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As 1 001 utilidades de uma marca

O caso da Bombril é um exemplo de como uma marca sólida


pode salvar uma empresa até das mais profundas crises

Cíntia Borsato

Lailson Santos
A Bombril está comemorando: registrou um
lucro de 84 milhões de reais no primeiro
semestre de 2009. Não se trata de um
resultado como qualquer outro. É a primeira
boa notícia em muitos anos - e o primeiro
sinal palpável de que uma crise que, muitos
apostavam, obrigaria a empresa a fechar as
portas pode estar se revertendo. O processo
de decadência começou na década de 80 -
mas atingiu seu auge entre 2002 e 2006,
quando a Bombril chegou a paralisar a
produção por falta de dinheiro para comprar
matéria-prima. Nesse longo período,
sucederam-se episódios negativos, como a
guerra por poder travada entre os herdeiros,
que chegaram a trocar socos e xingamentos
nos corredores da fábrica de São Bernardo
TENTATIVA DE LIMPAR A CASA
do Campo, desvios de dinheiro e uma
Ronaldo Ferreira, hoje no comando: corte
coleção de fraudes financeiras. De 2006 de custos e executivos no lugar dos amigos
para cá, teve início uma reestruturação
radical, capitaneada por um dos três herdeiros, o economista Ronaldo Sampaio
Ferreira, o único que ainda está lá. Nos quadros de administração, parentes e
amigos foram substituídos por executivos tarimbados, que renegociaram uma
dívida astronômica, frearam gastos e enxugaram custos fixos, além de trazer à
Bombril novas práticas de gestão e governança corporativa. Certamente, a
empresa não teria permanecido viva se não estivesse apoiada numa marca tão
forte, criada pelo comerciante Roberto Sampaio Ferreira em 1948 e até hoje
sinônimo do produto que é, de longe, seu carro-chefe: a lã de aço. Diz o consultor
René Werner: "Por mais trapalhadas que houvesse na empresa, elas nunca
respingaram na marca".

Divulgação
O MESMO ROSTO
Carlos Moreno, na década de 70: 31 anos no ar

Marcas valiosas ajudam a explicar a longevidade de algumas das mais antigas


empresas brasileiras, como, por exemplo, Hering e Lupo (veja reportagem). Mas
nenhuma marca nacional, seja qual for o setor de atuação da companhia, é mais
sólida do que a Bombril. Isso se vê em números. Suas lãs de aço chegam a 80%
das casas brasileiras, um recorde para qualquer setor. Trata-se ainda do segundo
artigo de limpeza mais vendido no país, atrás apenas do sabão em pó Omo (da
multinacional Unilever). Em nenhum outro lugar do mundo a lã de aço foi tão
assimilada quanto no Brasil, que concentra dois terços do mercado mundial desse
produto. A razão é cultural. Os brasileiros revelam um apreço pelo brilho na
limpeza como ninguém mais, segundo mostram as pesquisas. Além disso,
conferiram vários usos à tal lã, como afixá-la à antena da televisão para melhorar a
imagem e até servir de adubo para plantas. Nos anos 70, um produto parecido
surgiu no Brasil - mas vinha com detergente, tal qual nos Estados Unidos, e não
vingou. A antiga versão já havia sido incorporada aos hábitos locais. Conclui
Alexandre Zogbi, da consultoria Interbrand: "A Bombril é um daqueles casos raros
em que um vínculo emocional liga as pessoas a um produto - e à sua marca".

No ápice da crise, em 2003, foi justamente a marca que salvou a empresa do pior.
Sem crédito na praça e com 570 títulos protestados, a Bombril precisou demitir
30% de seus funcionários e paralisou a produção. "Só se via gente ociosa. O
silêncio das máquinas era o maior sinal da decadência", recorda-se a gerente de
novos produtos, Adelice de Moraes, há 33 anos lá. Nesse tempo, os executivos da
Bombril batiam à porta das grandes redes de supermercados e atacadistas,
implorando para que fizessem compras antecipadas e mais: que pagassem à vista.
Em troca, concediam-lhes descontos graúdos. Havia um detalhe peculiar nessa
transação: com prateleiras abarrotadas de Bombril, os supermercados não
colocavam à venda a nova mercadoria. Ela ficava armazenada em depósitos. Por
que, então, essas redes seguiam comprando mais e mais lãs de aço? "Para
manter a Bombril de pé", explica Hélio Mariz de Carvalho, da consultoria
FutureBrand, que acompanhou o caso. "Se a empresa morresse, provavelmente
desapareceria com ela uma marca que atrai gente às lojas."
Lailson Santos

