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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

VINÍCIUS DOS SANTOS JUNQUEIRA

A ANTIGA E A NOVA ERA:


RACIONAIS MC’S COMO ALICERCE DE UM NOVO TEMPO

Salvador - Bahia
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

VINÍCIUS DOS SANTOS JUNQUEIRA

A ANTIGA E A NOVA ERA:


RACIONAIS MC’S COMO ALICERCE DE UM NOVO TEMPO

Trabalho final entregue para obtenção de nota da disciplina


“Introdução ao estudo da história”, ministrada pela Prof. Dr.
Luciana de Castro Nunes Novaes.

Salvador - Bahia
2019
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………04
2. O TEMPO HISTÓRICO E O ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DAS COMPOSIÇÕES DOS
RACIONAIS MC’S ………………………………………………...…………….…….06
3. SAMPLES ​E REFERÊNCIAS​ C
​ OMO ELEMENTOS DE MEMÓRIA………………..08
4. A INFLUÊNCIA TRANSFORMADORA E EMANCIPATÓRIA DOS RACIONAIS
MC’S PARA A MENTALIDADE DO NEGRO BRASILEIRO………………………..10
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - INTRODUÇÃO:

Racionais MC’s é o nome de um grupo brasileiro de rap originário da cidade de


São Paulo, instituído no ano de 1988 e que continua em atividade. Tal grupo é
considerado, tanto pela crítica musical quanto por artistas e público popular, como um dos
mais importantes e influentes, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, da história do rap.
O grupo é composto por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, sendo os três
primeiros letristas e vocalistas, ao passo que o último é o DJ e produtor musical do
conjunto.
Este artigo visa compreender a influência dos Racionais MC’s, sendo um dos
primeiros grupos de rap brasileiro, para a produção artística da segunda década do século
XXI, sendo esta representante de uma nova mentalidade do povo negro brasileiro acerca de
seu problemas cotidianos, sociais, psíquicos e estruturais, tais como racismo institucional,
pobreza, segregação sócio-espacial e empoderamento. Tal perspectiva se dá através da
visão acerca de um recorte social que atravessou e atravessa as mudanças sociais, políticas
e econômicas ocorridas entre o fim do século XX e o início do século vigente. Os
Racionais MC’s aqui são figuras representativas de uma “antiga era” do rap brasileiro e
busca-se entender sua contribuição na arquitetura de uma “nova era” tocante ao mesmo
gênero musical. O grupo mencionado foi fundamental para alicerçar um “novo tempo”
para a mentalidade do povo negro nas primeiras décadas do século XXI. A construção de
uma mentalidade própria só é possível quando o indivíduo se compreende como sujeito, e
não mais como mero objeto, assim sendo capaz de refletir sobre si mesmo. Quando isto
ocorre, o indivíduo possui a capacidade de refletir sua história e compreender-se como um
sujeito histórico, fruto das transformações que ocorrem através dos tempos, e também está
apto a construir sua concepção acerca de seu tempo e dos tempos passados. Sendo assim, a
possibilidade de elaborar uma mentalidade se dá quando o sujeito possui o poder de
construir sua perspectiva acerca de sua história. A elaboração de uma noção de tempo
histórico, aqui, significa poder. Elaborar um noção da história só é possível quando o
indivíduo se torna sujeito, ou seja, passa a possuir poder e se torna autônomo, capaz de
alterar a realidade em sua volta, assim como Descartes afirmou que o sujeito pensante está
apto a subjugar os objetos não-pensantes.
Ramón Grosfoguel, sociólogo porto-riquenho, em “A estrutura do conhecimento
nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro
genocídios/epistemicídios do longo século XVI” critica a concepção cartesiana no tocante
à forma como um elemento se torna sujeito. Para o autor do texto mencionado, a
possibilidade de um indivíduo tornar-se sujeito existe apenas quando este mesmo elemento
é capaz de afirmar seu poder acima de outros indivíduos, que passam a serem objetos do
primeiro, sendo aqui a revolução cartesiana do pensamento um elemento que reflete
condições de dominação conflituosa. A construção de um pensamento sobre a história só
se dá quando um indivíduo se torna sujeito e para isso é necessário poder. O povo negro
brasileiro historicamente esteve subjugado pelas classes brancas dominantes, detentoras do
aparato de dominação do estado burocrático, da dominação ideológica condicionada pela
religião cristã e da dominação econômica pautada nas condições estruturais do capitalismo.
Só é possível a construção de uma nova mentalidade pertencente ao povo negro brasileiro
acerca de seu tempo histórico quando esse mesmo conjunto passa a ser portador de poder.
Para compreender a ideia de um “novo tempo” se entende que é necessário a compreensão
de um “novo poder”.
A partir de tal ponto de vista entende-se a importância do estudo aqui abordado. De
tal modo, compreendendo a forma como o grupo Racionais MC’s influenciou a construção
da mentalidade de um “novo tempo” para a população negra do Brasil é possível traçar
paralelos em relação às novas estruturas de poder presentes nas terras tupiniquins, nas
primeiras décadas do século XXI. O artista BK’, fortemente influenciado pela obra dos
Racionais MC’s, abre o seu segundo álbum de estúdio Gigantes ​com a faixa ​Novo Poder,
abordando o horizonte em que as relações de poder são sempre resultados de conflitos
intermitentes entre as partes envolvidas. Nesta composição, o rapper narra um contexto em
que indivíduos e grupos sociais, historicamente oprimidos, se tornam protagonistas de
relações de dominação. Os primeiros versos da música já deixam claro o cerne da
perspectiva do compositor e do objeto de estudo deste artigo:

