Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
na tela
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
José Carlos Carles de Souza
Reitor
Neusa Maria Henriques Rocha
Vice-Reitora de Graduação
Leonardo José Gil Barcellos
Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Lorena Terezinha Geib
Vice-Reitora de Extensão e Assuntos Comunitários
Agenor Dias de Meira Júnior
Vice-Reitor Administrativo
UPF Editora
Carme Regina Schons
Editora
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Augusto Nienow
Alvaro Della Bona
Altair Alberto Fávero
Ana Carolina Bertoletti de Marchi
Andrea Poleto Oltramari
Angelo Vitório Cenci
Cleiton Chiamonti Bona
Fernando Fornari
Graciela René Ormezzano
Renata Holzbach Tagliari
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
Sergio Machado Porto
Zacarias Martin Chamberlain Pravia
Miguel Rettenmaier
Tania Rösing
(Org.)
Questões de literatura
na tela
2011
Copyright © Editora Universitária
Sabino Gallon
Revisão de Emendas
Este livro no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reprodu-
zido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora.
A exatidão das informações e dos conceitos e opiniões emitidos, as imagens, tabelas,
quadros e figuras são de exclusiva responsabilidade dos autores.
ISBN – 978-85-7515-725-1
UPF EDITORA
Campus I, BR 285 - Km 171 - Bairro São José
Fone/Fax: (54) 3316-8373
CEP 99001-970 - Passo Fundo - RS - Brasil
Home-page: www.upf.br/editora
E-mail: editora@upf.br
Associação Brasileira
das Editoras Universitárias
Sumário
Apresentação
A literatura além do livro (ou no segundo dilúvio).......... 7
Os jovens diante das telas: novos conteúdos e
novas linguagens para a educação literária ................ 13
Alberto Martos García
[6]
Apresentação
A literatura além do livro (ou no segundo
dilúvio)
“E Jeová fechou a porta por fora” (Gêneses 7,
16). A arca foi fechada. Ela significa a totali-
dade reconstituída. Quando o universo está
desenfreado, o microcosmo organizado reflete
a odem de um macrocosmo que está por vir.
Mas o múltiplo não se deixa esquecer. O dilú-
vio informacional jamais cessará. A arca não
repousará no topo do monte Ararat. O segun-
do dilúvio não terá fim. Não há nenhum fundo
sólido sob o oceano das informações. Devemos
aceitá-lo como nossa nova condição. Temos que
ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez
a navegar. Quando Noé, ou seja, cada um de
nós, olha através da escotilha de sua arca, vê
outras arcas, a perder de vista, no oceano agi-
tado da comunicação digital. E cada uma des-
sas arcas contém uma seleção diferente. Cada
uma quer preservar a diversidade. Cada uma
quer transmitir. Essas arcas estão eternamen-
te à deriva na superfície das águas.
[8]
importante parte, a organização do macrocosmo. Fora dos
livros, a literatura ficou sem donos, sem escritores aos quais
se permite escrever, sem leitores que devem (apenas) ler; a
literatura ficou também sem tutores, sem peritos exclusiva-
mente especializados; passou a viver além dos ambientes fe-
chados que a resguardassem, catalogassem e classificassem
dentre as demais elevadas produções impressas da cultura;
contaminou, entre si, a arte e a crítica, o saber e o imaginar,
mostrando, sedutoramente, o próprio corpo, híbrido de mu-
lher e peixe. Pela escotilha (tela) de todas as arcas pode-se
ouvir o canto das sereias, livres, um canto diferente, digita-
lizado, misturado, multivocálico, confuso. E, das escotilhas
(telas), pode-se replicar a elas...
A (des)ordem desse novos tempos, ricos, complexos, de-
safiadores, no que tange à literatura fora dos livros, nas te-
las dos computadores, é o que leva os “navegadores” deste
livro a pensar como percorrer as novas rotas de navegação
do mundo “desenfreado” no que se refere à produção e à lei-
tura literária. Há que rever conceitos, há que procurar outra
paragens, outros ancoradouros, sempre móveis e provisórios,
além de um Ararat pacificador, já que, como alerta Lévy,
“não há nenhum fundo sólido sob o oceano das informações”.
Assim, na linha de um “se-então”, a obra Questões de
literatura na tela oferece as seguintes circunstâncias, ten-
tando aproximar seus leitores do maior número de varia-
ções possíveis dentre os gêneros literários infectados pela
atualidade tecnológica, poesia, teatro, narrativa, literatura
infanto-juvenil, pensando também questões relacionadas à
edição, à leitura e à educação. Faça sua escolha.
[9]
Se... então...
... tiver interesse pelas leituras ... você deve ir para o capítulo “Os
dos jovens, as sagas envolvidas jovens diante das telas: novos
na cultura digital e nos jogos em conteúdos e novas linguagens
rede, e nas atuais publicações, para a educação literária”, de Al-
que se incorporam, inovadora- berto Martos García.
mente, aos tradicionais gêneros
fantásticos,...
... suas questões estão relaciona- ... você deve ler “Novas estraté-
das à literatura além do livro e às gias de antropofagia na literatura
suas possibilidades de interpreta- digital”, de Alckmar Luiz dos San-
ção, levando-se em conta a identi- tos.
dade dos sujeitos, as especificida-
des dos textos – em prosa escrita
impressa ou em criação digital – e
as possibilidades advindas da lei-
tura literária na tela,...
