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CIP-Brasil.

Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP

:Jalbraith, John Kenneth, 190~


A era da inoerteza / Jobn Kenneth Galbrai th
dução de Fo R. Niokelsen Pellegr-ini. - 20 edo
S"'aoPaulo : Pioneira, 19800
(Novos umbrais)

1. l!bonomia - História I. Título.

CDD-330.(
1 -3300~

Indices para catálogo sistemático:


~mia : llistória. 330.09
2.. 7:.stória econômica 33009
_ u. econômico : História. 330009
,
lndice

Prefácio o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o xv
1
Os Profetas e a Promessa do Capitalismo Clássico o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 1

2
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 35

3
A Dissidência de Karl Marx o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 71

4
A Idéia Colonial o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 105

5
Lenin e a Grande Descolagem o o o o o o o o o o o o o o o o o 000 o o o o o o o o o o o o o o o o o 129

6
Ascensão e Queda do Dinheiro o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 159

7
A Revolução dos Mandarins o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 195

8
A Competição Final o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 227

9
A Grande Empresa Multinacional o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 259
A Era da Incerteza

10
Terra e Gente '. . . . . . . . . . . . . . . . .. 285

11
A Metrópole ' . . . . .. 309

12
Democracia, Liderançaç.Comprornisso 331

Um Agradecimento Importante 353


Notas de Rodapé 357
Lista de Ilustrações. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 363
Índice Remissivo . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 369.
Prefácio
à Era da Incerteza

Certo dia, no verão de 1973, quando o escândalo de Watergate era a


única coisa que de outra forma ocupava minha mente, eu recebi um telefo-
nema de Adrian Malone, da BBC de Londres. Ele queria saber se eu gostaria de
realizar uma série de programas de televisão versando sobre aspectos vários da
história das idéias econômicas ou sociais.
O telefonema surgiu num momento excepcionalmente oportuno para
mim. Os professores de Harvard, por uma tradição que deve datar do tempo
dos Peregrinos, obrigam-se a dizer quanto gostam de seu trabalho. Mesmo
aqueles cujo tédio é mais visível e reciprocamente demonstrado por seus
pequenos grupos de alunos falam com sentimento, no Clube dos Professores,
de sua enorme dedicação à causa. Eu próprio estava achando cada vez mais
difícil levar avante esse fingimento. Diversas vezes me vi olhando para as filas
de impacientes rostos jovens com branda revolta íntima. Uma coisa terrível.
Vinha pensando em me aposentar. Por que não fazê-lo e tentar enfrentar a
vasta platéia impessoal da televisão? Não haveria, segundo me disseram, a
mínima chance de se ouvir os aparelhos sendo desligados. E se algum telespec-
tador cochilasse, ou o casal saísse da sala? Tinha sido um dia de bastante traba-
lho, o amor tem suas exigências e, de qualquer forma, eu não saberia. Após
.uma quase indelicada hesitação, resolvi aceitar o convite. Sentei-me com
eles - Adrian Malone, Dick Gilling, Mick ]ackson, David Kennard -, que
foram, nos três anos que se seguiram, meus companheiros constantes e muito
estimados nesse novo empreendimento.
Logo de início concordamos quanto ao título da série: "A Era da
Incerteza". Soava bem; não restringia o pensamento; e dava a entender o tema
básico: faríamos um cotejo das grandes certezas do pensamento econômico no
século passado com a grande incerteza com que os problemas são enfrentados
no tempo atual. No século que passou, os capitalistas tinham plena certeza do
êxito do capitalismo, os socialistas do socialismo, os imperialistas do colonia-
lismo, e os dirigentes políticos sabiam que era seu dever dirigir. Muito pouco
dessa certeza ainda existe hoje em dia. Dada a desalentadora complexidade dos
problemas enfrentados atualmente pela humanidade, sem dúvida.alguma seria
estranho se ainda existisse. XV
A Era da Incerteza

à medida em que os nossos entendimentos avançavam, um novo tema


veio à baila. Começou com o pensamento, que nada tem de novo, de que as
idéias são importantes não apenas por si mesmas mas também para explicar ou
interpretar o comportamento social. As idéias predominantes da época são
aquelas que tanto o povo como os governos seguem. Dessa forma, elas ajudam
a moldar a própria história. Aquilo em que os homens acreditam acerca do
poder do mercado ou dos perigos do Estado tem muita influência sobre as leis
que eles promulgam ou deixam de promulgar - sobre o que pedem ao governo
ou atribuem às forças do mercado. Assim sendo, a maneira de abordarmos as
idéias se dividiria, grosso modo, em duas partes: os homens e as idéias e,
depois, as suas conseqüências. Primeiramente, Adam Smith, Ricardo e Malthus
e, depois, o impacto de seus sistemas na Grã-Bretanha, Irlanda e no Novo
Mundo. Primeiro, a história das idéias econômicas e, depois, a história econômica.
Essa seria a divisão dentro da primeira programação, como é apresen-
tada nos primeiros capítulos deste livro. Porém, seria igualmente a seqüência
do trabalho como um todo. Pouco mais tarde, resolvemos mudar dos homens
para as conseqüências, das idéias para as instituições. A última das grandes
figuras da economia de que trato é Keynes. Isso não quer dizer que ele seja o
último a merecer atenção; acontece que os que se lhe seguiram nasceram tarde
demais. Nem eles nem seus amigos devem chorar por isso. A televisão está mais
do que consagrada. As idéias e as instituições resultantes constituíram as pedras
fundamentais com as quais a série, e este livro, foram construídos, e ambos têm
seus direitos.
Um empreendimento como este, para a televisão, presta-se sobre-
maneira a uma óbvia e fácil especialidade. A matéria seria minha; a apresen-
tação ficaria por conta de meus colegas da BBC. Se essa divisão tivesse sido
imposta, o resultado sem dúvida seria triste. Uma apresentação eficiente -
planejamento inteligente, a escolha das cenas mais importantes, a fotografia e a
direção -, tudo isso só. seria possível se meus colegas se aprofundassem de
maneira total e profissionalmente nas idéias. Foi o que fizeram. E ao fazê-lo,
influíram bastante no meu modo de pensar, aumentando em muito os meus
conhecimentos. As vantagens ficaram patentes nesta obra. De minha parte,
embora de um modo geral de menor importância, fiz minha recomendação
quanto aos temas e locais das ilustrações e, vez por outra, sobre a maneira em ..
que isto ou aquilo teria maior significado visual.
Minha ligação com a BBC não se limitou aos produtores e diretores. A
British Broadcasting Corporation, como todos sabem, é uma organização
colossal. No mundo da televisão feita com responsabilidade, existem a BBC e
algumas outras. A genialidade dessa empresa está no gabarito do pessoal que
ela contrata e também no fato de todos sentirem - os talentosos cameramen,
os sonoplastas, os iluminadores, os assistentes de produção, os funcionários em
geral- que eles realmente partilham da responsabilidade pelo produto final.
A televisão, como dirá qualquer escritor que nela entrar, é muito dife-
rente da arte de escrever. A disciplina do tempo é implacável. Uma hora inteira
XVI sobre Karl Marx pode parecer tempo demais para alguns telespectadores; em
Prefácio à Era da Incerteza

relação à sua longa, intensa, variada e prodigiosamente ativa vida, é nada mais
que um minuto. O problema não está na simplificação; pode-se expor um
argumento central rapidamente e com precisão e clareza, e deve-se também
esperar ser responsabilizado se assim não se fizer. A disciplina do tempo se
manifesta na necessidade de escolher - concentrar-se nos pontos principais e
até mesmo fazer uma escolha entre eles. Tudo que o autor escolher será muito
pessoal; ninguém deve alegar que o que ele escolheu para falar a respeito de
Adam Smith, de Ricardo ou de Karl Marx, Lenin ouJohn Maynard Keynes, ou
mesmo a escolha destes em lugar de outros, reflete uma sabedoria imutável e
objetiva. Na televisão não se pode ser abrangente. Só se pode esperar que a
escolha que se fez seja razoavelmente acatada pelo público. A prova a que a
gente deve submeter-se com toda diplomacia e tacto perante os críticos -
aqueles que, pela tradição de sua especialidade, associam uma generosidade
afetuosa e infalível a um senso de profunda percepção - é saber se acrescentou
algo válido aos conhecimentos humanos'.
Num programa de televisão, parte da história é transmitida pela ima-
gem, outra parte pelas palavras. Ninguém pensaria em publicar um livro com
ilustrações e sem texto, embora essa proposição deva ser apresentada com
cautela. Nos dias atuais, os editores são capazes de publicar quase tudo. Da
mesma forma, ninguém deveria publicar um texto escrito especialmente para a
tela. Um filme de cinema ou um roteiro de televisão é uma coisa mutilada, é
uma forma sem rosto. Deve ser escrito com a noção de que o espectador só tem
uma única chance de vê-Io. Talvez para programas como este devesse haver,
nos pontos mais difíceis, um dispositivo para um imediato replay, a critério do
espectador. Mas isso não existe. O escritor de livros, ao contrário, parte do prin-
cípio de que o leitor, vez por outra, voltará atrás para verificar o que o autor
está dizendo ou tentando dizer.
Ao preparar esta série, em primeiro lugar escrevi meticulosos esboços
de cada um dos assuntos a serem abordados. Estes se constituíram na matéria
básica da qual os scripts de televisão foram produzidos. A partir dos esboços
originais, modificados pelos roteiros, eu então escrevi o livro propriamente
dito. Em inúmeras ocasiões, o livro vai além das idéias ou dos eventos cobertos
pelos programas de TV. Felizmente não se precisa limitar o capítulo àquilo que
se consegue ler numa hora - por enquanto. Existe uma porção de fotos no
livro, mas servem apenas para ilustrar o tema. O texto foi escrito de modo a ser
completo por si só. Encerrei meus três anos de trabalho junto à BBC com um
respeito muito maior pela televisão. No entanto, não quero crer que a palavra
impressa seja obsoleta ou esteja em vias de sê-lo.

XVII
-

UM i

Os Profetas e a
Promessa do Capitalismo Clássico

Numa das derradeiras páginas de seu último e mais famoso livro, ]ohn
Maynard Keynes - por unanimidade considerado o mais influente economista
deste século - fez a observação de que' , .. , as idéias dos economistas e dos filó-
sofos políticos, tanto quando estão certos como quando estão errados, são
muito mais poderosas do que normalmente se imagina. Na verdade, o mundo
é governado quase que exclusivamente por elas. Homens práticos, que se
julgam imunes a quaisquer influências intelectuais, geralmente são escravos de
algum economista já falecido."l· Isto foi escrito em 1935. Pensando então na
oratória de Adolf Hitler, de ]oseph Goebbels e ]ulius Streicher, que na época
•. estavam na moda, e de Alfred Rosenberg e Houston Stewart Chamberlain, de
cujas obras aqueles oradores extraíram suas doutrinas racistas, aduziu Keynes:
"Loucos pelo poder, que ouvem vozes no ar, estão destilando seu delírio de
algum escrevinhador acadêmico de uns poucos anos atrás." 2 Então surgiu a sua
afirmação solene: " ... o poder de interesses escusos é muito exagerado quando
comparado à gradativa usurpação das idéias." 3
Keynes proporciona a oportunidade de se examinar as idéias que inter-
pretam o moderno capitalismo - ou o moderno socialismo - e que dirigem as
nossas ações por conseqüência. É de se presumir que se saiba pelo que se é
governado.
Isso é verdadeiro, embora Keynes tenha exagerado em sua argumen-
ração. Pois que, em assuntos econômicos, as decisões não são influenciadas
somente por idéias e interesses econômicos escusos. Ficam sujeitas também à
tirania das circunstâncias. Esta também é uma verdade cruel. Em nossas discus-
sões políticas diárias, achamos muito importante saber se um indivíduo é da
direita ou da esquerda, liberal ou conservador, um expoente da livre iniciativa
ou do socialismo. Não percebemos que, amiúde, as circunstâncias sobrevêm e
orçam todos a uma mesma atitude - ou todos que se preocupam em sobre-
- er. Se for preciso acabar com a poluição do ar a fim de que possamos respirar,
ou evitar o desemprego ou a inflação para provar nossa competência na admi-
nistração econômica, então não existe grande diferença entre o que conserva-

• As notas de rodapé encontram-se no final do livro (p. 357). 1


A Era da Incerteza

dores, liberais ou social-democratas serão forçados a fazer. As opções, infeliz


mente, são poucas.
Outrossim; seria melhor não fecharmos os nossos olhos demais diante
da idéia de interesses escusos. As pessoas têm uma tendência pertinaz de pro-
teger seus bens, de justificar o que desejam possuir. E por isso sua tendência é
de ver como certas as idéias que servem a esse propósito. As idéias podem ser
superiores aos interesses escusos. Mas com muita freqüência podem também
ser produto de interesses escuses.

A Origem

As idéias que interpretam a moderna vida econômica tomaram forma


durante um longo espaço de tempo, assim como as instituições econômicas que
elas procuram explicar. Mas existe um aspecto conveniente e aceito por todos a
partir do qual pode-se começar. Na segunda metade do século XVIII, a econo-
mia da Inglaterra e, em menor escala, a do resto da Europa Ocidental e em
seguida da Nova Inglaterra foi transformada por uma sucessão de invenções,
mecânicas. Tais novidades foram a máquina a vapor e toda uma série de inova-
ções na indústria de tecelagem; a lançadeira volante (que surgiu em primeiro
lugar) foi seguida da máquina de fiar, da máquina de fiar hidráulica, do
filatório e do tear mecânico. A vestimenta (como ainda hoje) constituía um
importante motivo de ostentação dos ricos e uma necessidade indispensável
para os pobres. A fiação e tecelagem manuais eram processos infinitamente
entediantes e caros; a simples compra de um casaco pelo cidadão comum era
algo comparável hoje em dia à aquisição de um automóvel ou até mesmo de
uma casa.(As novas máquinas tiraram a confecção de tecidos de dentro das resi-
dências e a levaram definitivamente para as tecelagens, tornando o produto
muito mais barato - um artigo de consumo de massa.
Com a revolução têxtil surgiu um instinto generalizado de mudança
técnica e uma vasta confiança e orgulho pelos resultados conseguidos. Foi algo
assim como a explosão de confiança na tecnologia e em suas maravilhas que se
seguiu à Segunda Guerra Mundial. Com a Revolução Industrial aconteceu uma
outra no pensamento econômico.
Essas idéias tinham uma premonição do mundo do porvir, mas foram
também - e isso é muito importante - profundamente influenciadas pelo
mundo que sempre existira. Esse era, acima de tudo, o mundo da agricultura.
E nem poderia ter sido de outra forma. Até então, a vida econômica, afora uma
pequena minoria de privilegiados, significara suprir a si e aos familiares com
três coisas apenas - comida, roupa e alojamento. E tudo isso provinha da
terra. O alimento, é claro. E da mesma forma, as peles de animais, a: lã e as
fibras vegetais. E as casas, naquela época, vinham da floresta próxima, da
pedreira ou da olaria. Até o advento da Revolução Industrial, e em muitos
países por muito tempo depois dela, toda a economia era uma economia
2 agrícola.
Os Profetas e a Promessa do Capitalismo Clássico

A Paisagem
Os economistas repetidas vezes têm procurado apresentar o sistema
econômico aos leigos como sendo uma máquina. Matérias-primas são intro-
duzidas na máquina; os operários fazem-na funcionar; o capitalista é o dono; o
Estado, os proprietários das terras, os capitalistas e os operários partilham o seu
produto, geralmente de uma forma flagrantemente desigual. Pode-se ter uma
noção mais real imaginando o mundo econômico como sendo uma paisagem.
Antes da Revolução Industrial, era um cenário eminentemente rural. Os traba-
lhadores eram principalmente empregados na agricultura. A renda e o poder,
duas coisas que sempre andaram de mãos dadas, eram indicados pelo tamanho
e magnificência das residências; as casas dos lavradores eram muitas e péssimas.
A abundância da mão-de-obra e a relativa falta de terras favoreciam o latifun-
diário. E assim também lhe eram favoráveis a tradição, a posição social, as leis e
a educação. A casa do dono das terras espelhava o seu status privilegiado.
Exercendo importante influência tanto sobre o proprietário das terras
como sobre o lavrador, estava o governo. O poder ia desde o governante até o
senhor das terras, e deste ao trabalhador rural. À medida em que esse poder se
transferia em sentido descendente, a renda extraída por esse processo fluía em
sentido ascendente. É uma norma que se deve ter em mente. A renda quase
sempre flui ao longo do mesmo eixo que o poder, só que em sentido contrário.
Nem o poder do Estado nem o dos senhores das terras era completo ou
absoluto. Na Inglaterra, ao tempo da Revolução Industrial, por obra da lei e
dos costumes, os colonos e até mesmo os lavradores haviam adquirido certos
direitos perante o poder de seus patrões. Instituíram-se regulamentos mediante
os quais a remuneração e expulsão das terras tinham que obedecer cenas
normas. Tanto que em Runnymede, já em !fi), um importante conclave
havia conjugado um compromisso histórico para com a liberdade do homem
com uma preocupação ainda mais imediata, qual seja, a dos direitos perti-
nentes à posse das terras. Em conseqüência disso, a posição dos latifundiários
ficou solidamente protegida contra as incursões da Coroa. A Inglaterra, entre-
tanto, era um caso avançado. Na França, os campônios que trabalhavam a terra
estavam bem menos protegidos contra seus senhorios; tanto os que não tinham
como os que possuíam terras ficavam muito mais vulneráveis às reivindicações
cada vez mais insistentes do Rei. Assim era na maior parte da Europa, e isso se
tornava ainda mais aparente à medida em que se avançasse para o Leste e, prin-
cipalmente, para a Ásia. Na Índia, um distante. domínio dos mongóis - a
cujas suntuosas cones, artística e arquiteturalmente mais primitivas, no século
XVII os europeus começaram a se dirigir -, toda a terra era considerada de
propriedade, à maneira das grandes fazendas ou plantações, do Grão-Mongol.

o Fundador
Seria temerário, e talvez até um tanto perigoso nos dias de hoje, propor
uma teoria étnica de economistas. Todas as raças produziram notáveis econo- . 3
A Era da Incerteza

mistas, com exceção dos irlandeses que indubitavelmente podem dedicar sua
devoção a artes mais elevadas. 4 Mas em relação à sua população, ninguém pode
contestar a eminência dos escoceses, como devem ser chamados com toda pro-
priedade. (Foi somente neste último século que o uísque conseguiu por inteiro
esse direito.) A única concorrência mais séria seria da parte dos judeus .
. O maior dos escoceses foi o primeiro economista, Adam Srnith. Os
economistas não têm grande fama de concordar uns com os outros - porém, l

numa coisa há unanimidade total. Se a economia teve um fundador, esse sem


dúvida alguma foi Smith. Ele nasceu, ou pelo menos foi batizado, na pequena
cidade portuária de Kirkcaldy, ao none de Firth of Forth, no ano de 1723 ..'O
pai do homem cujo nome ficaria para sempre ligado à Ijberdade de comércio
era um funcionário da alfândega.
Smith é lembrado com afeto, porém de forma curiosa, em sua terra
natal. Em 1973, eu passei vários e gloriosos dias na Escócia, para participar
das comemorações do 250? aniversário do nascimento de Srnith. Era junho;
quando não chove.' não existem campos no mundo. inteiro mais tranqüilos e
encantadores do que os que circundam Edimburgo e se estendem ao longo de
Firth of Forth. Mas, neste último século, Kirkcaldy tornou-se a capital mundial
do linóleo; essa indústria já decaiu bastante, mas mesmo assim continua exa-
lando um terrível cheiro. Sem dúvida o ar era bem melhor e mais saudável no
tempo de Smith. Como hóspedes, ficamos alojados nas dependências do clube
de golfe de St. Andrews, a umas vinte milhas de distância. Um belo dia, eu fui
às comemorações num táxi de Kirkcaldy, na companhia de ]ames Callaghan,
anteriormente Ministro do Tesouro, e na época Primeiro Ministro e meu
amigo particular. "Acredito", disse] irn dirigindo-se ao motorista no caminho
até a cidade, "que você se sinta orgulhoso de ser da mesma cidade em que
nasceu Adam Srnith. Quero crer que você o conheça bem ... " .
"Sim, senhor", respondeu o chofer, "foi quem fundou o Partido Tra-
balhista ... Todo mundo sabe disso. " ,
Smith estudou na boa escola local e depois foi para Balliol. Suas
impressões de Oxford foram desfavoráveis; mais tarde, ele sustentou que os
professores públicos de Oxford, como eram chamados os que percebiam salá-
rio, não trabalhavam. Afinal, eles recebiam da mesma forma; então por que se
incomodar? Os professores do ensino superior tornaram-se uma metáfora de
seu sistema econômico. "-
Os homens - e as mulheres - produzem mais quando recebem a
recompensa tanto de sua diligência ou inteligência como as penalidades da
indolência. Igualmente importante era que as pessoas fossem livres para pro-
curar o trabalho ou exercer a profissão que lhes recompensassem por seus
esforços. O que dessa forma servisse ao indivíduo, propiciando-lhe o maior
ganho, também servia à sociedade, dando a esta o máximo.
Depois de Oxford, Smith voltou à Escócia para ensinar literatura inglesa
em Edimburgo. Aí ele deu início à sua longa amizade com um compatriota
quase tão notável quanto ele próprio, o filósofo David Hume. Em 1751, ele
4 tornou-se catedtático da Universidade de Glasgow, primeiramente na cadeira
o Fundador: Adam Smith, quando professor.
-
A Era da Incerteza

de Lógica, posteriormente na de Filosofia Moral. Os professores escoceseseram


pagos em parte pelo número de alunos que possuíam; Smith achou essesistema
o melhor. Lembro-me que de certa feita pensei que o ponto de vista de Smith
poderia ser aplicado em Princeton, quando lecionava naquela universidade
antes da Segunda .Guerra Mundial. Os professores preguiçosos ou incompe-
tentes, ou simplesmente burros, e que eram desertados em bandos por seus
alunos, atribuíam o fato de seus grupos de alunos serem reduzidos à impor-
tância da matéria e ao rigor próprio do seu método de ensino. Afiançavam eles,
segundo esse argumento, que seus cursos deveriam ser tornados obrigatórios
para a colação de grau. Embora essa assertiva fosse plausível, quer me parecer
que teria sido mais apropriado que ficassem expostos às classesde aula vazias.
Srnith também suspeitava de todos que alegassem altos princípios em
conflito com interesses próprios inconfessáveis. Ele sentiu-se muito atraído
pelas colônias americanas, assunto esse em que pode ter sido bem esclarecido
por seu contemporâneo, Benjamin Franklin. Numa das luminosas passagens
j

de Riqueza das Nações, observa ele que "a recente resolução dos quacres na
Pensilvânia de libertar todos os escravos negros faz-nos pensar que esses não
podem ser em grande número". 6 Em 1763, o interesse pessoal sobrepujou seus
princípios morais e tomou conta de Smith. Foi-lhe oferecido o cargo de tutor do
jovem duque de Buccleuch - pertencente a uma família que na época (como
ainda agora) possuía grandes extensões de terra de discutível legitimidade em
seus limites. O cargo representava um bom e seguro salário e a garantia de uma
boa pensão no final. Smith renunciou à cátedra e levou seu tutelado ao conti-
nente europeu na Grande Viagem. À maneira dos jovens aristocratas, o moço
evidentemente sobreviveu a essa educação sem qualquer repercussão histôriea,
Mas, para Smith, a viagem foi realmente uma grande experiência.

Os Homens da Razão

Os mais notáveishomens visitadospor Smith moravam fora de Genebra,


quase que exatamente na fronteira entre França e Suíça. As ruínas arqueoló-
gicas que antes abrigavam os empreendimentos financeiros do sr. Bernard
Cornfeld ficam apenas algumas centenas de metros dali. O local na fronteira foi
escolhido em ambos os casospela mesma razão - a necessidade de movimen-
tação internacional antecipada à ação de autoridades hostis. O ocupante do
château era François-MarieArouet, conhecido por Voltaire. Um aspecto agra-
dável dessa visita deve ter sido a questão da língua. Smith estava tendo uma
experiência desastrosa com o seu francês. Mas Voltaire falava um excelente
inglês. Voltaire sempre considerou a Inglaterra, literalmente, como sendo uma
ilha de liberdade política e de pensamento, tendo vivido lá mais de dois anos
(1726-1729) após uma rápida estada na Bastilha. Seu château, que fica situado
numa pequena colina coberta de árvores, e com vastos jardins, foi descrito
como um lugar bem apropriado para um homem da Idade da Razão - talvez,
6 nesse particular, algo assim como o Monticello de ]efferson, na Virgínia. Isso
Homem da Razão: Voltaire recebe visitantes que ~ mostram particularmente nervosos.
A Era da Incerteza

deve em parte ser pura imaginação; mas o que é certo é que se trata da casa de
um homem de posses. É uma bela residência.
Voltaire era um homem - talvez mesmo o homem - da razão. A pala-
vra é do tipo que os estudiosos por vezes hesitam em definir, com receio de pare-
, cerem simplistas. Quando as coisas são simples, deve-se evitar complicá-Ias; há
outras maneiras de demonstrar sutileza de espírito. Tanto para Smith como
para Voltaire, a razão exigia que se chegasse a uma conclusão não recorrendo à
religião, a regulamentos, a preconceitos ou paixões; mas, sim, que se aplicasse a
mente total e amplamente a toda informação importante que estivesse ao
alcance. Assim, tomavam-se decisões. Sob esse aspecto, Adam Smith também
era, acima de tudo, um homem de razão. Ele tinha simplesmente um apetite
ilimitado de informação. Coligia informações, digeria-as e deixava que elas
orientassem seus pensamentos. Isso o levou a novos caminhos, tornando-o um
pioneiro.

o Sistema Agrícola
A França era, para Smith, uma imensa fonte de informações e ensino.
Em 1765, ele viu, como ainda hoje se pode ver, a terra fêrtil, os homens inteli-
gentes, pacientes e bem-humorados que a lavram e os variados produtos do
solo francês. Somente na França é que a qualidade dos produtos agrícolas -
frutas, verduras, queijo, vinho, logicamente -, de diferentes regiões e até
mesmo de diversos povoados, constitui um importante tema de interesse e
preocupação e também de discussão acadêmica. Ao tempo da odisséia em-
preendida por Smith, a fé agrícola da França estava no auge. Refletia-se nas
idéias de um fascinante grupo de filósofos da economia conhecidos na história
do pensamento econômico como os fisiocratas,
Os fisiocratas afirmavam que, toda a riqueza provinha da agricultura.
Somente aí, como dádiva da natureza, o esforço produtivo podia oferecer um
excedente sobre o custo. O comércio e a indústria não propiciavam esse lucro.
Eles eram necessários, porém estéreis. O excedente, ou saldo, produzido na
agricultura - seu' 'produit net' - mantinha todos os demais produtores. A
agricultura era, pois, a indústria básica, ou melhor, a única indústria de base.
Isso corrobora a assertiva de Keynes, de que nenhuma idéia econômica
jamais morre. Durante algum tempo, em minha juventude, trabalhei como
diretor de pesquisa da American Farm Bureau Federation, a grande e conserva-
dora organização agrícola, cooperativa de abastecimento e arma política, então
no ápice de sua influência e poder. Todo mês de dezembro os funcionários se
reuniam em convenção. Nos dias que se seguiam, a voz da fisiocracia - a afir-
mação de que a agricultura é a fonte de toda a riqueza - se fazia ouvir pelos
salões e corredores. Eu próprio escrevi vários dos discursos. E essa voz ainda não
silenciou. Sempre que os políticos fazem suas campanhas para arregimentar os
poucos votos rurais que restam, a mensagem de fisiocracia ainda pode ser
ouvida. "Meus amigos, a vossa atividade é fundamental: o lavrador é quem
8 alimenta todo o mundo!" '
édico, fisiocrata: Eis François Quesnay, médico de Luís XV, pioneiro do relacionamento
econômico quantitativo. Ao lado, o seu Tableau Économique, mostrando como a renda flui
através do sistema econômico. .

dos chalés da vila Le Hameau, de Maria Antonieta, em Versalhes. Na França, a agricultura


sempre foi considerada uma indústria e uma forma de arte. -
Era da Incerteza

Smith ficou conhecendo os fisiocratas em Paris e Versalhes. Quem mais


o impressionou e o que tinha maior originalidade era François Quesnay, o
médico pessoal, nada mais nada menos, de Luís XV. Quesnay era amigo de
Madame Pompadour, e ela era seu anjo protetor na corte.
Como a maioria das pessoas sem ocupação adequada, os forasteiros
de Versalhes estavam sempre ávidos de novidades. Os campos da França seriam
mais tarde glorificados pela vila-modelo de Maria Antonieta, Le Hameau, que
ainda agora pode ser visitada. A economia rural francesa foi exaltada com idên-
tica imaginação por Quesnay, em seu famoso Tableau Économique. O Tableau
foi uma tentativa de mostrar, em termos quantitativos, o relacionamento das
principais peças do sistema econômico nacional - mostrar quanto os fazen-
deiros e lavradores, os latifundiários e donos de terras, os comerciantes rece-
biam uns dos outros em mercadoria e qual a renda que davam, uns aos outros,
por essas transações.
Durante muito tempo depois de Quesnay, os estudiosos rejeitaram o
Tableau, considerando-o uma simples curiosidade aritmética; era apenas mais
uma novidade francesa, não para ser levada mais a sério do que a vila de Maria
Antonieta. Mas Adam Smith tinha algo a fazer dessa rejeição. Tinha grande
autoridade e achava que os conhecimentos de economia só eram bons quando
tinham indiscutível utilidade, o que não deixa de ser um pensamento aterrador
para os economistas de hoje. Para os cálculos de Quesnay ele não via qualquer
utilidade prática.
Todavia, Quesnay foi devidamente redimido. Em 1973, Wassily Leon-
tief, na ocasião professor de Harvard, recebeu o Prêmio Nobel por sua análise
interindustrial, mais conhecida por sistema de insumos-e-produção. Essa aná-
lise interindustrial mostra, num grande quadro, o que cada ramo industrial
(em realidade, cada categoria industrial) compra e vende a cada um dos outros.
Uma vez compilado, torna-se possível calcular o efeito de um aumento na pro-
dução de automóveis (ou de armas) sobre o faturamento de todas as demais
indústrias. Trata-se de uma idéia que descende diretamente, embora de forma
distante, do Dr. Quesnay.
Umoutro dos fisiocratas visitado por Smith foi Anne Robert Jacques
Turgot. Juntamente com seus colegas, Turgot achava que os gastos públicos e,
com eles, o 5nus dos impostos sobre o empresariado - ou então, como os fisio-
cratas o interpretavam, sobre a agricultura e o "produit net' - deveriam ser
mantidos num mínimo. Isso devia ser feito limitando-se o poder e a atuação do
Estado.
Em 1774, Turgot tornou-se Tesoureiro da França, sendo sua função a
de coibir toda e qualquer extravagância da corte francesa e, assim, reduzir o
encargo sobre o "produit net' .
Mas ele fracassou. Uma regra inexorável agiu contra ele. Pessoas que
gozam de privilégios preferem sempre arriscar-se à total destruição, em vez de
submeter-se a qualquer redução de suas vantagens materiais. A miopia intelec-
tual, também conhecida por estupidez, sem dúvida alguma é uma forte razão.
10 Mas acontece que os privilegiados acham que seus privilégios, não importando
Os Profetas e a Promessa do Capitalismo Clássico

quão ostensivos possam parecer aos outros, constituem direitos solenes, funda-
mentais, que Ihes cabem por obra de Deus. A sensibilidade dos pobres à injus-
tiça é insignificante, de somenos, quando comparada à dos ricos. E assim era no
Ancien Régime. Quando a reforma a partir de cima tornou-se impraticável, a
revolução a partir de baixo tornou-se inevitável.

A Riqueza das Nações

Muito antes de Turgot ser demitido, Smith , em sua volta à Escócia, já


havia aprendido as lições de sua viagem. Iria trabalhar em seu grande livro, e
seus amigos começaram a duvidar que jamais conseguiria terminá-lo. Julgou-se
então que ele sé tornaria mais um dentre o grande grupo de estudiosos, famosos
nas melhores universidades até hoje, que fazem de sua preparação de uma obra
(e da conversa sobre seu rigor e elevado mérito didático) uma desculpa para
nunca a publicarem.
Com o tempo, em 1776, para ser exato, ele chegou a publicâ-lo; a
consagração foi imediata, e a primeira edição de An lnquiry into the Nature
and Causes of the Wealth of Nations (Uma Investigação da Natureza e das
Causas da Riqueza das Nações) esgotou-se em seis meses, fato esse que seria
ainda mais interessante se soubéssemos qual a tiragem da edição. Diluído, e
por vezes até completamente perdido em meio ao vasto cabedal de informações
contido no livro, estava o grande pensamento, que pode muito bem ter-se
originado da observação dos professores de Oxford. A riqueza das nações resulta
do diligente empenho de cada um de seus cidadãos em seus próprios interesses
- ou seja, quando cada qual colhe sua recompensa ou sofre os reveses disso
resultantes. Ao defender seus próprios interesses, o indivíduo serve ao interesse
público. Em sua expressão máxima, Smith é guiado por uma mão invisível.
Melhor essa mão invisível do que a mão visível, inepta e rapinante do Estado.
Estas também são idéias que ficaram na oratória. Quando homens de
negócio se reúnem em qualquer ponto do mundo não-socialista, a exaltação do
egoísmo - agora geralmente modificado para um inspirado interesse próprio
- também ressoa.