“Sumindo com igrejas e livros e deuses e mitos


Nós somos o novo poder
Apagando todos os seus falsos heróis da história
Nós, somos o novo poder” ​(BK’, 2018)
Deste ponto de vista, a forma como os Racionais MC’s influenciaram o rap da
segunda década do século XXI passa pela identificação que os ouvintes sentem ao ouvir
ouvir as obras do grupo, em relação ao espaço, ao tempo histórico e o seu contexto em
geral. O rap é possuidor de elementos que trazem a memória a tona, através do uso de
samples ​e r​ eferências linguísticas​, ​assim fundamentando a representatividade necessária
para a constituição de um “novo poder”, capaz de construir um “novo tempo” e uma
mentalidade única na história de um povo historicamente oprimido, desta maneira,
emancipando-o.
Este estudo se dará através da análise dos testemunhos escritos e sonoros em forma
de música deixados pelo grupo Racionais MC’s e os rappers influenciados por ele. Marc
Bloch, em ​O Ofício do Historiador, defende que a história seja uma ciência de múltiplas
fontes e que a pesquisa só poderá ser eficaz caso tais fontes sejam interrogadas, tomando
assim que o pesquisador deve ser um sujeito ativo na investigação acerca da verdade e não
apenas um receptáculo passivo de informações. Sendo desta forma, este artigo visa
aprofundar o olhar sobre os testemunhos usados na pesquisa.