... você é um espectador de tea- ... você deve ler “Literatura, teatro,
tro, preocupado com a efemerida- imagens: ‘Geni e o Zepelim’, de
de do espetáculo teatral e com a Chico Buarque no YouTube” de
“perigosa” influência das tecnolo- Fabiano Tadeu Grazioli.
gias,...
... é um professor ou se interessa ... deve ler “Linguagem, tecnolo-
pela formação dos professores gia, conhecimento e suas rela-
no contexto das tecnologias, em ções no contexto de formação
uma abordagem que relacione continuada de professores”, de
linguagens e conhecimento, em Fernanda Freire.
especial no contexto da educação
a distância,...
... você tem interesse em poesia ... você deve ir para o capítulo
digital, um gênero contemporâ- “Poesia hipermídia: estado de
neo, com raízes nas poesias de arte”, de Jorge Luiz Antonio.
vanguarda,...
... você procura saber mais sobre ... leia “Edição e criação nas so-
as questões relacionadas à edi- ciedades contemporâneas”, de
ção e à autoria no contexto da José Antonio Cordón García.
atualidade, em tempos de inter-
net,...
[ 10 ]
... tem atração por jogos de com- ... vá ao capítulo “A quarta era da
putador e por ficção interativa,... ficção interativa”, de Nick Montfort.
... lê e escreve em blog ou no ... leia “A solidão impossível: a
Twitter, ou apenas se interesse (hiper)literatura e o (hiper)leitor,”
pelo assunto e pelos novos es- de Miguel Rettenmaier e Tania
tatutos de leitura no contexto das Rösing.
novas tecnologias,...
... tem interesse em ficção hi- ... vá ao capítulo “A ficção em hi-
pertextual, observada a manei- pertexto”, de Sérgio Capparelli.
ra como as tecnologias afetam a
narrativa literária,...
... você se interessa pelas rela- ... leia “O leitor e a leitura do ci-
ções entre hipertexto e literatu- berpoema”, de Simone Assump-
ra infantojuvenil, em especial na ção.
poesia para crianças,...
... deseja ler sobre a estética da ... leia “A não-diacronia da poesia
hipermídia que se envolve em digital e a influência do poema
múltiplos códigos, que se estabe- processo”, de Wilton Azevedo.
lece em ou por uma nova escritu-
ra, expandida e articulada à poe-
sia digital,...
... o assunto, a tecnologia, o hiper- ... aproveite a leitura integral a
texto, a hipermídia, tudo interessa obra Questões de literatura na
a você, independente de circuns- tela, que reúne importantes pes-
tância,... quisadores do Brasil e do exterior
para pensar a arte literária no
contexto da era digital.
Se... então...
[ 11 ]
Em tempo: Quanto ao título do titulo Questões de litera-
tura na tela, é importante abrir uma “janela”. Alguém pode-
rá perguntar: qual tela? De cinema, de televisão, no cavalete,
esperando as tintas? A essa questão podemos responder com
nova pergunta: a cada momento da cultura não houve uma
tela predominante? Na atualidade, na convergência digital,
é dispensável explicar sobre qual tela tratamos.
Aos textos, então! Às águas! Às sereias!
Os organizadores
[ 12 ]
Os jovens diante das telas: novos
conteúdos e novas linguagens
para a educação literária
[ 14 ]
dentro de uma mesma localidade. Assim, a cultura global e
a cultura local se dão as mãos enquanto potenciam o que es-
tamos chamando de “esquemas épicos” gerais, mas os atuali-
zam de maneiras muito diferentes. As TIC universalizaram
certas histórias, tomadas de diferentes fontes, como o cine-
ma, a literatura, etc. – como A guerra das galáxias ou O Rei
Arthur – e é normal que nesse “menu” se cruzem influências
de muitos distintos níveis. Como exemplo, o terror em geral,
ou o que ultimamente se conhece como moda “gótica”, que se
alimenta de folclore, mitologia, literatura, cinema e outras
fontes. O horror ancestral, os monstros, os fantasmas ou as
almas, tudo isso se torna híbrido dentro de um universo de
ficção construído para o espetáculo. Tudo se junta nessa mo-
derna cultura-mosaico (Moles), que o grande escritor Gómez
de La Serna definiu muito bem: “o mundo da bagatela e do
kitsch”.
Aparentemente, esse auge da fantasia encobre um com-
portamento mitômano próprio dos jovens, o qual tem muito
a ver com o movimento fan, que se quer relacionar com os
movimentos juvenis surgidos ao redor de Elvis Presley e dos
Beatles, mas que, na verdade, teve muito mais a ver com o
desenvolvimento do cinema e da televisão, os autênticos im-
pulsores das modas juvenis audiovisuais.
Na realidade, a palavra grega phantasia e fan, “apa-
rição” e “imaginação”, partem de uma mesma raiz, o im-
portantíssimo verbo grego phaíno, aparecer, mostrar(se),
manifestar(se), brilhar, origem de numerosas vozes em gre-
go e em castelhano, como fenômeno, fantasma, fantasia, fa-
num. Fanum equivale a santuário, lugar de revelação, de
iluminação (não é propriamente o edifício, é templum, mas
sim todo o lugar), porque tem a ver com a luz (fanal: farol)
e daí fanaticus, o cuidador desse lugar sagrado, que se mos-
trava particularmente exaltado e inspirado. De fanaticus a
[ 15 ]
contração é fan, que começa a se usar com esse mesmo sen-
tido desde os admiradores de Presley e dos Beatles.