MUDANÇAS NA FÁBRICA
Vendendo menos lã de aço, a saída é diversificar

A história da dívida da Bombril - de 450 milhões de reais só de impostos devidos à


União, mais a quantia relativa a multas por operações financeiras irregulares, cujo
valor ainda se discute na Justiça - remete a meados dos anos 80. Foi quando o
governo federal incluiu a lã de aço na cesta básica. Poderia ter sido bom, caso o
preço não fosse tabelado e tão baixo. Para piorar, o valor do produto ainda se
depreciava com a inflação de dois dígitos, e a empresa perdia dinheiro, o que se
agravou nos anos seguintes, aí por má administração. Nesse contexto, o italiano
Sergio Cragnotti, então dono da Cirio, até hoje uma das marcas mais conhecidas
do ramo de alimentos na Europa, comprou a Bombril dos irmãos Ferreira. A gestão
do empresário italiano foi decisiva para levar a Bombril ao fundo do poço. Ele
liderou uma série de transações financeiras duvidosas. Por algumas delas, é
acusado de lavagem de dinheiro. Cragnotti retirava dinheiro da Bombril e com ele
simulava, por meio de contratos falsos, comprar títulos da dívida americana. Numa
outra operação, fez ainda a Bombril arrematar a Cirio - fraude em que o comprador
e o vendedor são a mesma pessoa, mais conhecida no mercado como "Zé com
Zé". Mesmo assim, a Bombril continuou, por um bom tempo, a obter crédito e a
captar dinheiro no mercado de ações, no qual havia ingressado em 1984. "Isso só
foi possível porque, naquela época, a fiscalização das empresas na bolsa era bem
menos vigilante", diz o economista Maílson da Nóbrega. Em 2003, já com uma
maior transparência do sistema e a má situação da Bombril cristalina, as ações da
companhia chegaram à sua pior cotação na década - 2,80 reais. Hoje, o valor é de
6 reais.

"É um milagre a Bombril ter sobrevivido, ela era o avesso de uma empresa
moderna", diz o economista José Bacellar, um dos três administradores apontados
pela Justiça para gerir a companhia depois do escândalo Cragnotti. Sobre esse
período, ele incluiu um capítulo no livro A Surdez das Empresas, que fala de sua
experiência na reestruturação de empresas. Lançado recentemente, o livro foi alvo
de uma ação legal e chegou a ser retirado das prateleiras. O autor da ação foi
Ronaldo Sampaio Ferreira .- que decidiu reassumir o comando da empresa e tem
feito tudo para proteger sua imagem. Colecionador de carros de luxo, como o
Mercedes 300 SL, uma raridade, e criador de gado, Ronaldo reconhece que é
capaz de atos inconsequentes. "Sou um apaixonado por novidades", comenta. Ele
aprendeu a manter os pés no chão a um custo alto. A palavra do dia hoje na
Bombril é diversificar a linha de produtos. Não é apenas por causa da
concorrência. A Bombril, que já teve 90% do mercado de lã de aço no Brasil, agora
detém uma fatia de 70% (os outros 30% estão nas mãos da Hypermarcas, dona da
Assolan). A diversificação é também necessária porque a procura pelo produto
tende a encolher - caiu 10% somente no ano passado. Os hábitos de consumo
estão mudando. As panelas de hoje não precisam mais ser areadas. As televisões
tampouco têm antena. Mais preocupadas em manter as unhas benfeitas, as
mulheres começaram a buscar produtos de limpeza até com hidratante. Para
manter sua tão valiosa marca, a Bombril tem pela frente o desafio de adequar-se
aos novos tempos.

Resistentes ao tempo
Quando a marca é um bem tão valioso que
consegue garantir a longevidade de uma empresa

Renata Betti

Fotos Paulo Vitale e divulgação

SÓ CAMISETA BRANCA, NÃO DÁ


Em 1907, ano em que a foto acima foi tirada, a fábrica da Hering, na cidade de Blumenau, já produzia as
camisetas brancas que se tornaram sinônimo da marca. Só que elas eram usadas como roupa íntima.
Fundada em 1880, na casa do imigrante alemão Hermann Hering, a empresa passou mais de um século
apoiada na fórmula da moda básica. Como nos anos 90 perdia mercado, precisou mudar, aumentando a
variedade de peças e o número de coleções. "Foi necessário reestruturar o negócio para dar novo gás à
marca", diz Fábio Hering (à esq.), o atual presidente.