2. O TEMPO HISTÓRICO E O ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DAS


COMPOSIÇÕES DOS RACIONAIS MC’S

O grupo Racionais MC’s foi fundado em 1988 por Mano Brown, Edi Rock, Ice
Blue e KL Jay, na cidade de São Paulo. Seu primeiro trabalho concreto foi o álbum de
estreia ​Holocausto Urbano​, no ano de 1990. ​Pânico na Zona Sul​, primeira faixa do disco
mencionado, já dá o tom da obra ao descrever o espaço no qual o eu lírico, que neste caso
pode ser entendido como o próprio autor da música, se encontra. Tal espaço refere-se a
realidade social a qual os compositores estavam sujeitos, sendo que esses buscam retratar
os problemas sociais deste espaço ao denunciar a violência cotidiana e a omissão estatal
para solucionar tal problema daquela localidade. Mano Brown, compositor e intérprete
dessa obra referida, viveu sua vida no bairro do Capão Redondo, que fica na Zona
Sudoeste da cidade de São Paulo. Em 1996, segundo uma matéria do jornal Folha De São
Paulo, publicada em 30 de janeiro de 1997, o bairro da cidade de São Paulo que teve o
maior índice de homicídios foi o Capão Redondo, recebendo o título de “bairro mais
violento da cidade em 1996”. Segundo a mesma matéria, a Delegacia Seccional do Sul,
responsável pela zona sul de São Paulo, foi a que apresentou o maior crescimento nos
índices de homicídio doloso entre 1996 e 1997. Tais informações se conectam ao espaço
descrito pelos Racionais MC’s em ​Pânico da Zona Sul.
Na música ​Fim de Semana no Parque​, Mano Brown faz uma análise descritiva
acerca da problemática relativa à​ falta de opções de lazer e de espaços públicos ou
privados capazes de suprir tal demanda na periferia de São Paulo, mais precisamente na
Zona Sul da cidade. Mano Brown descreve como o uso de álcool e de drogas ilícitas como
a cocaína se tornam as opções recreativas dentro das comunidades periféricas da capital
paulista. Segundo matéria do jornal Folha de São Paulo, publicada em 4 de março de 1996,
a Zona Sul da capital estava à margem do desenvolvimento da cidade devido a violência
ali presente, de tal modo que o estigma da área retraiu os investimentos, fazendo com que
empresários não empreendessem naquele local. O problema do lazer nas periferias da
capital estava diretamente ligado ao problema da violência, sendo tais aspectos
fundamentais para a compreensão acerca daquela espaço naquele tempo histórico
determinado. Assim, o rapper Mano Brown busca mostrar as condições do seu espaço em
seu tempo histórico e estes se tornam elementos fundamentais em suas obras.
Compreender a produção artística dos Racionais MC’s e sua linguagem violenta e “crua”
só é possível quando se entende que os indivíduos são resultados de seu tempo e de seu
espaço. Le Goff, ao escrever o prefácio da ​Apologia da História​, percebe claramente a
intenção de Marc Bloch ao afirmar que a história é a ciência que estuda os homens no
tempo, sendo os primeiros resultados do segundo e vice-versa. Para compreender a obra
importantíssima dos Racionais MC’s é necessário que exista uma compreensão acerca de
seu tempo e de seu espaço, não em um esforço de afirmar um determinismo geográfico,
mas no esforço de compreender que a consciência coletiva age acima do indivíduo e que
os fatos sociais de certa sociedade, que se encontra em certo espaço geográfico, coagem os
seres a se comportarem e enxergarem o mundo com determinada mentalidade, assim como
afirma a sociologia funcionalista de Durkheim. Para que a questão acerca da mentalidade e
da construção de um “novo tempo” por parte dos Racionais MC’s seja elucidada é
necessário compreender as fontes espaço-temporais do surgimento dessa mudança de
perspectiva causada por parte do grupo. Os arranjos instrumentais sombrios, a postura
agressiva, a seriedade com qual as temáticas são tratadas, a revolta presente nas letras e na
forma de cantar, ou seja, a mentalidade presente nas obras dos Racionais MC’s é fruto das
condições dadas por um espaço conturbado, violento e revoltante a qual os integrantes do
grupo estavam sujeitos naquele determinado tempo histórico.