Assim, todas essas noções estão aparentadas etimologi-
camente e têm uma origem religiosa, pois o que sublinha em
“fan-ático” é o aspecto intelectual, mas também essa atitude
de entrega, de entusiasmo. Por sua parte, o termo “saga” é
nórdico e tem a ver com narrar em geral, e o termo fan fic-
tion é anglicismo, em cujo lugar poderíamos usar mais apro-
priadamente “ficción-mania”.
Figura 1 - A etimologia do fã
[ 17 ]
Figura 2 - O que fazer depois da janta?
[ 18 ]
sento. Umberto Eco também nos avisa sobre qualquer visão
ingênua: nenhum mundo fantástico é tal que possa se de-
sentender do mundo real que serve de referente ao criador, e
nenhum mundo real é tal como para que possa ser descrito
em sua totalidade. Em outras palavras, nem o fantástico
é tão fantástico nem o pretendidamente realista é tão con-
fiável. Se a realidade é, como querem os cognitivistas, uma
construção social, não podemos estranhar que a motivação
principal de quem se inicia no tema do RPG ou da escrita
colaborativa seja a de estreitar laços com seus “iguais”.1
[ 19 ]
De maneira muito significativa, esses dados são para-
lelos aos que jogam as perguntas relativas ao uso do celular
entre os jovens, ou seja, o que importa nessas novas práticas
é, acima de tudo, comunicar.
[ 20 ]
dade política, em meio a agentes socializadores tão diferen-
tes – e frequentemente descoordenados – como a família e o
âmbito educativo, é normal que haja uma visão superposta
das imagens preponderantes do jovem sobre si mesmo, seu
ambiente e seu futuro, do qual dá bom exemplo o mundo
complexo das sagas.
Concretamente, os imaginários sociais derivados do
mundo educativo têm sido analisados no âmbito do projeto
europeu Education Governance and Social Integration and
Exclusion in Europe (EGSIE). É um projeto Targeted Socio-
Economic Research (TSER) da Direção Geral XII da Comis-
são Europeia, coordenado pelo Departamento de Educação
da Universidade de Uppsala, Suécia:
O projeto EGSIE pretende analisar comparativamente essas
mudanças e reformas, como respostas das políticas educativas
das distintas nações européias, levando em conta, de um lado
que com o processo de globalização estão emergindo similares
e novas formas de governo dos sistemas educativo, com impli-
cações problemáticas em todas as escalas de decisão, e de outro,
que tudo isso está tendo um impacto direto na capacidade da
educação de promover a integração e combater a exclusão social,
nos Estados que se estava reivindicando como “de Bem-estar”.
[...] vale a pena citar as grandes fases pelas quais discorreu a
pesquisa:
1ª. Descrição em profundidade dos sistemas educativos envolvi-
dos, mediante o estudo de textos, estatísticas, investigações, etc.
e elaboração de relatórios nacionais.
2ª. Análise do discurso das instituições e dos atores do sistema
educativo: organismos internacionais, políticos e administrado-
res, altos executivos, diretores de centros, professores, membros
da sociedade civil (diretivos de associações de pais, sindicatos,
empresários, etc.).
3ª. Estudo de campo, mediante questionário, com estudantes de
ensino médio e pré-universitário.
4ª. Estudo final comparado: construção de uma tipologia com-
parativa de países, formulação de hipóteses sobre a questão das
mudanças no governo da educação e seu impacto na inclusão/
exclusão social.
5ª. Informação e discussão dos resultados com agentes educati-
vos em diferentes contextos.2
2
http://www.usal.es/~teoriaeducacion/rev_numero_03/n3_art_faraco.htm
[ 21 ]
Concentrando-nos nesta segunda fase, por ser a que
mais se relaciona com as contribuições de nosso estudo, é
preciso ressaltar como o discurso oficial vem desterrando
o estímulo da imaginação e da fantasia, como conteúdo e
prática educativa, marginalizando-a como uma espécie de
hobby vinculado ao lazer pessoal, ou, no máximo, a áreas
da educação informal ou a uma suposta subcultura juvenil.
Tudo isso em contradição com o que nos ensinam os especia-
listas sobre esses temas, que explicam como as fabulações
auxiliam a “domesticar a realidade” (Applebee) ou que con-
figuram uma bagagem cognitiva de primeiro nível. No en-
tanto, para começar, nos encontramos com uma situação de
partida desastrosa: para os pais, para os professores e para
muitas outras pessoas, a fantasia estava em descrédito como
produto cultural; era marginalizada na escola – não era uma
prática habitual nem era bem-vista –, e no mercado se incen-
tivava, sim, mas para tornar aditos a certos consumidores, e
esses a certos produtos.
Inclusive a familiaridade com que esses novos meios
expressivos (já se trate de livros, mangás, filmes, RPGs...)
aparece, aos olhos de muitos, como “antitextos”, ou seja, tex-
tos que supõem uma ruptura do que o “cânone” (escolar e
acadêmico) preconiza como “boas leituras” ou “boas práticas
culturais”. Uma redação escolar ou a visita a um museu, por
exemplo, seriam exemplos “abençoados”, ao passo que parti-
cipar de um fanfic, blog ou rede social é algo que, para come-
çar, fica “à margem” da cultura dos adultos, e aqui voltamos
ao sentido tribal ou de grupo dessas manifestações.
As sagas auxiliam a construir uma identidade social
paralela e conformam, pois, um imaginário que reverte na
moda, na cosmética, na gestualidade e em outros hábitos.
