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Edifício da Antiga Cadeia e Tribunal da

Relação do Porto
MANUEL DE SOUSA

A apenas 250 metros da Livraria Lello O local escolhido foi o Campo do Olival,
fica um vasto edifício que encerra uma decorrendo as obras sob a direção do corre-
enorme carga simbólica. Trata-se de um gedor Manuel Sequeira Novais. A constru-
exemplar único da arquitetura prisional do ção do enorme edifício consumiu tantos re-
Antigo Regime – onde o escritor Camilo cursos financeiros que todas as outras obras
Castelo Branco esteve preso e escreveu a da cidade tiveram de ser suspensas até à
sua obra-prima, o Amor de Perdição – e que sua conclusão. No entanto, a qualidade da
hoje conserva as obras dos pioneiros da construção não seria a melhor. No dia 1 de
fotografia em Portugal. Vamos saber mais… abril de 1752, um Sábado de Aleluia, sem
ANTIGA CADEIA DA RELAÇÃO VISTA DA CORDOARIA. FOTO: MANUEL DE SOUSA

Novo tribunal no Porto nada que o pudesse justificar, o edifício des-


morona-se por completo, perante os olhos
Tinha passado apenas um ano desde que estupefactos dos portuenses. Tribunal e ca-
Filipe II de Espanha fora aclamado rei de deia tiveram de voltar a ocupar a antiga
Portugal – dando início a um período conhe- Casa da Câmara, ao lado da Sé.
cido como União Ibérica (1580-1640) – Foi já durante a vigência da Junta de
quando foi criado o Tribunal da Relação do Obras Públicas (1763-1804) no Porto que se
Porto. avançou com a reconstrução do edifício.
Por falta de instalações próprias, o novo João de Almada e Melo chamou Eugénio
tribunal começou por funcionar na Antiga dos Santos (1711-1760), um dos principais
Casa da Câmara, junto à Sé. Seria já o seu reconstrutores da Baixa Pombalina de Lis-
filho e sucessor, Filipe III de Espanha, a or- boa, para traçar o novo projeto da Cadeia e
denar a construção, de raiz, de um edifício Relação do Porto. As obras demoraram-se
que funcionasse como tribunal e cadeia, em 30 anos, entre 1765 e 1796.
1603.

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Estamos perante um edifício de três an- A Cadeia da Relação do Porto acolheu as-
dares, planta poligonal irregular e aspeto sassinos, malfeitores, falsários, vagabun-
austero. Apresenta duas fachadas nobres, dos, larápios de ocasião, políticos em des-
uma voltada a nascente, para a Rua de São graça, revolucionários falhados, entre mui-
Bento da Vitória, e outra, hoje a principal, tos outros. Por aqui passaram, também,
voltada para o atual Largo do Amor de Per- presos famosos. O duque da Terceira esteve
dição. no número 8 dos quartos de malta; no nú-
mero 13 esteve Vicente Urbino de Freitas, o
Das enxovias aos quartos da malta médico acusado de envenenar os sobri-
nhos. Mas talvez os presos mais famosos se-
No interior, a área prisional disponha-se jam o casal de escritores românticos Camilo
em três pisos: ao nível térreo, situavam-se Castelo Branco e Ana Plácido, ele detido no
as seis enxovias, batizadas com nomes de quarto número 12 e ela na sala das mulhe-
santos: Santo António, São Vítor, Santa Rita, res, do segundo piso. Diz-se que Camilo es-
Senhor de Matosinhos, Santa Ana e Santa creveu o Amor de Perdição na prisão em
Teresa (esta úl-

VISTA INTERIOR DOS QUARTOS SUPERIORES DA CADEIA DA RELAÇÃO DO PORTO, C.1850; BNP
tima para mu-
lheres). Escuras,
húmidas e muito
frias, eram lajea-
das a granito e
só tinham
acesso por alça-
pões colocados
no teto. Esta-
vam sistemati-
camente super-
lotadas com pre-
sos de baixa
condição. No se-
gundo piso, situ-
avam-se os sa-
lões de Nossa
Senhora do
Carmo e de São José e a sala das mulheres, apenas quinze dias. O salteador Zé do Te-
espaços igualmente coletivos, mas menos lhado, o caudilho miguelista Pita Bezerra e o
insalubres. No piso superior, ficavam as pri- jornalista político João Chagas também co-
sões individuais. Eram conhecidas como nheceram as celas da velha cadeia.
quartos da malta e estavam reservadas a Em 1974, após cerca de 200 anos de ati-
pessoas de estrato social e económico ele- vidade ininterrupta, este exemplar único de
vado. Aqui os presos podiam circular livre- arquitetura prisional do Antigo Regime, dei-
mente, sendo as portas encerradas apenas xou de desempenhar as funções para as
durante a noite. quais foi construído, sendo os presos trans-
O edifício dispunha ainda de celas para feridos para o Estabelecimento Prisional em
presos incomunicáveis, uma prisão para Custóias.
menores e um oratório para os réus conde- Em 2000 – com projeto dos arquitetos
nados à morte, no primeiro piso. Em Portu- Eduardo Souto de Moura e Humberto Vieira
gal, a pena de morte foi abolida em 1867, há – foram feitas profundas obras de conserva-
exatamente 150 anos. Portugal foi o pri- ção e adaptação do edifício às suas novas
meiro Estado soberano moderno da Europa funcionalidades: acolher o Centro Portu-
a abolir a pena de morte para crimes civis. guês de Fotografia.

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Bibliografia LOZA, R. (1993). Porto a Património Mundial - Pro-
ALVES, J. F. (1985). “A Cadeia e Tribunal da Relação do cesso de Candidatura da Cidade do Porto à Classifica-
Porto. Quatro documentos para a história da sua ção pela UNESCO como Património Cultural da Huma-
construção”. Boletim do Arquivo Distrital do Porto. nidade. Porto: Câmara Municipal do Porto.
ALVES, J. F. (1988). O Porto na época dos Almadas: ar- QUARESMA, M. (1995). Inventário Artístico de Portu-
quitectura, obras públicas. Porto: Centro de História gal: Cidade do Porto. Lisboa: Academia Nacional de
da Universidade do Porto. Belas-Artes.
COELHO, M. S. e SANTOS, M. J. M. (1993). O palácio SOUSA, M. (2017). Porto d’Honra. Lisboa: A Esfera dos
da Relação e Cadeia do Porto. Porto: Edições ASA. Livros.

Sobre o autor:

Manuel de Sousa (1965) é licenciado em Ciências Históricas, tem uma pós-graduação em Marketing Digital e um
mestrado em Turismo. Desenvolveu atividade profissional ligada à área empresarial, nomeadamente à Comunicação
e ao Marketing. Procurando aliar o seu interesse pela história local com as redes sociais, criou a página Porto Desa-
parecido no Facebook, cujo sucesso lhe valeu a atribuição da Medalha Municipal de Mérito pela Câmara do Porto.
Em 2017, publicou o livro Porto d’Honra, da editora A Esfera dos Livros, que reúne 15 episódios históricos da cidade
do Porto.

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