, e menos ingleses ainda, sabe que Rudyard
Kipling viveu (de 1892 a 1896) nos arredores de Brattleboro, no sudeste do
Estado de Vermont. A casa que ele construiu ali ainda existe, por sinal um
exemplo de mau gosto vitoriano, que almas sensíveis até acham agora um
pouco mal-assombrada. Na verdade, não há nada de horrível na paisagem, que
se estende por umas quarenta milhas ao redor, por uma floresta que cruza o rio
Connecticut, entrando na parte sul de New Hampshire, até o Monte Monadnock.
Em seu gabinete de trabalho, que está intacto desde que ele o deixou, Kipling
escreveu The jungle Books (O Livro do ]ângal) e Captains Courageous, que
estão entre seus mais famosos livros.
Tendo morado na América, Kipling sentiu-se obrigado a dar um
conselho, em 1898, quando, com a Guerra Hispano-Arnericana e a aquisição
das Filipinas, teve início a experiência colonial americana. Ninguém corava
naquela época ao falar do homem branco e de sua responsabilidade. Todavia,
era preciso que sesoubesse o que era esperado.
Réquiem
sofreram esse revés. A União Soviética, nos anos que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial, procuraram estender sua influência à Iugoslávia, à China, ao
Egito, à Indonésia e Ghana. Ao analisar os resultados, os soviéticos têm poucas
razões de júbilo. Quando Ben Bella, um acólito soviético, foi deposto na Argé-
lia, um correspondente de um jornal russo disse-me com ar de tristeza: "Eles
usaram os nossos tanques. Bem, pelo menos não usaram os nossos assessores".
Os chineses, por sua vez, tornaram-se inimigos figadais dos russos. Outra vez
"A Reprovação dos que ajudaste". Espera-se que agora exista um livro de
Kipling no Kremlin.
Mas, não obstante o colonialismo esteja morto, suas cicatrizes perma-
necem. As antigas potências coloniais são agora as ricas nações industriais. Suas
antigas colônias são os países pobres do mundo. O colonialismo é culpado por
essa pobreza. Como ressaltamos anteriormente, ele é inculpado sempre que
um fracasso local- isto é, do governo de gente da própria terra, dos políticos,
homens de negócio ou da política econômica - é mais salutarmente explicado
dessa maneira.
A experiência colonial também torna profundamente sensíveis as
relações entre países ricos e pobres. Que as nações ricas têm por obrigação
ajudar os países pobres é algo amplamente aceito. E que eu reconheço com
veemência. Mas, mesmo que o dinheiro e a vontade de ajudar estejam pre-
sentes, o problema não termina aí. Se o país que presta ajuda permanece
remoto, espera até ser solicitado a auxiliar, não interfere de forma alguma,
será considerado descaso, indiferença. E, quase sempre, a ajuda será mal
empregada.
A alternativa é mostrar-se interessado, prontificar-se, ficar atento,
demonstrar empenho em insistir naquilo que parece mais acertado e sensato.
Mas, então, corre-se o risco de ser chamado de neocolonialista, acusado de estar
tentando reinstituir a dominação ou um governo imperialista.
Quanto à delicadeza desta última frase, posso testemunhar como
embaixador americano que fui na Índia, embora a Índia jamais tenha sido o
caso mais difícil nesse particular. Por instinto, eu sempre me envolvo nessas
questões. O progresso econômico é um grande e fascinante empreendimento.
Nada se lhe compara. Mas, como é que se pode fugir à milenar tradição de
fome e privação? Não me faltavam idéias. E os Estados Unidos estavam forne-
cendo uma boa quantidade de comida e muito dinheiro. Pela aplicação desses
recursos, eu era em boa parte o responsável. O falecido Krishna Menon
concluiu, em suas memórias, que meu propósito quase declarado 'era o de
tornar-me o novo vice-rei. Pela maioria dos outros eu fui perdoado. Mas, ao
contrário de inúmeros outros americanos, eu tive a sorte de ter sido avisado.
í