[ 22 ]
Fonte: Blog da autora http:dris82.wordpress.com
[ 23 ]
Precisamente a sociedade da informação e da comunicação tam-
bém denominada “sociedade do conhecimento” está somando
às diferenças sociais e produzindo desigualdades. O elemento
chave desta emergente sociedade não somente é o conhecimento,
mas também a capacidade pessoal de selecioná-lo, processá-lo
e aplicá-lo. Nesse contexto, as expectativas colocadas na educa-
ção constituem uma das medidas mais acertadas para prevenir
e evitar a exclusão social, fundamentalmente naqueles setores
mais sensíveis como o da infância, a educação pode humanizar
o desenvolvimento.
A reversão dos valores e ideais que antes mobilizavam as pes-
soas perdem vigência, se debilitam os valores espirituais, polí-
ticos, sindicais, sociais, etc., e surge em troca, com mais força a
pessoa e, diante de tudo isso, a importância da infância como
setor transcendental, no qual hão de prevalecer os valores da
solidariedade e da tolerância através da escola, da comunicação
e da integração e não de exclusão. Não temos dúvida de que a
escola contribui em desenvolver uma sociedade mais justa, num
ambiente mais humano e habitável (Trujillo; Sánchez, 2006).
[ 24 ]
muitos jovens, encontramos essas mesmas questões na ima-
gem metafórica.
Se, na realidade, os jovens aspiram a um trabalho está-
vel e bem-remunerado e reconhecem como causa de exclusão
o não querer se arriscar, a própria passividade ou o confor-
mismo, na realidade fabulada o herói/a heroína das sagas,
têm também um ideal meritocrático, e, de fato, são vários os
heróis que chegam a alcançar uma condição superior (assim
Conan, Aragorn chegam mesmo a reinar) “por seus méritos”,
deixando de lado as desvantagens de origem.
No entanto, o importante das visões que sustentam as
sagas é sua abertura, ou seja, que os mundos fabulados são,
com frequência, universos compartilhados que requerem a
colaboração de vários, e, nesse sentido, se diz que formam
parte de uma escrita alógrafa, onde várias pessoas partici-
pam. É verdade que os jovens que adquirem gosto por uma
saga compartilham com isso uma identidade e socializam,
mas também é verdade que com ela enfrentam a diversida-
de, pois nenhum valor é exemplificador ou hegemônico ao
ponto de criar uma única forma com a qual se identifiquem
todos. Como se dizia antes, mudam “os valores espirituais,
políticos, sindicais, sociais, etc., e surge, em troca, com mais
força, a pessoa, e diante de tudo isso a importância da infân-
cia (leiamos juventude) como setor transcendental no qual
hão de prevalecer os valores da solidariedade e da tolerância
através da escola, da comunicação e da integração, não de
exclusão”.
Escolher uma saga não é somente um ato mercantil,
como queria o mercado; é também uma adesão e, quiçá, uma
ruptura, pois o fan, o blogueiro, o jogador de RPG, sempre
aspiram a personalizar e completar esse mundo de ficção
com outros novos elementos. O que é importante é que atra-
vés das sagas o jovem apreende, de forma explícita ou implí-
cita, universos alternativos.
[ 25 ]
Formas alternativas de governança
As sagas são um gênero cujo alcance não podemos ana-
lisar aqui,3 mas das quais podemos adiantar alguns rasgos
sumamente relevantes. Em sua concepção épica, as sagas
pressupõem um conjunto de heróis e anti-heróis. Entretanto,
seu mundo não é o da realidade urbana, mas um mundo de
fantasia épica construído em arquétipos já estudados, como
os da mitologia indo-europeia (Dumézil).
Nesse mundo, sabemos que há três ordens ou funções
básicas: a de soberania mágico-religiosa, a dos guerreiros e
a dos produtores, ou seja, Gandalf, Aragorn e Froddo. Os
mecanismos de inclusão e de exclusão também variam subs-
tancialmente. Os participantes cooperam, interagem, como
faz a Cofradía del Anillo, em prol de uma missão suprema,
que costuma vir explicada no mito funcional e que, normal-
mente, costuma ser um mito de redenção (é preciso salvar
algo) ou de luta (é preciso destruir alguém).
O filósofo Fernando Savater explicou com clareza as
tarefas do herói: a primeira é saber quem é, ter memória de
si mesmo. O imaginário de muitas das sagas que inundam
o mercado é um imaginário anglo-saxão, que coloca em ên-
fase aspectos que podem ser muito relevantes para pessoas
dessas latitudes, mas menos para uma comunidade medi-
terrânea. De fato, uma das críticas que se fez a Tolkien é
que não soube descrever com a mesma maestria as “forças
do mal”, por exemplo, esses seres do inframundo, raras ve-
zes individualizados. Os imaginários sociais das sagas, pois
fazem eco com frequência dos mesmos estereótipos da vida
social, e, quando se fala de elfos e de orcos, não podemos evi-
tar recair em figuras muito definidas, caricaturas quase do
3
Veja-se minha tese doutoral, Las sagas fantásticas modernas y la ficción-ma-
nía: lenguajes literarios, plásticos, multimediales y sus repercusiones didác-
ticas (Universidad de Extremadura, 2008). Publicada parcialmente no livro
Introducción al mundo de las sagas, Universidad de Extremadura, 2009.