Alfinetes e a Divisão da Mão-de-Obra

Juntamente com a dedicação aos próprios interesses, a riqueza de uma


nação também era favorecida pela divisão da mão-de-obra. A isso - ou seja, a
maior eficiência da especialização - Smith atribuía a máxima importância.
arte das vantagens da eficiência provinha da especialização por ramo de negó-
cio e parte da especialização ocupacional; outras vantagens resultavam do fato
os países se especializarem em determinados produtos ou linhas de comércio.
gumas das vantagens eram provenientes da especialização num processo
usrrial. "O maior progresso na produtividade da mão-de-obra, e a maior 11
...

A Era da Incerteza

parte da aptidão, destreza e poder de julgamento que a dirigem, ou aplicam,


em todos os sentidos, parecem ter sido os resultados da divisão do trabalho. "7
Eis como Smith descreveu a divisão da mão-de-obra em seu exemplo de
maior destaque; em seu empenho por colher informações, ele deve ter depa-
rado com a fabricação de alfinetes, e anotou o processo com sua costumeira
meticulosidade:

Um homem puxa o arame, outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto


o afia, um quinto o esmerilha na outra extremidade para a colocação da cabeça; para se
fabricar a cabeça, são necessárias duas ou três operações distintas; a colocação da cabeça
é muito interessante, .e o polimento final dos alfinetes também; até a sua colocação no
papel constitui, em si mesmo,-;ma atividade ... 8

Dez homens subdividindo o trabalho dessa forma, calculou Smith,


podiam fabricar 48.000 alfinetes por dia, à razão de 4.800 cada um. Se um
só homem realizasse todas as operações, talvez fabricasse um único alfinete, ou
possivelmente uns vinte. Mas ainda a maioria das pessoas pensa que a linha de
montagem, com seu conseqüente aumento de produtividade, foi inventada no
início deste século por Henry Ford.
Quanto maior fosse o mercado, maior poderia ser a linha de produção
- quer se tratasse de alfinetes ou outra coisa qualquer - e maior seria a opor-
tunidade de subdividir o trabalho. Daí surgiu a ação de Smith contra as tarifas
alfandegárias e outras restrições ao comércio, e a favor da maior liberdade possí-
vel, nacional e internacional, no intercâmbio de mercadorias, isto é, da criação
do mais amplo mercado possível.
A liberdade de comércio, por sua vez, aumentou a liberdade do indiví-
duo na defesa de seus próprios interesses. Seu escopo passou de nacional para
internacional. Da união da liberdade de comércio e da liberdade de iniciativa
surgiu uma produção ainda maior de tudo o que se queria - o resultado social
mais favorável. .

Conspirações e Multinacionais

o velho inimigo dessas liberdades era o Estado - o governo inter-


vencionista, mercantilista, que impunha suas tarifas, concedia monopólios,
onerava todos com seus impostos e, acima de tudo, procurava melhorar aquilo
que, por conta própria, era o melhor. Mas o Estado não constituía a única
ameaça, como quase todos que citam Smith nos dias de hoje imaginam que
fosse. Os homens de negócio, ou empresários, eram uma grande ameaça à sua
própria liberdade de ação; seu infalível instinto era o de impor restrições sobre
si mesmos, e dessa circunstância surgiu outra das mais argutas observações de
Adam Smith: "Pessoas do mesmo ramo raramente se reúnem, até mesmo para
se divertir, mas quando o fazem a conversa termina numa conspiração contra o
14 público, ou então num conluio para aumentar os preços". 9 .
Os Profetas e a Promessa do Capitalismo Clássico

defendeu uma outra importante tese, que também não é


zon::z:IO:rrereconhecida na moderna oratória comercial. Na verdade, será até
sa:~!1esa para muitos saber que ele se opunha fortemente às sociedades
ra também chamadas de empresas de capital aberto, constituído
acionistas dessas sociedades, disse ele: " ... [eles] raramente pro-
ecreoder dos negócios da empresa; e, quando o espírito faccioso não
e eles, nem se importam com isso, mas recebem com prazer os
m!2:l~-:OS- semestrais ou anuais, conforme os diretores acharem melhor dis-
E a respeito dos diretores:
--
... sendo os administradores do dinheiro de outrem em vez do seu próprio,
- se pode esperar que cuidem dele com a mesma dedicação com que os sócios e con-
5aC1aÓI]5 freqüentemente zelam pelo seu. Assim como os lacaios de um homem rico,
cosrumam dar atenção a pequenas coisas que de nada servem a seu patrão, e com
- facilidade se livram delas. Portanto, a negligência e o desperdício prevalecem,
-::.....: -w. ou menor grau, na administração dos negócios de uma empresa nessas con-
.•..•.•••.•
- Sem qualquer privilégio exclusivo ... [as sociedades anônimas] de um modo
~""" 'o' eu agido mal no comércio. Quando gozam de privilégio exclusivo, têm adminis-
::2I:o;::nal e restringido a ação da empresa. 11

pena que Adam Smith não possa fazer uma visita à próxima
Câmara de Comércio dos Estados Unidos, da Associação Nacional
as f..::c':S!9::t;-LS_ da primeira reunião conjunta das duas entidades ou de um con-
ederação Britânica das Indústrias. Ele ficaria espantado de ouvir
,;c:sa::~:resde grandes empresas - ou, ainda, dos grandes conglomerados
'--'--....:~LJ-lInais- proclamando suas virtudes de economistas em seu nome.
ez, ficariam estupefatos se Smith - dentre todos os profetas -
e suas empresas não deveriam existir.

rnith morreu em 1790, tendo vivido bem seus últimos anos,


Comissário da Alfândega em Edimburgo. Era uma sinecura que ele
envolvendo tarifas alfandegárias que ele não aprovava, mas,
homem demasiadamente prático para recusá-Ia. Está enterrado
~--'F"'Q cemitério próximo à Royal Mile , em Edimburgo. Sua casa fica
c::::n.::c!!2S_ Uns poucos estudiosos têm-lhe feito visita, mas não muitos. Os
o geral negligenciam seus heróis. David Hume tem um monu-
mais aparatoso a uma ou duàs milhas dali, lado a lado de um
_1::'::' ~J.\;~bam Lincoln que homenageia os soldados de origem escocesa que
_:::;a::&:::íl][]Ju:aaescravatura na Guerra Civil americana.
v,,~u,o Smith morreu, as mudanças que ele havia profetizado já esta-
:n;:~ndo visíveis na Inglaterra e Escócia. Tanto no campo como nas
olução Industrial não foi uma coisa súbita; violenta, mas sim o
m::r; :~~~~-io que se pode realmente ver e sentir. 15
A Era da Incerteza

Gente de todas as panes era atraída dos campos, dos vilarejos, para as
cidades e para empregos nas usinas e fábricas. Na Escócia, essas pessoas eram
até expulsas inopinadamente do campo, em conseqüência da crescente
demanda da principal matéria-prima da indústria, que era a lã.
O mais espetacular exemplo desse processo de expulsão deu-se em
Sutherland. Ê o mais setentrional dos condados escoceses, uma vasta planície
de colinas ondulantes; horizontal e verticalmente, essa província constitui pane
apreciável das terras escocesas. No verão, ela é verde, solitária e encantadora,
com a cambiante luminosidade do setentrião distante. Quando visitei aquelas
paragens no verão de 1975, lembrei-me de um comentário feito pelo falecido
Richard Crossman: "Nenhum americano realmente imagina quanto campo
aberto existe na Grã-Bretanha". No início do século passado, cerca de 2/3
dessas terras pertenciam à Condessa de Sutherland e seu marido, o Marquês de
Stafford.
De 1811 a 1820, segundo estimativas genéricas, cerca de 15.000 habi-
tantes da região (chamados Highlanders) foram expulsos dessa propriedade,
para dar lugar à criação de ovelhas. O Naver é um riacho escuro que corre em
direção ao norte, -atravessando o condado numa distância de trinta a quarenta
milhas, até atingir o Pentland Firth, um estuário situado a umas cinqüenta
milhas de Scapa Flow. Seu estreito e descarnado vale era densamente habitado
naquela época. Quase toda essa gente era desprovida de posses.
Em Strathnaver (como em outros lugares), em maio de 1814, a opera-
ção de limpeza assumiu aspectos definitivos de solução final. Em março
daquele ano, os ocupantes haviam recebido uma notificação para se retirar no
prazo de dois meses. Mas continuavam por ali, pois não tinham para onde ir.
Assim, os agentes do latifundiário resolveram entrar à força, com fogo e cães.
Tiveram o cuidado especial de queimar o madeiramento do teto das casas, pois
isso significava; numa região carente de árvores, que as vivendas não podiam
ser recónstruídas e; por isso, os moradores não mais poderiam voltar a elas.
Algumas das casas, segundo se soube mais tarde, foram incendiadas, sem que
fosse tomada a precaução de remover os idosos e os inválidos.
Os rebanhos de ovelhas que tomaram o lugar doscampônios davam '
um lucro muito maior aos proprietários das terras - segundo cálculos feitos,
umas três vezes mais. E ainda ofereciam outra vantagem ao dono das terras. As
ovelhas Cheviot, pastando pelas colinas, enfeitavam muito mais a paisagem do
que os Highlanders. Pode ser que sim.
Embora fossem cruéis, os Despejos exemplificaram de maneira brilhante
um problema do desenvolvimento econômico que permanece sem solução até
-os nossos dias. Ê possível haver uma desproporção tão grande entre gente e
terra - muita gente, pouca terra utilizável - que o progresso seja inteiramente
impossível. Mesmo o melhor resultado, dado o número de pessoas, ainda assim
é mau. Existe um certo equilíbrio na pobreza. ASsim é na Índia e em Bangladesh,
na Indonésia e em outras áreas densamente povoadas. Não há mais terras para
ninguém. A técnica das Highlands para reduzir a população não mais é reco-
18 mendável. O controle da natalidade serve perfeitamente para belos discursos,
A Era da Incerteza

mas só pouco a pouco, se tanto, produz resultados práticos. Este é um pro-


blema do qual voltarei a falar mais adiante.

Cidade Têxtil Modelo

Por volta de 1815 ou 1820, havia fábricas, especialmente tecelagens,


nas quais, em princípio, os moradores despejados de suas terras podiam arran-
jar emprego. Acontece que os homens das Highlands não se adaptavam com
facilidade ao ritmo das máquinas. Seu instinto mais fone era o de emigrar, de
preferência para oCanadá. A Nova Escócia constituiu-se, como indica o próprio
nome, uma nova Escócia. As mulheres e jovens demonstraram ser um elemento
industrial bem mais maleável e melhor, embora fosse recomendável iniciar as
crianças nessa tarefa logo cedo.
New Lanark, acerca de meia hora a sudeste de Glasgow, num profundo
vale do rio Clyde - as águas de uma bela cascata moviam as tecelagens -, foi o
cenário da mais famosa experiência no uso de crianças na indústria. Até hoje, o
nome, New Lanark, está ligado na memória de muita gente, talvez numa
forma um tanto vaga, a essa notável experiência humanitária. As tecelagens, as
casas e os dormitórios dos operários, de construção ereta e sóbria, continuam
inalterados.
A experiência de New Lanark foi iniciada nos últimos anos do século
XVIII por David Dale, destacado capitalista e filantropo escocês cuja efígie
atualmente ilustra as notas do Banco da Escócia. A piedosa intenção de Dale foi
a de dirigir-se aos orfanatos de Glasgow e Edimburgo a fim de dali retirar os
jovens desamparados e dar-lhes escola e um ofício útil. As cidades, mais do que
por simples acaso, ficariam livres das despesas de sua manutenção. New Lanark
transformou-se na maior tecelagem de toda a Escócia. Chegou a ter mais de
dois mil operários de todas as idades trabalhando na indústria local. O que
antes fora uma cidade tem agora oitenta habitantes.
O ambiente era da mais elevada condição moral. Cada um dos órfãos
recebia hora e meia de rigorosa educação escolar todos os dias. Contudo, sabia-

20 DavidDale.
Formando o caráter em New Lanark. A Instituição de Owen para Formação do Caráter em ação,
após 10!h horas de trabalho na tecelagem.
A. Era da Incerteza

-se que as tecelagens também tinham que dar lucro; o que agora é considerado
como ética trabalhista naquele tempo tinha de ser protegido e incentivado. Por
isso, as aulas eram dadas à noite, após treze horas de um bom e honrado traba-
lho diário nas fábricas.
Mas que ninguém se espante. Pelas normas da época, New Lanark era
realmente um lugar de compaixão e cultura, se não exatamente de descanso.
Isso se tornou ainda mais patente em 1799, quando o genro de Dale, Robert
Owen, assumiu a direção. Owen era um filósofo, um socialista utópico, um
cético religioso e um espiritualisra. Reformadores passaram a vir de toda a
Europa para conhecer New Lanark e ver com os próprios olhos a grande prova
de que a indústria podia ter seu lado humanitário. Sob a administração de
Owen, foi criada a Instituição para Formação do Caráter, que promovia pales-
tras para adultos, festas, recitais de canto e outras recreações para os órfãos, uma
escola maternal para crianças muito novas. Os prostíbulos foram fechados e a
venda de bebidas alcoólicas proibida. Com o passar do tempo, o trabalho diário
das crianças foi reduzido para dez horas e meia, sendo que menores de 12 anos
não eram empregadas na indústria. Por aí se percebe como as coisas eram nos
outros lugares, pois isto era considerado suave e condescendente. Devido à sua
compaixão, Owen volta e meia tinha problemas com seus sócios. Estes prefe-
riam muito mais um administrador inflexível, realista, que fizesse esses peque-
nos órfãos realmente trabalharem.

Indiana: Um Complemento

New Lanark não satisfez inteiramente a visão utópica de Owen. Por


isso, surgiu uma complementação: foi New Harmony, em Indiana, um paraíso
cooperativo às margens do rio Wabash. Nesse local, Owen procurou recomeçar
tudo de novo; a nova comunidade não teria fins lucrativos, nenhuma contami-
nação capitalista. Seu lema não seria o interesse próprio pregado por Srnith ,
mas sim o ideal muito mais elevado de prestar serviços aos outros.
Os idealistas realmente apareceram lá por New Harrnony, embora a
população local jamais fosse superior a umas poucas centenas de pessoas. E
assim se fez uma histórica reunião de desajustados, misantropos, aproveita-
dores e "picaretas". Uma vez instalados ali, eles se dedicavam não a servir os
demais, mas sim, quase que exclusivamente, a discutir uns com os outros. E,
enquanto o bate-boca continuava, segundo se sabe, os porcos invadiram os
jardins. A harmonia acabou, e New Harmony fracassou redondamente. A livre
iniciativa, a busca do interesse próprio, foi dessa forma salva em Indiana.
Tenho notado, lamentavelmente, que os idealistas, inclusive os reformadores
liberais dos nossos dias, muitas vezes são bem menos atacados por seus inimigos
do que por sua mania de discussão. O sentimento adequado, não raro, é o de
que tudo o mais deve ser sacrificado em favor de uma boa discussão acerca dos
bons princípios ou uma luta de morte sobre quem deve assumir determinada
22 responsabilidade.
Os Profetas e a Promessa do Capitalismo Clássico

do e Malthus

Se New Harmony não estava de acordo com os preceitos de Smith, a


.retanha estava. Alguns meses após a morte de Smith, sua condição de
.a foi proclamada oficialmente. Num discurso sobre o orçamento nacio-
itt disse a respeito dele que seus' 'profundos conhecimentos da pesquisa
;ca propiciarão, creio eu, a melhor solução para toda e qualquer questão
. à história do comércio e do sistema de economia política". 12 Um econo-
não poderia querer mais do que isso. Nenhum deles desde então, no
o não-socialista, mereceu um endosso tão corajoso.
Adam Smith nos oferece muito mais do que conselhos e orientação
questões do âmbito público. Ele nos apresentou o que hoje em dia seria
ido de modelo econômico - uma visão de como o sistema econômico
ente funciona. A. concorrência fez com que os preços fossem estabelecidos
)U menos de acordo com os custos de produção: O custo de produção de
tigo, por sua vez, era o custo de reproduzir, treinar e manter a mão-de-
que entrava nessa operação.
Aí estavam os germes de duas idéias que iriam se desenvolver e moldar
samento humano - e que ainda o fazem. Uma delas era a teoria do valor
ho. A outra, a de que a humanidade sempre seria vítima de sua própria
didade - a jamais reprimida explosão populacional.
- Nos vinte e cinco anos que se seguiram à morte de Smith, ambas essas
foram defendidas por dois de seus amigos íntimos, em Londres, David
[o e Thomas Malthus. Ricardo, na verdade, é o único sério rival de Smith
ao título de fundador da teoria econômica; com ele começaram a surgir
hdes rivais étnicos do Escocês. Ricardo era judeu. Era um corretor da bolsa
ores, membro do Parlamento, dono de soberba inteligência e de péssima
. Malthus, ministro não praticante da Igreja anglicana, era inglês.
Malthus, durante a maior parte da vida, lecionou em Haileybury - a
de quadros, como diríamos agora, onde os funcionários da Companhia
dias Orientais eram treinados. No século passado, a Companhia das
Orientais foi a fonte de renda dos maiores economistas ingleses - além
thus, James Mill e seu prodigioso e brilhante filho, John Stuart Mill.
deles, vale notar, jamais esteve no subcontinente (Índia), mas isso
considerado nenhuma desvantagem. James Mill escreveu uma história
apreciada dos ingleses na Índia. Ela encerra uma devastadora crítica à
hindu, que Mill detestava profundamente, que ele não conseguia ler
~ e que não havia sido traduzida para o inglês. Os Mill, nem é preciso
escoceses.
~falthus deu-nos o Princípio da População. Afirmava esse princípio
"a paixão entre os sexos" (coisa extremamente prejudicial que ele
es achou que poderia ficar sujeita à "restrição moral", e contra a qual
que os pregadores admoestassem seus fiéis por ocasião do casamento), a
- cresceria sempre numa proporção geométrica - isto é, 2, 4, 8, 16 e
:r diante. Enquanto isso, na melhor das hipóteses, a alimentação 23
A Era da Incerteza

aumentaria apenas aritmeticamente - ou seja, 2, 3, 4, ) ... Daí veio o resul-


tado inevitável: em virtude da provável ausência de restrições morais, a popu-
lação ficaria sujeita única e exclusivamente aos repetidos e medonhos impedi-
mentos impostos pela fome ou pela guerra ou por uma catástrofe natural.
Ponderando sobre as recompensas oferecidas pela liberdade de comércio, a
conseqüente defesa dos interesses pessoais e a divisão do trabalho, Adam Smith
tinha uma concepção geralmente otimista quanto às perspectivas da
humanidade. Não Malthus. Também David Ricardo jamais foi considerado um
otimista. Foi graças a Malthus e Ricardo que a economia se transformou numa
ciência sombria.

o Ponto de Vista Ricardiano

Da mesma forma que seu amigo, David Ricardo previa um contínuo


aumento da população, e a população de Malthus tornou-se o operariado de
Ricardo. Entre os operários haveria tamanha concorrência na procura de
emprego ou trabalho, de um lado, e de comida, de outro lado, que tudo ficaria
reduzido a um simples processo de subsistência. Era o destino da humani-
dade.
Numa "sociedade em evolução", tal fato poderia ser adiado e, como
um momento de reflexão sugerirá, na Inglaterra do século XIX, essa era uma
restrição importante. Mas as restrições de Ricardo nunca alcançaram as suas
generalizações majestosas. No mundo ricardiano , os trabalhadores receberiam
o mínimo necessário à subsistência, nada mais que isso. Era a chamada lei de
ferro e fogo do salário. Ela nos leva, entre outras coisas, à conclusão de que a
compaixão pelo homem que trabalha não só é descabida como também preju-
dicial. Pode criar esperanças e renda a curto prazo, mas faz aumentar o ritmo
de aumento da população, através do que ambas aquelas condições são anula-
das. E qualquer esforço por parte do governo ou de sindicatos trabalhistas no
sentido de elevar os vencimentos e salvar o povo da miséria entraria, da mesma
forma, em conflito com a lei econômica, sendo frustrado igualmente pelo
aumento das cifras daí resultantes.
Cada produto agrícola ou fabril exigia um certo montante da subnu-
trida mão-de-obra preconizada por Ricardo. A quantidade de mão-de-obra
exigi da para cada caso estabelecia o valor relativo das coisas - o que nos traz de
novo à teoria do valor trabalho. Isso, por sua vez, apoiava o claramente fecundo
pensamento de que, se a mão-de-obra estabelecia o valor de tudo, a produção
em si pertencia a essa mão-de-obra. Exposta de uma forma um pouco diversa
por Marx meio século mais adiante, essa proposição abalaria o mundo.
O mundo de Ricardo era ainda bem rural. Nas primeiras décadas do
século XIX, a Revolução Industrial encontrava-se no embalo total da mudança.
Todavia, segundo o sistema proposto por Ricardo, ~ figura principal continuava
sendo o dono das terras. A mesma pressão exercida pelas pessoas sobre aterra,
24 que reduzia os salários, tinha o efeito de aumentar os aluguéis. Conseqüente-
A economia transforma-se na Ciência Sombria: David Ricardo, M.P_
A Era da Incerteza

mente, quanto mais numerosa fosse a gente do campo, mais ricos ficavam os
proprietários ou locadores das terras. Estes engordavam, enquanto aqueles
morriam à míngua. E uma vez mais, nada podia ser feito para melhorar a
situação; devolver parte do aluguel aos lavradores só faria aumentar o número
deles.
No mundo ricardiano, o Estado tinha cada vez menos importância e
poder. Era a continuidade da lição de Adam Smith de que assim deveria ser. A
intervenção governamental não iria, conforme ressaltado, ajudar os pobres.
Mas limitaria a liberdade econômica e a defesa dos interesses próprios e, com
isso, iria piorar ainda mais as coisas. David Ricardo não era, por seus próprios
padrões, um homem cruel. Num mundo naturalmente cruel, ele simplesmente
se batia contra a luta fútil e' .inôcua ao inevitável e pela aceitação do menos
ruim. Ele forneceu aos ricos uma fórmula plenamente satisfatória de se confor-
marem com a infelicidade dos pobres.
Havia uma divergência de opinião de grande importância futura entre
os dois amigos quanto ao que aconteceria ao belo acúmulo de renda dos senho-
rios. Ricardo afirmava que essa renda ou seria gasta ou então guardada e inves-
tida na melhoria das terras, na construção de edifícios, na expansão industrial,
e nesse caso também seria gasta. Ele acatou a sugestão feita anteriormente por
Jean Baptiste Say, o grande intérprete francês de Adam Smith. Segundo a Lei
de Say, a produção sempre provia a renda para aquisição do que era produzido.
Tudo o que era poupado também era gasto, só que de maneira diferente, de
modo que jamais haveria falta de poder aquisitivo.
Sobre isso, Malthus tinha suas dúvidas. Talvez a renda não pudesse ser
gasta; talvez, em conseqüência disso, pudesse ocorrer uma redução no poder
aquisitivo; talvez, ainda em conseqüência disso, a economia, vez por outra,
pudesse sofrer abalos e entrar em colapso. Haveria crises econômicas resultantes
da falta de poder aquisitivo, como parte da ordem natural das coisas.
Tudo isso era bastante imaginoso, mas não foi aceito. O ponto de vista
de Ricardo, como diria Keynes mais tarde, conquistou a Grã-Bretanha como a
Santa Inquisição conquistou a Espanha. Nos cem anos que se seguiram, até a
década da Grande Depressão, Say e Ricardo foram absolutos. Todos aqueles
que afirmassem que poderia haver falta de poder aquisitivo não entendiam
nada de economia; na verdade, eram considerados malucos. Então, com o
aparecimento de John Maynard Keynes, a tese de Malthus de uma escassez ou
falta de poder aquisitivo tornou-se uma doutrina plenamente aceita. A tarefa
mais urgente do governo era então a de compensar essa falta, de contrabalançar
a poupança exagerada. A economia não é uma ciência exata.

Inglaterra e Irlanda

Uma das formas 'de se medir ou avaliar uma idéia, embora os econo-
mistas nem sempre tenham pensado nisso, é saber se ela funciona ou não. No
26 mesmo ano em que A Riqueza das Nações foi publicado, ou seja, em 1776, a
o reverendo Thomas Robert Malthus.
A Era da Incerteza

imperial Grã-Bretanha perdia um território mais promissor do que todas as suas


demais terras juntas. Para a Grã-Bretanha, a tese de Smith - e não estou
exagerando - foi mais do que uma compensação pela perda das colônias
americanas. A produção e o comércio, agora muito menos prejudicados do que
os de outras nações, expandiam-se maravilhosamente. Isso propiciava à nação
britânica toda a riqueza que Adam Smith lhe havia prometido.
Nas guerras com Napoleão, Pitt usou essa riqueza como compassivo
sucedâneo do potencial humano britânico. Os aliados continentais da Ingla-
terra tinham abundância de homens. A Grã-Bretanha fornecia os subsídios que
garantiam e até incentivavam o valor desses homens. Depois de Waterloo, o
comércio e a indústria ressurgiram ai~da mais fortes. Ricardo, dessa forma,
também se consagrou. À medida em que a prosperidade aumentava naqueles
anos, os salários diminuíam, conforme o sistema ricardiano havia prenunciado.
Os economistas da época eram homens de grande prestígio - talvez mais do
que agora - e com toda razão.
Suas idéias, especialmente as de Malthus e Ricardo, foram postas a mais
uma prova durante a primeira metade do século passado. Isso se deu na Irlanda,
que naquela altura era parte integrante do reino, mas ainda constituía a outra .
ilha de John Buli. O teste irlandês, de certa forma, também constituiu uma
triunfante consagração.
Ninguém duvidava da tendência da população irlandesa; ela crescia
geometricamente. Dentro de apenas sessenta anos, ou seja, de 1780 a 1840,
primeiro duplicou e depois quase dobrou novamente. Por volta de 1840, havia
8 milhões de almas em toda a ilha, comparados aos 4,6 milhões de hoje.
Nas décadas anteriores, a produção de alimentos na Irlanda também
aumentara. Tinha havido uma revolução verde com base na rápida expansão da
safra de batatas. Não há nada, quando a safra é boa, que alimente tanta gente
tão bem. Mas havia um perigo sorrateiro, oculto, subitamente notado, que
tomou essa produção de alimentos muito mais próxima da aritmética.
Os senhorios ricardianos também se faziam muito presentes na Irlanda
- ou mais freqüentemente ausentes na Inglaterra, que era socialmente
falando um lugar mais adequado e de um modo geral também mais seguro
para os donos da terra residirem. Enquanto a população irlandesa crescia, assim
também intensificava-se a concorrência pelas terras e aumentava a renda
extraída pelos latifundiários ausentes. Cereais eram semeados para pagar o
aluguel; batatas eram cultivadas para alimentar gente. Até mesmo quando o
povo passava fome, os cereais eram vendidos e os aluguéis cobrados. Era conce-
bível que a inanição pudesse ser vencida. O despejo por falta de pagamento
do aluguel significava que mais nada haveria para continuar vivendo.
O auge malthusiano não é, entretanto, algo gradativo. Conforme a
Índia e Bangladesh demonstraram há pouco, ele surge subitamente, assim que
algo sai errado - o que naqueles dois países foram as chuvas torrenciais. Na
Irlanda de 1845-1847, aphytophthora infestans, favorecida pelo clima quente
e úmido, primeiro arrasou a safra da batata e depois eliminou-a por completo.
28 Muitos males têm sido atribuídos aessa praga, como na Índia muito se atribui à
Os Profetas e a Promessa do Capitalismo Clássico

seca ou às enchentes. Muito mais na Irlanda deveria ser atribuído à corrida


infeliz da população, em anos passados, para conseguir mais alimentos e à
causa perdida dos arrendatários junto a seus senhorios.
Não apenas as circunstâncias eram as previstas por Ricardoe Malthus; a
reação de Westminster à calamidade que atingiu os irlandeses foi exatamente
como Ricardo teria recomendado. Como agora se diria, foi de acordo com o'
figurino. As Leis do Trigo foram denunciadas para permitir a livre importação
desse cereal. Embora excelente em princípio, essa medida não ajudou aqueles
que não tinham dinheiro para comprar o trigo, condição essa que atingia a
totalidade da população faminta. .
O trigo era importado não com a finalidade de alimentar os famintos,
mas sim para manter baixos os preços do produto. O preço baixo também não
ajudava em nada quem não tivesse dinheiro. Em 1845, foi lançado um plano
de obras públicas. Isso contrastava com o princípio de que os pobres jamais
deveriam ser auxiliados, e no ano seguinte, quando mais se fez necessário, o
plano foi abandonado. Não havia, .segundo se disse, nenhuma maneira de
distinguir entre os que queriam trabalhar em conseqüência do fracasso da safra
de trigo e aqueles que, como acontecia na Irlanda daquele tempo, precisavam
de um emprego pura e simplesmente.
O defensor das tabelas ricardianas foi Charles Edward Trevelyan, secre-
tário adjunto, o que naquele tempo significava chefe titular do Tesouro Nacio-
nal. O comércio, prevenia ele, seria "paralisado" se o governo, ao distribuir ali-
mentos aos pobres, interferisse no legítimo lucro das empresas privadas. O Chan-
celer daquele ministério, Charles Wood, assegurou à Câmara dos Comuns naquela
ocasião, quando a fome e a miséria grassavam, que todo esforço seria feito no
sentido de deixar o comércio cerealista "com o máximo de liberdade possível".
Em poucas coisas na vida ocorre um hiato tão grande como entre uma
declaração lacônica e antissêptica sobre a política do governo por parte de um
porta-voz bem falante, refestelado em seu tranqüilo gabinete de trabalho, e o
que acontece com o povo quando é posta em prática. Nós mesmos já vimos isso
acontecer inúmeras vezes nos dias de hoje. Num departamento de Washington,
durante a guerra do Vietnã, essa era uma reação natural de proteção. Na Ásia,
era a morte súbita e aterradora vinda de aviões que nem sequer se podiam ver.
Os princípios de Trevelyan foram enunciados nas antigas repartições do
Tesouro, em Whitehall. Lá eles eram impecáveis; na Irlanda, significavam
miséria e morte. À maneira dos homens que trabalham em tranqüilos gabi-
netes, Trevelyan mostrava-se satisfeito. As leis da economia clássica tinham
indubitavelmente se justificado. Numa carta muito representativa, em 1846,
ele disse que o problema da Irlanda .•estando totalmente fora do alcance dos
homens, a solução foi aplicada pelo golpe direto da Providência onissapiente,
de uma forma tão inesperada e inimaginável como provavelmente eficaz" .13
Nota-se uma outra tendência nisso tudo. Ou seja, para as conseqüên-
cias de ação honrada, se forem desagradáveis, que recebam a aprovação divina.
A mão invisível de Smith tornara-se a própria mão de Deus - a mão de um
Deus implacável, impiedoso, que não teria simpatizado muito com os irlandeses. 29
A Era da Incerteza

A Fuga

Mas'houve uma porta de saída para escapar da Grande Fome, a mesma


dos Despejos dos Highlanders: e essa porta foi o navio de emigrantes para a
América. Não era bem uma fuga da morte; essa também estava entre os passa-
geiros dos navios. Se você descer umas trinta ou quarenta milhas do rio Saint
Lawrence, a partir de Quebec, chegará a Grosse Isle, uma faixa de terra baixa,
meio arborizada, com uma porção de edificações em ruínas, ou bastante afeta-
das pelo tempo. Atualmente há ali um centro de pesquisas de doenças conta-
giosas de animais, pertencente ao Depanamento de Agricultura do Canadá.·
Nos anos da fome, era ali que os navios com passageiros acometidos de tifo
vindos da Irlanda tinham de ancorar para desembarcar os monos e mori-
bundos. Um mastro alto serve de lembrança dos 5294 que ali morreram após
sua chegada à ilha. Mas o tifo não foi a única fatalidade; o monumento
domina uma enseada e praia, agora totalmente deserta e sem muita beleza
natural, que se destaca apenas pelo nome: Cholera Bay.
Mas também havia um lado animador. Talvez no Novo Mundo os prin-
cípios básicos aniculados por Adam Smith e David Ricardo ainda fossem
válidos. Maso cenário era bem diferente. E, assim também, os resultados.
Aqui a terra era abundante e livre. Sendo assim, não conferia nenhum
poder nem monopólio de renda ao senhorio. Ninguém poderia forçar um
colono ou lavrador se, no dia seguinte, este podia mostrar a língua ao dono das
terras ou empregador e partir dali para instalar-se em sua própria fazenda. Na
América, a população podia multiplicar-se como disse Malthus, e foi o que
aconteceu. Mas a necessidade de trabalhadores aumentava ainda mais. E, por
isso, a remuneração não piorou; pelo contrário, melhorou.
Nas Highlands sem árvores, as famílias dos retirantes haviam visto a
preciosa madeira de suas casas sendo queimada quando lhes foi dito para
saírem dali. Isso significava que não podiam mais reconstruir seus lares. No
Novo Mundo, uns poucos meses mais tarde, estavam abrindo clareiras na
floresta e lavrando sua própria terra. As árvores agora eram inimigas. Na
América, os povoadores normalmente procuravam os planaltos, onde a mata
era mais rala. Só depois é que desciam para os vales, para enfrentar a floresta
mais densa e aproveitar o solo mais rico. Ricardo previra a pressão da popula-
ção, forçando o povoamento de terras cada vez menos férteis. Henry Charles
Carey, um economista americano excepcionalmente inteligente e volúvel da
geração seguinte, percebeu essa nova seqüência e teve a ousadia de desafiar o
mestre. Com o aumento da população e o progresso generalizado das artes,
terras cada vez melhores eram aproveitadas. Ele vira isso com seus próprios
olhos. Lamentava que Ricardo não o tivessevisto.
Quer a terra fosse melhor ou pior, a verdade é que alguns imigrantes
logo estavam produzindo mais alimentos num único ano do que seus pais
jamais tinham visto em toda sua vida. Assim, trabalhadores irlandeses, talvez
os mais famosos refugiados da Grande Fome, começaram a construir as grandes
30 ferrovias que iriam carrear toda essa abundância de alimentos para o mundo. A
A Era da Incerteza

pressão malthusiana da população sobre o fornecimento de comida pôs em


marcha a grande migração. E assim os migrantes resolveram o problema de
alimentar o mundo, pelo menos por um século inteiro.
Smith, Ricardo e Malthus talvez precisassem ser revistos e reinterpre-
tados no Novo Mundo. Mas não foram, especialmente Smith, que foi deixado
para trás. O interesse próprio e a liberdade de iniciativa eram crenças seculares
ou mundanas no Velho Mundo. No Novo Mundo, elas surgiram como religião.
Cinqüenta anos após a Grande Fome, essa doutrina já havia enchido todo um
continente. Em 1893, os filhos daqueles que haviam suportado a fome e alguns
dos que se lembravam do flagelo reuniram-se em Chicago para a grande feira
rural --.:.um. festival comemorativo. Do pessimismo inerente às idéias de
Ricardo e Malthus seria difícil encontrar qualquer vestígio. Mas da virtude das
idéias da livre iniciativa que arquitetou esse verdadeiro milagre também não
havia muita dúvida.