​ REFERÊNCIAS COMO ELEMENTOS DE MEMÓRIA


3. ​SAMPLES E

Samplear ​é uma técnica muito comum na produção de bases instrumentais para


rap’s que consiste no recorte de um pedaço de tempo de uma faixa musical já existente.
Geralmente, na produção de tais bases, esse recorte chamado ​sample é colocado em
looping e depois acrescido da programação de uma bateria eletrônica. Os Racionais MC’s
foram alguns dos maiores adeptos desta técnica de produção musical, ​sampleando
principalmente funk’s americanos e soul music dos anos 70. Os primeiros rappers e
produtores de rap utilizavam esta técnica para a maioria de suas composições devido às
condições financeiras que impediam que esses artistas pudessem fazer gravações de
estúdio e assim criarem suas próprias composições. Com a arte do ​sample​, os DJ’s com
suas mesas de mixagem e ​samplers (aparelhos eletrônicos capazes de samplear​) eram
capazes de utilizar trechos instrumentais de outras músicas já existentes e de criarem seus
beats, ​para que os MC’s pudessem fazer suas rimas e cantarem as mesmas com o
acompanhamento das produções musicais criadas pelos DJ’s.
Devido a falta de estrutura ao qual o meio do rap estava submetido em seu
momento inicial, o ​sample tornou-se a alternativa viável para a existência daquela arte.
Contudo, com o passar do tempo, mesmo com a melhora das estruturas financeiras dentro
do estilo musical, o ​sample continuou sendo um elemento fundamental e indissociável do
gênero. Este fenômeno deve-se ao caráter de homenagem e reconstituição da memória
fonográfica do povo negro ao qual a técnica de ​samplear tomou com o passar do tempo.
Usar ​samples deixou de ser uma mera alternativa para se tornar uma obrigatoriedade moral
na produção do rap, pois com isso músicas e estilos “esquecidos” poderiam ser trazidos à
luz do público e, principalmente, usados como forma de incentivar a propagação da
memória, da busca pela ancestralidade e de fundamentar uma história do povo negro.
O rap, sendo um estilo musical fruto da memória do povo negro, tem como suas
origens o funk americano. Esse se originou através da concatenação do ​jazz​, do ​soul e do
​ ​soul se deu através da ramificação da música gospel, sendo esta uma
rhythm and blues. O
das ramificações do ​negro spiritual, q​ ue era um conjunto de formas de se expressar
musicalmente a qual os negros escravizados, no sul dos Estados Unidos da América,
recorriam para dialogar e expor os seus sentimentos em meio às condições de dominação a
qual estavam submetidos, como seres não-humanos ou menos-humanos. Tais conexões
provam o caráter de memória que os ​samples possuem. Quando um artista de rap ​sampleia
um soul music ele traz à tona toda a memória dos negros escravizados, fazendo um
exercício de reconstituição desse povo.
Os Racionais MC’s utilizam com muita veemência essas possibilidades
proporcionadas pelo ​sample. ​Para citar alguma das suas obras, podemos nos referir à
música Jesus Chorou, ​presente no disco ​Nada como um dia após o outro dia, do ano de
2002, na qual Mano Brown e KL Jay fazem uso da música ​Free at Last, d​ o compositor Al
Green, presente no seu álbum Livin’ for you, ​do ano de 1973. Esta música de Al Green faz
referência ao discurso “Eu tenho um sonho”, proferido por Doutor Martin Luther King na
Marcha de Washington, que referia-se à luta dos movimentos dos direitos civis que
visavam o fim da segregação no solo dos Estados Unidos da América. No término do
discurso, o pastor King cita os versos “​Free at last, free at last, thank God almighty we are
free at last​” de um ​negro spiritual norte-americano. Com isso, prova-se o caráter de
memória e reconstrução de uma perspectiva histórica própria do povo negro nos Estados
Unidos, no Brasil e no mundo.
As referências têm os mesmo caráter que a arte do ​sample possui. O próprio nome
do grupo Racionais MC’s é uma referência ao disco ​Tim Maia Racional, Vol.1,​ do ano de
1975, do cantor brasileiro Tim Maia. Na faixa ​Jesus Chorou, ​abordada anteriormente,
Mano Brown aborda a memória e a necessidade de trazer à luz de um público que não é
esclarecido de sua história como povo os nomes de importantes personalidades negras do
mundo, fazendo referências diretas aos nomes de: Marvin Gaye, músico compositor
norte-americano; Doutor Martin Luther King, ativista político e pastor protestante
norte-americano; Malcolm X, ativista político norte-americano; Bob Marley, músico
compositor jamaicano; Tupac Shakur, rapper norte-americano filho de Afeni Shakur,
ex-Pantera Negra.
Como Le Goff diz em “História e Memória”, a memória coletiva é fundamental
para a institucionalização da identificação dos indivíduos como grupo. Os Racionais MC’s
com seus ​samples e referências fazem um exercício de construir uma memória coletiva
referente a história do povo negro. Tal fenômeno é fundamental para compreender a
construção de uma nova mentalidade e um “novo tempo”, como dito na introdução deste
artigo. Le Goff, no texto mencionado, afirma que memória é instrumento e objeto de
poder. Como dito, na introdução deste trabalho, tempo é poder e memória é tempo, logo,
memória é poder. Exercer a construção da memória coletiva de um povo é um ato de quem
é possuidor de poder e, assim, capaz de exercer dominação. Os Racionais MC’s ao
construírem um exercício de memória coletiva afirmam o surgimento de uma nova
mentalidade, em que o povo negro passa a ser um sujeito histórico e não um mero objeto
do povo branco dominante. Quando um indivíduo é capaz de exercer sua memória, ele é
capaz de fazer história e, assim, de se tornar autônomo e independente. Os ​samples e as
referências não são apenas elementos de linguagem, mas instrumentos de empoderamento.
Aqui surge uma nova mentalidade, um “novo tempo”, logo, um “novo poder”.