[ 26 ]
bem e do mal. Porém, o folclore real do Mediterrâneo é mui-
to mais ambíguo com as sereias, damas da água, duendes,
anões, etc., que têm, às vezes, comportamentos positivos e,
em outras, não tanto.
Portanto, a recriação desses universos nas sagas deve-
ria supor também recuperar essa parte de nossa memória
cultural, de nossa mitologia, no que tem de surpreendente
e de genuíno. Por exemplo, Juan, o Urso, ou em versão fe-
minina, La Serrana de la Vera são personificações de forças
selvagens que, desde então, divergem das versões estereoti-
padas do tipo de Hércules ou Conan.
Mas se algo se ensina nas sagas – assim como nos con-
tos de fadas – é o valor da superação, o que os psicólogos cha-
mam de “resiliência”. Diz-se que estamos numa sociedade
hiperprotetora, mas, nas sagas, os jovens aprendem a “cair”
e “levantar-se” por si mesmos, a não se render, porque o mes-
mo núcleo da saga oferece sempre outras oportunidades.
Num sentido similar, Simola e outros (2000) analisaram
o nascimento e configuração do professor moderno, que deve
atender à pessoa, ao educando, à promoção do conhecimento
como meta de seu trabalho, e ao ambiente institucional ou
de autoridade no qual, inevitavelmente, desenvolve seu tra-
balho. No cruzamento desses três fatores se construíram as
mentalidades do professor moderno e todas as suas crises
e “mal-estares”, e esta nova revolução da internet obriga-o
uma vez mais a redefinir sua posição. Curiosamente, apesar
da superabundância das fontes de informação, nunca como
agora tem sido mais necessário o trabalho de guia ou de
orientação nesse “emaranhado” ou “oceano” de informação.
O respeito ao sujeito e a orientação em direção ao co-
nhecimento, com o uso medido da autoridade, é o que possi-
bilita que esta ficção fantástica seja possível, apesar de seu
desprestígio social, como um magnífico instrumento educati-
vo, pois o jovem se entrega a essas ficções com uma atitude
lúdica e de curiosidade: pode escolher, explorar e “negociar”
[ 27 ]
seus possíveis significados, num contexto onde, todavia, se
está por ver qual será o destino definitivo da cultura escolar.
O frikki ou fan tem sido descrito como uma parte desse
mosaico juvenil, com frequência de forma depreciativa, in-
sistindo no extravagante e não no positivo, no altruísmo de
entregar-se a uma tarefa sem buscar nenhum benefício, de
compartilhá-la com outros. Hoje sabemos que a alfabetiza-
ção cognitiva e a alfabetização emocional têm de ir de mãos
dadas, e isso é o que possibilita o trabalhar com as sagas.
A cultura juvenil se move em parâmetros distintos aos
da cultura acadêmica, escolar e familiar, pois, para início de
conversa, começou a substituir a “cultura letrada” clássica,
a do livro de texto ou o manual, por uma cultura digital, que
se concretiza numa convergência de telas:
[ 28 ]
Mas, à diferença do espectador dos anos 1960, o jovem
atual se comporta como um “nativo digital”, bem equipado e
com uso multitarefa de suas ferramentas, o que lhe permi-
te ler de forma muito diferente dos leitores clássicos de um
livro. “Surfa”, se disse com precisão, sobre as telas de um
hipertexto ou de um celular ou de um videojogo.
Essa aprorpiação dos textos é o que levou ao mundo da
fanfiction: interessam-lhe essas obras de sucesso na medida
em que pode pernsonalizá-las, “revezá-las”, convertê-las em
estandarte pessoal e/ou de grupo, e, indo um passo a mais,
na medida em que possa “jogá-las”, isto é, apresentá-las de
algum modo, gestualizá-las, convertê-las em algo “ostensí-
vel”, como ocorre com o RPG. O cossplay dos fans é, por essa
mesma lógica, a festa da exaltação de seu “culto” e o disfarce
que se propõe à identidade autêntica perseguida.
[ 29 ]
seus próprios conteúdos. Porque sua necessidade essencial
não é construir, mas comunciar-se e expressar-se, como se vê
em fenômenos tão exitosos como as mensagens instantâneas,
os blogs, os portais de fanfics e o fenômeno das redes sociais.
A fascinação pelos aspectos materiais dessas obras, o
luxo e o brilhantismo de seus filmes, jogos, ilustrações, etc.
não devem nos fazer perder de vista que jogar com essas
histórias é fazer representações mentais da realidade por
meio dos cenários recriados para isso. E nisso pouco impor-
ta que sejam realidades próximas ou fantásticas, pois com
as sagas podemos aprender valores como o antirracismo, o
respeito às minorias, o conhecimento de outros países e de
outras culturas ou, como dizíamos, a busca das raízes cul-
turais de um povo. Ou podemos aprender todo o contrário,
um modelo unitário de cultura; daí a importância de usar a
fantasia como um antêntico laboratório onde o leitor se im-
plique. Em duas expressões: devemos juntar o desenvolvim-
ento da imaginação com o pesamento crítico; somente assim
superaremos as enormes dificuldades que estão tendo essas
“gerações interativas”.
O contexto cultural presente apoia a interpretação que
estamos fazendo. A crítica Victoria Fernández descreve a im-
portancia do gênero de sagas na literatura juvenil recente:
A fantasia continua sendo a tendência predominante. Abruma-
doramente onipresente. A pergunta é quanto tempo mais dura-
rá, mas o caudal parece inesgotável. Os títulos mais esperados
entre os jovens aficionados não defraudaram. E assim, Laura
Gallego com Tríada, segunda entrega de sua trilogia Memorias
de Idhún (SM), e Christopher Paolini com Eldest, segunda parte
da sua El Legado (Roca), foram os bestsellers juvenis de natal.