Smith Atualmente

No século atual, o mundo de Adam Smith tem sofrido tremendos


reveses. Em parte devido a novas idéias, conforme sugeriu Keynes - desde a
revolucionária investida de Marx ao ataque mais gradativo daqueles que vêem
no Estado a maior esperança de minorar as injustiças e contrabalançar as inade-
quações do moderno capitalismo. Mas os maiores danos foram infligidos pelas
próprias circunstâncias - as forças que Keynes deixou de ressaltar.
Já vimos que a empresa era profundamente hostil ao mundo de Smith.
E da mesma forma o eram os sindicatos - ponto esse que Smith muitas vezes
menciona quando pondera sobre quão maléficas são as entidades que con-
gregam operários em comparação às dos comerciantes. A guerra e o moderno
Estado armado e tecnologicamente competitivo também modificaram o
mundo de Smith, pois os governos de um Estado assim não podem ser peque-
nos nem pouco dispendiosos.
O rígido controle da natalidade e da taxa de natalidade nos países
industrializados constitui outra mudança - uma que atinge o âmago do sis-
tema preconizado por Smith, bem como o de Ricardo e Malthus. E se o
aumento de renda não traz consigo uma desgastante avalanche populacional,
ela será de qualquer forma permanente; a compaixão não mais é contrapro-
ducente.
Porém, conquanto tais mudanças sejam grandes, é difícil acreditar que
Adam Smith se importaria muito com elas. Isso porque a sua genialidade
estava menos nas suas idéias do que no seu método. Como vimos, na qualidade
de homem da razão, ele se informava das circunstâncias e formava seus próprios
conceitos de acordo com as mesmas. A necessidade de ajustar-se a novas cir-
cunstâncias e novas informações não o surpreenderia nem o incomodaria. Aliás,
ele jamais esperou que suas idéias se aplicassem a circunstâncias para as quais
32 não foram formuladas.
__ -.••",.'0 Mundo, a economia foi revista por causa das árvores. Ricardo afirmava que o cultivo
•• s.roIvia-se a partir da melhor terra. No Novo Mundo, geralmente começava com a pior -
8eIhoc terra, mais árvores tinham que ser cortadas para se chegar até ela.
DOIS
Os Costumes e a Moral
do Alto Capitalismo

As idéias do capitalismo do século XIX não estimulavam o conceito de


uma comunidade igualitária. Os donos da terra ficavam ricos; os que lavravam
a terra ficavam pobres, e continuavam pobres. Com o tempo, tomou-se patente
que os capitalistas industriais poderiam tomar-se mais ricos do que os latifun-
diários imaginavam ou, pela mesma razão, do que os reis supunham. Em 1900,
um bom ano para Andrew Camegie, as suas usinas siderúrgicas lhe propiciaram
um lucro de US$ 25 milhões. Isso foi antes da inflação e do imposto sobre a
renda. Por volta de 1913, John D. Rockefeller, um homem que se fez por si,
havia acumulado aproximadamente US$ 900 milhões, seu patrimônio decla-
rado naquele ano.l Seu amigo e conselheiro, Frederick T. Gates, preveniu-o do
terrível perigo queJohn D. estava correndo:

Sua fortuna está se avolumando, avolumando-se como uma avalanche! Você


deve distribuí-Ia com mais rapidez do que ela se avoluma! Se não o fizer, ela o arrasará,
bem como a seus filhos e aos filhos de seus filhos. 2

Todavia, Gates exagerou, pois os filhos dos filhos de Rockefeller, ao


que parece, continuam muito bem, sem serem esmagados por sua imensa
fortuna.
Assim como os arrendatários no campo, os homens empregados nas
usinas siderúrgicas e nas refinarias em sua maioria continuavam naquela salutar
pobreza que significava uma vida dura neste mundo, mas garantia uma vida
fácil no outro. Não deixava de ser um pensamento consolador. Muitos se apoia-
vam nisso, e nada expressou melhor a esperança do que os versos exuberantes
deixados por uma faxineira inglesa - segundo diz a lenda - em sua lápide:

Não pranteiem, meus amigos,


não chorem nunca por mim.
Pois nada mais vou fazer,
nada, jamais, enfim.

Os ricos, por outro lado, davam mais valor aos prazeres deste mundo.
Não pode haver dúvida, creio eu, que a posse de dinheiro faz com que as 35
A Era da Incerteza

pessoas tenham uma visão mais favorável deste mundo em relação ao além. E,
afinal, também é uma estratégia lógica. Pois existe aquele terrível fundo de
agulha pelo qual o rico precisa passar antes de chegar ao paraíso. Por conse-
guinte, se você for rico ou for um camelo, deve, por mera precaução ou para se
garantir, aproveitar ao máximo a vida terrena.
Neste capítulo eu gostaria de dar uma olhada nos prazeres dos ricos no
último século e examinar as idéias que os santificaram. Qual o código moral
pelo qual o rico vivia? Como ele afetou o acúmulo e, a utilização da riqueza?
Baseado em que idéia o homem defendia sua condição de rico? Lembrando que
as idéias, assim como os velhos soldados (e, sem dúvida, também os velhos
políticos), nunca morrem, podemos estar certos de que estas continuam
influindo em nosso modo de pensar, nossas vidas e nossos conceitos morais.

A Seleção Natural dos Ricos

De todas as classes sociais, os ricos são os mais notados e os menos anali-


sados.Sempre foi assim e continua sendo. No século passado, estudiosos com-
padecidos examinaram considerada e profundamente as condições de vida da
classe pobre. Por que essa gente é pobre? Seria por preguiça? Falta de
ambição? Exploração por patrões cruéis? Reprodução incontrolada? Seria essa
uma ordem natural das coisas? Todas essas explicações, especialmente a última,
tinham seus defensores. E o modo de vida do pobre também era motivo de
estudos. Onde viviam? Como eram suas moradias? O que comiam? Como se
divertiam? Com o escrúpulo próprio da época, como procriavam?
Os ricos, por outro lado, sempre estiveram fora dessa preocupação. Para
os vitorianos, eles constituíam um assunto muito apropriado para romances,
mas jamais para investigação social. A miséria, esta sim, era algo para se estudar;
a riqueza, embora fosse exceção, era algo natural. Setenta anos atrás, um
homem ou mulher consciente poderia resolver visitar famílias faveladas na
zona leste de Londres para descobrir quantas pessoas dormiam num mesmo
quarto. Nenhum mordomo que se preze abriria a porta a um investigador que
tivesse a ousadia de querer saber dos hábitos noturnos dos moradores de Mayfair.
Uma forte e até mesmo dominante corrente de pensamento social do
século passado simplesmente colocou os ricos de lado e os classificou, real-
mente, como sendo uma casta superior. Dessas idéias, os ricos, que naquela
época ainda não eram tão dados à leitura como hoje, geralmente não tinham
muita noção. Eles sabiam que eram melhores, mas não sabiam o porquê. Tais
idéias dependiam, um pouco, da economia política, um p01:lCOda teologia e
multo da biologia. Quem quisesse, deveria começar o seu estudo dando uma
voltinha pelo museu de história natural. Os primatas superiores, ao contrário
- das lesmas e dos caracóis ou dos dinossauros e mamutes que não chegaram até
os nossos dias, são produto de uma seleção natural. Sendo mais fortes e mais
bem adaptados ao meio-ambiente, eles sobreviveram. E essa mesma força
36 superior, essa mesma capacidade de adaptação explica o rico. Charles Darwin
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo

explicou a ascensão, ou evolução, do homem. Herbert Spencer, mundialmente


conhecido como o grande Darwinista Social, explicou a ascensão das classes
privilegiadas .

Spencer e Sumner

A vida de Herbert Spencer, 1820-1903, filósofo inglês e pioneiro da


sociologia, coincidiu quase que exatamente com a da rainha Vitória. É a
Spencer, e não a Darwin, como geralmente se imagina, que devemos a frase
lapidar: "sobrevivência do mais forte". Falava ele, não da sobrevivência no
reino animal, mas sim da sobrevivência no mundo muito mais exigente, como
Spencer o via, da vida econômica e social. Não obstante, ele foi claro em admi-
tir sua dívida para com Darwin:

.. , Estou apenas pondo em prática os pontos de vista do Sr. Darwin no que


eles se aplicam à raça humana ... todos [os membros da raça) estando sujeitos às "cres-
centes dificuldades de ganhar a vida ... ", surge uma certa vantagem sob pressão, pois
.. somente aqueles que realmente progridem nessas condições conseguem sobreviver" ;
e ...•. estes devem ser os escolhidos de suas respectivas gerações' , . 3

Spencer foi um escritor extremamente fecundo, profundamente inte-


lectual e extraordinariamente taciturno. Seus inúmeros livros tiveram grande
influência na Inglaterra, mas nos Estados Unidos chegaram a ser quase que
uma revelação divina. Em toda parte dos Estados Unidos, nos quarenta anos
que se seguiram a 1860 - isto é, antes do aparecimento da brochura e das
livrarias, por assim dizer -, nada menos de 368.755 exemplares de suas obras
teriam sido vendidos. Spencer tornou-se um evangelho americano porque suas
idéias ajustavam-se às necessidades e anseios do capitalismo americano, espe-
cialmente às dos novos capitalistas, como uma luva, ou até melhor do que isso.
Em verdade, estas idéias não poderiam ser mais maravilhosas. Nunca
antes, em qualquer país, tanta gente tornara-se tão rica e aproveitara tanto e
tão bem a sua riqueza. E, devido a Spencer, ninguém precisava sentir-se nem
um pouco culpado por causa de toda essa boa sorte. Era o resultado inevitável
do poder natural, da capacidade própria de adaptação. O rico era o beneficiário
inocente de sua própria superioridade. Ao gozo da riqueza foi acrescentado o
prazer quase igual que provinha da simples noção de que se tinha tudo isso
porque se era melhor.
As idéias também protegiam a riqueza. Ninguém, especialmente
nenhum governo, nela podia tocar ou nQSmétodos pelos quais foi adquirida ou
estava sendo aumentada. Fazê-Ia seria o mesmo que interferir no processo,
desesperadamente fundamental, através do qual a raça humana estava sendo
aperfeiçoada.
Talvez parecesse um problema para os ricos verem que tantos eram tão
pobres. Isso poderia, no mínimo, perturbar a consciência dos excessivamente 37
A Era da Incerteza

sensrveis. Mas Herbert Spencer cuidou também desse aspecto constrangedor.


Ajudar os pobres, quer através da ajuda privada quer da oficial, também inter-
feria desastrosamente na melhoria da raça. Então deixemos, mais uma vez, que
o próprio Spencer explique:

Em parte eliminando aqueles que menos se desenvolvem e em parte sujei-


tando os que permanecem à incessante disciplina da experiência, a Natureza garante
o aparecimento de uma raça que entenderá as condições de existência e ao mesmo
tempo saberá enfrentá-Ias. É impossível, de qualquer maneira, suspender essa disci-
plina interpondo-se entre a ignorância e suas conseqüências, sem, numa mesma pro-
porção, deter o progresso. Se ser ignorante fosse tão seguro quanto ser sábio, ninguém
se tornaria sábio. 4

A caridade continuava sendo um sério problema para Spencer. Sem


dúvida a caridade servia de freio ao saudável processo de eliminação ou supres-
são dos menos dotados. Mas proibi-Ia seria infringir a liberdade, conquanto
mal dirigida, daqueles que são magnânimos, que dão aos outros. Por fim,--
conclui ele que a caridade era admissível. Embora fosse ruim para quem rece-
besse ajuda, era algo dignificante para quem dava. Por isso justificava-se, pelo
menos para aqueles que eram tão egoístas a ponto de procurar sua própria
dignificação às custas da raça.
Torna-se evidente que Spencer era um messias austero. Igualmente
austeros e inflexíveis eram seus inúmeros apóstolos americanos. O mais desta-
cado dentre eles, uma geração mais jovem que Spencer, foi William Graham
Sumner, professor na Universidade de Yale, dotado de opinião própria e infle-
xível. Talvez tenha ele sido o elemento mais influente sobre questões econô-
micas nos Estados Unidos, na segunda metade do século passado. Coube a
.Sumner a hercúlea tarefa de reunir as idéias de Herbert Spencer às de Adam
Smith e David Ricardo.
Sumner era um darwinista social ardente, inflamado; tanto quanto
Spencer, ele se dedicava à melhoria da raça. Só que ele via nesse processo um
meio mais imediato de melhorar as condições dos menos afortunados, impe-
dindo que. os mesmos fossem simplesmente eliminados. Pois a luta pela sobre-
vivência era o látego que flagelava os pobres. Ela fazia-os trabalhar com afinco.
contra todas as suas inclinações naturais. Era o interesse próprio de Adam
Smith na forma especialmente coerciva pela qual os pobres podiam ser persua-
didos. E o fato de as riquezas se acumularem nas mãos dos ricos também os
fazia dedicar-se ainda com maior empenho ao trabalho, no interesse de todos.
Do esforço conjunto de pobres e ricos provinha a produção e a riqueza, e estas,
por sua vez, permitiam que sobrevivesse mais gente do que de outro modo.
Também Sumner deveria ser ouvido por suas próprias palavras. Eis o que alega
sobre os ricos:

Os milionários são produto da seleção natural. .. É por eles serem escolhidos


dessa forma que a riqueza - tanto a deles como aquela que lhes é confiada - aumenta
38 em suas mãos ... Eles podem com justiça ser considerados como os agentes natural-
Herbert Spencer: "Estou
apenas pondo em prática os
conceitos do Sr. Darwin no
que eles se aplicam à raça
humana".

William Graham Surnner: "Os milionários Carl Schurz: "Se a Estática Social, de Spencer,
são produto da seleção natural". tivesse sido melhor interpretada no Sul, a
Guerra Civil não teria ocorrido".
-
A Era da Incerteza

mente escolhidos pela sociedade para realizar determinado trabalho. Eles recebem
altos salários e vivem luxuosamente, e isso é um bom negócio para a sociedade. 5

Era uma tristeza para o homem de posses quando ele não mais pudesse
enviar o filho para estudar em Yale e educar-se dessa forma.

A Vinda

Assim como Jesus finalmente veio a Jerusalém, Herbert Spencer final-


mente veio à América. A recepção em ambos os casos foi mais ou menos a
mesma. Por ocasião de sua viagem, em 1882, Spencer já não era jovem - ele
tinha 62 anos de idade - e não gozava de plena saúde. Também tinha aversão
a repórteres e à imprensa em geral. Todavia, sua visita à América foi o triunfo
que qualquer observador esperaria registrar. Em toda parte foi ele acolhido e
reverenciado por homens que viam, em sua própria seleção como ricos, a melhor
prova de que a raça humana estava sendo melhorada. O próprio Spencer não
estava totalmente seguro disso. Era uma época de orgulho efusivo pelas reali-
zações americanas. Ele ficou exposto um pouco, demais a esse clima. Uma ou
duas vezes deu a entender que, dentro do processo mais amplo da evolução
social, os Estados Unidos haviam marcado passo e se encontravam ainda num
estágio um pouco mais primitivo. Em termos darwinianos, os americanos talvez
ainda estivessem entre os primatas superiores.
Também houve certos aspectos dissonantes e lamentáveis na última
ceia - ou seja, a grande comemoração final realizada no restaurante Delmo-
nico's, que se encontrava no auge da fama como o mais fino local de reunião da
elite de Nova York. Os luminares do empresariado, da vida acadêmica, da
política e até mesmo do clero achavam-se presentes. O falecido Richard
Hofstadter, grande autoridade do darwinismo social de seu tempo, descreveu a
recepção com entusiasmo e alegria. Em seu discurso, Spencer disse que os
americanos trabalhavam duro demais. Um pensamento desalentador. E se os
trabalhadores ouvissem isso? Entretanto, a platéia recobrou ânimo, e tão calo-
rosos foram os tributos que Spencer, conhecido por sua vaidade, mostrou-se
visivelmente sensibilizado e desconcertado. Um dos oradores, Carl Schurz,
chegou a dizer que, se o livro Social Statics de Spencer tivesse sido melhor inter-
pretado no Sul, a Guerra Civil não teria ocorrido. Henry Ward Beecher, o mais
famoso teólogo-adivinho americano, e um homem que, a despeito de algumas
tendências aberrantes que mencionarei logo mais, achou que sua própria salva-
ção estava assegurada, dizendo esperar poder reatar seu convívio com Spencer
"no além-túmulo".
Ninguém, nessa feliz reunião comemorativa, parece ter atentado para
um pequeno, porém evidente, ponto, qual seja, ode como os social-darwi-
nistas iriam transpor o hiato entre as gerações. Naquela época, o próprio John
D. Rockefeller havia formulado a doutrina da Escola Dominical de uma forma
40 excepcionalmente encantadora: "A rosa American Beauty", disse ele aos
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo

jovens, "só pode ser cultivada de modo a atingir o máximo esplendor e fragrân-
cia que dão grande alegria a quem a apreciar, se os primeiros botões que
nascem ao seu redor forem sacrificados."6 Os mesmos sacrifícios ocorriam no
mundo dos negócios e justificavam, pro tanto, o esplendor de um Rockefeller.
"Essa não é, entretanto, uma tendência maléfica dos negócios. É apenas a
execução de uma lei da Natureza e de uma lei de Deus." 7 A questão, logica-
mente, era saber se essa mesma lei natural e lei de Deus também explicaria o
esplendor simplesmente herdado de ]ohn D.,]r., ou ainda de ]ohn D. III, de
Nelson, Laurance, Winthrop e David. Sem dúvida, muito ao contrário, uma
herança dos Rockefellers, mais que uma doação aos pobres, esfriaria o ardor da
luta pela sobrevivência, devastaria a condição moral e física dos legatários e
justificaria um imposto para confisco de herança que pouparia seus esforços em
benefício da sociedade. Um problema realmente desagradável.
Mas ninguém deve supor que Spencer e Sumner sejam relíquias inteira-
mente do passado. Eles ainda refreiam a mão de um bem situado cidadão quando
este é abordado por um pedinte. Talvez isso abale o moral de um homem. As
doutrinas dos dois ainda se entranham nas células da consciência dos Rocke-
fellers. Ou talvez somente nas dos redatores de seus discursos. Falando em
Dallas, no dia 12 de setembro de 1975, perante um conclave de delegados
conservadores, o Vice-Presidente Nelson Rockefeller fez uma advertência
contra os perigos persistentes da compaixão, dizendo:

Um dos problemas deste país é que temos uma tradição .judeu-cristã de


sempre querer ajudar os necessitados. Acontece que isso, quando acrescido de certos
instintos políticos, às vezes pode fazer com que as pessoas prometam mais do que
podem cumprir. 8

Como os Mais Aptos Foram Escolhidos

Vejamos agora como os ricos foram escolhidos para serem bem suce-
didos na vida. Isso nos traz inevitavelmente às ferrovias. Nada no século
passado, e nada até agora no século XX, influiu tanto na sorte e fortuna de
tanta gente, de maneira tão súbita, como a ferrovia americana ou canadense.
Os empreiteiros que a construíram, aqueles cujas propriedades se achavam em
seu caminho, os donos da ferrovia, aqueles que a usavam para despachar suas
mercadorias e aqueles que a assaltavam para roubar, todos ficaram ricos, alguns
em apenas uma semana. As únicas pessoas ligadas às ferrovias que foram salvas
do ônus da riqueza eram aqueles que colocavam os trilhos e dirigiam os trens.
Trabalhar numa estrada de ferro no século passado não era um emprego bem
remunerado, era ainda muito perigoso. A média de acidentes sofridos por
aqueles que trabalhavam nos trens ~ a incidência de invalidez ou morte -
chegava perto da registrada numa guerra de primeira categoria.
As ferrovias foram construídas. Muita gente honesta se empenhou a
fundo em sua construção e funcionamento; isso não deveria ser esquecido. Mas 41
A Era da Incerteza

o negócio também atraiu uma porção de malandros e vigaristas. Estes se torna-


ram muito mais conhecidos e talvez tenham sido os mais bem sucedidos em se
enriquecer. A seleção natural de Spencer funcionava maravilhosamente em
favor dos canalhas e biltres de toda espécie. Às vezes até punha à prova uma
casta de velhacos em relação a outra.
A ferrovia propiciava uma interessante opção entre dois tipos de furto
- furto aos usuários e furto aos acionistas. A luta mais espetacular ocorreu ao
findar o decênio 1860-70, quando bandos rivais dessas duas artes básicas se
defrontaram. Em litígio estava a Ferrovia Erie, que corria das barrancas do rio
Hudson, do lado do Estado de New]ersey, até Buffalo. Naqueles dias uma
linha cujos trilhos deploravelmente enferrujados tornavam-na geralmente
fatal. Cornelius Vanderbilt, que controlava a Estrada de Ferro New York
Central, cujos trilhos corriam na outra margem do rio, queria adquirir a Erie
para assegurar o monopólio do serviço ferroviário para Buffalo e, virtualmente,
até Chicago. Todo o seu empenho foi no sentido de esbulhar o público. Aliás,
a perene contribuição literária de sua família foi a expressão oral: "O público
que se dane!"
Um de seus oponentes foi ]im Fisk, que morreu de ferimentos a bala
em 1872 na tenra idade de trinta e oito anos, para desaponto geral dos ameri-
canos de melhor categoria que gostariam que tivesse sido antes. Seus aliados
eram Daniel Drew e]ay Gould, dois outros experientes ladrões, embora Drew
já estivesse fora de sua melhor forma. A função destes últimos era roubar os
acionistas. Uma vez chegando ao controle da ferrovia, havia um sem-número
de dispositivos pelos quais um indivíduo podia desviar dinheiro e outros patri-
mônios da empresa para seus próprios bolsos. ]ay Gould foi reconhecido como
sendo o mestre dessas técnicas. Fisk, embora não muito dado à meticulosidade,
provou ser mais imaginoso na prática de fraudes.
O controle acionârio era, entretanto, o segredo de ambas as formas de
roubo. A luta pela ferrovia desencadeou-se em 1867 e originou o tipo de colisão
que naqueles dias ocorria com mais freqüência nos próprios trilhos da Erie.
A grande vantagem de Vanderbilt era o dinheiro; ele o tinha, e com ele
podia esperar um dia comprar o controle acionário de uma empresa. Mas Drew
e Fisk levavam uma vantagem ainda maior. Eles controlavam a ferrovia; e
tinham uma oficina gráfica no porão do edifício que abrigava os escritórios da
ferrovia. Conseqüentemente, podiam imprimir mais ações do que Vanderbilt
jamais poderia esperar adquirir e, além disso, mais ainda para assegurar-lhes o
número de votos que os mantivessem no poder. Foi o que passaram a fazer.
A força de sua posição, como se dizia na época, baseava-se firmemente na liber-
dade da imprensa.
Vanderbilt apelou para a justiça. Aí inicialmente levava certa vanta-
gem; ele dominava George Gardner Barnard, membro da Suprema Corte do
Estado de Nova York. Barnard, embora não fosse grande jurista, com freqüên-
cia era tido como o melhor que o dinheiro poderia comprar. E Vanderbilt o
havia comprado. Em troca, Barnard proibiu as atividades editoriais do que se
42 chamava de Erie Gang (a Quadrilha da Erie) e ameaçou mandar seus compo-
A Estrada de Ferro do Erie: Seus Protagonistas.

Jim Fisk.

Cornelius Vanderbilt:
Embora derrotado, tratou-se
o "Chefe" Tweed. de uma batalha, não de uma guerra.
A Era da Incerteza

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As Ações.

nentes para a cadeia. Estes reagiram pegando os livros da ferrovia (sem esque-
cer-se do dinheiro em caixa) e fugindo para o outro lado , do rio, para Jersey
City. Jim Fisk, homem sentimental, levou consigo também sua amante,
mulher não tão virginal, de nome Josie Mansfield. Dizia-se que os capangas de
Vanderbilt poderiam tentar raptar esses refugiados e trazê-los de volta sob a
jurisdição do Juiz Barnard. Por isso, foi recrutada uma força de defesa e enviada
aos pátios de manobras da ferrovia, tendo também sido hasteada uma bandeira
no novo centro de operações, o Hotel Taylor, que passou a chamar-se Fone
Taylor. A Guerra da Erie, como veio a ser conhecida, estava no auge.
Do Fone Taylor, Gould, Drew e Fisk contra-atacaram. Numa manobra
emocionante e audaz, eles compraram. a Assembléia Legislativa do Estado de
Nova York - ou, pelo menos, um número suficiente de seus membros para
que as ações que haviam impresso fossem tornadas legais. Mais tarde, conse-
guiram até comprar oJuiz Barnard, que assim abandonou Vanderbilt. Mais do
que dinheiro estava em jogo; até batizaram uma das locomotivas com o nome
do juiz. E uma aquisição mais importante ainda: compraram William Tweed
- conhecido como "Chefe" Tweed -, líder do Tammany Hall ", tornando-o
um dos diretores da Erie. Vanderbilt bateu em retirada. Surgiu uma espécie de
trégua. Fisk conseguiu trazer a sede da Erie de volta :1. Nova York, instalando-a
no teatro lírico, onde conjugou a administração da ferrovia com espetáculos de
ópera. As perspectivas pareciam sorrir-lhe quando foi morto a tiros por Edward

• Tammany Hall é um tradicional diretório do Partido Democrático em Nova York,


44 conhecido por sua escusa influência política. (N.T.)
~o.;.;;;...--._--------------,..---------------~~

A Era da Incerteza

Stokes, seu rival no amor de Josie Mansfield, embora, pobrezinha, ela demons-
trasse estar mais que interessada em agradar a ambos ... O corpo de Fisk foi
levado para Brattleboro, noEstado de Vermont, onde ele havia iniciado sua
rumorosa carreira, tendo a cidade inteira ido recebê-lo na estação com honras
de herói. Foi ali enterrado; quatro carpideiras de pedra zelam pelo seu jazigo.
Uma delas parece estar derramando moedas sobre o túmulo.

A Reputação Pública

Enquanto a guerra da Erie estava no apogeu, o expresso vindo de


Buffalo certa noite teria, segundo se soube pouco mais tarde, perdido quatro
de seus carros de passageiros numa curva. Esses quatro carros haviam despen-
cado num pequeno precipício, provocando um lamentável incêndio quando
bateram no fundo. Os vagões eram de madeira, aquecidos por bojudos fogões a
carvão. Tanto os carros como os seus ocupantes representavam um grande risco
securitário. Maisou menos um ano depois, um maquinista chamado James
Griffin entrou com a sua composição de carga num desvio para deixar o expresso
de passageiros passar para o oeste. Acontece que pegou no sono e sonhou que o
expresso, iã havia passado. Tirou o seu comboio do desvio e chocou-se de frente
com o trem de passageiros. Houve outro desastre de grandes proporções,
seguido de incêndio.
Como ocorrência normal, os vagões de carga da Erie descarrilavam ou
simplesmente ficavam parados por falta de uma locomotiva em condições de
puxâ-los. Já que o principal objetivo dos administradores da empresa era espo-
liar os acionistas, também da parte destes não era de surpreender que houvesse
contínuas e fundamentadas reclamações. Muitos dos acionistas eram ingleses, e
nenhum deles recebeu dividendo algum. Tudo isto, além do fato de que os
homens que trabalhavam na estrada muitas vezes ficavam sem receber o orde-
nado, deu a Drew, Gould e Fisk uma péssima reputação. Como já frisamos,
esse trio entrou para os livros de história como a Quadrilha da Erie. A reputação
pública de suas famílias, embora um pouco restaurada tempos depois, nunca
chegou a ser exemplar.
Por outro lado, os homens que lesaram os seus clientes ou usuá-
rios de seus produtos ou serviços saíram-se muito melhor junto ao público, e
suas respectivas famílias conseguiram alta distinção social. Isso se aplica a
Vanderbilt. Foi o que aconteceu também em outros setores de atividade, onde
encontramos os nomes de Rockefeller, Carnegie, Morgan, Guggenheim,
Mellon, que fizeram fortuna produzindo a baixo custo, suprimindo a concor-
rência e vendendo caro. Todos eles fundaram dinastias da mais alta reputação.
Todos se tornaram, com o passar do tempo, nomes extremamente respeitáveis.
A questão é interessante e talvez fácil de prever. Esbulhar os investidores -
outros capitalistas - foi algo que ficou atravessado na garganta do público.
Mas a rapinagem pública - o esbulho do povo em geral-, embora criticada na
46 época, com o tempo adquiriu um aspecto de alta respeitabilidade, de eleavda
A Seleção Natural dos RockefeUers: John D.
RockefeUer (à esquerda) achava que os
homens, da mesma forma que a rosa American
Beauty, só se aperfeiçoavam através de
impiedoso sacrifício - "uma fieida natureza
e uma lei de Deus". Essa lei em ação:

John D., Jr.

Nelson. David.
A Era da Incerteza

distinção social. Mesmo durante suas vidas, muitos dos mais notáveis prati-
cantes dessa técnica granjearam a reputação de impolutos homens de bem,
tementes a Deus.
O envolvimento da rapinagem capitalista com Deus no século passado
exige uma palavra especial.