Poucas empresas resistem ao teste do tempo. No Brasil, apenas 20% delas


chegam a completar trinta anos. Em setores mais competitivos, como o de
vestuário, hoje disputado por algo como 30 000 empresas no país, contam-se nos
dedos aquelas que não sucumbiram às crises internas, às sucessivas
transformações do mercado, aos sacolejos da economia. Ainda mais raros são os
casos de companhias antigas que, embora tenham sofrido a ameaça da
decadência, firmaram-se no topo de sua categoria. Daí o interesse despertado por
um grupo delas, sobre o qual um estudo da Fundação Dom Cabral lança luz. A
lista compreende nomes como Lupo, Topper, Havaianas e Hering, a mais antiga
delas, com 129 anos. O que essas raras sobreviventes têm de diferente das
demais? "Todas são donas de marcas fortes", resume Carlos Arruda, coordenador
da pesquisa.

Uma marca pode ser decisiva para a longevidade de um negócio, a exemplo do


que se passa em algumas das empresas mais antigas do mundo, entre elas
Faber-Castell (de 1761), Nokia (1865) e Levi's (1853). No Brasil, a Alpargatas deve
muito de seus 102 anos de existência a duas de suas grifes, Topper e Havaianas.
"Sem elas, talvez já tivéssemos desaparecido do mapa", diz Rui Porto, um dos
principais executivos do grupo. Marcas são ativos, como são também as máquinas
de uma fábrica ou o prédio em que ela está instalada. Mas esses ativos imateriais
às vezes se tornam tão fortes que podem valer até mais do que a própria empresa
que os criou. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a BMW, depois de adquirir a
marca Rolls-Royce, dez anos atrás. Ainda que a empresa inglesa de mesmo nome
estivesse à beira da falência, conseguiu passar a marca adiante pelo equivalente a
1 bilhão de reais. A grife de carros de luxo era, na época, seu único bem de valor.

Lailson Santos

UMA QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA


Desde que lançou sua primeira chuteira, testada pelo jogador Sócrates (na foto à direita, em 1979), a
Topper passou três décadas com o foco apenas no futebol. Assim foi até janeiro deste ano, quando
decidiu investir numa completa repaginação. O objetivo é modernizar a marca, que perde espaço no
Brasil para gigantes como Nike e Adidas. A exemplo das concorrentes, a Topper abriu sua primeira loja-
conceito (à esq.), em São Paulo, contemplou pela primeira vez o público feminino e passou a mirar
outros esportes. Não foi uma opção, mas a única saída para a sobrevivência da marca.

A consolidação de uma marca é um desafio dos mais complicados para uma


empresa. Não basta que ela esteja vinculada a um bom produto. "Se não se
posicionar de forma apropriada no mercado, nada a fará vingar", diz Daniella
Bianchi, da consultoria Interbrand. É com esse objetivo que se investem
verdadeiras fortunas em marketing. A Havaianas destina, a cada ano, cerca de
100 milhões de reais à área. Em 1994, quando iniciou um radical processo de
repaginação do negócio, a quantia chegou a ser equivalente a todo o seu
faturamento. Também a Topper entendeu que era preciso dar novos ares à sua
marca e decidiu, neste ano, canalizar 38 milhões de reais para ações de marketing
- o dobro de 2008. Dispor do dinheiro é apenas o começo. A experiência mostra
que qualquer pequeno ajuste numa marca já consolidada traz riscos consideráveis.
Apenas por ter modernizado o seu velho logotipo, a Topper recebeu,
recentemente, uma chuva de protestos pela internet. A diferença em relação ao
original era pouca, mas alguns consumidores insistiam na ideia de que o logo
havia perdido "sua força". "Seria perfeito caso fosse uma loja de sungas, não de
chuteiras", disparou um crítico. Pesquisas de mercado indicam, no entanto, que a
mudança começa, pouco a pouco, a ser absorvida. Os executivos respiram
aliviados.