Mas houve uma surpresa e um terceiro autor, espanhol, compar-
tilhou com eles o favor dos leitores: Rafael Ábalos, com Grimpow.
O caminho invisível (Montena), uma intrigante fantasia de corte
medieval na qual o autor malaguenho parace ter encontrado sua
particular “pedra filosofal” após seus anteriores dois romances
publciados por Debate, com escassa ressonância. Além de uma
boa novela, Grimpow é um desses fenômenos raros que ocorrem
muito de vez em quando com a literatura espanhola: antes de
[ 30 ]
ser publicado na Espanha já tinham sido vendido seus direitos
de edição para nove países europeus e para os Estados Unidos.
Junto aos três “supervendas”, outros dois autores espanhois pro-
varam a sorte no gênero, é claro, com trilogias: o novo Ibán Roca,
com Transparente e a torre do destino (RBA/Molino), primeira
entrega de El Domador de Sueños, na que cabe destacar uma
vontade de originalidade – o rapaz protagonista se evade de uma
vida da qual não gosta sonhando acordado com um mundo ima-
ginário, até que um dia se encontra vivendo, de verdade, nesse
mundo. Além disso, o romance está construido de forma intri-
gante e meticulosa, de maneira que acaba conquistando o leitor.
Por último, a conhecida e versátil Maite Carranza com El clan
de la loba, primeiro título de La guerra de las brujas, publica
em Edebê, uma saga com protagonismo femenino, tão escasso
no gênero fantástico.
Mas, sem dúvida, um dos êxitos do ano foi a recuperação de As
Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, por Destino. A editorial ca-
talã começou a publicar na primavera os sete romances desta
saga fantástica, escrita nos anos 50, e hoje convertida já num
“clássico moderno”, adiantando-se à estreia natalina do filme da
Disney baseado em “O leão, a bruxa e o armário”, segunda parte
da série. No Natal, editou um esplêndido volume para presente
no qual se apresentam os sete romances de Nárnia – “El sobri-
no del mago”; “El león, la bruja y el armario”; “El caballo y el
muchacho”; “El príncipe Caspian”; “La travesía del ‘Viajero del
Alba’”; “La silla de plata” y “La última batalla” –, com as ilustra-
ções originais de Pauline Baynes.
Outros títulos destacados foram a excelente fantasia medieval
Carta al Rey, de Tonke Dragt, e a continuação de Corazón de Tin-
ta, Sangre de Tinta, de Cornelia Funke (ambas em Siruela); El
enigma de Akenaton, de P. B. Kerr (Alfaguara); e por último a
edição do único livro inédito na Espanha de J. R. R. Tolkien, Las
aventuras de Tom Bombadil, que Minotauro publicou pelo seu 50º
aniversário. Dentro do registro fantástico, mas para leitores (qui-
ça deveria dizer leitoras), mais pequenos, começaram a proliferar
as fadas. Contos e livros interativos para presente como El jardin
de las hadas, de Maggie Bateson, por Ediciones B., ou La casa de
las hadas, da mesma autora, por SM, de desenho “muito rosa e
brilhante”, mas sobretudo a nova aposta da Disney para colocar
de moda o mundo das fadas – El secreto de las hadas, de Gail
Carson Levine (Beascoa) é o primeiro título do projeto Disney Fa-
das que se apresentou acompanhado do merchandising habitual
– anunciam, sem dúvida, uma nova tendência que veio para ficar.4
4
Anuario sobre el libro infantil y juvenil. Fundación SM, 2006.
[ 31 ]
De fato, nos últimos anos estamos assitindo ao auge
crescente das ficções fantásticas, em diferentes linguagens
e formatos, desde o livro ao vídeo ou às histórias em quadri-
nhos e, particularmente, de um gênero, a saga, ou narração
fantástica serial, que tem aglutinado modas e correntes.
[ 32 ]
A importância da mulher nas sagas e nos fanfics seria
um bom expoente de tudo isso. Não que as heroínas tenham
agora um papel diferente e desterrem velhos estereótipos;
é que a apropriação desses mundos fabulados por parte es-
pecificamente das fans criou e recriou universos verdadei-
ramente alternativos. De fato, a porcentagem de fanfics
mulheres é significativamente maior. Tudo isso nos leva a
ser relativamente otimistas: ao invés de encontrarmos um
Robinson Crusoe e Sexta-feira na ilha digital, agora tería-
mos um perfil diferente, um grupo de garotos e garotas num
mundo menos caótico, onde há muito por fazer, para o qual
podem aplicar não as receitas da sociedade vitoriana, mas
uma mentalidade de pessoas bem formadas, criativas e em-
preendedoras, o que deveria repercutir, por certo, na hora
de conformar esses imaginários e obras de referência, numa
menor influência anglo-saxônica e numa revitalização das
raízes – latinas, mediterrâneas e iboroamericanas – de nos-
sa cultura.