4. A INFLUÊNCIA TRANSFORMADORA E EMANCIPATÓRIA DOS


RACIONAIS MC’S PARA A MENTALIDADE DO NEGRO BRASILEIRO

“De vergonha, eu não morri, tô firmão, eis-me aqui”. Este verso de Mano Brown
está presente na faixa ​Negro Drama, que encontra-se no álbum ​Nada como um dia após o
outro dia,​ do ano de 2002. Este trecho representa uma máxima na mentalidade que os
Racionais MC’s construíram ao longo de sua trajetória, ao demonstrar que apesar de todas
as dificuldades, da violência presente nas periferias de São Paulo, da omissão estatal para
com os problemas dessas comunidades, do estresse constante de quem vive na maior
cidade do país e tem sua integridade física e moral ameaçada constantemente, apesar da
pobreza e da miséria, apesar da baixa estima causada pelo racismo estrutural e pela
dificuldade em acessar bens de consumo que representam a felicidade dentro de um
sistema consumista, apesar de todos esses problemas, os indivíduos são capazes de
superá-los, dia após dia.
“Juntei meus pedaços e eles não vieram pra arena”. Assim começa a música ​Apollo
de Amiri, rapper de São Paulo, l​ ançada em 2016 como single duplo de faixa única
​ sse verso é uma releitura do trecho “Nunca foi
juntamente com a música ​Rude Bwoy. E
fácil, junta seus pedaços e desce pra arena”, presente na faixa ​Sou Mais Você, d​ o disco
Nada como um dia após o outro dia, d​ os Racionais MC’s. Amiri era um rapper bastante
atuante no cenário musical até por volta de meados de 2014, quando começou a se tornar
ausente da cena do rap brasileiro devido à problemas de ordem psicológica por parte do
músico, diagnosticado com depressão. Sua volta em 2016 com o single duplo acima
mencionado representa uma mudança em sua postura em relação ao mundo. Sua letra é de
afirmação, como sujeito e como rapper, mostrando a influência que os Racionais MC’s
possuem na construção de sua autoestima.
“Deixa eu falar pro cê, tudo, tudo, tudo vai, tudo é fase, irmão, logo mais vamo
arrebentar no mundão”. Mano Brown, logo nas primeiras linhas de ​Vida Loka Parte II,​
faixa do disco ​Nada como um dia após o outro dia, dá o tom do que se trata a trajetória da
construção de uma nova mentalidade e, assim, de um “novo tempo” na vida social dos
negros no Brasil. A perspectiva da possibilidade de ascensão social para um povo
historicamente oprimido e incapaz de se reconhecer como povo aqui é a ideia principal da
faixa. A identificação com as condições quais os autores estavam sujeitos foi um dos
fatores essenciais para o impacto do grupo em seu público. Essa identificação aliada com
um forte discurso político que questiona as mazelas do país e o descaso do aparato público
para com os recortes sociais historicamente subjugados foram fundamentais para legitimar
o discurso da necessidade de afirmação do negro como um sujeito histórico, capaz de criar
suas narrativas acerca de seu mundo e de expor suas visões sobre a realidade. A afirmação
do negro como elemento capaz de se tornar um participante ativo da realidade e não ser
mais apenas um mero objeto é o foco do debate em questão
“É que eu fui vida louca e meu filho vai ser vida ganha” afirma BK’ na faixa ​Vivos,
presente em seu álbum ​Gigantes, fazendo referência ao título de ​Vida Loka Parte II e​ a
perspectiva proposta por Mano Brown. A afirmação de uma ascensão social na música de
BK’ se dá através da possibilidade apresentada pelos Racionais MC’s em suas letras. A
sublimação das dificuldades mundanas em forma de músicas, que transmitem mensagens
que levam o ouvinte a lutar por seus objetivos, é essencial na forma como os Racionais