A Seleção Natural e a Igreja

Deus, como muitos já disseram, ama os pobres, e é por isso que Ele fez
tantos. É uma das razões por que a pobreza sempre foi encarada com equani-
midade no último século e, até certo ponto, ainda o é. Mas no século pas-
, sado também havia a tese ricardiana de que a pobreza era inevitável; que ela
refletia o funcionamento imutável da lei econômica. E, como acabamos de ver,
havia um outro modo de pensar, de que por meio de uma seleção natural, os
pobres eram eliminados, pura e simplesmente. No devido tempo, os pobres
que não o merecessem, como dizia com razão Alfred Doolittle (personagem de
George Bernard Shaw) de si mesmo, desapareceriam.
Esta última doutrina era socialmente tranqüilizante e, de certa forma,
admirável. Porém, representava um problema alarmante para os fiéis. A dou-
trina provinha de Darwin, e para todos os comungantes de mente decente-
mente literal isso significava a negação peremptória da verdade bíblica. O
homem foi criado à imagem de Deus; não descende do macaco. A Criação não
é produto da evolução; levou exatamente seis dias, porque a Bíblia diz que foi
assim. A seleção natural era um remédio salutar para o problema da miséria no
mundo, mas as idéias ou conceitos de onde ela provinha estavam drasticamente
opostas à crença religiosa. Em 1925, o julgamento deJohn T. Scopes, realizado
no Tennessee, por ter ele ensinado a seus alunos de ginásio que as doutrinas de
Darwin continham certa dose de verdade, colocaria Clarence Darrow contra
WilliamJennings Bryan numa das grandes pelejas judiciais da época. Mostrou
quão sensível era o nervo que a simples menção da evolução darwiniana havia
tocado.
Mas as apostas continuavam altas; se a seleção natural pudesse conci-
liar-se com a fé cristã, então o leigo abastado poderia realmente ficar tranqüilo
e descansar. Não é de espantar que tal esforço tenha sido feito, na Igreja
Plymouth, de Brooklyn. A igreja ainda está lá, defronte à Ponte de Brooklyn,
em meio ao que é agora um bairro decente, embora não luxuoso. Acontece
que, em 1860-1870, essa paróquia estava se tornando uma das mais ricas de
todo o país, e Henry Ward Beecher, precisamente o homem que havia marcado
um encontro com Herbert Spencer no céu, era o pastor. Os ricos, os ambiciosos
e aqueles que eram apenas diligentes e laboriosos acotovelavam-se para ouvi-lo
no púlpito, em números incríveis; tanto que Henry Adams calculou que
ninguém havia pregado com tamanha persuasão e influência a tantos, desde o
tempo de São Paulo apóstolo. Em 1866, Beecher escreveu a Spencer, dizendo
48 que "a condição peculiar da sociedade americana tornou as suas obras bem
o reverendo Henry Ward Beecher: "Deus quis que os grandes fossem grandes e os pequenos
fossem pequenos".
A Era da Incerteza

mais produtivas e estimulantes aqui do que na Europa" . 9 E Beecher não era


homem que resistisse a um estímulo.
A conciliação preconizada por ele envolvia uma distinção entre teologia
e religião. A teologia, assim como o reino animal, era evolutiva. Mas essa
mudança não contradizia a Sagrada Escritura. A religião era permanente,
imutável. Suas verdades não mudavam. Darwin e Spencer pertenciam à
teologia; a Bíblia era religião. Portanto, não havia nenhum conflito entre a
seleção natural e a Sagrada Escritura. Não entendo essa distinção, e é quase
certo que nem Beecher nem a sua congregação entendessem também. Mas, de
qualquer forma, soava excepcionalmente bem.
Beecher tinha outras boas novas para seus abonados fiéis. Deus tem
especial amor pelos pecadores, pois Ele tem grande prazer em redimi-los.
Portanto, por extensão, vez ou outra alguém podia sair da linha e cometer um
pecado. O arrependimento que se seguia e a conseqüente redenção então servi-
riam como verdadeiros milagres em favor da causa divina. Nesse particular,
Beecher seguia seus próprios conselhos. Robert Shaplen, autor do estudo
definitivo da vida privada e litigiosa de Beecher e posteriormente um dos mais
capacitados repórteres sobre assuntos vietnamitas e a guerra do Vietnã, mostrou
quão fiel ele fora nesse sentido. Além de confortar seus ricos paroquianos
quanto à legitimidade de suas fortunas, Beecher também confortava as esposas
- algumas delas, pelo menos -levando-as para a cama. Com o tempo, uma
delas, Elizabeth Tilton, foi acometida da idéia de que, embora Beecher esti-
vesse se redimindo, o caso dela não lhe parecia muito claro. Por isso, resolveu
confessar -se, não a Deus, como era sua intenção, mas sim a seu marido, e este
então processou Beecher. Os jurados discordaram quanto à culpabilidade do
pastor; só que ninguém que tivesse examinado as provas jamais teve qualquer
dúvida ...
Anteriormente mencionei que Beecher havia dito a Spencer de sua
esperança de se encontrarem novamente, no céu. Deve haver muitos, e eu me
incluo entre eles, que prefeririam jamais encontrar qualquer dos dois.

Thorstein Veblen

Havia um certo regozijo encantador nas idéias pelas quais os ricos justi-
ficavam sua condição no século passado. O mesmo se pode dizer da maneira
pela qual eles gastavam o dinheiro. É um campo de estudo de que eu sempre
gostei muito. Mas seria completamente errado pensar que toda essa alegria era
um mero produto da falta de visão - daquela perspectiva que o tempo nos dá.
De longe a mais interessante e penetrante visão dos ricos americanos em seus
dias de glória foi-nos dada por um observador contemporâneo. Escreveu sobre
eles quando se encontravam no auge do poder e ostentação. Trata-se de
Thorstein Veblen, herói de meus professores na Universidade da Califórnia nos
anos trinta. Tomei conhecimento de seus livros simultaneamente com a obra de
50 Alfred MarshalI, Principies, a bíblia da ortodoxia econômica dos últimos anos
Thorsten Veblen, 18S7·1929;
A Era da Incerteza

do século passado e primeiras décadas do atual. Marshall não é mais lido há


anos; mas pode-se ainda apelar para Veblen com grande prazer.
A saga de Veblen é a de um menino pobre de fazenda, filho de imi-
grantes noruegueses. Atravessou a vida atormentado por um senso de inveja,
um causticante senso de injustiça. (A etimologia neste caso é até interessante: a
inveja sempre atormenta e a injustiça sempre é cáustica; talvez fosse mais certo
dizê-lo ao contrário.) Os compatriotas noruegueses de Veblen eram muitos,
parcimoniosos, honrados e pobres. Alguns nesta nova terra eram devassos,
indolentes e ricos. Esse contraste Veblen não poderia perdoar nem aceitar. Daí
a razão de seus livrose língua implacáveis e ferinos.
Thorstein Veblen era, sem dúvida, o filho de um pobre imigrante
norueguês na América. Quando nasceu, em Wisconsin, no ano de 1857, a vida
ainda era uma luta terrível. Mas quando começou a freqüentar a faculdade, seu
pai, Thomas Anderson Veblen, já era dono de 290 acresde ricas terras no sul de
Minnesota. Em toda a Noruega, talvez não houvesse uma centena de fazen-
deiros que estivessem tão bem de vida. A família educou-se no Carleton
College, que ficava nas proximidades, e todos pagaram de seu próprio bolso.
Thorstein, depois de tentar a universidade de Johns Hopkins, resolveu ir para
Yale em 1882, o ano da Vinda de Spencer, ainda sendo sustentado em seus
estudos pela fazenda do pai. Em Yale ficou conhecendo e, dentre todos, causou
ótima impressão a William Graham Sumner. Spencer e Sumner não ficariam
mal num mundo habitado pelos pais de Veblen. Sua vida era difícil, mas eles
estavam preparados e, por isso, sobreviveram às agruras, vivendo contentes,
felizes e honestamente.
Thorstein Veblen escreveu não por inveja, mas sim com um sentido de
superioridade desprezada fortalecida pelo menosprezo. Ele não considerava os
ricos, ou seja, aqueles que se encontram no topo do que agora seria chamado de
instituiçãoWASP*, como possuidoresde muita inteligência, cultura ou encanto.
Quando muito, o êxito que eles tinham nos negócios dependia de uma astúcia
pouco recomendável, que era aguçada pela enorme vantagem de acumularem
riquezas por já serem ricos. Por serem orgulhosos, arrogantes, intelectualmente
obtusos e bastante inseguros de si mesmos, eles eram vulneráveis a um tipo
todo especialde ridículo.
Os ricos normalmente provocam o ressentimento dos menos ricos ou
dos pobres. Por que devem ter tantas posses?Qual de suas virtudes justifica sua
elevada renda e posição social? A esse tipo de ataque os ricos sempre resistem
galhardamente, pois ele provém da inveja e esta serve para reafirmar sua
superioridade.
Mas a arma usada por Veblen era bem mais refinada; ela consistia no
ridículo apresentado como sendo a mais deprimente, lúgubre e meticulosa das
ciências. Toda tribo primitiva tinha seus festivais, rituais e orgias, algumas
delas extraordinariamente depravadas. Assim também os ricos. Suas normas e

• Sigla que significa White Anglo-Saxon Protestant e se refere à elite tradicional nos
52 Estados Unidos. (N.T.)
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo

ritos sociais poderiam ser diferentes na forma e nos detalhes, mas seus objetivos
eram os mesmos - autopromoção e exibicionismo. E para cada tipo de exibi-
cionismo ou diversão dos ricos, Veblen apresentava um congênere deplorável e
bárbaro. Os Vanderbilts, por exemplo, punham suas mulheres em espartilhos,
provando assim que elas não passavam de objetos de prazer e ostentação. Os
chefes das tribos da Nova Guiné tatuavam os rostos e seios de suas muitas
esposas com o mesmo fim. Os ricos se reuniam em finos jantares e espetáculos
elegantes. O ritual equivalente dos aborígines americanos era a festa na taba
ou a orgia que se lhe seguia. Veblen fazia verdadeiros milagres com uma
simples bengala. Vejamos:

A bengala serve para anunciar que as mãos de seu possuidor são usadas num
esforço inútil e que ela, por isso mesmo, só tem utilidade como prova de indolência e
lazer. Mas também é uma arma e preenche uma necessidade premente do bárbaro
nesse particular. A utilização de um meio de ataque tão palpável e primitivo é muito
confonador para todo aquele dotado, mesmo que moderadamente, de um instinto de
ferocidade. 10

O próprio Veblen levou uma vida sem graça, excêntrica e bastante


insegura. Os reitores de universidade nos Estados. Unidos costumam ser pessoas
um tanto nervosas; nunca os tive em boa conta como classe. Eles elogiam
a independência de pensamento em todas as ocasiões em que partici-
pam de cerimônias públicas, preocupando-se profundamente com suas conse-
qüências na vida privada. São pagos acima da média para sofrer pela livre
expressão de idéias dos membros menos convenientes do corpo docente, mas
raramente acham que deviam fazê-lo para justificar seu salário. Entretanto,
no século passado eles tiveram alguma justificativa para seu penetrante
desassossego e autocomiseração. O empresário bem sucedido, cujas tendências
populares Veblen também analisou, achava que o país devia ter centros de
ensino superior. Afinal, seria decente. Seus descendentes precisavam de verniz,
brilho. Médicos e advogados eram igualmente fundamentais. Mas eles jamais
achavam que essas academias deveriam tolerar idéias avessas à propriedade e aos
homens de posse. Queriam professores que afirmassem as verdades conserva-
doras, que tratassem a riqueza e a livre empresa com respeito. Isso é o que
Veblen não fez; conseqüentemente, era sempre considerado o homem ideal
para algum outro tipo de instituição. Durante sua vida acadêmica, ele percor-
reu as universidades de Cornell, Chicago, Stanford, Missouri, até chegar à New
School em Nova York. Em toda parte, mostravam-se alegres em vê-lo partir;
agora todas dizem de seu orgulho em tê-lo tido em seu corpo docente.
Sua movimentação foi facilitada, às vezes, pelo fato de que, embora não
fosse nada bonito, era extraordinariamente atraente às mulheres. Ele consi-
derava isso um problema e, certa vez, quando repreendido por David Starr
Jordan, reitor da Universidade de Stanford, pelos vexames que estava causando
à moral da classe média, resignadamente perguntou o que é que um homem
poderia fazer se elas simplesmente o acossavam. Há uma lenda de que, por
ocasião de seu exame para obtenção de uma cátedra em Harvard, foi admoes- 53
A Era da Incerteza

tado pelo reitor Abbott Lawrence Lowell - que abordou o assunto um tanto
constrangido, já que para ele não existiam sexo nem o pecado - de que alguns
dos futuros colegas de Veblen estavam preocupados com a honra de suas
esposas. Isso fora uma sutil insinuação de que Veblen deveria prometer, se
aprovado, comportar-se bem. Veblen respondeu delicadamente que não havia
necessidade de se preocuparem com isso, pois já tinha visto as esposas. Investi-
guei a história e parece-me, infelizmente, carecer de toda e qualquer veraci-
dade. Veblen, solitário e triste no fim da vida, morreu em 1929.

Consumo Ostensivo

o primeiro livro de Veblen, sua obra-prima, Tbe Theory of tbe Leisure


Class, foi publicado um pouco antes da virada do século. Junto com o livro
Progress and Poverty, de Henry George, no qual é abordada a importante
questão do imposto territorial único, ele é um dos dois trabalhos de cunho
socialproduzidos na América no século passado que ainda são lidos e estudados
até hoje. O livro contém o germe da idéia básica de Veblen sobre economia, a
qual seria posteriormente desenvolvida em sua outra obra, Tbe Theory of
Business Enterprise. Este último livro apresenta o conflito econômico entre
indústria e comércio - entre aqueles cujo talento está na produção de bens e
aqueles cuja única preocupação não é a de fabricar coisasúteis, mas sim de fazer
dinheiro. Os fazedores de dinheiro, restringindo a produção para aumentar
seus lucros, sabotavam (nas palavras do próprio Veblen) a capacidade de pro-
dução dos produtores ...Foi uma idéia que conquistou entusiásticos adeptos na
década de 30, entre um grupo militante de discípulos representantes do que
eles chamavam de Tecnocracia. A distinção feita por Veblen entre produtores e
fazedores de dinheiro não vingou.
Sua conquista perene não foi no campo da economia, mas sim no da
sociologia - na já citada análise do comportamento social dos ricos. Tbe
Theory of the Leisure Class tem por tema central o profundo senso de superiori-
dade que é conferido ao rico por sua fortuna. Mas,"para ser devidamente usu-
fruída, essa superioridade precisa ser reconhecida; por conseguinte, uma
,11
grande preocupação dos ricos é a meticulosamente planificada ostentação da
riqueza. Duas coisasse prestam a esse propósito- o Lazer Ostensivo e o Con-
sumo Ostensivo. Ambos os termos, em especial o segundo deles, foram consa-
grados indelevelmente na língua por obra de Veblen. O Lazer Ostensivo é a
distinção conferida pelo ócio ou indolência num mundo onde quase todos pre-
cisam trabalhar, onde nada mais preocupa tanto o corpo e a mente. O rico
poderia trabalhar para si mesmo. Mas ele consegue muito mais status e dis-
tinção através do ócio de suas mulheres. O Consumo Ostensivo é o consumo
destinado exclusivamente a impressionar pelo custo das coisas compradas. O
bom gosto não entrava na questão. Jamais, após a publicação de Tbe Theory of
the Leisure Class, pôde um rico gastar tão ostensiva, despreocupada e prazero-
samente sem que alguém ridicularizasse o seu gesto como sendo Consumo
54 Ostensivo.
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo

o Monumento: Newport

Quanto de verídico havia no cultivo da riqueza ostensiva descrito por


Veblen? Quem tiver dúvidas que vá e veja por si mesmo. O lugar chama-se
Newport, em Rhode Island. A grande maioria dos americanos jamais viu estas
colossais residências e não sabe o que está perdendo. Passei quase toda a minha
vida a umas duas horas de carro dali e estaria incluído na maioria, não fosse um
acidente da vida pública. Em 1961, o Primeiro Ministro Nehru visitou os Esta-
dos Unidos e foi encontrar-se com o Presidente Kennedy em Newport. Ambos
passaram ao longo das praias no iate presidencial, o Honey Fitz, para apreciar as
mansões. "Eu o trouxe por aqui, Se. Primeiro Ministro", disse o Presidente,
"para que pudesse ver como vive o americano médio". Ao que Nehru respon-
deu, para minha satisfação, que já tinha ouvido falar da sociedade afluente.
Quando os solares de Newport foram construídos, por volta da passa-
gem do século, o valor de um homem realmente era medido de uma maneira
simples, direta, através da sua fortuna pessoal. Artistas, poetas, políticos e
cientistas nem sonhavam em arrebatar ao rico o seu direito à preeminência,
Hollywood ainda não era conhecida e as personalidades da televisão não esta-
vam nem em cogitação. Mas, como Veblen afirmava, a riqueza, para que
alguém se destacasse, precisava ser vista, notada. O rico não podia, é claro, sair
por aí exibindo notas de mil dólares ou um balancete demonstrativo de sua
fortuna - embora alguns tentassem fazê-lo. As casas de Newport não eram
lugares de moradia, de recreação e procriação. Sua finalidade era apenas a de
proclamar o valor de seus moradores.
A maior daquelas casas era Tbe Breaeers, que traz de volta o nome
ligado a qualquer discussão sobre os costumes e moral dos ricos. O Comodoro
Vanderbilt não era apenas um imaginoso e sangüinário empresário que
saqueava o público com candura. Ele também era o chefe de uma família que
se fazia notar por seu consumo ostensivo. Tbe Breaeers custou aos Vanderbilts,
segundo um cálculo moderado, em torno de US$ 3 milhões. O Comodoro
também adotou o que mais tarde se tornou a Vanderbilt University, em Nash-
ville, Tennessee. Esta, em termos comparativos, custou-lhe apenas 112 milhão
de dólares, cifra posteriormente aumentada para um milhão.
As luxuosas residências de Newport tinham uma outra função: elas
também confirmavam a estrutura de classe da sociedade. Uma vasta legião de
empregados fazia-se indispensável para cuidar desses grandes estabeleci-
mentos. Essa equipe era treinada a obedecer disciplinadamente e a servir com
reverência, como é próprio de um subordinado. Como Veblen observou:

Constitui falta grave se o mordomo ou valete de umgentleman desincumbir-


-se de seus deveres junto à mesa ou à carruagem de seu patrão de uma forma a demons-
erar que sua ocupação habitual poderia ser a de lavrador ou pastor de ovelhas. 11

O comportamento servil e adestrado era, por outro lado, um lembrete


constante, para aqueles servidores de nível superior, de sua modesta condição 55
A Era da Incerteza

diante da classe privilegiada que serviam. Foi isso também, mais do que por
simples acaso, o que deu fim a esse tipo de vida. Pode-se, aliás, estabelecer
como regra geral e ampla que ninguém passa a vida toda reafirmando a supe-
rioridade dos outros se tiver alguma alternativa. Assim, tão logo possível, os
criados arranjavam outros empregos. Os patrões achavam que eram amados por
seus lacaios até o momento em que um deles peidasse alto ao servir o jantar, e
fosse embora no dia seguinte. A primeira manifestação da sociedade sem classes
é o desaparecimento da classe dos criados.

Os Cerimoniais

As casas por si só não eram o suficiente. Ao analisar os costumes de


tribos bárbaras e os ricos contemporâneos, que ele via como semelhantes,
Veblen concluiu que nem um cacique de tribo nem um magnata do mundo
dos negócios conseguia "dar suficiente destaque à sua opulência" apenas con-
fiando no Consumo Ostensivo. Os rituais e modismos pessoais também eram
importantes; tanto o chefe indígena como o "tycoon", ou magnata, preci-
savam ser "entendidos em prestigiosos pratos de diversos graus de mérito, em
bebidas nobres e quinquilharias de toda espécie, em roupas vistosas e em
arquitetura, em armas, jogos, danças, e em narcóticos". 12 Veblen chegou à
conclusão também de que "a embriaguez e outras conseqüências patológicas
do livre uso de estimulantes" eram valiosos indícios do "status superior
daqueles que podem se dar ao luxo dos prazeres" e que" enfermidades provo-
cadas pelo excesso de abusos são publicamente reconhecidas por alguns
povos como atributos de masculinidade" . 13
Os cerimoniais em que a riqueza era exibida - "entretenimentos
caros, tais como a dança tribal ou o baile a rigor" 14 - eram de especial impor-
tância na disputa da admiração dos outros. Quem estivesse procurando maior
distinção social convidava tanto os amigos como os rivais para as suas festas,
orgias ou outros tipos de entretenimento. Eram as pessoas que mais ele preci-
sava impressionar, aquelas decuja opinião favorável dependia sua própria
posição. Seus hóspedes eram, portanto, instrumentos inconscientes de seu
empenho em estabelecer sua superioridade sobre os mesmos. Naturalmente,
quando seus hóspedes davam um baile ou organizavam uma farra qualquer,
também faziam questão de mostrar a ele quanto podiam gastar, e dessa forma
tiravam a desforra.
Para garantir o comparecimento, era interessante apresentar um ele-
mento inédito, até excêntrico, nessas cerimônias. Um exemplo, utilizado logo
no início do século, foi a inspiração da Sr. Stuyvesant Fish. Ela .ofereceu uma
grande festa, não ostensivamente a seus vizinhos e amigos, mas sim aos
cães destes. Não sem dificuldade, enquanto exploravam a antropologia
de Newport, meus colegas da BBC recriaram esse tipo de diversão. Ninguém
56 que estivesse presente ao evento podia ter qualquer dúvida de que, conforme
o lar e o lar longe do lar: The Breakers: US$ 3.000.000 para começar.

o Cassino de Monte Carlo. "Se alguém perdesse dez ou cinqüenta mil, ele apenas demonstrava
aos circunstantes que podia se dar ao luxo de perder tant() dinheiro."
A Era da Incerteza

afirmava Veblen, as festividades neste caso diferiam apenas na forma, mas em


.nada no gênero, daquelas que se vêem em Bornéu, na Nova Guiné ou nas Ilhas
Christmas.

Publicidade

Depois do consumo numa forma adequadamente ostensiva, o maior


prazer dos ricos era ler sobre si mesmos e imaginar que outros também o
faziam. Essa ocupação ainda é muito apreciada pela classe afluente, opulenta.
Falamos com espanto de um milionário reservado ou mesmo tímido; é que são
tão raros ... O falecido Howard Hughes criou uma das maiores popularidades
de nosso tempo quase exclusivamente por não ser visto, não aparecer em parte
alguma. A metade do prazer do jantar dos cães que acabamos de mencionar foi
pensar como o grande público iria reagir ao ler a esse respeito. As colunas
sociais dos modernos jornais só podem ser compreendidas se se apreciar o
prazer que elas dão àqueles que nelas são mencionados, a inveja que se espera
tais menções possam causar naqueles que não foram citados .
. Para ter certeza de que os habitantes de Newport recebiam a publici-
dade que todos queriam, o indispensável residente da cidade era um tal James
Gordon Bennett, Jr., proprietário do New York Heraid. William Randolph
Hearst geralmente é considerado o fundador da imprensa sensacionalista nos
Estados Unidos; na verdade, conforme afiança Samuel Eliot Morison, foi o pai
de Bennett. A finalidade de um jornal, proclamava ele, "não é educar, mas
sim alarmar". 15 Seu filho concordou com isso, e o Heraid concedia muito
espaço em suas colunas às atividades e depravações de Newport, já que não se
dedicava tanto aos assuntos políticos. "Não vamos apoiar partido político
algum", declarara também seu pai, " ... não dê atenção alguma a eleições ou a
qualquer candidato, seja para Presidente ou para Guarda Civil.' 16 Quando os
ricos mostraram indícios de tédio, Bennett imediatamente enviou Stanley à
África para encontrar Livingstone, assim como patrocinou uma expedição ao
Ártico para determinar o Pólo Norte. Mas Newport era a sua base de operações.

A Riviera

Um problema desagradável da opulência neste último século era uma


característica embaraçosa e até mesmo insensata da estrutura de classes. Um ho-
mem podia perfeitamente fazer Jortuna. Mas a riqueza ganhava prestígio quando
ele se tornava tradicional, e tradição é algo que não se consegue tão facilmente. Em
suas primeiras manifestações, os Vanderbilts, Astors, Whitneys, para não falar
dos Rockefellers e dos Fords, eram um tanto quanto imaturos e como tal eram
considerados. Somente nas gerações subseqüentes conseguiram essas famílias
tornar-se, primeiro, civilizadas e, então, distintas ou tradicionais. Havia a outra
circunstância, de que a riqueza industrial, até que esteja muito bem arnadu-
58 recida, é inferior à abundância dos proprietários de terras ou à opulência mer-
A Era da Incerteza

cantil. Neste último século, um nobre inglês de modestas posses, ou mes-


mo um falido e pervertido conde polonês, muitas vezes se ombreavam
em prestígio com um Whitney ou um Rockefeller. Entre os americanos, os
Lowells, Cabots e Coolidges eram bem melhores. Ê que a sua fortuna já havia
amadurecido.
Uma outra e mui negligenciada característica da riqueza é o problema
criado pelo seu mais sensual uso e gozo. Os pobres e a gente de renda modesta
sempre acharam que o principal deleite dos ricos está no consumo sensual -
comida, bebidas alcoólicas e caríssimas, variadas e garantidas atividades de
fornicação. Quando consegue algum dinheiro extra, o pobre, por instinto, logo
se entrega a boas comidas, à bebedeira ou, com um pouco mais de imaginação,
a uma mulher. Assim deve ser com todos. Na verdade, estes não eram prazeres
em nada negligenciáveis por parte dos ricos no século passado. Os vitorianos
eram prodigiosos comilões e inveterados beberrões. Muitos saíam uma vez ao
ano numa viagem a uma estação de águas no continente - geralmente a Carlsbad
-levando consigo dois conjuntos completos de roupas, um para usar na ida e
outro para envergar na volta, após perder uma ou duas dezenas de quilos.
Nada merecia maior atenção nas conversas do que o fígado, órgão esse consi-
derado extremamente importante em virtude do grande consumo de álcool. O
sexo podia bem ser colocado à frente da: equitação como fonte de prazer mas-
culino e como medida de realização social.
Mas existem limites físicos à quantidade de comida e bebida que se
pode ingerir, e há limites semelhantes, embora mais flexíveis, quanto ao tempo
que se pode permanecer em atividade na cama. Com a passagem do tempo, as
conseqüências do comer e beber em excesso - gordura, bebedeira crônica,
uma aparência grotesca e aviltante - deixaram de ser admiradas e se tornaram
objeto de censura e reprovação. Da mesma forma, a promiscuidade sexual,
antes considerada o maior dos prazeres da riqueza, com o tempo tornou-se uma
recreação massificada e até mesmo um ramo da fisioterapia. Os gozos sensuais
dos ricos deixaram de ser um motivo de admiração e distinção, não sendo mais
um prazer exclusivo dos abastados. Boa parte do prazer, aliás, sempre consistira
. no fato de ter o que os outros não podiam ter.
A Riviera, no século passado, oferecia inúmeras vantagens de paisagem
e clima e muitos menos trânsito e poluição do que agora. "Uma costa ensola-
rada" , escreveu o falecido Adlai Stevenson numa carta a um amigo quando de
uma visita a esse litoral, "onde tipos suspeitos de países subdesenvolvidos
privam da companhia de mulheres superdesenvolvidas". Mas a maior das
vantagens estava na maneira como ela resolvia todos os problemas dos abona-
dos que acabamos de mencionar. Não é de espantar que James Gordon
Bennett, Jr., o indispensável cidadão de Newport, também tivesse uma vtlla
em Cap Ferrat. Consigo ele levou o seu talento de dar publicidade aos diverti-
mentos dos ricos. O Heraid de Paris, fundado por ele, registrava a movimen-
tação dos americanos ricos pela sociedade européia, e uma nota constante da
coluna social da primeira edição revelava que "O Sr. William K. Vanderbilt
60 estará voltando de Londres ... na quarta-feira". Como sempre, um Vanderbilt.
james Gordon Bennett, Jr.: Jornalista e filho fiel. A finalidade de um jornal, dizia seu pai, "não
é educar, mas sim alarmar". .
A Era da Incerteza

Mas a Riviera, antes de mais nada, era a estação de veraneio preferida


da aristocracia européia, e daí provinha a sua maior utilidade. As filhas dos
ricaços americanos podiam ser transacionadas aí pelo prestígio que acompa-
nhava a riqueza tradicional e um título de nobreza ou, por vezes, apenas o
título. Com essa simples manobra, os novos-ricos conseguiam prontamente a
respeitabilidade da tradição tão almejada. E os respeitabilíssimos nobres com
isso conseguiam dinheiro, algo que eles sempre sabiam usar. Tão inevitável era
a transação que elas eram negociadas às dezenas, e corretoras - geralmente
damas arruinadas de suposta nobreza - apareciam em cena para cuidar dos
detalhes. A corrida de dólares daí resultante poderia constituir um dos itens a
considerar na balança de pagamentos dos Estados Unidos, se esse cálculo tivesse
sido feito. Em 1909, segundo uma estimativa, cerca de 500 herdeiras ameri-
canas haviam sido exportadas para valorização do nome da família, juntamente
com 220 milhões de dólares. 17
A mais importante família inglesa dessa época - ou uma das mais
importantes - era a dos Churchills. Seu palácio, Blenheim, é uma das mais
suntuosas e ilustres casas inglesas; seu título, Marlborough, é o mais reputado
da história britânica. Seria natural, portanto, que um Duque de Marlborough
se casasse com Consuelo Vanderbilt mediante uma contribuição inicial de
US$ 2.500.000. Outros investimentos foram feitos mais tarde na reparação de
Blenheim, que estava em péssimas condições, e na compra de uma belíssima
nova mansão em Londres. Ao todo, a união com os Marlborough custou em
torno de 10 milhões de dólares. O resultado, entretanto, foi excelente. A cono-
ração ladrão-barão foi quase que completamente extirpada da tradição da
família Vanderbilt. Todos os descendentes e até mesmo, ex poste, todos os
ascendentes, inclusive o Comodoro, tornaram-se pessoas da mais alta respeita-
bilidade.
Menos que isso foi investido para tornar respeitável o bem mais impró-
prio nome da família Gould e, como era de se esperar, também muito menos
foi conseguido nesse particular. Apenas a bagatela de US$ 5.500.000 foi
despendida para casar Anna, filha de Jay Gould, com o Conde Boni de Cas-
tellane, uma figura muito inferior em magnificência a um duque de Marl-
borough. Em parte por procurarem fazer um negócio gastando menos, os
Goulds acabaram conseguindo uma eminência social apenas modesta.
O próprio Winston Churchill era filho de uma união desse tipo
- a de Lord Randolph Churchill com uma americana, Jennie Jerome.
Este caso, porém, parece ter sido um dos poucos onde o amor foi fator
atuante.

A Jogatina

A outra utilidade da Riviera para os ricos provinha do cassino de Monte


Carlo. Isso decorria de sua incomparável eficiência em conseguir o que, como
Veblen demonstrara, os ricos mais ansiavam e precisavam - publicidade em
62 torno de sua existência e das dimensões de sua fortuna.
A Era da Incerteza

A sociologia do jogo é mal compreendida. A maioria das pessoas pensa


que homens e mulheres jogam para ganhar dinheiro. E, sem dúvida alguma,
alguns o fazem. Mas muitos jogam para perder dinheiro. No século passado,
isso é extremamente importante. Homens e mulheres da mais alta categoria
social - aqueles cujas opiniões determinavam, acima de tudo, a posição social
e reputação do indivíduo - reuniam-se em noitadas na Sociêtê des Bains de
Mer. Ricamente trajados, eles desfilavam por entre as mesas de jogo, indo de
um salão a outro. Nunca antes e jamais desde então houve uma platéia tão
seleta e apropriada para quem quisesse provar que tinha dinheiro para queimar
ou jogar fora. Se fosse realmente rico, não perderia nada. Se perdesse dez
ou cinqüenta mil, apenas mostrava aos circunstantes que podia se dar ao luxo
de perder tais somas. Se ganhasse, também não lhe fazia mal algum.
Paraerigir uma grande casa era preciso um mínimo de bom gosto. Para
poder receber com propriedade, era necessária uma entrée na sociedade e
também, como principiante, alguns amigos. Um iate, antes do advento do
rádio, significava isolamento do mundo e dos negócios. E também tinha outra
desvantagem: era só para os sumamente ricos. O grande ].P. Morgan é lem-
brado por dois aforismos, nenhum deles inteiramente imorredouros. Declarou
ele perante uma comissão do Congresso que a influência sobre Wall Street
dependia do caráter, não do dinheiro - assertiva essa que jamais conseguiu total
aprovação. E também disse a um amigo que queria saber quanto custava para
manter um iate que, se ele tinha de perguntar, é porque não podia se dar ao
luxo de tê-Io.
Mas o cassino resolvia todos os problemas. Você podia perder tudo que
pudesse se dar ao luxo de perder. E isso não exigia bom gosto, nem entrée, nem
savoir faire ou graça social, nem amigos, nada enfim, exceto o dinheiro.