Em todo caso, a relação entre adolescentes, fan fiction e
sagas é um tema de indubitável interresse para a educação
linguística e literária. Essa se veicula em contextos formais,
como a escola ou a biblioteca, sentidos às vezes “diferentes e
distantes” às próprias demandas que os jovens constumam
expressar em outras vias, como, por exemplo, os blogs, as
redes temáticas... É diferente do que prevalece nos contextos
escolares, se bem que tampouco se devam ignorar as aproxi-
mações que se estão levando a cabo, em particular, as experi-
ências de inovação que procuram, tal como sugeria Chartier,
integrar essas “leituras selvagens” ou caóticas da rede com
o melhor da cultura letrada, ou, em linguagem mais pedagó-
gica, utilizar essas ferramentas como forma de promover e
integrar competências básicas.
[ 33 ]
Em resumidas palavras, a educação literária e audiovi-
sual deve começar pela escola, que pode usar essas manifes-
tações literárias nas telas como recursos para fomentar a di-
versidade, a imaginação e a inclusão, uma vez que as sagas e
os fanfics abordam frequentemente cenários multiculturais
e possibilitam a expressão de todo tipo de pessoas e grupos.
Urge que, desde diversos âmbitos da cultura, da edu-
cação e das políticas de juventude, promovam-se ambientes
favoráveis para introduzir esses conteúdos e práticas como
formas de educação, destinada a promover um lazer saudá-
vel centrado na leitura e na escrita, e com duas prioridades
complementárias: desenvolver a imaginação e proporcio-
nar o pensamento crítico. Somente assim satisfaremos às
demandas dos jovens com as exigências do que deve ser a
educação da cidadania, que já não pode ser um catálogo de
cortesia ou bons princípios, mas dar voz, referências e meios
de participação aos jovens, a fim de que construam seus va-
lores em diálogo permanente com a cultura herdada e com
as novas formas de expressão que emergem no século XXI.
Tradução
Professora Rosane Innig Zimmermann
Referências
BANDEIRA VARGAS, M. L. O fenômeno fanfiction. Novas leituras e
escrituras em meio electrónico. Passo Fundo: UPF Editora, 2005.
BESSON, A. D’Asimov à Tolkien Cycles et séries dans la littérature de
genre. Paris: CNRS Éditions (CNRS Littérature), 2004.
BLACK, Rebecca W. Adolescents and online fan fiction (New Litera-
cies and Digital Epistemologies). New York: Peter Lang, 2008.
BREMOND, C. La lógica de los posibles narrativos. Comunicaciones /
Análisis estructural del relato, 1966.
[ 34 ]
BRINGUÉS, F.; SÁBADA, R. Generaciones interactivas. Ariel-Funda-
ción Telefónica, 2008.
BRINGUÉ, X.; C. SÁNCHEZ BLANCO. Comunicación presentada.
In: XX Congreso Internacional de Comunicación. “Los niños y sus pan-
tallas: ¿quién será capaz de mediar?” Universidad de Navarra, 2005.
BROWN, Ph.; LAUDER, H. Education, globalization and economic de-
velopment. In: HALSEY, A. H.; LAUDER, H.; BROWN, Ph.; WELLS
A. S. Education. Culture, economy and society. New York: University
Press, Oxford, 1997.
CASSANY, D. Tras las líneas. Barcelona: Anagrama, 2006.
CHARTIER, R. El orden de los libros: lectores, autores, bibliotecas en
Europa entre los siglos XIV y XVIII. 1992. Prólogo de R. García Cár-
cel; trad. de V. Ackerman. Barcelona: Gedisa, 1994.
CHERRYHOLMES, C. Poder y crítica. Estudios postestructurales en
educación, 1999.
ESTEVE, J. M. La formación del profesorado en clave de futuro. In:
RODRÍGUEZ NEIRA, T.; PEÑA, J. V.; HERNÁNDEZ, J. Cambio edu-
cativo: presente y futuro. Oviedo: Servicio de Publicaciones de la Uni-
versidad, 2000.
FOUCAULT, M. El orden del discurso. Barcelona: Tusquets, 1999.
HOLLAND, D.; QUINN, N. (Ed.) Cultural Models in Language and
Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
KENWAY, J. (1997) La educación y el discurso político de la nueva
derecha. In: BALL, S. J. (Comp.). Foucault y la educación. Disciplinas
y saber. Madrid, Morata, 1997.
LINDBLAD, S.; POPKEWITZ, T. S. (Ed.). Education governance and
social integration and exclusion: national cases of educational sys-
tems and recent reforms. Uppsala University, Department of Educa-
tion (Uppsala Reports on Education 34), 1999.
LUZÓN TRUJILLO, A.; TORRES SÁNCHEZ, M. Las lógicas de cam-
bio reformista en la escuela democrática desde el discurso de los do-
centes. Profesorado - Revista de curriculum y formación del profeso-
rado, v. 10, n. 2, 2006.
MARTOS GARCÍA, A. El poder de la con-fabulación narración col-
ectiva, fan fiction y cultura popular. Espéculo, 2008, n. 4, Homenaje
a Montserrat del Amo. Versión digital en http://www.ucm.es/info/
especulo/m_amo/amo_4.html. (2009): “Introducción al mundo de las
sagas”, Universidad de Extremadura.
[ 35 ]
MARTOS NUÑEZ, E. Tunear los libros: series, fanfiction, blogs y
otras prácticas emergentes de lectura. OCNOS, n. 2, p. 63-77, 2006.
MENDOZA FILLOLA, A. El intertexto lector: el espacio de encuentro
de las aportaciones del texto con las del lector. UCLM, 2001.
POPKEWITZ, T. S.; LINDBLAD, S.; STRANDBERG, J. Review of Re-
search on Education Governance and Social Integration and Exclu-
sion. Uppsala University, Department of Education (Uppsala Reports
on Education 35), 1999.