MC’s se tornaram o alicerce de um “novo tempo” para a mentalidade do povo negro
brasileiro. Na faixa ​Correria Remix, d​ o já mencionado álbum ​Gigantes,​ BK’ apresenta a
perspectiva de um sujeito que se afirma como um “correria”, ou seja, um ser humano
“batalhador” que corre atrás de seus objetivos e sonhos, comparando este à vários outros
indivíduos identificados por BK’ como “outros correria”, tomando de exemplo o jovem
estudante e o pedreiro. Tal ponto de vista se dá como resultado de um longo trabalho
fundamentado pelos Racionais MC’s e outros artistas do rap brasileiro com o intuito de
modificar a forma como o povo negro pode enxergar o mundo, agora não mais como um
objeto conformado com sua situação e sim como um sujeito ativo capaz de modificar sua
realidade.
O rapper mineiro Djonga é um dos principais músicos do rap atual no Brasil. Com
três álbuns de estúdio lançados entre 2017 e 2019 e milhões de visualizações no Youtube,
Djonga traz um forte discurso de autoafirmação, de autoestima e de ascensão em suas
letras de conteúdo ácido. O rapper começou a se destacar por volta do ano de 2016 em suas
participações em músicas de outros artistas, nas suas aparições em ​cyphers ​e nas músicas
de seu grupo de rap, o DV Tribo, qual ele faz parte junto com Hot, Oreia, FBC e Clara
Lima, sendo todos de Minas Gerais. Djonga participou como convidado da faixa ​Atletas do
Ano Remix​, do duo MOB 79, junto com alguns outros rappers do atual cenário do gênero.
Um dos aspectos mais chamativos dessa música é a utilização do mesmo ​sample d​ a faixa
Vida Loka Parte II, d​ os Racionais MC’s. “Tô dando o papo de visão, como você se sente
vendo um preto em ascensão?” questiona Djonga na referida faixa, expondo mais uma vez
o resultado da construção de um “novo tempo” na mentalidade do povo negro brasileiro
brasileiro alicerçada pela obra musical do grupo Racionais MC’s. Djonga já afirmou em
várias entrevistas que o primeiro álbum de rap que ouviu foi o ​Sobrevivendo no Inferno,
disco dos Racionais MC’s produzido no ano de 1997, e a forte influência dos autores do
disco apresenta-se constantemente nas letras do rapper, chegando ao ponto de Mano
Brown participar do clipe da faixa ​Esquimó, ​presente no disco ​Heresia, lançado por
Djonga no ano de 2017. Nesta mesma faixa, o compositor recria um famoso verso de
Mano Brown ao dizer que “hoje somos risos, amanhã seremos choro”, sendo o original
presente na faixa ​Jesus Chorou c​ omo “chora agora, ri depois”, frase esta que também é o
subtítulo do disco ​Nada como um dia após o outro dia.
Tais fatores são dados que permitem a possibilidade de compreender a influência
transformadora e emancipatória da obra dos Racionais MC’s na construção de um “novo
tempo” para a mentalidade do povo negro do Brasil. O discurso forte, engajado e ao
mesmo tempo emocionante do grupo foi capaz de alavancar uma transformação
revolucionária real nas ações sociais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Racionais MC’s não é apenas um influente grupo de rap brasileiro, mas um dos
mais importantes acontecimentos artísticos da humanidade. Sua influência musical é
gigantesca, vide à quantidade de referências e releituras de sua obra, e sua influência social
é tão importante quanto a primeira. A forma como eles conseguiram transformar a própria
realidade, como tornaram-se fator de identificação, como trouxeram a tona a memória do
povo negro e como emanciparam todo um coletivo é de se espantar quando se observa que
o grupo jamais apareceu na TV aberta. O aspecto intrigante da forma como eles mudaram
as perspectivas de pessoas em condições indignas para um ser humano e como continuam