Os Costumes e a Moral dos Ricos de Hoje

E o que dizer dos ricos de hoje? A questão de conseguir distinção


mudou muito. Atualmente nos Estados Unidos (aos quais a maior pane de
meus estudos tem se confinado) em pane alguma a riqueza e a demonstração
ostensiva tem qualquer valor por si só. O moderno político situa-se bem acima
do ricaço como pessoa de destaque. Nenhuma dama da sociedade de Washing-
ton ou Nova York encontraria o mínimo de mérito social em convidar um
simples milionário para um jantar. Qualquer político honesto e de algum
destaque público constitui uma figura infinitamente superior. Essa é a distin-
ção conferida por um cargo público que homens de grandes posses almejam
mediante o desembolso de polpudas somas, para tornarem-se embaixadores
de pequenos países. Artistas de televisão, jornalistas, atores com baixos
padrões de educação e asseio, intelectuais de convicções conservadoras ou
inofensivamente radicais batem de longe o moderno milionário em respeitabi-
64 lidade e cotação social. Por isso, o homem d~ posses precisa ligar-se a essa gente
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo

toda ou, então, procurar realizar-se por si mesmo em uma dessas áreas ou afins.
Do contrário, ele ficará quase que inteiramente desprezado, jogado às traças.
Existem algumas diferenças regionais; na prática, nesse particular. Em
Boston e na Nova Inglaterra de um modo geral, os homens abastados gostam
de roupa simples, muitas vezes repelente, e de moradias amplas mas um tanto
desleixadas. As mulheres vestem-se da mesma forma, demonstram uma
aparência utilitária, ativa ou atlética, segundo sua personalidade e gosto
pessoal. O destaque social então é procurado através da ligação, embora
inocente, com a música, a arte, a filantropia ou, em certos casos, com ativi-
dades intelectuais ou um serviço público inofensivo. A riqueza por si só não dá
vantagem alguma a uma família, exceto que a torna objeto de atenção dos que
arrecadam dinheiro para fins caritativos ou políticos.
Nova York é praticamente a mesma coisa. Só que aí a 'roupa extrava-
gante ainda é considerada por muitas mulheres de posses como sendo uma
forma eficaz de chamar a atenção. Apartamentos mobiliados e decorados com
excentricidade, bastante desconfortáveis, também são considerados eficazes
nesse sentido. Nos subúrbios de Nova York, as grandes residências, barcos e
entretenimento que não depende muito de criadagem ainda conferem certa
distinção dentro de uma determinada subcultura. Mas, embora essas mesuras
residuais sobrevivam, estão longe de ser o suficiente. Torna-se indispensável
uma reputação mediante ligação reconhecida e amplamente divulgada com as
artes ou campanhas públicas para alguém que tenha um mínimo de ambição.
Nestas últimas décadas, grande prejuízo foi causado por nova-iorquinos ricos,
muitos deles advogados, que procuravam status mediante unia ligação com o
campo da política externa. Não foi por acaso que demonstraram uma infeliz
associação com líderes estrangeiros e potentados que, de certa forma, partilham
de seu empenho em fazer fortunas pessoais. Contudo, o apoio a políticos libe-
rais e a causas radicais de finalidades um tanto inócuas também pode tornar-se
motivo de significativa distinção social.
No Texas, onde a riqueza é relativamente nova e, por isso mesmo, tem
alto grau de novidade, a posição social de uma família ainda é influenciada
pela extensão e pelo valor de suas propriedades - pelo valor tributável ou
venal da casa, pela área da fazenda, pelo tamanho, velocidade e equipamento
do avião particular e pelo custo visível do tratamento e dos jaezes dos cavalos,
bem como dos trajes das mulheres. É dado muito valor a churrascos ao ar livre e
outras festas do gênero, ocasião em que as posses dos anfitriões são exibidas e
admiradas. É uma conseqüência lógica dos hábitos sociais dessíÍ gente que o
melhor mercado do mundo para venda de caros artefatos de consumo seja
Dallas, Texas. Com o passar do tempo, isso também vai mudar.
Uma estreita e até certo ponto imaginária linha divide o que é admi-
rado como elegância daquilo que é condenado como sendo demonstração
exibicionista - consumo ostensivo.
Essa mudança já se manifestou no Sul da Califórnia, especialmente na
zona suburbana de Los Angeles, onde mansões no estilo mourisco, piscinas,
jardins podados de maneira primorosa e inusitada, e automóveis um tanto 65

- --~--
A Era da Incerteza

excêntricos já foram motivo de grande cotação social, mas que, conquanto


ainda necessários, não são mais o suficiente. Uma bem divulgada amizade com
personalidades de destaque na televisão, no cinema, no cenário político ou do
crime - no final da década de 60 e início dos anos 70, altas figuras da Adminis-
tração Nixon eram excepêionalmente valiosas - atualmente é coisa essencial.
Seráque os costumese a moral dos fazedoresde fortuna melhoraram? -
pergunta, por sinal, que todos farão. Quanto às maneiras e costumes, não há a
mínima dúvida; se Vanderbilt, Jim Fisk, Jay Gould aparecessem numa das
festas texanas a que acabamos de nos referir, seriam considerados muito rudes e
grosseiros.Até mesmo um moderno magnata do petróleo ficaria horrorizado ao
ouvir Vanderbilt dizer que o público devia danar-se. Nos dias atuais, o mais
impiedoso rapinador precisa apresentar-se como benfeitor público, falar
admirativamente de sua principal preocupação em servir aos integrantes de
'urna sociedade livre. Realmente, ele ganha dinheiro, mas isso é uma conse-
qüência passiva do sistema de livre empresa. Não constitui sua principal preo-
cupação. Tomar banho regularmente é obrigatório. E ninguém pode mascar
tabaco. Assim melhoraram os costumes do capitalismo moderno.
Quanto ao progresso moral, em comparação às maneiras, não se tem
tanta certeza. I.O.S., Vesco, Poulson, Sindona, Hoffman, C. Arnholt Smith e
o Real Estate Fund of America, embora talvez sejam mais sofisticados no
processo de acelerar a separação de viúvas, órfãos e otários de suas respectivas
fortunas, certamente não são, como acha a maioria, um passo significativo no
sentido da integridade moral em relação à Erie.
Vanderbilt e a Quadrilha da Erie compravam juizes. Nestes últimos
anos, as grandes multinacionais americanas vêm comprando políticos tanto em
casa como no exterior ou, pelo menos, têm pago bom dinheiro a eles. No
século passado, Pavel Ivanovich Chichikov viajou por toda a Rússia comprando
servos mortos - as Almas Mortas, de Gogol. Ele os comprava dos donos das
terras e usava o direito de propriedade sobre eles como caução para levantar
empréstimos nos bancos. Na década de 60, em Los Angeles, um certo Stanley
Goldblum criou almas que eram igualmente etêreas, fez o seguro de vida para
as mesmas e negociou suas apólices (e os prêmios que teoricamente elas paga-
riam) com companhias de seguro de maior porte, com boa margem de lucro.
Enquanto a farsa durou, Goldblum gozou de grande reputação social. As ações
da Equity Funding Corporation subiram muito em cotação; nomes eminentes
passaram a fazer parte de sua diretoria. O progresso moral, até mesmo nos
antigos empreendimentos russos, não está muito claro.
Minha opinião é de que, se alguém está muito preocupado em ganhar
dinheiro, em fazer fortuna, seu modo de agir reflete essa preocupação e será
quase sempre igual, qualquer que seja a época ou o lugar. Por uma questão de
senso moral, cautela ou consciência - sendo que a consciência é, como disse
um dia Mencken, "aquela voz íntima que nos avisa que alguém pode estar
espreitando" -, pode-se ter a certeza de que a maioria das pessoas se manterá
dentro da lei. Porém, uma minoria muito estável será compelida a sair da linha
68 e cair na bandalheira.
Os Costumes e a Moral do Alto Capitalismo

Aliás, a bandalheira não varia muito, quanto à forma, de uma época a


outra. Ao contrário da opinião pública e da imaginação popular, esta não é
uma atividade que atraia as mentes mais inovadoras. O vigarista que é admi-
rado pela engenhosidade do seu golpe está continuamente redescobrindo
algum tipo anterior de fraude. As formas básicas são todas conhecidas e já
foram postas em prática.
Os costumes do capitalismo melhoraram. A moral talvez não. Mas, de
qualquer forma, também não piorou.

69
TRÊS I

A Dissidência de Karl Marx

Adam Smith, David Ricardo e seus seguidores afirmaram ser de ordem


natural uma sociedade econômica na qual os homens possuíssem as coisas -
fábricas, maquinaria, matérias-primas, bem como a terra - com as quais os
bens eram produzidos. Os homens possuíam o capital ou meios de produção.
Spencer e Sumner deram a isso a mais alta sanção social e moral. Thorstein
Veblen refletiu sobre a questão e divertiu-se com o resultado. Mas mesmo
Veblen não discordou. Embora fosse um crítico implacável da alta ordem capi-
talista, Veblen não era um socialista, nem mesmo um reformador.
A dissidência maciça originou-se com Karl Marx. Em grande pane, ele
se valeu das idéias de Ricardo para atacar o sistema econômico que Ricardo
interpretara. e descrevera. Empreguei a palavra maciça para descrever a sua
furiosa investida. Se concordarmos que a Bíblia é uma obra coletiva, apenas
Maomé rivaliza com Marx no número de professos e devotados seguidores
recrutados por um único autor. E a competição não é realmente muito acirrada.
Os seguidores de Marx agora superam em muito os filhos do Profeta.
Marx jaz no cemitério de Highgate, em Londres, onde foi enterrado a
17 de março de 1883. Como acontece com o túmulo de Smith, trata-se de local
de reduzida peregrinação - os peregrinos sendo quase exclusivamente dele-
gações de países comunistas em visita oficial a Londres. Até cerca de vinte anos
atrás, a sepultura de Marx achava-se num obscuro canto, quase sem identifi-
cação. Agora ela situa-se a pouca distância da de Herbert Spencer. Seria difícil
pensar em dois homens que teriam maior desprazer na companhia um do
outro.

o Homem Universal

O mundo exalta Karl Marx como revolucionário, e por todo um século


a maioria das revoluções ocorridas no mundo, sérias ou não, invocaram o seu
nome. Ele era também um sociólogo. Muiros diriam que foi o mais original e
criativo economista, um dos mais eruditos filósofos políticos de sua época. O
falecido ]oseph Schumpeter, famoso economista austríaco (e da Universidade 71
-
A Era da Incerteza

de Harvard), iconoclasta e conservador devoto; apresentou sua apreciação das


idéias de Marx com a afirmação de que o homem era um gênio, um profeta e,
como economista teórico, "antes de mais nada, um homem muito culto" . 1
Marx foi igualmente um brilhante jornalista, e todo republicano nos
Estados Unidos, inclusive o Sr. Gerald Ford e o Sr. Ronald Reagan, ambos
muito proeminentes cidadãos no momento em que escrevo, podem anotar com
o devido orgulho que, durante um certo tempo extremamente penurioso de
sua vida, Marx foi sustentado pelo New York Tribune e foi descrito pelo editor
do jornal como sendo seu mais destacado e mais bem pago correspondente. O
Tnbune, que juntamente com o Heraid, foi o outro genitor do Heraid Tri-
bune, durante gerações, foi o órgão oficial da mais alta instituição republicana.
Marx teve um outro envolvirnento com os republicanos. Após as eleições de
1864, ele congratulou-se calorosamente com Lincoln pela vitória republicana -
bem como pelo andamento da guerra civil americana: "Os trabalhadores da
Europa", disse ele, "perceberam, por instinto, que a bandeira americana
defendia o destino de sua classe',. 2
Marx foi, também, um historiador, um homem para quem a história
era menos uma matéria a ser estudada do que uma realidade para ser vivida e
compartilhada. Paul M. Sweezy, o mais destacado marxista americano da
atualidade, disse que é essa interpretação da história que dá ao pensamento
econômico marxista sua reivindicação especial ao destaque intelectual. Outros
economistas ouviram falar da história; os marxistas fazem de si mesmos e de
suas idéias parte integrante da história.
Finalmente, Marx foi um grande acontecimento histórico. Muitas vezes
pode-se pensar que, se alguém não tivesse vivido, outrem teria realizado a sua
obra. A compulsão inovadora, para usar um argumento conhecido, não foi o
indivíduo, mas sim a circunstância. Ninguém jamais dirá que o mundo seria o
mesmo se Marxnão tivesseexistido.
Marx, como historiador, por certo esperaria que se começasse por sua
história.

Trier

Tudo começou em Trier, ou Trêves, na cabeceira do Vale do Mosella.


Quando Marx nasceu ali em 1818, os campos da região deviam ser os mais
encantadores de toda a Europa. Muitos diriam que ainda o são. O vale é cheio
de cidadezinhas saídas dos livros dos Irmãos Grimm. Na parte mais alta, estão
as vinhas. E mais além da orla do vale, encontram-se ondulantes terras aráveis,
a maioria das quais ainda é cultivada pelo sistema de estreitas faixas - inefi-
cientes, porém bem contrastantes - que permanecem como característica da
agricultura da Renânia. Delegações chegam dos países comunistas a Trier,
como o fazem a Highgate. Do Ocidente, os turistas vêm para apreciar seu
vinho. O serviço local de turismo informa que só de vez em quando um visi-
te pergunta sobre Marx. Uma loja de certas proporções na cidade exibe
A Era da Incerteza

diversas mercadorias e ostenta na fachada o nome da família. A aprazível e


espaçosa casa onde Marx nasceu ainda existe.
Havia muito na cidadezinha - que na época tinha uma população
calculada entre 10.000 e 15.000 habitantes - para estimular o gosto pela
história. Em épocas passadas, quando se chamava Augusta Trevirorum, foi
denominada Roma do Norte. As tribos germânicas normalmente irrompiam no
Sul para atacar os latinos, hábito esse que mantiveram até meados do presente
século. Augusta Trevirorum era o principal bastião contra essa agressão. A
Porta Negra, o grande portal de cor preta proveniente da muralha romana,
ainda resiste até os nossos dias como a mais expressiva relíquia romana no que
fora a Gália setentrional.
Trier é agora, evidentemente, pane da Alemanha; em 1818, era uma
aquisição recente. Quando Marx nasceu, a ocupação francesa mal acabara de
ceder terreno à dominação prussiana. A mudança foi uma questão de primor-
dial importância para a família de Heinrich Marx. A família Marx era judia;
diversos ancestrais de Karl Marx haviam sido rabinos. Os franceses haviam sido
relativamente liberais para com a antiga comunidade judaica da cidade. Mas a .
Pcússia não o foi. Como funcionário da Alta Cone de Justiça e o mais destacado
advogado local, Heinrich Marx não podia ser judeu. Assim, ele e mais tarde sua
família foram batizados protestantes. Isso foi, como hoje a maioria dos estu-
diosos são concordes em afirmar, uma atitude puramente prática, que não
envolvia qualquer rejeição das tradições sociais ou intelectuais da vida judaica.
Quanto à religião, por ocasião em que Karl Marx nasceu, parece, não mais era
uma questão muito importante na família. Seus costumes já eram então fone-
mente mundanos.
Os antecedentes judeus de Karl seriam, entretanto, de extrema utili-
dade para os inimigos de Marx, tempos mais tarde. O anticomunismo podia ser
associado ao anti-semitismo. Era um bom começo para quem tivesse instinto
para concitar as turbas, e Hitler e os nazistas acharam a coisa muito a calhar.
Mas muitos outros também valeram-se dessa circunstância.
Todavia, existe também uma oculta suspeita de que o próprio Marx era
anti-semita. Afinal de contas, ele fora batizado. E o que é mais, pane do que
escreveu foi muito severo para com os judeus. Isto foi, em pane, uma conven-
ção literária; o termo judeu, no século passado, era empregado extensamente
como sinônimo ou metáfora do comerciante avarento. Mas é preciso muita boa
vontade para não discernir cena animosidade racial em seus escritos.
Marx era, por sinal, ateu. Era uma época em que a maioria das pessoaas
encarava a religião com máxima seriedade, quando a prática ativa dos preceitos
religiosos era símbolo de respeitabilidade. E Marx era, não um passivo, mas sim
um ativo ateu. Um de seus ditos mais famosos descreve a religião como sendo o
ópio do povo. Ela ensina a rodos para que aceitem pacientemente as dificul-
dades e a exploração, quando deveriam insurgir-se em furiosa revolta. U
pensamento semelhante, como vimos, agitou a alma do Reverendo Henry
Ward Beecher, embora com resultados bem diversos. A religião ajudava
pessoas a suportarem com paciência e resignação o destino econômico que lhes
A Dissidência de Karl Marx

estava reservado neste mundo, não importando quão miserável fosse essa
condição, e esse era um dos aspectos que Beecher achava muito bom. Evidente-
mente, faz muita diferença a maneira como se diz algo; a forma de Beecher
dizê-lo era muito mais aceitável para o devoto do que a de Marx.
Karl Marx nunca se preocupou em ser popular, mas, quando se tratava
de religião, ele realmente sobressaía. Ser judeu, acusado de anti-semita e
abertamente hostil ao cristianismo bem como às demais doutrinas era um
modo seguro de se livrar do aplauso religioso.

o Jovem Romântico

Marx foi um jovem profundamente romântico. Escreveu poesia, em sua


grande parte intragável - segundo opinião da família - e ensaios idealistas
(alguns dos quais sobreviveram) sobre a natureza, a vida e a escolha de uma
carreira. A carreira deve estar onde se "pode contribuir mais para a humani-
dade ... e brilhantes lágrimas de nobres cairão [então] sobre as nossas cinzas". 3
Quando ainda adolescente, jurou seu amor porJenny von Westphalen.
Jenny era filha do primeiro cidadão local, o Barão Ludwig von West-
phalen. O Barão von Westphalen, evidentemente um homem notável, era um
intelectual e um liberal, e havia se afeiçoado muito ao jovem Marx. Ambos
caminhavam juntos ao longo das barrancas do Mosella, tendo o nobre introdu-
zido seu adolescente amigo à poesia romântica assim como à noção de que o
Estado ideal seria socialista, não capitalista; baseado na propriedade pública,
não privada." Sem dúvida alguma, uma conversa temerária para um aristocrata
alemão manter com um jovem plebeu de sua cidade. Não é de se supor que o
socialismo de Marx tenha começado com esses colóquios, mas sem dúvida expli-
cam como foi possível a ele, não sem um certo constrangimento social, casar-se
com a filha do barão.
Aos dezessete anos, Marx foi enviado rio abaixo até Bonn, para estudar
na universidade. Esta era, então, uma pequena academia com umas poucas
centenas de alunos, de tendência muito aristocrática. Marx ainda era um
romântico; seus interesses, já mais amplos, incluíam a bebida e a arte de
duelar. Até mesmo pelos frouxos padrões acadêmicos da época, ele era conside-
rado bastante indolente. Seu pai queixava-se de seus elevados gastos e sua
quase total falta de comunicação com a família. Mas, um ano mais tarde, Karl
mudou-se de Bonn para Berlim. Isso foi em 1836, e representou muito mais
que uma mudança de universidade. Foi uma mudança para o principal caudal
da vida intelectual alemã, se não européia, ou até mesmo ocidental.

Berlim e Hegel

o período romântico chegava ao seu fim; começava a era de Hegel.


Não só Berlim era um lugar bem mais elevado do que Bonn, mas agora Marx 75
A Era da Incerteza

via-se em companhia dos discípulos de Georg WilhelmFriedrich Hegel. Esses


jovens, os hegelianos, levavam a si mesmos e à sua erudita missão muito a sério.
Volta e meia, na história, ocorreu que intelectuais ficaram tão entusiasmados
com sua visão singular da verdade que se consideraram destinados a mudar o
modo de pensar de toda a humanidade. Essefoi um dessesmomentos.
O que não é tão fácil de descrever é a mudança que os jovens intelec-
tuais ansiavam. Hegel não é uma figura muito acessívelà mente anglo-saxônia
ou americana; com toda certeza, eu nunca achei isso. Certa feita, alguns anos
atrás, consolei-me bastante com uma história que me foi contada por Arthur
Goodhart, catedrático de direito em Oxford e por um tempo Diretor do Corpo
Docente daquela universidade. Referia-se a uma noite em 1940 quando, como
membro da Guarda Nacional, ele foi designado junto corrioutro professor, que
por sinal era um destacado filósofo, para montar guarda num pequeno campo
de pouso particular perto de Oxford. Possivelmente foram os dois soldados
mais inacreditáveis nos anais de toda a história militar britânica. Mas, mesmo
assim, marcharam para lá e para cá em meio a uma tênue neblina, um deles
com um rifle da guerra da Criméia, mais ou menos, o outro com uma espin-
garda de caça. Sendo professores, vez por outra, paravam para bater um papo.
Quase ao amanhecer, durante uma dessas pausas, o soldado companheiro de
Goodhart acendeu o cachimbo e disse: "Diga-me, Arthur, você acha que esses
miseráveis não vêm? Gostaria tanto de dar um tiro neles. Sempre detestei
Hegel".
O companheiro e aliado vitalício de Marx foi Friedrich Engels. O
melhor resumo do que Hegel significou para ambos foi feito por Engels: "O
grande mérito da filosofia de Hegel é o de que pela primeira vez todos os
aspectos naturais, históricos e espirituais do mundo foram concebidos e repre-
sentados como um processo em constante transformação e desenvolvimento, e
um esforçofoi feito para mostrar o caráter orgânico desse processo" . 5
O processo orgânico de transformação e desenvolvimento se tornaria o
tema central do pensamento de Marx. A força propulsora dessa transformação
seria o conflito entre as classessociais. Issomanteria a sociedade numa condição
de constante mutação. Uma vez que ela tivesse criado uma estrutura que fosse
aparentemente segura, a estrutura criaria as forças antagônicas que a desafia-
riam e depois a destruiriam. Uma nova estrutura surgiria então, e o processo de
conflito e destruição começaria de novo.
Assim sendo, no mundo real da época, os capitalistas - a burguesia-
estavam desafiando e destruindo a velha e aparentemente imutável estrutura
do feudalismo, as tradicionais classes dominantes do antigo sistema aristocrá-
tico. Ao conquistar o poder, a burguesia iria estimular o aparecimento de um
proletariado com consciência de classe a partir dos trabalhadores explorados,
sem propriedades e sem cidadania. Com o tempo, esse proletariado iria insur-
gir-se contra os capitalistas. Estes, incluindo o Estado burguês, seriam derru-
bados. O Estado dos trabalhadores seria a nova estrutura.
Segundo a lei hegeliana, o processo deveria continuar. Talvez o Estado
dos trabalhadores, pela natureza de suas tarefas produtivas, fosse altamente
A Era da Incerteza

organizado, burocrático, disciplinado. Precisaria de cientistas e outros intelec-


tuais. E estimularia o aparecimento de artistas, poetas e romancistas, cujas
obras teriam então grande procura pelas massas alfabetizadas. Tais artistas
começariam depois a vindicar seus direitos. Sua oposição à burocracia tornar-se-
-ia intensa. Então, viria o próximo conflito, que por sinal não é nada invisível
nos países da Europa oriental e na União Soviética. Todavia, Marx não permitiu
que Hegel o levasse até lá. Como, aliás, fazem os modernos marxistas quando
analisam seus cientistas, romancistas e poetas dissidentes. Se fosse aplicado
rigorosamente à moderna sociedade comunista, Hegel poderia constituir-se em
sério problema.
As idéias de Hegel não foram fáceis de entender para Marx. Sua aceita-
ção, ou mais provavelmente, a experiência de um estudo sério em si, envolveu-o
em crises emotivas, prejudicando sua saúde e, pelo que tudo indica, levando-o
à beira de um colapso físico. Por um tempo, ele deixou a cidade e foi para o
vilarejo de Stralau, fora dos limites de Berlim, para recuperar-se. Todos os dias
ele andava várias milhas para proferir suas palestras - e escreveu, com espanto,
de como era bom para a saúde esse exercício. Mas foi uma lição que ele logo
esqueceria. A maior parte da vida, ele estaria mal de saúde, devido a um modo
de viver incrivelmente insalubre. Já se disse que muito do trabalho realizado no
mundo é feito por homens que não estão no gozo de perfeita saúde. Marx é um
caso típico.
É tentador ver-se na Berlim de hoje a dramaticamente visível manifes-
tação da transformação que constituiu a maior preocupação de Marx. O lugar a
ser visto é o Muro. De um lado, está a Berlim Ocidental: é o posto avançado,
fortificado, do mundo capitalista. Do outro lado, o estágio seguinte: ali estão
as massas triunfantes. Há anos que, em Berlim, todos os visitantes esclarecidos
enxergam exatamente isso aí, embora os que vêem o Muro do lado oeste geral-
mente falem de democracia, não de capitalismo, e uns poucos concordem com
a infalibilidade da transformação, a menos que seja por fraqueza. Ainda assim,
o contraste é aceito; Marx tem tido grande êxito na retórica do Muro.
Há muito tempo que acredito, valha-me Deus, que nas sociedades
industriais altamente organizadas, sejam capitalistas ou socialistas, a tendên-
cia mais atuante é no sentido da convergência - ou seja, de que se aço e auto-
móveis são procurados e precisam ser feitos em larga escala, o processo deixará
sua marca na sociedade, quer seja em Magnitogorsk ou em Gary, Indiana. Se
assim for, o Muro não é um lugar de confrontação histórica; pelo contrário,
na medida que aqueles de ambos os lados estão cientes de seu comprometimento
maior com a produção em massa de bens e com a vasta e intrincada organização
que ela exige, ele se tornará progressivamente menos importante. Ao visitar
Berlim do leste e do oeste, é difícil acreditar que isso já não esteja acontecendo.
A preocupação com a produção de bens e as providências práticas para produzir
estão se tornando cada vez mais, não menos, idênticas.
Em 1841, Marx partiu de Berlim. Daí em diante, ele seria parte do
processo hegeliano - um dos principais instrumentos de sua transformação.
Um fator novo .começaria então a influir em seus movimentos. Até aqui, foram
A Dissidência de Karl Marx

tranqüilos e voluntários. Daqui em diante, e por muitos anos, seriam súbitos e


forçados. A Alemanha, França e Bélgica se uniriam na crença de que Marx era
um excelente cidadão para outro país qualquer. Para um homem perseguido
pela polícia, outro ponto insuficientemente reconhecido, há apenas dois meios
de consolo e proteção: um deles é ser inocente do crime. O outro é o de estar
com a razão ao cometê-lo. Marx teria que ter sempre esta segunda e mais
importante hipótese para apoiâ-Io.

Colônia e Jornalismo

Marx foi para Colônia. Assim como Trier, Colônia também fica na
Renânia e, como Trier, havia acabado de ser recuperada da França e era então
um pouco mais liberal devido à experiência vivida. Na França, dizia-se que
tudo o que não fosse proibido era permitido. A Prússia se pautava por uma lei
mais austera: o que não fosse permitido era proibido. Em Colônia,Marx
tornou-se jornalista. O jornal era o recém-fundado Rheinische Zeitung, bem
financiado, imaginem, pelos industriais e comerciantes burgueses da Renânia e
do Ruhr. Marx tornou-se logo um sucesso; primeiro atuou como ativo corres-
pondente e em seguida tornou-se redator-chefe. Nada disso surpreende.
Afinal, ele era inteligente, talentoso e extremamente dedicado e, de certa forma,
representava uma força da moderação. Outrossim, pregava altos padrões morais.
A revolução era um tema muito abordado pelo jornal. A palavra "comunismo",
embora ainda. indefinida quanto ao seu significado, começava a ser usada.
Disse Marx que inúmeras contribuições disso resultantes foram:

... rabiscos prenhes de revoluções mundiais e vazios de idéias, escritos com


desleixo e temperados com algum ateísmo e comunismo (que esses cavalheiros nunca
estudaram) ... declarei que considerava que a introdução sub-reptícia de idéias comu-
nistas e socialistas em revistas teatrais era imprópria e até mesmo imoral ... 6

Marx ainda seria uma força em favor da decência editorial ao lidar com
escritores esquerdistas altamente motivados hoje em dia.
Sob a direção de Marx, o Rheinische Zeitung aumentou rapidamente a
circulação, e sua influência se estendeu a outros Estados germânicos. Da mesma
forma, tornou-se cada vez mais do interesse dos censores, que todas as noites
reviam as provas antes de irem para impressão. Reagiam desfavoravelmente a
Marx em muitos sentidos; a mais importante reação foi sobre a coleta de lenha.
Aliás, devo reconhecer meu débito em inúmeras questões à recente e muito
lúcida biografia de Marx escrita por David McLellan, inclusive no relato desse
conflito. 7
Desde tempos imernoriais, os habitantes da Renânia haviam se acostu-
mado a entrar nas florestas da região para apanhar madeira caída, que usavam
como lenha. Como o ar e a maioria da água, essa lenha era de graça.· Nessa
ocasião, porém, devido ao aumento da população e à prosperidade, a madeira 79
A Era da Incerteza

havia se tornado valiosa, e os catadores de lenha, um prejuízo. Assim sendo, o


privilégio foi suspenso; toda madeira se tornaria dali em diante propriedade
privada de fato. Os processos no sentido de proteger esse valioso patrimônio
acumulavam-se nos tribunais prussianos. Oitenta a noventa por cento dos
processos eram, segundo se conta, por roubo de madeira caída ou algo parecido.
A lei se tornaria ainda mais rigorosa - os guardas florestais passariam a ter
autoridade sumária para calcular os danos causados pelo roubo de lenha. Ao
comentar essa autoridade, Marx indagava:

... se cada violação de propriedade, sem distinção ou determinação mais


precisa, é considerada um roubo, toda propriedade privada não seria um roubo? Atra-
vés da minha propriedade privada, não estarei eu privando uma outra pessoa dessa
propriedade? Não estaria eu, dessa forma, violando o direito dela à propriedadei"

Nesses mesmos meses de 1842, Marx também apoiou os antigos mora-


dores da região, os vinicultores do Vale do Mosella. Estes estavam sofrendo
fone concorrência de parte do Zollverein, o mercado comum que os Estados
alemães haviam adotado há pouco. Sua solução não era radical - uma discus-
são mais ampla e livre dos problemas deles - e abordou a questão também
com extrema cautela:

A fim de resolver a dificuldade, tanto a administração como os administrados


precisam de um terceiro elemento, que é político sem ser oficial nem burocrático,
elemento esse que ao mesmo tempo representa o cidadão sem envolver-se diretamente
em seus interesses privados. Esse elemento decisivo, composto de uma consciência
política e um sentimento cívico, é uma Imprensa livre. 9

Marx também criticou o Czar e recomendou um tratamento mais


secular da questão do divórcio. Mas a Prússia era Prússia: aí estava alguém que
apoiava a livre coleta de madeira e a discussão aberta, um homem que criticava
o Czar. Era preciso acabar com isso. Em março de 1843, o Rheinische Zeitung
era suprimido. Marx foi para Paris. Antes, porém, no dia 19 de junho, ele foi
até Kreuznach, uma estação de veraneio situada a umas cinqüenta milhas de
Trier. Ali, em cerimônia civil e religiosa (protestante), casou-se com Jenny von
Westphalen. Pode-se dizer, sem exagero, que a mulher nenhuma, desde a
Virgem Maria, o casamento pressagiou tanto. Alguns meses antes, Jenny havia
escrito a seu futuro esposo insistindo para que ele, o que quer que acontecesse,
ficasse fora da política.

o Nascimento de um Socialista

Para Marx, Paris foi o começo de uma vida nova. As ruas de Paris eram
então, como tantas outras vezes, o berço da revolução. Muitos dos revolucioná-
rios nessa época eram alemães, refugiados da censura e repressão prussianas.
Muitos, é claro, eram socialistas. Sua influência sobre Marx durante sua estada
em Paris foi realmente enorme.
.--
-
A Era da Incerteza

A família Marx morou em diversos endereços na rua Vaneau - mais


tempo no número 38, atualmente um pequeno hotel-pensão. Uma tabuleta
colocada no corredor de entrada conta do mais famoso de seus inquilinos, como
o faz, com muita insistência, o proprietário. André Gide morou recentemente
numa das extremidades da mesma rua. Stavros Niarchos tem atualmente um
apartamento algumas casas mais adiante. Pode-se imaginar que o bairro tenha
melhorado um pouco desde o tempo de Marx.
Uma vez instalado em Paris, Marx prosseguiu com seu novo empreen-
dimento jomalístico, qual seja, o de editar os Deutsch-Pranzôsiscbe jahrbücher,
os Anuários Teuto-Franceses. Em realidade, era mais uma revista, mas, ao
denominá-Ia anuário, ou livro, Marx esperava com isso evitar a censura. A refe-
rência à França no título também indicava essa manobra. Embora estivesse em
Paris, os pensamentos de Marx estavam na Alemanha, e era para a Alemanha
que os seus Anuários eram escritos. A rua Vaneau era um local conveniente
para as atividades editoriais de Marx, pois o seu co-editor, Amold Ruge, era um
de seus vizinhos.
Uma revisão do primeiro número dos Anuários provocou mais um con-
flito com os censores. Uma vez mais a coisa parece inócua - também compli-
cada, trabalhosa, com claros vestígios de racionalização de desejo:

A emancipação da Alemanha é a emancipação do homem. A cabeça dessa


emancipação é a filosofia. o coração é o proletariado. A filosofia não pode realizar-se
sem transcender ao proletariado. e o proletariado não pode transcender-se sem realizar
a filosofia. 10

Uma vez mais, porém, os policiais prussianos mostraram ser homens


muito sensíveis. O assunto era perigoso. A primeira edição dupla dos Anuários
foi confiscada na fronteira. Assim não haveria leitores alemães, e já que não
havia nenhum contribuinte ou colaborador nem leitores franceses, a publicação
naturalmente estava em maus lençóis. A essa altura, Marx também andava às
turras com seu sócio, Ruge. Portanto, a primeira edição dos Anuários Teuto-
-Franceses também foi a última. .
Nas semanas seguintes, porém, algo muito mais importante aconte-
cia. Friedrich Engels estava de passagem por Paris; os dois homens haviam se
conhecido rapidamente antes; desta feita, no Café de Ia Régence, já freqüen-
tado por Benjamin Franlclin, Denis Diderot, Sainte-Beuve e Luís Napoleão,
eles se encontraram e conversaram, encontraram-se de novo e formaram o que se
tomaria uma das mais famosas duplas da história. Engels seria o editor de Marx,
seu colaborador, admirador, amigo - e anjo financeiro. Seu nome apareceria
para sempre, e quase exclusivamente, ligado ao de Marx. "O nosso entendi-
mento perfeito em todos os campos teóricos tomou-se evidente", escreveu
Engels mais tarde, "e o nosso trabalho conjunto data daquela época." 11 Engels
sempre se considerou um parceiro menor e, sem dúvida, o era. Mas isso não
diminui a importância de seu papel. Não fosse ele o parceiro menor, muito
82. daquilo pelo qual o seu parceiro maior é conhecido não teria.se realizado.
A Era da Incerteza

Como Marx, Engels era alemão. E como Marx, pertencia à classe média
superior. Aliás, todos os primeiros líderes revolucionários (é difícil sequer
pensar em qualquer exceção) eram intelectuais de classe média. Somente na
esperança e na oratória eles vinham das massas.
Todavia, a família Engels - fabricantes de tecidos no Ruhr e, antes do
tempo, uma empresa multinacional - era bem mais rica do que a de Marx.
Engels passaria a maior parte de sua vida na Inglaterra, em Manchester, onde
unia o pensamento revolucionário à supervisão da filial local da firma perten-
cente à família.
Aliviado de seus compromissos editoriais, Marx dedicou-se a um
período de leitura séria e estudo, talvez mesmo o mais intenso de toda a sua
vida. Inúmeras idéias, que dominariam sua existência mais tarde, teriam
tomado forma nessa ocasião. Não se deve pensar, embora alguns julguem
assim, que o socialismo se iniciou com Marx. Nessa- época, o tema já se encon-
trava sob discussão das mais acirradas. Saint-Simon e Charles Fourier haviam
precedido Marx. Assim também Robert Owen, que já ficamos conhecendo.
Louis Auguste Blanqui (que passou a maior parte da vida preso), Louis Blanc,
P.J. Proudhon, todos franceses, e os alemães Ferdinand Lassalle e Ludwig
Feuerbach, foram contemporâneos. Todos eles, especialmente os alemães,
deram origem ao pensamento de Marx.
Durante esses anos, Marx não só reunia idéias como também ponderava
sobre o papel dessas idéias em si. ParaJohn Maynard Keynes, as idéias eram a
força que motivava a mudança na história. Marx, embora não contestasse a
importância das idéias, levou a proposição um pouco mais para trás. As idéias
aceitas de qualquer época são, por estranho que pareça, aquelas que servem aos
interesses econômicos dominantes:

... a produção intelectual muda de natureza na proporção em que a produção


material é mudada. As idéias dominantes em cada época sempre foram as idéias da
classe dominante. 12

Nunca achei que Marx estivesse errado nesse particular. Nada caracte-
riza de maneira mais segura a grande verdade social, a verdade econômica em
particular, do que a sua tendência de ser agradável ao interesse econômico pre-
dominante. O que os economistas crêem e ensinam, quer nos Estados Unidos
quer na União Soviética, raramente é hostil às instituições - a organização empre-
sarial privada ou o Partido Comunista - que refletem o poder econômico dorni-
nante. Não perceber isso requer muito esforço, embora muitos consigam.
Começaram a tomar forma, também, nesta época os pontos de vista de
Marx sobre o processo pelo qual o próprio capitalismo se modificaria. Sir Eric
Roll, um estudioso inglês de Marx extraordinariamente eclético -foi profes-
sor, funcionário público de categoria, destacado negociador internacional que
dirigiu os entendimentos para implantação do Plano Marshall e da Comu-
nidade Econômica Européia, banqueiro, membro da diretoria do Banco da
84 Inglaterra e respeitado historiador do pensamento econômico - muitos
A Dissidência de Karl Marx

anos atrás fez o mais sucinto resumo da influência motivadora da mudança


capitalista:

Tinha que ser uma contradição no sistema que provocasse conflito, movi-
mentação e mudança ... Essa contradição básica do capitalismo é a natureza cada vez
mais social, cooperativa da produção, que se tornou necessária através das novas forças
produtivas que a humanidade possui e (em oposição a isso) a propriedade individual
dos meios de produção ... [Daí provém o] inevitável antagonismo ... entre as duas
classes, cujos interesses são incompatíveis. 13

A noção de contradição e inevitável conflito levou Marx às suas conse-


qüências. A partir disso, ele começou a formar seu conceito de comunismo e a
identificar-se com a visualização final da sociedade sem classes.
Quanto ao resto, ele continuava escrevendo. Sua preocupação conti-
nuava sendo a Alemanha, e seu novo porta-voz era Voru/drts (Avante), órgão
da comunidade de refugiados alemães em Paris. Mas os censores continuavam a
postos. Mais uma vez deve-se ler o que ele dizia:

... a Alemanha tem uma vocação para a revolução social que se torna ainda
mais clássica pelo fato de ser incapaz de uma revolução política. Isso porque a impo-
tência da burguesia alemã é a impotência política da Alemanha, e portanto a situa-
ção do proletariado alemão ... é a situação social da Alemanha. A desproporção entre o
desenvolvimento filosófico e político na Alemanha não constitui nenhuma anormali-
dade. É uma desproporção necessária. É somente no socialismo que um povo filosófico
pode encontrar uma atividade correspondente e, assim, somente no proletariado ele
encontra o elemento ativo de sua liberdade. 14

Tem-se saudade hoje em dia de policiais que poderiam ser despertados


por esse palavreado. Mas, seguramente, a polícia prussiana o foi. Ela reclamou
junto aos franceses; abrigar um escritor dessa ordem não era um ato de boa vizi-
nhança. Os policiais prussianos pediam uma providência amigável, fraternal, de
repressão. Guizot, Ministro do Interior francês, atendeu à solicitação e expediu
uma ordem para a expulsão de Marx. Isso foi a 25 de janeiro de 1845. Num
prazo de vinte e quatro horas, a família Marx - agora havia também uma
menina recém-nascida - partiu para Bruxelas. O Vonoãrts também foi fechado.

o Manifesto' Comunista

O Manifesto Comunista foi elaborado por Marx com a ajuda de Engels,


nos anos seguintes e bastante tranqüilos e felizes que passaram na Bélgica. O
Manifesto era um documento organizador, uma brochura destinada a ser carti-
lha da Liga dos Justos (logo a seguir chamada de Liga Comunista) que Marx
então promovia ativamente. Trata-se, sem dúvida alguma, da propaganda
política mais bem sucedida de todos os tempos. Houve também, comparado
aos primeiros escritos de Marx, um progresso palpável no impacto causado pela 85
A Era da Incerteza

o Manifesto Comunista: Seus


tons em crescendo ainda
ressoam quando os políticos
modernos são instigados a
proclamar sua fé .

..
KARL IURX and FREDERICK ENGEL8.
=-o=-
S}lECTRE ia haunting Europe-the spectre ct Ç~mmnnism_ ;AUti~e
A Powers of old Europe have cntered ioto a holy alliauce to eXQi'CI$C ti,!?
spectre i Pope aud Cear, Mctteruich and Guiact, Freuch Radrcals aud
Gcnnan police-spies. .
Wbere is the party in opposifion tbat has not bee~ ~lecncd as com-
munistic by lts oppouents iu power 1 \Vher.e lhe OPPOSlt.10Il Lhnt hus not
hurlcd Imck the brandiug reproach of Cornmunism, against thc more
adveueed oppositicu parties, as well as against its re-acnonary advcrsarics ê

Two tIIlH~S result Irem thís facto .


L Corumunisru ia already ackuowledged by ali Europenn POWC1S to be
itséJl a power.
11. lt ia lugh time that Communists shculd opeuly, ia thc face of the
whole world, publish thcir views, theh- aims, thcir reedenetes, and n.eet t hia
uursery tale of lhe Spectre of Ccmmunism with a Manifesto af lhe party
it;,elr.
To this end, Comrnuuiats of vartcus uationalities bave asscrublcd in
Loudon, and sketched the following manifesto. to be pubiished iu the
Euglish, French, Gcrcran, Itnlian, Flemish and Dauish languagea,

I.
DOURGEOIS AND PROLETARIANS. (al
The history oí a.1I hitherto existiug scciety (b) ia the hlstory af das!
struggtes.
Freeman aod slavc, patrician and plcbeian. lord <l:ud scrf, guild.