Estratégias desse tipo frequentemente caem no vazio se não vêm casadas com a
reformulação do próprio negócio. "Se continuássemos a vender a velha camiseta
básica de sempre, seríamos engolidos", reconhece Fábio Hering, da quinta
geração da família e hoje presidente da empresa. "De tradicionais, passamos a ser
vistos como ultrapassados." Desde que o tecelão Hermann Hering deixou a
Alemanha rumo a Blumenau, no fim do século XIX, e começou, ele próprio, a
fabricar roupas na sala de casa com um único tear, a fórmula em que se apoiava a
empresa não precisou mudar muito - até que chegassem os anos 90. A insistência
no velho modelo foi possível num cenário de pouca concorrência no Brasil, mas
não mais depois da abertura econômica do país. Atacada de um lado por roupas
chinesas baratas e de outro por marcas globais, como a Zara, a Hering perdeu
mercado até, três anos atrás, iniciar uma radical transformação. Um dos pontos
cruciais foi investir na diversificação das peças, hoje vendidas em seis coleções
por ano - e não mais em uma, como acontecia até 2005. Coisa parecida vive agora
a Topper. "Num segmento em que a tecnologia só avança e surgem novos
acessórios a cada dia, havíamos parado no tempo, e isso se refletia nas vendas",
diz Fernando Beer, à frente da marca. De janeiro para cá, a Topper, que só
aparecia em artigos para futebol, passou a surgir estampada em outros itens
esportivos, além de, pela primeira vez, mirar o público feminino. "Sem isso,
estaríamos fadados à insignificância no nosso mercado."

Fotos Lailson Santos e divulgação


DA FÁBRICA PARA AS VITRINES
Quando Liliana Aufiero (à esq.) resolveu abrir a primeira loja da Lupo, em 1995, foi duramente criticada.
"Diziam que ficaria às moscas", lembra. Não ficou. Na realidade, a iniciativa foi decisiva para reforçar a
marca criada por seu avô, o relojoeiro italiano Henrique Lupo. Já no Brasil, ele passou quase uma
década confeccionando meias na sala de sua casa, em Araraquara. Isso até inaugurar a primeira fábrica,
em 1927 (à dir.), hoje transformada numa megaloja. "É uma boa vitrine para a marca", diz Liliana.

Para estender a vida de suas marcas ainda mais em direção ao futuro, essas
empresas adotaram outra medida que implica, para elas, uma mudança profunda:
depois de décadas e décadas restritas à indústria, todas elas migraram para o
varejo e investiram maciçamente em lojas próprias. Quando Liliana Aufiero, a atual
presidente da Lupo, a mais antiga fabricante de meias do país, com 88 anos,
resolveu abrir a primeira loja, em 1995, foi tachada de louca. "No mercado, diziam
que uma marca só de um segmento tão específico jamais atrairia gente suficiente
para uma loja." Erraram. O negócio deu tão certo que outras 160 vieram desde
então. "Mais do que vender produtos, a ideia é reunir tudo o que existe de uma
marca num único lugar, criando uma poderosa vitrine para ela", diz Ricardo Poli,
professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing. A estratégia é a mesma
adotada, há pelo menos uma década, por gigantes globais de diferentes áreas,
como Apple e Nike. Elas conseguiram conferir valor às respectivas marcas com
suas lojas-conceito.

Criada em 1962, a marca Havaianas também dispõe hoje de lojas-conceito. Mas


ela é um caso especial: está estampada num produto brasileiro de sucesso
internacional. "Por muito tempo, nossas sandálias sofreram com o estigma de
'simplesinhas'. Eram vistas como o avesso da sofisticação", avalia Carla
Schmitzberger, diretora-geral da Havaianas. Há dez anos, foram tomadas ali duas
decisões cruciais. A primeira foi multiplicar por 100 a variedade de sandálias -
chegando a 500 tipos e, pela primeira vez, a todas as classes sociais. A outra
medida diz respeito às vendas no exterior, passo decisivo para reverter a imagem
pouco glamourosa. A Havaianas já chega a oitenta países. "Quando os brasileiros
souberam que estávamos vendendo nas Galeries Lafayette, de Paris, passaram a
valorizar muito mais a marca. Sem isso, talvez não tivéssemos conseguido nos
reposicionar", pondera Carla. A Topper, por sua vez, lançou uma linha de calçados
esportivos exclusiva para o Japão. Com cores chamativas, como verde-limão e
amarelo-ovo, atendiam ao gosto local. O sucesso foi grande - e criou uma nova
demanda no Brasil. "Tenho certeza de que os modelos despertaram tanto
interesse dos brasileiros justamente porque já haviam virado febre no exterior", diz
Fernando Beer, que decidiu lançar a mesma linha no mercado brasileiro. O
resultado da Havaianas é difícil de igualar. Mais até que uma marca, ela é hoje
quase um ícone, imediatamente associado a um estado de espírito e a um estilo
de vida. Mas o exemplo, calcado na busca ambiciosa por um espaço global - esse
sempre é possível seguir.

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