mudando é algo que nenhum trabalho acadêmico é capaz de botar no papel. Este artigo
tenta de forma humilde melhor compreender como se deu a construção de um “novo
tempo” emancipatório para a mentalidade do povo negro. Todavia a certos pontos da
subjetividade humana que são intangíveis com palavras.
Contudo, foi aqui feito o esforço possível para compreender as nuances da temática
usada como objeto de estudo. A problemática, aqui, apenas foi “arranhada” na sua
superfície, sendo um tema muito profundo que as ciências têm como possibilidade de
investigação. O “novo tempo” aqui proposto ainda está em andamento, e não é uma
realidade contundente (por enquanto). Os problemas causados pelo racismo estrutural,
como a violência, a omissão estatal, o preconceito, a perseguição policial e a desigualdade
socioeconômica são latentes nas realidades às quais o povo negro brasileiro ainda está
sujeito, sendo que há muito a se feito para reverter tal situação. Porém o esforço feito pelos
Racionais MC’s em participar ativamente da construção de uma nova mentalidade
impulsionadora, capaz de transformar a realidade das pessoas através da música, é mais do
que válido. “Amo minha raça, luto pela cor” é um grito desferido por Mano Brown em
Jesus Chorou q​ ue representa a tentativa de construção de um “novo tempo”. Tempo este
que só pode ser entendido a partir da visão de que a construção de uma perspectiva
filosófica, científica e, principalmente, histórica, ainda mais quando se fala de uma história
vista de baixo, como afirmou Jim Sharpe, só é possível em condições onde os indivíduos
são empoderados, tornando-se sujeitos ativos no mundo. “Novo tempo” significa “novo
poder”.
Analisando tais aspectos, é possível perceber a questão e dar um passo inicial rumo
ao entendimento da importância que os Racionais MC’s têm em relação ao povo deste
país. Os mesmos deram a possibilidade a um grupo excluído da sociedade de contar suas
histórias e de contar a sua História. A emancipação destes indivíduos se dá através das
portas que o maior grupo de rap do Brasil abriu. As portas das possibilidades desses de
serem sujeitos ativos no tempo e no espaço. Assim sendo, este povo se torna sujeito e
começa a falar por si próprio. Emicida foi um dos rappers mais influenciados pela obra dos
Racionais MC’s e em sua música mais recente ​AmarElo​, apresenta um verso, interpretado
por Pabllo Vittar e Majur, que sintetiza a concepção dessa nova mentalidade, desse “novo
tempo” possibilitado por esse “novo poder”:

“Permita que eu fale e não as minhas cicatrizes


Elas são coadjuvantes, não, melhor: figurantes que nem deviam tá aqui
Permita que eu fale e não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós? Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência
Me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que eu vivi
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nós sumir”
(Emicida feat. Pabllo Vittar & Majur, 2019)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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https://www.youtube.com/watch?v=M2GFf3oA4SU
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https://www.youtube.com/watch?v=J_6yHvZFr2E
BK'. ​Vivos.​ Rio de Janeiro: Pirâmide Perdida: 2018. Disponível em:
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https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/04/cotidiano/1.html
SHARPE, Jim. ​A história vista de baixo​. In: BURKE, Peter (Org.). ​A escrita da história:
novas perspectivas.​ São Paulo: Ed. da UNESP, 1992, p. 39-62.

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