(li) 3y bourgeoisie ie meant the c1as5 of medem Capitalista, owners (Ir the
meaas of social prcduction and employen.of wage-labour li}' prolcrariat. the
class cf modero wage-labourers ,\\,110, having DO means 1)( producttoe of thelr
own, are reduced to sclling thdr labcur-power ia crdcr to tive.
or~~ni~:~!~~S~~~\i:t~:e~ji~~~l"i~
r:~l"~~~[' ~;tS~tel~;;~\,~~~e
l~i~~Q~~~'~~,~:o;ll ~~~~:l;.
tben. Haxthausen disccvered commoa owuersbip of lnnd in H,us:.i:l. Maurc-
tr~t~~.
lhe prilnltiv~ fonn cf society
r~~~~~~~o~~
i!D~Ob~ea~l:tb~~C~~~l~t):ell~~~:U~í~;::Sw~~~:
everywliere
~~~~~ l~~:(~~~il
(com Iadia to Ireíand. Tbe iWl~

palavra escrita. O que antes era excessivamente prolixo e rebuscado, agora se


apresentava de maneira sucinta e emocionante - uma série de marteladas:

A história de todas as sociedades até agora é a história da luta de classes.


Cidadãos livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, patrões e assalariados,'
numa palavra, opressores e oprimidos, estavam em constante oposição uns aos outros,
realizavam uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, que toda vez terminava ou
numa reconstituição revolucionária da sociedade em geral, ou na ruína de ambas as
classes contendoras. .
... O executivo do Estado moderno não passa de uma comissão administra-
dora dos negócios comuns de toda a burguesia... .
A burguesia, através da rápida melhoria de todos os meios de produção,
mediante os meios de comunicação grandernente aperfeiçoados, atrai todos; até
mesmo as nações mais bárbaras, à civilização. Os preços baixos de suas mercadorias são
a artilharia pesada com a qual ela demole qualquer muralha chinesa ...
Ela [a burguesia] criou cidades colossais, aumentou muito a população urbana
em relação à rural, e assim salvou uma boa parte da população da idiotice da vida no
campo ... durante pouco mais de cem anos em que se encontra no poder, ela criou
86 forças produtivas mais sólidas e colossais do que todas as gerações anteriores juntas ...
A Dissidência de Karl Marx

[Inicialmente] os proletários não lutam contra seus inimigos [a grande bur-


guesia ou os capitalistas], mas sim contra os inimigos de seus inimigos, os remanes-
centes da monarquia absolutista, os latifundiários, a burguesia não-industrial, a
pequena burguesia.
Os comunistas não procuram ocultar seus pontos de vista ou objetivos. Decla-
ram abertamente que suas metas só podem ser atingidas pela derrocada à força de
todas as condições sociais existentes. Deixem que as classes governantes tremam de
medo diante de uma revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder,
exceto seus grilhões. E têm tudo a ganhar. Trabalhadores de todos os países, uni-vos! 15

Ainda mais duradouro que o impacto político do Manifesto Comunista


tem sido o seu efeito sobre o estilo político. A sua maneira de ser peremptória,
inflexível, intransigente e impetuosa tornou-se parte integrante da consciência
de todos os políticos, inclusive para aqueles aos quais o nome de Marx é aná-
tema e aqueles que a identificam apenas com Hart, Schaffner e roupas mas-
culinas. Conseqüentemente, quando democratas e republicanos nos Estados
Unidos, socialistas ou tories na Inglaterra, franceses de direita ou de esquerda
resolvem falar ao povo de seus objetivos, os tons em crescendo do Manifesto
ressoam em seus ouvidos e, nesse momento, nos do público. A fala arquitetada
dessa forma resulta, invariavelmente, em coisas terríveis.
O Manifesto não está livre de contradições. Não há, como alguns
possam imaginar, no elogio que Marx faz ao capitalismo e às suas realizações,
um apelo à sua extinção. Trata-se de estágios diversos do processo histórico.
Como também não há, como alguns forrnalistas pretensiosos têm insinuado,
qualquer conflito real entre a sua conclamação à revolução e sua afirmação de
que ela é inevitável. A gente sempre pode tentar antecipar-se ao inevitável.
Mas houve um conflito enorme e intensamente prático entre o seu programa
imediato e a sua esperança de revolução. O programa contido no Manifesto é,
segundo todos os padrões modernos, em grande parte uma coletânea de
medidas reformistas. As reivindicações são:

Expropriação da propriedade privada das terras.


Um imposto de renda progressivo.
Abolição da herança.

Um banco nacional que monopolize as operações bancárias.


Estatização das ferrovias e dos meios de comunicação.
Extensão da estatização à indústria; cultivo de terras ociosas.
Melhor utilização do solo.
Trabalho obrigatório para todos.
Unificação da indústria com a agricultura;
descentralização da população.
Ensino gratuito.
Abolição do trabalho da criança.
Ensino juntamente com o trabalho. 16

De uma forma ou de outra nos países capitalistas avançados, muitas


dessas coisas - o fim da posse privativa da terra, a descentralização da popu- 87
A Era da Incerteza

lação e o monopólio público do sistema bancário são as grandes exceções - já


foram feitas. E essas reformas ajudaram a abrandar a ira ao capitalismo. Assim,
elas tiveram o condão de adiar aquela "deposição à força de todas as condições
sociais existentes" que Marx pretendia. Dessa forma é que Marx agiu contra
Marx. A revolução interna surgiu nos países - Rússia, China, Cuba - em que
asreformas instadas por Marx nunca foram conhecidas.

Revolução - De Caráter Inconseqüente

A revolução realmente aconteceu nos calcanhares do MPnifesto. Nos


Estados italianos, na França, Alemanha e Áustria, os governos começaram a
balançar e cabeças coroadas caíram, algumas para ressurgir semanas mais tarde.
Isso aconteceu em 1848, o ano das revoluções, ano esse que ainda continua
ligado, na mente de muitos, a Marx e ao Manifesto. Nenhum dos dois, é pre-
ciso que se diga, teve muita influência nos acontecimentos. Quando a revo-
lução surgiu, o teor do Mamfesto ainda era completamente desconhecido. Era,
entretanto, a primeira revolução que se podia identificar, embora indistinta-
mente, com os objetivos e aspirações dos trabalhadores - com o proletariado
como classe social. Por isso mesmo, foi observada com máxima atenção por
Marx, especialmente quando ela se desenrolou em Paris. E o movimento teve
profunda influência sobre a sua opinião quanto à natureza da revolução. Por
esse motivo, os eventos em Paris requerem uma apreciação mais meticulosa.
Todo grande evento tem seu epicentro geográfico - o da Revolução
Americana foram os quarteirões que circundam a Câmara e Prefeitura
(Carpenters' e Independence Halls) em Filadélfia; o da grande Revolução
Francesa foi a Praça da Bastilha; o da Revolução de 1848 foram os Jardins de
Luxemburgo. O cenário tinha algo a ver com as causas e os participantes, nem
umas nem outros muito a gosto de Marx. Nos anos que antecederam 1848,
tinha ocorrido na França uma grave crise econômica e muito desemprego. Os
empresários e comerciantes sofreram tanto quanto os trabalhadores. As safras
também haviam sido más, e o preço do pão subiu muito. Então, em 1847, as
safras foram muito boas, e os preços caíram. Por isso, os camponeses levaram
na cabeça. Quase todos eram punidos; o mercado consumidor, que é muito
amado pelos conservadores, estava desempenhando um papel bastante revo-
lucionário.
Em especial, as circunstâncias incentivavam sobremaneira uma perigosa
linha de pensamento que ora entrava em circulação. Era a de que a produção
privada de bens poderia não .ser a única forma possível de organização econô-
mica. Isto devia-se à influência de Saint-Simon, Charles Fourier, Louis Blanc e
outros que já mencionamos acima. Em circulação, também, estava a impetuosa,
premente idéia de que todo homem tinha direito a um emprego; a referência
era feita ao direito de trabalhar.
Nos Estados Unidos, a frase o direito de trabalhar agora significa oposi-
88 ção aos sindicatos, em face do princípio de que ninguém deve ser obrigado a
A Era da Incerteza

sindicalizar-se para ter um emprego. Ê ouvida pelos conservadores com apro-


vação, ou pelo menos com uma agradável sensação de nostalgia, e nunca por um
liberal devotado sem visível estremecimento. Um Estado que tenha legislação
baseada no direito-de-trabalhar, mesmo que tais leis não sejam obrigatórias, é,
segundo o pensamento sindicalista, um lugar realmente muito atrasado. Mas o
tempo muda tudo. Em 1848, o direito ao trabalho era realmente um pensa-
mento radical.
O levante de fevereiro de 1848 uniu grupos inteiramente díspares, algo
que não animou muito Marx. Havia os operários que clamavam por trabalho e
ganhos maiores. Estes foram acompanhados dos comerciantes, na maioria
pequenos empresários, que exigiam liberdade de empreendimento e uma
oportunidade de ressarcir-se dos prejuízos sofridos nos anos anteriores de crise
econômica. E, logo de início, houve o apoio dos camponeses, que queriam
melhores preços. A liderança do movimento coube na maior parte a homens
que queriam liberdade de expressão - ver-se livres da censura e das atenções
da polícia. Pela maioria dos padrões estabelecidos, os líderes eram conserva-
dores. Como símbolo da revolução, a bandeira vermelha foi rejeitada em favor
da tricolor. A tricolor foi considerada menos prejudicial à confiança do mundo
dos negócios e ao crédito popular.
A revolta foi rápida e bem sucedida. O Palácio das Tulherias foi
ocupado. Louis Philippe achou conveniente ir embora. O Palácio de Luxem-
burgo foi utilizado como sede de uma comissão que estudaria os meios de
salvar os trabalhadores da miséria. Esse expediente não era ainda um despiste
ou pretexto evidente.
A preocupação com os trabalhadores concentrou-se nos Jardins. A
assembléia ali realizada foi, como tem sido chamada, o primeiro congresso de
trabalhadores em toda a história. Foi também, mais do que por simples acaso,
um meio de segregar e manter sob controle os mais encrenqueiros e perigosos
participantes da revolta. Uma coisa era ser liberal, republicano, romântico.
Outra coisa era contestar a propriedade privada, ser pelos direitos dos traba-
lhadores, por maiores salários, por uma jornada de trabalho de doze horas.
Que haja revolução, mas que ela não seja irresponsável.
A palavra "revolução" vem fácil à língua; sempre há ameaças de uma
revolução. Mas, se soubéssemos como é difícil fazê-Ia, usaríamos a palavra
muito menos, e os conservadores poderiam afligir-se menos com o perigo. Eles
estão muito mais seguros do que julgam estar.
Três condições são absolutamente indispensáveis. Tem que haver
líderes decididos, homens que sabem exatamente o que querem e também que
sabem que têm tudo a ganhar e tudo a perder. Homens assim são raros. As
revoluções atraem os homens que estão de olho na sua grande oportunidade, os
aproveitadores.
Ê preciso que os líderes tenham seguidores disciplinados, gente que
acate suas ordens, que as execute sem muita discussão. Isto também é bastante
difícil; os revolucionários têm o hábito desconcertante de achar. que devem
90 pensar por si mesmos, 'defender seus próprios pontos de vista. Existe a oportu-
A Dissidência de Karl Marx

nidade e muita atração para os tagarelas. Mas estes não podem nem devem ser
permitidos. Homens desse jaez serão esmagados enquanto discutem.
E, acima de tudo, o outro lado deve ser fraco. Toda revolução bem
sucedida é como o pontapé numa porta já podre. A violência das revoluções é a
violência de. homens que arremetem contra o vácuo. Foi assim na Revolução
Francesa. Foi assim na Revolução Russa de 1917. Assim foi também na Revo-
lução Chinesa após a Segunda Guerra Mundial. E assim não foiem 1848.
No Palácio de Luxemburgo, a liderança era fraca e havia muita conversa
mole. Falava-se em oficinas governamentais em que os homens produziriam
cooperativamente para o bem comum, não importando o que e a que custo..
Ou, então, de obras públicas, um grande canal subterrâneo cruzando Paris, no
qual a imaginação tomava o lugar da engenharia. Os salários foram, em
verdade, aumentados. Mas essa e outras medidas de amparo tiveram o efeito de
aumentar os impostos e de dar aos camponeses a impressão de que eles é que
estavam pagando a revolução. Entrementes, ninguém pensava em apoderar-se
dos instrumentos do poder - a guarda nacional, a polícia, o exército. Toda
essa gente é extremamente importante na hora da verdade de uma revolução.
E esse momento de verdade revolucionária aconteceu nos primeiros
dias do verão de 1848. A 23 de junho, os trabalhadores decidiram abandonar
seu gueto revolucionário e reunir-se em assembléia no Pantheon, a algumas
centenas de passos dali. Desse local marcharam até a Praça da Bastilha para
impor ao governo provisório os direitos de há muito discutidos. o. governo não
carecia de recursos, e já estava olhando para os operários com crescente apreensão.
Os trabalhadores conseguiram chegar à Praça da Bastilha e ai erigir uma
forte barricada. O primeiro ataque da Guarda Nacional foi repelido, e uns
trinta guardas foram mortos. As tendências românticas dos revolucionários
davam-lhes maior confiança. Duas belas prostitutas subiram no topo da barri-
cada, ergueram as saias e perguntaram qual francês, não importando quão
reacionário fosse, atiraria na barriga desnuda de uma mulher. Os franceses
responderam ao desafio com uma saraivada de balas mortíferas.
A essa altura as barricadas eram tomadas de assalto, e os operários
subjugados. Foram feitos prisioneiros, que de início eram fuzilados. Mas a
seguir, pelo que consta, em consideração aos moradores do local, que recla-
mavam do barulho, foram mortos a baioneta. O massacre estendeu-se até os
Jardins. Num outro gesto de consideração, segundo a lenda, o logradouro
público foi mantido fechado durante vários dias, até que o sangue fosse lavado
ou limpado. Como se vê, já em 1848 o pessoal estava se conscientizando do
meio ambiente.
Marx não se surpreendeu muito com esse resultado. A liderança bur-
guesa da revolução não inspirou sua confiança. E quanto aos trabalhadores, ele
achou que tanto a hora como a seqüência cronológica estavam erradas: pri-
meiro, tinha que haver uma revolução burguesa, e depois o triunfo socialista.
Mais tarde, naquele mesmo ano, Marx assinalou que a revolução, pelo menos
simbolicamente, havia tido êxito quanto à bandeira. "A república tricolor
agora tem uma única cor, a cor da derrota, a cor de sangue". 17 91
A Era da Incerteza

Em outros pontos da Europa, até as monarquias sobreviveram. Con-


cessões foram feitas ao poder burguês, mas não aos trabalhadores. Antes de
1848, de um modo geral, as velhas classes feudais e a nova classe capitalista
estavam em conflito. Depois disso, elas se uniram, tendo os capitalistas levado
vantagem real, se não visível, no poder. Essa união se manteria incólume por
mais sessenta e cinco anos - até a grande descolagem da Primeira Guerra
Mundial.

Para Londres

o
ano de 1848 realmente provocou grandes mudanças pessoais em
Marx. Os belgas eram mais liberais do que seus vizinhos, mas igualmente ner-
vosos; por isso, decidiram que nem eles podiam abrigar um homem tão peri-
goso. A essa altura, Marx já encabeçava as listas da polícia, constituindo-se em
nome famoso em todos os dossiers.
Por um momento, a disposição revolucionária parecia ter tido certo
efeito. Praticamente no mesmo dia em que fora expulso de Bruxelas, Marx foi
convidado a voltar à França. E ele conseguiu ir dali para Colônia, para ressus-
citar o Rheinische Zeitung, que assim reaparecia como o Neue Rheinische
Zeitung. Sua maior lealdade continuava sendo para com os trabalhadores
alemães.
Todavia, o jornal ressuscitado era, financeiramente falando, muito mais
que uma aventura, já que lhe faltava capital. E só subsistia por causa da
insegurança das forças conservadoras e contra-revolucionárias em suprimi-lo.
Mas, tão logo perceberam a fragilidade da ameaça revolucionária, tomaram
conta novamente. Marx continuava sendo, de certa forma, uma voz que
pregava a moderação. Ele fazia fortes apelos contra a ação imprevidente e
aventureira dos trabalhadores, que só poderia levar a um desastre.
Mesmo assim, teve de arrumar as malas uma vez mais. Só havia dois
países disponíveis, a Inglaterra e os Estados Unidos. Marx pensou muito em ir
para os Estados Unidos, e é interessante especular sobre o seu futuro e o da
República, tivesse ele tomado essa decisão. Mas ele não tinha dinheiro. Por
isso, foi para Londres. Seria a sua última mudança; ficou na capital inglesa o
resto da vida.
Marx cruzou o Canal da Mancha em 24 de agosto de 1849. Embora já
tivesse na bagagem uma experiência de várias vidas, por incrível que pareça, só
tinha trinta e um anos de idade. Diante dele estavam três outras tarefas: a
primeira delas era dar 'forma final às idéias que conduziriam as massas à sua
salvação; a segunda era criar a organização que provocaria e dirigiria a revo-
lução; a terceira era encontrar os meios pelos quais ele :e sua família iriam
comer, alojar-se e sobreviver. Cada uma dessas tarefas interferia lamentavel-
mente com as outras, mas, no fim, todas se realizaram.
A ajuda financeira veio de Engels e de outros amigos. Houve uma
92 herança inesperada de Trier, e também havia o New York Tribune. (Em 1857,
A Era da Incerteza

no tempo das vacas magras, o Tnbune despediu todos os seus correspondentes


estrangeiros, com exceção de dois. Marx era um dos que foram mantidos.) Mas
Marx era um péssimo administrador do dinheiro. Se antes os seus movimentos
eram por ordem da polícia, agora eles eram por ordem dos senhorios e credores.
Daí suas migrações - de pensões na Leicester Square para um apartamento
próximo à King' s Road em Chelsea, para o n? 64 da Dean Street, no bairro de
Soho, depois o n? 28 mais adiante na mesma rua. Os filhos foram aparecendo,
seis ao todo, tendo três deles morrido nos sórdidos aposentos de edifícios super-
lotados em Soho. (Houve, além disso, um filho ilegitimo.) A incerteza, as
mudanças súbitas e a miséria foi o que coube aJenny Marx em seu casamento.
Ela o aceitou, pelo que se deduz, com infinita resignação.
A polícia prussiana continuava interessada em Marx. Tanto que, em
1852, um espião policial infiltrou-se no meio freqüentado por Marx e enviou
um relato preciso da vida familiar de Marx. Trata-sede uma valiosa contri-
buição à história documental e renova as esperanças .do que um dia talvez a
CIA possa vir a oferecer:

Como pai e esposo, Marx, apesar de seu gênio impulsivo e irrequieto, é o


mais delicado e afetuoso dos homens, Marx mora num dos piores e, por isso mesmo.
um dos mais baratos bairros de Londres. Ocupa dois quartos. O que dá frente para a
rua é a sala de estar, e o quarto de dormir é o de trás. Em todo o apartamento, não há
uma única peça de mobília limpa e inteira, Tudo está quebrado, gasto e estragado,
com uma grossa camada de pó sobre tudo, em meio à maior desordem possível. No
centro da sala há uma mesa em estilo antigo coberta com uma toalha impermeável, e
sobre ela acham-se, espalhados, manuscritos. livros e jornais, bem como os brinquedos
das crianças, trapos e apetrechos de costura da esposa, diversas xícaras desbeiçadas,
facas, garfos, lampiões, um tinteiro, copos, cachimbos de barro, cinza de tabaco - em
suma, a maior bagunça imaginável, e tudo isso numa única mesa. Um vendedor de
artigos de segunda mão ficaria envergonhado em oferecer tamanha porcaria,
Quando se entra no aposento de Marx, a fumaça e os odores de fumo fazem
os olhos lacrimejar tanto que, por uns instantes, fica-se tateando como se estivesse
numa caverna, mas gradativamente, à medida em que a vista se acostuma à névoa,
pode-se discernir alguns objetos que se destacam da barafunda circunstante, Tudo está
imundo, coberto de pó, de modo que o simples ato de tomar assento transforma-se
numa aventura altamente perigosa, 18

Em 1856, sete anos após sua mudança para Londres, uma pequena
herança permitiu que a família fugisse, como Jenny Marx disse numa carta a
uma amiga, "dos terríveis, revoltantes aposentos que encerravam toda a nossa
alegria e toda a nossa tristeza". 19 A família mudou-se então, com grande
alegria, para uma ampla casa suburbana em Hampstead, um novo bairro que
ali se desenvolvia. Houve outros problemas financeiros, porém o pior já tinha
passado. Embora o mito diga o contrário, a verdade é que em Londres, em seus
últimos anos de vida, Marx teve uma renda bastante satisfatória pelos padrões
da época.
Nos trinta e tantos anos que viveu na Inglaterra, Marx teve algo mais
94 importante até do que a renda, embora uma renda dificilmente seja coisa
A Dissidência de Karl Marx

secundária para quem não tem nenhuma. Era a quase total segurança e liber-
dade de pensamento e expressão. Os governos sob os quais Marx tinha vivido
antes não compreendiam bem por que ele deveria ser favorecido dessa forma.
Ao chegar a Londres, a despeito dos problemas da sua vida diária,
Yarx dedicou-se imediatamente ao seu trabalho político. Compareceu a
reuniões e comícios; elementos da pior espécie se reuniram em seus esquálidos
entos para estudar a estratégia e táticas revolucionárias. Em 1850, o ernbai-
ndor austríaco fez um protesto oficial junto ao governo britânico. Marx e seus
mpanheiros da Liga Comunista dedicavam-se a toda ordem de discussões
igosas, abordando até mesmo a conveniência ou não do regicídio. O ernbai-
or recebeu uma resposta fleumaticamente indiferente: " ... de acordo com
nossas leis, a simples discussão do regicídio, desde que não diga respeito à
- da Inglaterra e enquanto não houver um plano definitivo nesse sentido,
- constitui motivo suficiente para que se prendam conspiradores". 20 Toda-
num gesto conciliatório, o Secretário do Interior britânico informou que
pronto a fornecer aos revolucionários ajuda financeira para que emigras-
para. os Estados Unidos. Afinal, o regicídio não poderia ser praticado lá.
do, no ano seguinte, quando um pedido oficial conjunto foi apresentado
ustria e Prússia para o transporte de Marx e seus comparsas, o mesmo foi
~lUdo.
Em Londres, Marx dispunha de mais um recurso que tem sido muito
a:lllado. Era a biblioteca do Museu Britânico.

~-o Museu Britânico, Marx leu e escreveu. Escreveu, especialmente, seu


"lDItioIlIO testamento, ou seja, os três volumes de Das Kapital.
~-inguém, menos ainda quem procura fazê-lo, consegue satisfazer-se
rápido resumo das conclusões dessa imensa obra. E nenhum marxista
,."a:rKl jamais se satisfará nem mesmo com um esforço mais demorado nesse
••••• 110. Aliâs, tem sido de há muito um direito reconhecido de todo estudioso

em Marx o significado específico que ele próprio prefere e tratar


demais com indignação. Isso acontece especialmente quando se toma
••• -~ Marx ao pé da letra, como ele talvez tivesse querido Se expressar.
e ~a.:0avelmente sutil sempre discerne um significado mais
v~do, menos vulgar em suas palavras. De qualquer forma, o
Ieuo.
se r~corda, David Ricardo deu ao mundo (ou, pelo menos,
p?1S houve precursores) a teoria do valor trabalho, a tese de
. .illtercambIadas. de acordo com o volume e a qualidade da
_engt~a na sua fabrIcação ou produção. E com a teoria do valor
- _ a lei de ferro da remuneração, a irresistivel tendência de os salá-
:n:::::.zirem ao nível inínim? que preserva a vida e perpetua a espécie.
"-'*= es dava qualquer COIsamais, os operários proliferavam. O preço 95
A Era da Incerteza

dos meios de subsistência - principalmente a comida - era elevado, aumen-


tando-se o lance ..Os salários eram reduzidos, diminuindo-se o lance. Os senho-
rios iam muito bem; os trabalhadores eram mantidos no nível, ou voltavam a
ele, em que apenas conseguiam sobreviver.
Do ponto em que Ricardo parou, Marx prosseguiu. A posição única
ocupada por David Ricardo na história é porque ele foi uma força inovadora,
tanto do pensamento capitalista como socialista. Para Marx, o valor que o
trabalho emprestava ao produto se dividia entre o operáiio e o proprietário dos
meios de produção. Tudo que os operários não recebessem era considerado
mais-valia. Esse valor suplementar não se acumulava, como preconizara Ricardo,
basicamente em favor do proprietário, mas sim da burguesia, do capitalista. Os
salários eram mantidos baixos mediante o desemprego, por uma legião de
reserva industrial sempre aguardando ansiosa por um emprego. Se toda essa
mão-de-obra fosse empregada e os salários subissem, isso diminuiria os lucros,
precipitando uma crise econômica, depois diversamente chamada de pânico,
depressão, recesso econômico ou, durante o mandato de Richard Nixon, de
correção do desenvolvimento. O necessário desemprego e nível salarial seria
dessa forma restaurado. '
Da mais-valia acumulada em favor dos capitalistas resultaria também o
investimento. Este aumentaria mais' rapidamente do que o valor suplementar;
assim, o capitalismo sofreria uma redução progressiva no índice de rentabili-
dade. Finalmente, da mais-valia viriam os recursos financeiros com os quais os
grandes capitalistas engoliriam os pequenos - que é o processo da concerítra-
ção capitalista. Devido a essa concentração, cada capitalista se tornaria mais
fone, mas o sistema como um todo se diluiria, ficando cada vez enfraquecido.
Essa fraqueza, acrescida do decrescente índice de rentabilidade e das crises cada
vez mais intensas, tornaria o sistema progressivamente mais vulnerável à sua
autodestruição. Confrontando-se com o colérico proletariado que havia criado,
força essa perfeitamente cônscia de estar sendo explorada, disciplinada pelo
trabalho, surgiria o ataque final e o colapso:

Juntamente com o número continuamente menor de magnatas do capital,


que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação,
aumenta a miséria do povo, a opressão, escravidão, degradação, exploração; mas com
isso cresce também a revolta da classe trabalhadora, classe essa que sempre aumenta em
número, é disciplinada, unida, organizada pelo próprio mecanismo do processo de
produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um estorvo ao método de pro-
dução, o qual surgiu e floresceu com ele, e sob ele. A centralização dos meios de
produção e a socialização do trabalho finalmente atingem um ponto em que se tornam
incompatíveis com o seu invólucro capitalista. Esse invólucro se rompe à força. Soa
então a hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expro-
priados.!'

E assim termina o mundo capitalista. Diante dessas palavras, a polícia


poderia perfeitamente ter aberto os olhos, pois a essa altura Marx já dotava seus
pronunciamentos com frases bombásticas. O capitalista de Marx tinha a satisfá-
96 ção de saber que seu fim viria não com lamúrias, mas sim com um estrondo.
A Era da Incerteza

A Internacional

o
primeiro volume de O Capital- no original alemão, Das Kapi.
Kritik der Politischen Oekonomie von Karl Mar.x, Erster Brand, Buch 1: "Der
Produktions Prozess des Kapitals' (Hamburgo: Editado por Otto Meissner) -
foi publicado em 1867. Os dois outros volumes que compõem a obra, cui
número pretendido de leitores é muitas vezes maior do que o verdadeiro, ;;
foram publicados durante a vida de Marx. Foram preparados para o prelo
partir de anotações e manuscritos reunidos pelo sempre fiel Engels e
podiam ter sido completados por ninguém mais.
Uma das razões do atraso foi a miséria dos primeiros tempos e a luta
autor. Outra razão era a erudição; conforme seus amigos diziam, Marx era
incapaz de escrever qualquer coisa sem informar-se amplamente. Entretanto.
outra razão mais foi a interminável discussão, os debates e a polêmica em que
Marx vivia o tempo todo. Tudo o que não apreciava ele o descrevia com grande
prazer e nenhum instinto para condescendência. Assim ele falou de um
conhecido jornal diário de Londres:

Graças a um sistema de esgotos artificialmente oculto, todas as privadas


londrinas vomitam suas fezes no Tâmisa. Mediante a sistemática pressão das penas de
ganso, o mundo capitalista vomita toda a sua sujeira social no grande esgoto empape-
lado central chamado Tbe Datfy Telegrapb. 22

Desta forma ele se referiu a Adolphe Thiers, Presidente da República


Francesa, após a derrota e queda de Napoleão III:

Mestre em pequenas trapaças de Estado, um virtuoso da perjúria e da traição,


artífice de todos os estratagemas menores, dos dispositivos de astúcia e da deslealdade
básica da guerra parlamentar interpartidária; nunca tem escrúpulos, quando fora do
poder, para insuflar uma revolução e para reprimi-Ia com sangue quando na chefia
do Estado. 23

Mas a razão mais importante era a de que, nesses anos, Marx estava
lançando as fundações da revolução que ele esperava e, vez por outra,
acreditava estar iminente ~ O instrumento da revolução seria uma organização
que uniria, num propósito comum, a ação dos trabalhadores de todos os países
industrializados - os proletários que, como Marx ardentemente afiançava, não
tinham pátria. Conhecida hoje como Primeira Internacional, essa organização
nasceu em Londres a 28 de setembro de 1864, num comício a que compare-
ceram cerca de 2000 trabalhadores, membros de sindicatos de classe e intelec-
tuais de toda a Europa. Foi eleito um conselho diretivo, do qual Marx, natural-
mente, era o secretário. Sua primeira função foi a de apresentar um estatuto de
princípios e objetivos; isso foi feito, tendo Marx ficado espantado com a verbor-
réia, falta de cultura e baixo nível geral do resultado. Assim, sabendo que o
. assunto era inadiável, convocou os membros do conselho para discutir os
98 regulamentos. Ele próprio redigiu os princípios. O resultado, sua Alocução às
A Era da Incerteza

Classes Trabalhadoras, é mais um famoso documento da história do pensa-


mento marxista:

... nenhum progresso mecânico, nenhuma aplicação prática da ciência à


produção, nenhum meio de comunicação, nenhuma colônia nova, nenhuma emigra-
ção, nenhuma abertura de mercados, nenhum comércio livre, nem tudo isso junto
conseguirá aêabar com o sofrimento e desgraça das massas nos países industrializados ...
... conquistar o poder político, por conseguinte, tornou-se o dever supremo
das classesoperárias. 24

E, uma vez mais, a conclamação: "Proletários de todos os países, uni-vos!"


A Internacional tinha associados individuais e sindicatos de classe, além
de outras organizações filiadas a ela. Nos anos seguintes, a entidade expandiu-
-se tanto no número de associados como na influência. Notáveis Congressos
foram realizados, especialmente em 1867, em Lausanne, e nos anos posteriores
. em Bruxelas e Basiléia. As resoluções tomadas - reivindicando limitação das
horas de trabalho, apoio estatal à educação, nacionalização das ferrovias - não
eram, afinal, tão revolucionárias assim. A reforma, uma vez mais, estava
mostrando ser em realidade a maldição da revolução.
Mas a revolução parecia ter uma outra maldição. Era o nacionalismo.
Em 1870, Bismarck, que um dia havia feito propostas para Marx colocar sua
pena a serviço de sua pátria, entrou em guerra com Napoleão 11I. Num prelú-
dio ao drama muito maior de agosto de 1914, os proletários dos dois países
demonstraram estar longe da desnacionalização; em vez disso, acorreram para
defender o que eles entendiam ser suas respectivas pátrias. Afinal, como ficou
provado posteriormente, nada mais fácil do que convencer o povo de um país,
inclusive os trabalhadores, das más intençõesde agressão de uma nação estran-
geira. A Primeira Internacional, já fendida por disputas intestinas, foi decla-
rada fora da lei por Bismarck e logo a seguir pela Terceira República. Sua sede
transferiu-se para Filadélfia, evidentemente um lugar pouco adequado à cons-
cientização da agitação de classes; e aí, alguns anos mais tarde, expirou. Em
1889, como união dos partidos trabalhistas e sindicatos de classe, ela ressurgiu
---:-a Segunda Internacional. Marx não viveu para ver isso acontecer.

Paris Novamente

Mas, se a guerra ia provocar a ruína da Internacional, ela também deu a


Marx alguma esperança. Pois no que diz respeito a revoluções, a guerra nos tempos
modernos tem produzido efeitos ambíguos. Tem sido extremamente eficaz em
mobilizar o proletariado do mundo em exércitos de oposição, desfazendo o sonho
de uma classe trabalhadora unificada internacionalmente, que Marx (e os que o
seguiram) esperavam ver realizado. Mas tem sido igualmente eficaz em desacre-
ditar, pelo menos temporariamente, as classes governantes que a realizavam-
tendência essa de maneira alguma confinada aos países que eram derrotados.
100 Foi isto que aconteceu então na França.
A Dissidência de Karl Marx

No dia I? de março de 1871, a Assembléia da Terceira República


reuniu-se. A derrubada de Napoleão III foi concretizada, e os legisladores
aceitaram os termos da paz. O exército prussiano fez sua marcha triunfal pelos
Champs Êlysêes. A indignação pela incompetência dos antigos governantes, o
conhecimento de que os ricos haviam abandonado Paris, o orgulho ferido, a
experiência da fome e mil dificuldades, tudo isso levou à revolta popular. Ela
começou em Montmartre quando as tropas da República procuravam apossar-se
das armas que estavam em mãos da Guarda Nacional Parisiense, em quem,
com toda razão, não tinham confiança. Houve repercussões da revolta, a
maioria delas logo suprimidas, em Marselha, Lyon, Toulouse e em outras
cidades. Somente em Paris foi o poder realmente tomado - a Comuna de Paris
de 187l.
Tudo durou apenas umas poucas semanas. A 21 de maio, as tropas da
República entravam na cidade e, a 28 de maio, após uma semana de sangrenta
luta nas ruas, a revolta havia terminado. O comando da Comuna mostrara-se
confuso, sem sentido e muitas vezes sangüinârio. Quando Thiers mandou
fuzilar prisioneiros, os Communards ", em represália, mataram reféns, inclu-
sive, nos últimos dias, o Arcebispo de Paris. A repressão que se seguiu foi
incrivelmente cruel. Os poucos líderes dentre os Communards que não foram
executados (ou não conseguiram escapar do país) foram enviados para a Nova
Caledônia, nos confins dós mares do sul do Pacífico.
A guerra, o sítio de Paris e a Comuna foram noticiados com muita da
avidez com que todos os desastres modernos são apreciados atualmente. Nova-
mente os acontecimentos de Paris foram acompanhados com máxima atenção
por Marx, e a essa altura tal já era sua fama que, quando houve o derrama-
mento de sangue perpetrado pelos revolucionários, foi atribuído a ele. O
Doutor Terrorista Vermelho. Desta feita, ao contrário das dúvidas que nutrira
um quarto de século antes, ele se mostrava otimista, tanto no que se referia à
liderança como aos objetivos colimados. Não ficou muito claro por que ele se
mostraria tão animado. A maioria dos líderes da Comuna eram elementos da
classe média, tanto na origem como na aparência. Os objetivos eram incoe-
rentes. A oposição tinha o poder que saía dos canos das armas. Os requisitos de
uma revolução bem sucedida mais uma vez estavam longe de completos.
Quando tudo terminou, Marx enviou uma última Comunicação,
meditativa e entristecida, ao Conselho da moribunda Internacional - intitu-
1ada A Guerra Civz/ na França. Foi um dos pronunciamentos mais eloqüentes
da literatura marxista:

A Paris dos trabalhadores, com a sua Comuna, será comemorada e procla-


mada como o glorioso prenúncio de uma nova sociedade. Seus mártires acham-se
encerrados no grande coração da classeoperária. A história/ destino de seus extermina-
dores já está fadada ao eterna! pelourinho, do qual nem todas as rezas de seus padres
servirãopara redimi-los. 2~

* Communard: indivíduo que apoiou ou participou da Comuna de Paris de 187l.


- o_L) 101
A Era da Incerteza

A Comuna e os Communards não foram esquecidos. Mas jamais foram


eles totalmente encerrados no grande coração da classe operária. Embora se
mostrasse então muito eloqüente, Marx ainda continuava racionalizando um
desejo.
E assim terminou a primeira revolução que usaria, com seriedade,
embora de maneira inexata, a palavra raiz de "comunismo". E seria a única
que Marx presenciaria.

Morte e Vida

Depois da revolta de Paris, Marx viveu mais doze anos. Continuou sua
obra; continuou sendo o juiz supremo, embora não inconteste, do que era
considerado certo e errado no pensamento socialista. Um de seus julgamentos
propiciou uma de suas mais duradouras frases. Nos anos que se seguiram à
Guerra Franco-Prussiana, a classe trabalhista na Alemanha viu sua força política
aumentar rapidamente. Uma vez mais, a conseqüência' de uma guerra. Não
apenas um mas dois partidos trabalhistas surgiram, e em 1875 eles se reuniram
em Gotha, na Alemanha central, para fundir-se e concordar num programa
comum. O resultado foi extremamente desagradável para Marx: o programa
colidia profundamente com os princípios marxistas, e mais uma vez a reforma
substituía a revolução. A sua Crítica do Programa de Gotha afirmava, entre
outras coisas, que depois de os trabalhadores terem assumido o poder, a cicatriz
dos hábitos e do pensamento capitalistas teria que desaparecer primeiro. Só
então viria o grande dia em que a sociedade' 'inscreveria em suas bandeiras: de
,.cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades! ' , 26
É possível que estas últimas quatorze palavras tenham arrebatado para as
fileiras marxistas mais seguidores do que as centenas de milhares que Marx
escreveu em seus três volumes de O Capital.
Os derradeiros anos de Marx não lhe foram propícios. Sua saúde estava
abalada e-não melhorava devido aos abusos a que longamente se submetera em
relação à comida, a noites mal dormidas, ao fumo e ao álcool. (Ele era um
pródigo consumidor de cerveja.) Por diversas vezes ele foi obrigado, segundo o
costume da época, a retirar-se para uma estação de cura. Diversas vezes foi a
Carlsbad, no que era então a Áustria e agora é a Tchecoslováquia, onde a
polícia o vigiava o tempo todo juntamente com os seus médicos e fazia relató-
rios, principalmente sobre a forma muito satisfatôria em que o paciente obser-
vava o regime que lhe fora receitado. Em 1881, sua esposa Jenny contraiu
câncer, e em dezembro daquele mesmo ano vinha a falecer. Alguns meses mais
tarde, ela foi seguida por sua filhaJenny, a filha mais velha e mais querida de
Marx. Profundamente abalado e solitário, Marx também parou suas atividades
em todo o sentido. A 13 de março de 1883, com Engels à cabeceira de seu leito
de morte, ele expirava. Nunca, desde o Profeta, a influência de um homem foi
102 tão pouco diminuída devido à sua morte.
-

QUATRO I

A Idéia Colonial

As idéias das quais vimos falando até aqui tiveram sua aplicação, no
século passado, em apenas um pequeno canto do mundo. Foram importantes
para a Europa Ocidental e para os Estados Unidos. Mas tiveram pouco signifi-
cado ou aplicabilidade para a Índia, a China, o Oriente Médio, a África, a
América Latina e a Europa Oriental. Estas partes do mundo não tinham capi-
talistas, nem proletários, nem muita indústria. Em sua esmagadora maioria, os
povos dessas regiões eram lavradores ou latifundiários; em sua maior parte, era
uma sociedade feudal ainda aguardando a arremetida progressiva do capita-
lismo de que falava Marx. Boa parte desse mundo era, direta ou indiretamente,
uma dependência colonial de uma ou de outra das nações industrializadas. A
independência da China foi mais nominal do que real. A América Latina,
embora libertada da Espanha, continuava sob a influência econômica e prote-
ção (através da Doutrina Monroe) dos Estados Unidos. Nos demais países
pobres, a independência era um convite à salvação por aquilo que ninguém
hesitava em chamar de países civilizados.
Sendo o colonialismo um fenômeno tão generalizado, seria de esperar
que os grandes economistas lhe dessem muita atenção, apresentassem uma
substancial justificativa de seus objetivos e uma pormenorizada análise de seus
métodos. Eles não fizeram nada nesse sentido.
Adam Smith mostrou-se interessado no assunto, como também em
tudo o mais. Mas preocupou-se mais em alertar contra os esforços feitos pela
metrópole no sentido de monopolizar o comércio com suas possessões de além-
-mar. Ela não devia procurar agir dessa forma no comércio geral ou nas merca-
dorias específicas - chamavam-nas de enumeradas - tais como o fumo,
melaço de cana, barbatanas de baleia e, durante algum tempo, o açúcar.
Quanto ao restante, ele se contentou em condenar a Companhia das Índias
Orientais em todas as suas atividades. "Essas empresas exclusivas, portanto, são
uma praga em todos os sentidos; sempre mais ou menos inconvenientes para os
países em que estão estabelecidas e altamente prejudiciais àqueles que têm a
infelicidade de cair sob seus governos". 1 Anteriormente ele havia concluído
que: "Dentro do atual sistema administrativo, portanto, a Grã-Bretanha não
obtém nada senão prejuízo do domínio que mantém sobre suas colônias". 2
Nas modernas universidades inglesas ou americanas, conclusões tão resolutas
poderiam ser consideradas um sirial de falta de cultura. 105
A Era da Incerteza

Qualquer um esperaria que Malthus, que lecionou aos futuros funcio-


nários da Companhia das Índias Orientais, recorreria, para seus pareceres pessi-
mistas, à enorme, paupérrima e prolífica população da Índia. Existe, porém,
apenas uma rápida referência ao Industão em sua magna obra Essay on The
Principie o[J!opulation. A maior parte de sua argumentação em torno da
implacáverté'ndência do aumento populacional provém de suas observações na
Europa e na América. Em seu livro Principies, Ricardo limita-se a algumas
pequenas correções de Adam Srnith. Pode haver, argumenta ele, alguma
vantagem egoísta para a mãe-pátria nos privilégios comerciais exclusivos de que
goza junto às colônias. James Mill, como Malthus, era pago pela Companhia
das Índias Orientais e dedicou boa parte da vida a escrever sua grande History
of British lndia, livro esse a que todos os historiadores do pensamento econô-
mico fazem referência mas que poucos chegaram a ler. Ele também abominava
o monopólio comercial da empresa; de resto, a sua argumentação em torno do
colonialismo é de índole política e administrativa, não econômica. Ele esperava
ver o dia em que" a Índia será o primeiro país do mundo a ter um sistema legis-
lativo e judicial tão perfeito quanto as circunstâncias de seu povo o permitam" . 3
John Stuart Mill, que, assim como seu pai e Malthus, era pago pela empresa,
não abordou as questões coloniais até chegar às páginas finais de seu Principies.
Aí ele se contentou em recomendar com insistência a emigração controlada
pelo governo nas regiões onde a população era excessiva, redistribuindo-a em
terras que necessitassem de gente. A recente fome, asseverou, havia tornado
essa intervenção desnecessária no caso da Irlanda. Os grandes estudiosos do
capitalismo clássico encaravam o colonialismo corno fato consumado e se preo-
cupavam apenas com as condições de progresso dos países mais avançados. O
mundo colonial somente conseguiu despertar as atenções no momento em que
passou a influir nesse progresso.

Marx e o Imperialismo

Marx, por outro lado, fez do mundo colonial uma parte orgânica do
seu sistema. Ele via a corrida às colônias como uma forma de conquistar mer-
cados consumidores para a produção capitalista. Assim, ela adiava por algum
tempo a ainda inevitável crise e colapso do capitalismo. Contudo, como acon-
teceu com outros economistas antes dele, o principal interesse de Marx era o
Estado capitalista avançado em si. Era aí que o clímax da luta entre a burguesia
e o proletariado iria surgir. Esse era o ponto focal de toda a paixão de Marx.
O mundo colonial, ao contrário, não tinha burguesia, nem proleta-
riado. Por isso, para ele, a confrontação final estava muito longe. Tratava-se de
um capitalismo que iria transformar a produção nesses países e criar um prole-
tariado revolucionário disciplinado. Portanto, no mundo colonial, o capita-
lismo era algo a ser promovido - uma força progressista. Se, como aconteceu
na índia, o colonialismo ajudasse a derrocar a estrutura feudal e a alimentar o
capitalismo, isso significava progresso.
A Idéia Colonial

No que antes era chamado de mundo colonial e agora se denomina de


Terceiro Mundo, ninguém tem maior cotação como profeta do que Marx. Nada
é tão insultado e injuriado como o colonialismo; o capitalismo também possui
poucos defensores na imprensa. Sem dúvida, haveria espanto e alguma inquie-
tação caso Marx aceitasse um convite para falar perante a Assembléia Geral das
Nações Unidas.

A Missão Colonial

A natureza desta nossa abordagem das idéias coloniais advém do que


acabamos de dizer. Para as grandes figuras da economia, a questão não era
mesmo assunto de uma doutrina adiantada. As idéias que governavamocolonia-
lismo foram fundidas na própria experiência, e assim modificaram-se em parte,
na medida em que a própria experiência mudava. Para analisar tais idéias,
precisamos apelar, não para os livros, mas sim para a prática e a maneira como
issose explicavae justificava. .
Deduz-se do que acabamos de dizer que esta parte de nossa discussão
e, da mesma forma, o presente capítulo, têm um caráter um tanto digressivo.
Eles nos tiram da corrente central de idéias e eventos no desenvolvimento do
capitalismo e socialismo para examinar um fenômeno específico, aspecto esse
que não foi satisfatoriamente integrado no curso principal da história econô-
mica. Mas "digressão" também é um termo que não satisfaz, pois dá a enten-
der algo menos importante. Não devemos esquecer que o mundo colonial
excedia em muito a população e a extensão geográfica do mundo industriali-
zado que o colonizava.
As idéias que interpretavam o capitalismo, pelo menos em seus pri-
meiros estágios, eram razoavelmente sincerase imparciais. As idéias que justifi-
cavam o colonialismo jamais foram sinceras ou bem intencionadas. Mas não há
nada de notável nesse particular. Em inúmeras questões os homens acham que
as razões subjacentes para uma tomada de ação devem ficar ocultas. A cons-
ciência fica mais bem servida por um mito. E para convencer os outros é neces-
sârio, antes de mais nada, convencer-se a si mesmo. O mito sempre foi muito
importante quando se tratava de guerra. Os homens precisam de um motivo
bastante forte para se matarem. Morrer para proteger e aumentar a riqueza, o
poder ou os privilégios de outrem, que tem sido a razão mais comum de con-
flitos armados no correr dos tempos, simplesmente carece de atrativos.
No caso do colonialismo, é a mesma coisa. Os verdadeiros motivos,
quando declarados, eram no seu todo por demais estranhos, egoístas ou
obscenos. Por conseguinte, quando a colonização envolvia gente - quando
não fosse simplesmente a apropriação e ocupação de terras devolutas - os
colonialistas quase sempre se viam como portadores de uma mensagem trans-
cendental de cunho moral, espiritual, político ou social. Na realidade, como
partícipes importantes, tinham normalmente uma considerável dose de inte-
re~se pecuniário, real ou previsto. Aqueles que contestaram o mito foram 107
A Era da Incerteza

felizes em ser considerados apenas errados; na maioria das vezes, eram tachados
de antipatriotas ou traidores.
A dominação colonial, ou seja, o governo de um povo por uma potên-
cia geográfica e etnicamente distante, apresenta uma outra notável constante.
Mais, cedo ou mais tarde, ela chega ao fim. Geralmente, o fim é sangrento,
tanto para os que partem como para os que ficam. Indefectivelmente, a partida
é menos o resultado do aumento do poder do povo colonizado do que a queda
de interesse daqueles que partem. Todos os modernos impérios - espanhol,
britânico, francês, americano, português, e mais provavelmente o holandês e o
belga - poderiam ter sido mantidos, se o povo do país metropolitano achasse
que valeria a pena. Mas nenhum deles estava disposto a derramar sangue e
gastar suas reservas monetárias para manter as colônias, como aconteceu
quando as conquistaram. Outrossim, e este é um ponto importante, os povos
desses países não estavam mais querendo prolongar o descrédito de seu objetivo
em permanecer nas colônias. Não mais aceitavam o mito de sinceridade de
propósito em contraste com os fatos, menos nobres, de orgulho e prestígio
nacionais, ou o interesse pecuniário dos que haviam comprometido a eles e seu
dinheiro para com as colônias.
Deve-se frisar um último aspecto do colonialismo. Até hoje nos Estados
Unidos e nas outras ex-colônias britânicas na América Latina, na África e Ásia,
muito do que acontece e mais ainda do que não acontece pode ser explicado
pela experiência colonial - pela forma como as terras eram mantidas, pela
maneira como a economia era desenvolvida ou não, pela justiça ou injustiça do
governo colonial. Nenhuma lembrança é tão forte e 'duradoura como a da
humilhação e injustiça coloniais. Mas deve-se também acrescentar que nada
funciona tão bem como álibi. Nos I;>aísesrecém tornados independentes, a
experiência colonial continua sendo a principal desculpa sempre que alguma
coisa não dá certo. E nesses países muita coisa sai errada. Portanto, sob esse
aspecto também, o colonialismo continua sendo uma ativa fonte de mitos.
Antes, o mito era criado pelos colonizadores. Agora, ele o é pelos que foram
colonizados.

Para o Leste

Fale-se do colonialismo, e a primeira imagem que se tem é a de uma


grande marcha no sentido do Oeste, por parte dos europeus, nas terras do
Novo Mundo. Na verdade, o primeiro grande empreendimento colonial dos
europeus ocidentais foi para o leste do Mediterrâneo. Começou cerca de nove-
centos anos atrás, com a primeira Cruzada; e continuou por um tempo incrivel-
mente longo. Se as Cruzadas tivessem começado no ano em que se proclamou a
independência americana, ainda hoje estariam sendo realizadas. Fossem elas
patrocinadas pelo Pentágono, e ainda seria voz corrente que, na Terra Santa,
havia uma luz no fim do túnel. Todavia, em áreas mais céticas, haveria novas.
dúvidas quanto ao êxito final da empresa.
A Era da Incerteza

As Cruzadas são importantes para a importância singular e duradoura


do mito. Esse mito provinha de homens imbuídos dos mais elevados propósitos
religiosos, do mais desapegado sentido de comprometimento. A finalidade era
a de reconquistar Jerusalém das mãos dos infiéis e com isso salvar os cristãos
orientais em Constantinopla do jugo dos turcos. Atualmente, um cruzado é
todo aquele que se rege por uma força moral ou espiritual; em política, nin-
guém é olhado com maior inquietação do que "o homem que defende uma
causa". O menos confesso propósito das Cruzadas era a aquisição de terra e
outras propriedades. Ao pregar a primeira Cruzada em Clermont, no ano de
1095, o papa Urbano II foi suficientemente sincero em dizer que boas terras
estavam à disposição dos cristãos na Terra Santa. Isso constituía uma perspec-
tiva bastante inspiradora para os jovens filhos da nobreza franca ainda despro-
vidos de terras. Mais tarde, os estudiosos insinuaram que o Santo Padre tam-
bém tivera em mente encontrar "trabalho para os bandoleiros desempre-
gados da Europa". 4 Afinal, era melhor que ficassem lá pela Ásia do que
em casa.
Sabemos que o saque de Constantinopla, em 1204, pela quarta Cruzada
- a cidade que os defensores da Cruz tinham que salvar em primeiro lugar -
constituiu-se numa das mais expressivas operações do gênero em toda a história
e destinou-se a fazer a população ficar com saudades dos turcos. Até o mito
edificante foi deixado de lado por enquanto. O papa Inocêncio III foi forçado a
admitir: "Os latinos somente deram um exemplo de iniqüidade e de obras das
trevas". 5 Indubitavelmente, não fora um ato de beneficência cristã.
A primeira Cruzada até que conseguiu rapidamente chegar ao seu
distante objetivo. Jerusalém foi ,conquistada. E assim também aconteceu com
as terras, que reforçaram o compromisso para com a Cruz. Mas houve reveses.
Em menos de um século, tanto Jerusalém como as terras foram perdidas nova-
mente. Vieram novas Cruzadas e com elas as notícias de que, com um pouco
mais de esforço, mais alguns homens, tudo seria reconquistado. As perdas
continuavam e, após mais um século, os invasores foram forçados a retroceder a
uns poucos pontos de apoio ao longo do litoral mediterrâneo. Mas, embora as
terras fossem perdidas, o orgulho dos ocidentais continuava intacto. Era
considerado importante, como mais tarde foi dado a entender no Vietnã,
manter certos enclaves. Afinal, esses pontos também seriam úteis para fins
comerciars.
Desses enclaves, o de Acre, no que hoje é o norte de Israel, era o mais
importante de todos. A 18 de maio de 1291, esse bastião foi atacado. A situa-
ção era bastante parecida à de Saigon, uns setecentos anos mais tarde. Um
banho de sangue foi prometido a todos os defensores sobreviventes, tom a dife-
rença de que a validade da promessa não era então posta em dúvida. Planejar
uma evacuação seria o mesmo que conceder a derrota. Por isso, quando a espe-
rança já havia morrido, deu-se a mesma balbúrdia na ânsia de escapar ao exter-
mínio. O chão, como aconteceria mais tarde, era vendido a quem oferecesse
mais; fortunas mudavam de mãos da noite para o dia. A fuga era por navio,
110 não por helicóptero.
A Idéia Colonial

o Aspecto Fisca!

Os filhos mais jovens não eram os únicos interessados nas terras. O


braço direito dos reis de Jerusalém, e dos Cruzados mais tarde, eram as ordens
militares, os monges armados. Dentre elas havia três - os Cavaleiros da
Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, conhecidos como Hospitalários;
u os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, conhecidos como
C
"
-c Templários, e mais tarde os Cavaleiros Teutônicos. As ordens militares foram
especialmente notáveis por sua combinação de motivos. Seus membros eram
devotos, disciplinados e. excessivamente cruéis a serviço da causa cruzada.
Também estavam excepcionalmente decididos a conquistar fortuna, e cada vez
mais com o passar do tempo. Os Templários, ou Pobres Cavaleiros de Cristo e
do Templo de Salomão - a mais austera das Ordens - tornaram-se ban-
queiros internacionais plenamente realizados. Suas rendas, provenientes de
juros bancários, eram admiradas por todo o antigo mundo financeiro.
Os Hospitalários, um grupo um pouco mais tranqüilo e acomodado,
haviam, antes de tornar-se uma força militar, prestado ajuda aos peregrinos
que iam à Terra Santa. Sua arquitetura militar, que até hoje ainda existe, cons-
titui uma das maravilhas do mundo medieval. O K.rak des Chevaliers, locali-
zado numa montanha do oeste da Síria, é considerado como o mais perfeito
castelo jamais construido. Eu o visitei em 1955. O queme foi dado ver, apesar.

Acre nos dias de hoje.


111
A Era da Incerteza

da terrível tempestade que desabou na ocasião, correspondeu a tudo que eu


esperava. Os Hospitalários que conseguiram escapar de Acre foram para Rodes.
O Palácio do Grande Mestre, ali localizado,é também uma das mais majestosas
e encantadoras vistas da ilha. (Certa vez, visitei a ilha e passei boa parte de toda
uma semana gravando um debate para a televisão com, entre outras personali-
dades, o já falecido John Strachey, no imenso pátio. O programa não foi
nenhum sucesso; veio a saber-se, no final da semana, que o aparelho de som
não gravou direito.) Nos duzentos e cinqüenta anos seguintes, os Hospitalários
foram os policiais do leste do Mediterrâneo, harmonizando essa função com a
de servir ao Senhor e, vez por outra, dedicando-se a atos de pirataria. Uma vez
mais, a mistura inconfessa porém muito real de motivos, e entre os mais santos
homens a serviço da causa.
A longa sombra do colonialismo já foi mencionada. Nenhuma sombra
é tão longa como a das Cruzadas. Ela permanece na memória do Islã de que
homens vieram de longe, com propósito e sanção religiosas, para ocupar Jeru-
salém, mas também para apossar-se da terra e dedicar-se a outras finalidades
seculares. Persistiu o receio de que um dia eles voltariam. Era, portanto, inevi-
tável que qualquer um que voltasse seria visto com máxima hostilidade, e mais
especialmente se reivindicassem algo que parecesse, mesmo que remotamente,
como sendo sanção eclesiástica. Por conseguinte, não importava muito se os
que retomavam eram cristãos ou judeus. A sombra das Cruzadas ainda se
estende sobre Israel.

A Conquista Espanhola

Se os Cruzados tivessem se preocupado exclusivamente em proteger ou


reconquistar as terras cristãs do Islã, poderiam ter encontrado trabalho mais
perto de casa. Não muitos anos após a queda de Jerusalém diante dos árabes
em 637 e muito antes de os turcos ameaçarem Constantinopla, os exércitos
muçulmanos haviam se deslocado, ao longo do litoral sul do Mediterrâneo e
depois através do estreito para a Espanha - entrando na própria Europa.
Então, à medida em que o espírito cruzado se esvaecia no Oriente, assim tam-
bém diminuía o poder dos mouros no Ocidente.
Isso diz algo da força da idéia colonial, que no mesmo ano em que a
Espanha se libertava dos mouros, seus senhores coloniais, ela própria se lançava
no mais espetacular de todos os arriscados empreendimentos coloniais. Cristóvão
Colombo chegara ~aSevilha naquele ano - 1491 - em viagem de negócios; ele
havia vindo para convencer a rainha Isabel a apoiar suas viagens, mas não pôde
obter a atenção da soberana enquanto ela não se livrasse dos mouros. Tão logo
conseguiu fazê-Io, a construção da América espanhola estava em andamento.
O Império Espanhol foi uma realização notável. O dos romanos levou
séculos para se edificar. O mesmo aconteceu com o Britânico. Dentro de uns
poucos anos após as viagens de Colombo, a Espanha estava de posse da maior
112 parte do continente americano. Em meados do século 'XVI, "O Peru, um vice-
- --~.---------------------------------------------------------------- ..............••

A Idéia Colonial

-reino da Coroa espanhola, era administrado em igualdade com a própria


Espanha. Os espanhóis pensavam nele quase como se pensassem na Holanda.
Oregon, Washington (Estado) e a Colúmbia Britânica, apenas um pouco fora
da órbita espanhola, permaneceriam anônimos, ínvios sertões, por mais uns
três séculos.
Com a Espanha, a idéia colonial tomou forma definitiva e explícita.
Salvar almas era um propósito vigorosamente declarado. Como disse Adam
Smith, "A piedosa finalidade de converter. .. [os habitantes] ao Cristianismo
santificava a injustiça do projeto". 6 Mas as finalidades econômicas também
eram abertamente proclamadas a essa altura. Ninguém mais duvidava de que a
a
finalidade das colônias era de enriquecer os colonizadores e o reino espanhol.
Sendo o esforço espanhol, não havia razão para partilhar essas recom-
pensas. Dessa forma, o comércio colonial foi monopolizado pela Espanha. O
mercantilismo, a tese de que o comércio deve ser gerido pelo Estado, e a idéia
que Adam Srnith mais atacara, teve sua expressão clássica no Império Espanhol.
Terras, minas e os habitantes das Américas tinham por única finalidade
enriquecer seus senhores espanhóis.
Houve repetidos conflitos entre os dois propósitos, embora também
uma razoável e proficiente conciliação. A conquista das Américas pela Espanha
foi tão feliz a ponto de chamar a atenção de um dos maiores historiadores de
todos os tempos, William Hickling Prescott. A sua História da Conquista do
México e a congênere História da Conquista do Peru são, na minha opinião,
duas das mais completas e absorventes obras que já tive oportunidade de ler.
(Prescott ficou quase cego a maior parte da vida, devido a ter sua vista sido atin-
gida por uma côdea de pão atirada durante uma briga de estudantes quando
estudava em Harvard. Ele era tão altamente reputado na Espanha por seus
conhecimentos que, apesar dos riscos oferecidos no transporte marítimo do
século XIX, os estudiosos espanhóis lhe remetiam grandes caixas contendo
valiosos documentos, trabalhosas cópias de manuscritos originais', diretamente
da Espanha para Boston, para consulta e utilização.) Prescott tinha máximo
respeito para com o motivo religioso da colonização espanhola. Os domini-
canos, diz ele com profunda admiração, ..... dedicaram-se à boa tarefa da
conversão do Novo Mundo com o mesmo zelo que haviam demonstrado na
perseguição no Velho Mundo ... "7 Mas isso não excluía o empenho utilitário.
Uma solene comissão de padres para tratar de métodos coloniais concluiu,
segundo as palavras de Prescott, ..... que os índios não trabalhavam sem ser
coagidos e que, a menos que trabalhassem, não podiam ser postos em contato
com os brancos, nem convertidos ao cristianismo" . 8 Com isso, fica claro que o
Cristianismo se tornara a justificativa da escravidão. Não era uma associação,
pode-se acrescentar, que escapasse à atenção dos habitantes. Por volta de 1511,
um chefe indígena chamado Hatuey foi preso em Cuba por ter fomentado um
movimento de resistência de pouco alcance e, por isso, foi condenado a morrer
queimado num poste. Num gesto de compaixão, foi-lhe recomendado que
aceitasse o Cristianismo de modo que, no fim, ele ganharia sua entrada no céu.
Perguntou se o~ brancos já haviam chegado lá. Tendo sido assegurado dessa 113

••••••••••••••••••••••••••••••••••••• J
A Era da Incerteza

probabilidade, ele respondeu: "Então não quero ser cristão; pois não gostaria
de ir para um lugar onde encontraria gente tão cruel' , . 9

A Burocracia

Os Cruzados não estavam sujeitos a controle algum de seus respectivos


governos na França, Inglaterra ou Alemanha, e apenas a uma pequena super-
visão de Roma. O Império Espanhol, por outro lado, era um empreendimento
rigorosamente administrado, ou pelo menos devia ser. Uma bela prova disso, e
da crença na suprema sabedoria do Estado, encontra-se disponível até hoje em
Sevilha. Até 1717, Sevilha era o quartel-general da administração colonial. Os
arquivos coloniais continuam lá, série por série, sala após sala, no Archivo
General de Indias. Construído em 1598, o imponente edifício retangular serviu
de bolsa de valores até 1875, um lugar onde os homens de negócios dos mais
diversos tipos se reuniam e trocavam dinheiro, propriedades e bens. Depois
disso, foi usado; como ainda o é, para abrigar a papelada produzida pela buro-
cracia colonial.
O volume de papéis produzidos dessa forma é realmente imenso. Por
volta de 1700, cerca de quatrocentas mil normas que regulamentavam os negó-
cios coloniais haviam sido emitidas. Um esforço feito em 1681 para unificar e
codificar toda essa legislação produziu aproximadamente onze mil leis. Presu-
mia-se que tudo isso os administradores coloniais deveriam conhecer e seguir à
risca. O Império Espanhol talvez tenha funcionado apenas porque os seus
regulamentos eram tantos que ninguém imaginava que fosse possível aplicá-
-los, As pequenas bobagens que fizeram as colônias inglesas se revoltarem
- as Leis do Selo, por exemplo - jamais seriam notadas em meio aos regula-
mentos espanhóis.
Alguns dos papéis remanescentes são um prazer. Existe, por exemplo,
uma carta do próprio Colombo, datada de 5 de fevereiro de 1505. É dirigida a
seu filho Diego, e aborda assuntos de família, financeiros e de negócios. Uma
outra carta, de Cortés, escrita em 1526, descreve sua viagem de Havana ao
México passando por SanJuan, Puerto Rico. Ele recomenda cuidado com certas
tendências de rebeldia no Novo Mundo. Uma missiva de Francisco Pizarro,
escrita em 1539, à rainha de Espanha, conta à soberana que ele lhe estava
enviando algumas esmeraldas. Ele pede, cautelosamente, um recibo. Eu dei a
entender que alguns historiadores acham que Urbano 11organizou as Cruzadas
porque foi atraído pela idéia de manter os Cruzados longe da Europa, na Terra
Santa. Qualquer um que conheceu os irmãos Pizarro, os conquistadores do
Peru, com toda certeza rejubilou-se com o fato de eles se encontrarem nas
Américas. O cuidado de Francisco Pizarro em solicitar um recibo pode muito
bem advir da tendência de avaliar o caráter dos outros pelo próprio. A análise
que Prescott faz dele é sem rodeios: "Pizarro era eminentemente falso".!" O
114 historiador prossegue, falando da crueldade do conquistador e de seus irmãos.
A Era da Incerteza

Os documentos existentes no Archivo também têm sua própria história


a contar sobre a buroiracia colonial. Em 1654, um deles revela que a catedral de
Valladolid, Michoacân, precisava de consertos e uma restauração. Pedia-se
autorização para proceder aos trabalhos. O assunto continuava em discussão
vinte anos mais tarde, em 1672; a restauração finalmente foi completada uns
sessenta anos mais tarde.
Além de muita outra coisa, a herança da burocracia era real. Muito
depois de a Espanha ter partido, o governo das antigas colônias continuava
excessivamente centralizado. Também era negligente e rejeitava a reação
normal ao que o havia precedido. Ocolonialismo britânico, pelo contrário, era
informal, descentralizado, tranqüilo, até mesmo descuidado. Até o século
passado, com exceção de um escritório encarregado dos assuntos da Índia e, por
algum tempo, uma secretaria que cuidava das questões americanas, a Grã-
-Bretanha não tinha uma repartição governamental com responsabilidade pelos
assuntos coloniais. Essa tradição, por sua vez, incentivou as idéias smithianas
nas colônias e fez com que os colonizadores passassem a cuidar de si mesmos,
não esperando nada do governo central, para seu próprio bem-estar.

México

Na terceira década do século passado, o domínio espanhol no conti-


nente americano chegou ao fim. Uma vez mais a queda de interesse. Os gover-
nantes espanhóis não mais estavam dispostos a recrutar e pagar a força militar
necessária. Os homens não mais se mostravam ansiosos por lutar nas colônias
para preservar a glória da Espanha e a propriedade de estranhos e ricos. As
tropas recrutadas localmente, das quais havia uma dependência cada vez
maior, eram leais não à Espanha mas sim ao seu país natal. O volume de instru-
ções burocráticas que procedia da Espanha era um incômodo, mesmo quando
desprezado. A ocupação da Espanha pelos Bonapartes foi o coup de grâce, o
golpe de misericórdia que seccionou toda e qualquer reivindicação da Coroa
Espanhola à lealdade de seus súditos no além-mar. A missão dos libertadores
- Bolívar, San Martin - foi, uma vez mais, o impacto sobre a porta apodre-
cida. Também foi algo um pouco menos que uma libertação.
Quando os laços com a Espanha foram cortados, os grandes latifúndios
que constituíam a recompensa econômica da aventura colonial permaneceram
imperturbados. O direito dos proprietários de viver à custa do trabalho dos
outros não foi afetado. Na verdade, foi em parte o esforço-de Madri em restrin-
gir o poder, limitar os privilégios, controlar o suborno, e regulamentar a ação
predadora dos donos das terras locais que incentivou-os a pensar em indepen-
dência. Nada foi mais importante na experiência colonial que a tendência no
sentido de uma conscientização de que seria muito pior na pátria-mãe do que
entre aqueles mais imediatamente envolvidos na exploração dos naturais do
lugar. Os colonizadores sentiam que falavam com a voz da experiência,
116 achavam que conheciam o "seu povo", quão incapaz e impotente este real-
A Idéia Colonial

mente era, e sabiam quão necessário era que o povo fosse governado com pulso
forte. Também era o interesse econômico dos colonizadores que estava direta-
mente envolvido no caso. Após a independência, o poder na América espa-
nhola continuou com os donos da terra. Havia agora constituições e legisla-
turas, mas havia menos do que se podia supor. Era a extensão das terras, e não
o voto, que continuava pesando na balança.
O resultado no México foi uma outra mais prolongada e bem mais
profunda revolta, um século após a primeira. Esta foi a verdadeira revolta
contra o colonialismo. A primeira fora apenas um render da guarda; a de 1910
e depois envolvia terras e gente. Tendo mais interesses envolvidos, esta revo-
lução, evidentemente, foi muito mais sangrenta do que a anterior.
E assim também foi em Cuba. Ali igualmente, quando os espanhóis
saíram, o poder permaneceu em mãos de um punhado de donos das terras. Nos
anos que se seguiram, a propriedade concentrou-se ainda mais, boa parte dela
em Nova York. Foi só quando Fidel Castro apareceu que Cuba finalmente
rompeu com o colonialismo. Na maior parte restante da América Latina, essa
ruptura ainda está incompleta. Ditadores, militares e outros protegem antigos
ou mais recentes privilégios. Os Estados Unidos têm dupla atuação: às vezes,
ajudam os ditadores locais; em outras ocasiões, são acusados de injustiça e
exploração que talvez devessem antes ser atribuídas ao talento local.
Existem razões mais ou menos empíricas para considerar-se os déspotas
nativos mais poderosos. Os dois países geograficamente mais próximos dos
Estados Unidos, México e Cuba, são os que tiveram revoluções realmente pro-
fundas - os dois que acabaram por completo com as antigas estruturas colo-
niais. Eu costumava dizer aos meus muitos alunos latino-americanos que a
infelicidade do resto da América Latina era exatamente estar demasiado dis-
tante da tutela revolucionária dos Estados Unidos. Não me deram crédito.

o Caso da Louisiana
Na Califórnia, no Texas, na Flôrida e nos Estados do sudoeste, os
Estados Unidos também tiveram a experiência do colonialismo espanhol. Mas,
sendo a Flórida uma pequena exceção, tratava-se de terras distantes, esparsa-
mente povoadas, e continuaram sem população e inaproveitadas. O legado
colonial espanhol foi aí bem mais suave e menos duradouro do que no México e
nas Américas Central e do Sul. A influência colonial bem mais interessante
nesses territórios foi por parte da França, embora também houvesse um inter-
lúdio espanhol.
Uma vez mais se reuniam economia política e religião. A procura de
metais preciosos era o objetivo econômico. Em 1719, John Law, de quem
falarei mais tarde, 11 emitia notas de banco aos borbotões em Paris. Essas notas
eram avalizadas pelo ouro e prata que somente tinham que ser extraídos do
Vale do Mississippi. Esse ouro e essa prata ainda não foram encontrados, mas as
perspectivas naquela época pareciam bem melhores. Diversos mapas 117
A Era da Incerteza

circulavam na França mostrando minas ou riquezas inirnaginâveis, tudo produto


da imaginação. A salvação das almas era menos importante do que no Império
Espanhol, em pane, sem dúvida, porque os franceses eram menos devotos, e em
parte por haver na região menos almas disponíveis para salvar. Um outro
problema surgiu devido à péssima qualidade das almas dos colonizadores. Em
1718; cerca de umas cem milhas rio acima no Mississippi, foi fundada a pri-
meira povoação. Ela foi chamada de Nova Orleans, em honra do Regente -
que não era o melhor em matéria de nomenclatura. Geralmente pensa-se
numa cidade batizada em honra, digamos, de Eduardo VIII - como Nova
Windsor. Logo depois que Nova Orleans foi fundada, uma freira ursulina,
Marie-Madeleine Hachard, fez um levantamento das condições morais não dos
pagãos mas sim entre os recém-chegados cristãos, e concluiu: " ... não apenas a
libertinagem, a falta de fé e todos os demais vícios reinam aqui, mas dominam
de uma forma indescritível!' 12
Ao contrário do colonialismo espanhol, o francês era extremamente
negligente, desorganizado. No momento em que a falta de metais preciosos se
tornou patente, o interesse caiu imediatamente. Os franceses não ansiavam por
grandes propriedades rurais naqueles sertões. Não havia indígenas para traba-
lhar. E os franceses não se esqueciam de que a colônia era um dos sustentáculos
da farsa criada por Law. Para demonstrar quão pequeno era o interesse, a colô-
nia da Louisiana, em 1762, foi cedida à Espanha. Os colonizadores resistiram
ao domínio mais sistemático dos espanhóis até que a Espanha despachou para
lá um oficial de origem irlandesa, Alexander O'Reilley, para ser governador.
O'Reilley era um homem afável e encantador. Conquistou os corações dos
dissidentes, convidou seus líderes para uma recepção e mandou executâ-los.
Em 1800, a Louisiana foi reconquistada por Napoleão, e três anos mais
tarde foi vendida a Thomas Jefferson. Juntamente com o Alasca, foi uma das
poucas grandes regiões coloniais adquiridas, não através de pilhagem ou por
direito de descobrimento, mas sim numa transação direta, honesta. Os 530 mi-
lhões de acres (incluindo lagos e rios) custaram US$ 27,3 milhões, com os juros,
ou seja, em torno de 5 cêntimos por acre (4047 m 2).
Ora, corno acontecia na América Latina, a terra era alienada em
grandes áreas. Lá era a hacienda ou fazenda; aqui era a plantação. Já que a terra
não vinha com os trabalhadores e estes eram necessários para plantar e cortar a
cana, e plantar, cortar e colher o algodão, eles foram trazidos dos Estados mais
antigos da união americana ou então da África. A idéia colonial deitou raízes
aqui tanto quanto no México. Apenas as aparências eram diferentes. E, assim
como no México, ela provocou mais tarde uma revolta, que repudiava o poder
dos fazendeiros donos das plantações e afirmava os direitos do povo. Isso
começou em 1861 com a Guerra Civil e continuou até os nossos tempos. Como
nó México, a Guerra Civil foi a genuína revolta contra a sociedade colonial.
Como no México, foi uma transição extremamente sangrenta.
Aqui também houve a clássica mescla de motivos. Os donos das planta-
ções observavam a maioria de suas obrigações morais para com os escravos.
118 Davam-lhes instrução religiosa e, com isso, a oportunidade de salvarem as
A Era da Incerteza

almas, protegiam-nos num mundo rude e cruel para o qual, segundo se jul-
gava, por suas condições de crianças inocentes e felizes, estavam inteiramente
despreparados. A religião também entrava em cena de uma outra forma: os
homens falavam dos sagrados direitos de propriedade, e os escravos eram de sua
propriedade. Mas, como acontecia em outras sociedades coloniais, ninguém
duvidava que as pessoas eram muito úteis para cultivar a terra, cuidar da
colheita e fazer fortuna.

Lahore

No tempo dos ingleses, Lahore, situada no que hoje é o Pendjab do


Paquistão, era chamada de Cidade-Rainha. A lenda de Shalimar persiste até o
presente, como também o Jardim. Ser um habitante do Pendjab na época do
Raj era o mesmo que ser eclêtico, progressista, inteligente, marcial e, pelos
padrões indianos, relativamente próspero. E continua sendo.
Quando a dominação inglesa chegou a Bengala e Madras, bem mais
para o sul e leste, foi como a da Espanha e da França na América, algo bastante
franco e sincero. Realmente, falando a sério, ninguém deu a entender que a
Companhia das Índias Orientais era uma instituição religiosa ou filantrópica.
Fora criada para comerciar e ganhar dinheiro. Ela conquistou, pacificou e
administrou, mas tudo isso se faúa necessário para que se pudesse ter lucros.
O colonialismo demorou para chegar ao Pendjab; os governantes Sikh
foram finalmente subjugados e o território anexado, mas isso apenas em 1849.
A essa altura, a Honourable Company já estava agonizando e a dominação
britânica seguia uma orientação diferente. Esta compreendia uma completa
reformulação da idéia colonial, aliás muito importante também para franceses
e holandeses no século XIX. Os propósitos mais nobres e elevados do colonia-
lismo não mais eram de fundo religioso. A Igreja da Inglaterra era para os
ingleses; os missionários eram tolerados, mas não incentivados, e para muitos
administradores coloniais eles não passavam de um incômodo estorvo. A nova
fé era a lei. Os ingleses encontravam-se na Índia para comerciar e ganhar dinheiro.
Afinal, não havia nenhum mal nisso. Mas a finalidade redentora era adminis-
trar de acordo com a lei. Era uma idéia de poder genuíno.
Em 1859, ano que se seguiu ao enterro da Honourable Company, um
jovem inglês, John Beames, de apenas 21 anos de idade, chegou ao Pendjab
como funcionário público. Foi lotado em Gujrat, um vasto distrito situado a
noroeste de Lahore. Aí ele se tornou Subcomissário, que vale dizer, juiz e
assistente geral do homem que governava a região. Mais tarde, Beames serviu
em Bengala, Orissa (situada entre Calcutá e Madras) e Chittagong, no que é
hoje Bangladesh. Quando, no transcorrer dos anos, ele se aposentou e voltou à
Inglaterra, resolveu escrever a história de sua carreira. 13 Especialmente no que
diz respeito ao início de sua vida profissional, Beames lembrava-se de quase
120 tudo.
A Era da Incerteza

Ele próprio não estava, nem um pouco, interessado em fazer fortuna;


isso seria inadmissível. Que outros ingleses achassem a Índia uma possessão
lucrativa era algo normal para ele. Isso nada tinha a ver com ele; aquelas
pessoas, os homens de negócios e donos de plantações, eram uma casta total-
mente inferior. A preocupação de Beames era com o governo - com o povo
governado, com os colegas britânicos e seus superiores hierárquicos (os quais ele
geralmente criticava), bem como com as tarefas da governação que atacava e
das quais escreveu com orgulho de artífice. Ele confessou sua fé. "Governar
homens", disse ele em seu livro, "é um trabalho sublime, a mais nobre de
todas as ocupações ... embora talvez seja a mais difícil." 14 Essa separação fun-
cional entre o governar e os assuntos pecuniários e de sua condição categorica-
mente superior era a meta básica do colonialismo britânico em seus últimos
tempos.
Em grande parte devido a isso, nos cem anos que se seguiram à chegada
de Beames ao Pendjab, a Índia foi uma das nações mais bem governadas
em todo o mundo. Tanto as pessoas como as propriedades estavam seguras.
Pensamento e expressão estavam mais seguros do que nos tempos mais recen-
tes. Havia uma ação decisiva e eficaz no sentido de dominar a fome e melho-
rar as comunicações. Os tribunais funcionavam com imparcialidade e muito
ao agrado dos hindus, que por natureza são litigiosos. As despesas do gover-
no - o que não é um pormenor sem importância onde tantos são tão pobres
. - eram relativamente baixas, bem mais baixas do que sob os governantes
e predadores que os britânicos desalojaram de lá. Sob outros aspectos -
construção de ferrovias, repressão de distúrbios populares - era bem mais
eficiente do que os despotismos fúteis, corruptos, arbitrários e anárquicos
que existiram antes e que, nos últimos anos, os ingleses toleraram. Os gover-
nantes britânicos eram convencidos, com preconceito de raça e geralmente
arrogantes. Mas, se de alguma forma se pudesse dizer que o colonialismo foi
um sucesso (excluindo sempre as terras desocupadas), seria na Índia. E foi esse o
exemplo, acima de todos, que prova em definitivo: a única coisa certa sobre os
esforços de um povo para governar outro povo à distância é que ele fracassará, e
que a partida refletirá os desejos tanto de governantes como de governados.
O fim na Índia chegou a 15 de agosto de 1947. No caso, os ingleses
também podiam ter ficado. O esforço teria sido mais barato e mais fácil do que
o de derrotar os alemães, luta essa em que acabavam de estar envolvidos. Mas
os ingleses deixaram de acreditar que a finalidade colonial justificasse esse
empenho modestamente maior. E, conquanto hindus, sikhs e maometanos
discordassem profundamente sobre as condições da partida, todos estavam con-
cordes em querer que eles fossem embora.
A reputação inglesa de governo justo sobreviveu à retirada da Índia,
um atestado de seu comprometimento. A lei, logo após a saída dos ingleses.
não se manteve. No setentriãoindiano, o fim do governo britânico provocou
que talvez tenha sido a mais perversa crueldade dos tempos modernos.
maometanos massacraram os sikhs; os sikhs massacraram os maometanos. E
122 fizeram com porretes e facas, à mão, a sangue frio. Toda a anarquia contida 5
A Era da Incerteza

armazenada durante um século subitamente se libertou. As regras que gover-


nam o colonialismo se afirmaram. São a reação a realizações anteriores - e um
final sempre confuso e desordenado.

A Experiência Americana

Não foi o último final desse tipo. Também houve o Congo, Argélia,
Angola e Vietnã.
Para a atual geração de americanos, a experiência no Vietnã parece
única, sem precedentes. Procuramos orientar a vida política de um país distante
do nosso. Fracassamose fomos repudiados. O final foi desastroso, medonho.
Analisado em toda a amplitude da história, a experiência vietnamita
não parece destacar-se, nem o seu final surpreende. Por incrível que possa
parecer, fomos avisados pela mais eloqüente de todas as vozes sobre a idéia
colonial. Ele havia prevenido, não porque fosse contra o colonialismo, mas sim
porque tinha sido parte integrante do mesmo.
Nenhum americano em mil, e menos ingleses ainda, sabe que Rudyard
Kipling viveu (de 1892 a 1896) nos arredores de Brattleboro, no sudeste do
Estado de Vermont. A casa que ele construiu ali ainda existe, por sinal um
exemplo de mau gosto vitoriano, que almas sensíveis até acham agora um
pouco mal-assombrada. Na verdade, não há nada de horrível na paisagem, que
se estende por umas quarenta milhas ao redor, por uma floresta que cruza o rio
Connecticut, entrando na parte sul de New Hampshire, até o Monte Monadnock.
Em seu gabinete de trabalho, que está intacto desde que ele o deixou, Kipling
escreveu The jungle Books (O Livro do ]ângal) e Captains Courageous, que
estão entre seus mais famosos livros.
Tendo morado na América, Kipling sentiu-se obrigado a dar um
conselho, em 1898, quando, com a Guerra Hispano-Arnericana e a aquisição
das Filipinas, teve início a experiência colonial americana. Ninguém corava
naquela época ao falar do homem branco e de sua responsabilidade. Todavia,
era preciso que sesoubesse o que era esperado.

Do Homem Branco o fardo a si tome -


As cruentas guerras de.paz -
Encha bem a boca da Fort;e .
E as doenças mande cessar.

Faça isso com seus vivos


Com seus mortos, assinale-os!
Do Homem Brancoo fardo tomaste -
E colheste para si a velha paga:
A Reprovação dos que ajudaste,
126 O ódio dos que guardaste. 15
A Idéia Colonial

As guerras de paz começaram quase que de imediato, com a insurreição


nas Filipinas, uma longa e deprimente luta. Mas a que foi realmente selvagem
viria sessenta anos mais tarde, no Vietnã.
No Vietnã as palavras eram outras, a idéia colonial era a mesma. Ante-
riormente, fora a de salvar as pessoas do atraso, da idolatria, da indolência, do
mau governo. Agora tratava-se de salvá-Ias do comunismo. Os ingleses haviam
governado o ocidente da Índia por meio dos príncipes, a península malaia
através dos sultões, a África através dos chefes de tribo. Chamava-se a isso de
governo indireto. No Vietnã, nós governamos ou procuramos governar através
de Diern, Ky e Thieu, que não eram príncipes, nem sultões ou chefes tribais,
mas governantes livremente escolhidos.
Para alguns, salvar o Vietnã do comunismo constituía uma cruzada, era
assim chamado, e parecia uma ação tão nobre quanto o foi a salvação de Cons-
tantinopla dos turcos ou a redenção de Jerusalém das mãos dos infiéis. Para
outros, era uma oportunidade de ganhar algum dinheiro. Para outros mais, a
mescla de razões era mais sutil; aliada à livre iniciativa estava a liberdade. A
segunda era tão importante como a primeira, e uma cobertura para ela. Se o
comunismo tivesse êxito no Vietnã, a liberdade e com ela a livre iniciativa esta-
riam ameaçadas na Tailândia, na Malásia, em Singapura, no Hawaí. Era a
teoria do dominó; o motivo de ordem econômica ocultava-se logo atrás. É
melhor lutar pela liberdade e livre iniciativa lá no Vietnã do que nas praias de
Oahu, no Hawaí. Ou, depois disso, talvez em Malibu.
Os Estados Unidos podiam ter permanecido no Vietnã - quanto a isso
não há a menor dúvida. Mas, como aconteceu com os portugueses, os ingleses,
os franceses, os espanhóis e entre os cavaleiros e reis cruzados, houve uma
queda do esprit colonial. O que foi um declínio lento em outros países deu-se
com incrível rapidez nos Estados Unidos. O povo não queria mais pôr de lado
sua descrença, aceitar os motivos mais elevados, desprezar as razões mais
baixas, de ordem econômica; E mais uma vez houve aquele final confuso.
Como aconteceu em Acre, vieram oferecendo dinheiro em Saigon.
Então, como sesabe, foi por um lugar nas galeras. Desta feita, foi um lugar-
zinho nos helicópteros. Estes eram bem mais rápidos do que as galeras, e a
viagem terminava mais rapidamente. Além do mais, podia ser vista na tele-
visão. Apenas por isso a experiência de colonialismo havia mudado num
período de mais de setecentos anos.

Réquiem

Será que a experiência colonial ficará para sempre na história? Os Esta-


dos Unidos se machucaram mesmo; o esforço de governar indiretamente e
moldar o progresso político de terras distantes de agora em diante sem dúvida
será encarado com máxima cautela. Mas não são apenas os Estados Unidos que 127
A Era da Incerteza

sofreram esse revés. A União Soviética, nos anos que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial, procuraram estender sua influência à Iugoslávia, à China, ao
Egito, à Indonésia e Ghana. Ao analisar os resultados, os soviéticos têm poucas
razões de júbilo. Quando Ben Bella, um acólito soviético, foi deposto na Argé-
lia, um correspondente de um jornal russo disse-me com ar de tristeza: "Eles
usaram os nossos tanques. Bem, pelo menos não usaram os nossos assessores".
Os chineses, por sua vez, tornaram-se inimigos figadais dos russos. Outra vez
"A Reprovação dos que ajudaste". Espera-se que agora exista um livro de
Kipling no Kremlin.
Mas, não obstante o colonialismo esteja morto, suas cicatrizes perma-
necem. As antigas potências coloniais são agora as ricas nações industriais. Suas
antigas colônias são os países pobres do mundo. O colonialismo é culpado por
essa pobreza. Como ressaltamos anteriormente, ele é inculpado sempre que
um fracasso local- isto é, do governo de gente da própria terra, dos políticos,
homens de negócio ou da política econômica - é mais salutarmente explicado
dessa maneira.
A experiência colonial também torna profundamente sensíveis as
relações entre países ricos e pobres. Que as nações ricas têm por obrigação
ajudar os países pobres é algo amplamente aceito. E que eu reconheço com
veemência. Mas, mesmo que o dinheiro e a vontade de ajudar estejam pre-
sentes, o problema não termina aí. Se o país que presta ajuda permanece
remoto, espera até ser solicitado a auxiliar, não interfere de forma alguma,
será considerado descaso, indiferença. E, quase sempre, a ajuda será mal
empregada.
A alternativa é mostrar-se interessado, prontificar-se, ficar atento,
demonstrar empenho em insistir naquilo que parece mais acertado e sensato.
Mas, então, corre-se o risco de ser chamado de neocolonialista, acusado de estar
tentando reinstituir a dominação ou um governo imperialista.
Quanto à delicadeza desta última frase, posso testemunhar como
embaixador americano que fui na Índia, embora a Índia jamais tenha sido o
caso mais difícil nesse particular. Por instinto, eu sempre me envolvo nessas
questões. O progresso econômico é um grande e fascinante empreendimento.
Nada se lhe compara. Mas, como é que se pode fugir à milenar tradição de
fome e privação? Não me faltavam idéias. E os Estados Unidos estavam forne-
cendo uma boa quantidade de comida e muito dinheiro. Pela aplicação desses
recursos, eu era em boa parte o responsável. O falecido Krishna Menon
concluiu, em suas memórias, que meu propósito quase declarado 'era o de
tornar-me o novo vice-rei. Pela maioria dos outros eu fui perdoado. Mas, ao
contrário de inúmeros outros americanos, eu tive a sorte de ter sido avisado.
í

Passei boa parte da vida no sudeste do Vermont e sabia tudo a respeito de


Kipling.
Eu disse anteriormente que abordar a questão colonial e sua experiên-
cia nesta nossa discussão seria desviar-me do tema principal, que é o desenvol-
vimento do capitalismo e do socialismo no que resolvemos chamar de países
128 adiantados. Está na hora de retomar o fio da meada.

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