ROMNEY, A. K.; MOORE, C. C. Toward a theory of culture as shared
cognitive structures, Ethos, v. 26, p. 314-337, 1998.
ROMNEY, A. K.; WELLER, S. C.; BATCHELDER, W. H. Culture as
consensus: a theory of culture and informant accuracy. American An-
thropologist, v. 88, p. 313-338, 1986.
SAINT-GELAIS, R. De la constellation Star Trek: science-fiction et
transfictionnalit. In: L’empire du pseudo. Modernités de la science-
fiction, Québec, Nota bene (coll. Littérature(s)), 1999.
VERA VILA, J. Elementos para el análisis de la imagen social de
los profesores. Teoría de la Educación. Revista Interuniversitaria, IV,
p. 139-149, 1992.
VERDÚ, Vicente. El estilo del mundo. La vida en el capitalismo de
ficción. Barcelona: Anagrama, 2003.
[ 36 ]
Novas estratégias de antropofagia
na literatura digital1
1
Uma versão preliminar desse artigo, em inglês, foi publicada na revista Neo-
helicon, XXXVI/2.
pofagia de então como mecanismo (de superação de influên-
cias) e estratégia (de articulação intelectual) mais sofisti-
cado: o antropófago consumiria as diferenças em proveito
próprio, atacando, na base, a relação anterior de dependên-
cia com a cultura estrangeira. Lida na perspectiva de hoje,
faria enxergar de outro modo a ambientação intelectual e
cultural do Brasil: o “só me interessa o que não é meu” pode
também ser lido, complementarmente, como “o que é meu
não me interessa”; o antropófago desdenharia o que é seu
próprio e buscaria incessantemente as referências do outro.
Com isso se poderia acolher toda sorte de perspectivas algo
apocalípticas que não cansam de denunciar a perda de iden-
tidade, a relegação da cultura própria do país a uma situa-
ção de subalternidade sem volta.
Ora, a devoração do outro não implica necessariamente
– como queriam alguns intelectuais e artistas dos anos 1920
– a evolução cultural do “antropófago” para estágios mais
avançados e sofisticados de produção intelectual (desde que
nos ponhamos de acordo sobre o que significa propriamente
evolução cultural). Da mesma maneira, buscar o outro, ou
buscar os elementos culturais e intelectuais do outro – como
querem entender intelectuais e artista de hoje –, não signi-
fica necessariamente uma decadência, uma perda de identi-
dade (desde que entendamos bem o que hoje pode ser iden-
tidade). Curiosamente, entre os indígenas brasileiros há um
caso de identidade cultural movente, a dos aminauás, que
joga sempre no revés da sua própria afirmação, ou que se
afirma negando-se. Estudado pelo antropólogo Oscar Cala-
via Sáez,2 esse povo vê a sua identidade fundada na assimi-
lação do outro e no apagamento de seus elementos específi-
2
Ver “Iaminauás: os ‘índios dos índios’”, de Oscar Calavia Sáez, em JB On-
line. Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2008/09/14/
niteroi/iaminauas_os_indios_dos_indios.html. Acesso em: 17 mar. 2009.
[ 38 ]
cos anteriores. No caso, essa identidade é sempre provisória
e sua superação não é sentida como perda. De fato, trata-se
de um processo que acaba deslocando o exercício da identi-
dade: ela não mais se apoia em elementos concretos próprios,
que tenham alguma fixidez e que possam ser exercidas e ob-
servadas por um largo período de tempo; a identidade, nesse
caso, passa a residir no mecanismo de trocar constantemen-
te de identidade. Uma identidade vista e vivida como um
processo de teor mimético, não como estabilidade de elemen-
tos específicos. Assimilação ou apropriação? Eis a questão
que se coloca. Através de sua cultura movente e adaptável,
os aminauás contam uma história que não é a sua própria
– aquela que ficaria para sempre ao ser resgatada pela tradi-
ção – nem a dos outros, mas uma história que fala do movi-
mento incessante que os leva de uma tradição a outra. Uma
tradição da ruptura? Houve quem já explorasse isso! 3
Ora, contar a história do outro é uma constante, em
qualquer época, em toda parte. Uma tradição moderna, por
exemplo, poderia localizar em Marco Polo e em seu Il Milio-
ni, uma das primeiras tentativas de falar do outro, retomada
e atualizada no século passado por Italo Calvino em Le città
invisibili. E, ao menos desde Montaigne – não tão distante
assim de Marco Polo –, tenta-se contar essa história de uma
perspectiva que ponha em movimento os eixos de referência
culturais, sem exigir que o elemento estranho/estrangeiro
seja reduzido às perspectivas europeias e apresentado como
exotismo ingênuo. Mas também sem que esse elemento es-
trangeiro venha se impor como perspectiva primitivista e
regeneradora, espécie de tábua de salvação para o que seria
uma decadente cultura europeia (da mesma maneira como
o primitivismo antropofágico era apresentado como solução
3
É claro que me refiro a Octavio Paz e seu La tradición de la ruptura.
[ 39 ]
para a decadente e europeizada intelectualidade brasileira
dos inícios do século XX, inspirada ainda na França do sé-
culo XIX). E essa consciência de que há que se fugir tanto de
uma perspectiva quanto de outra faz toda a diferença entre
um Marco Polo e um Italo Calvino.
Assim, a antropofagia é também uma forma de contar a
maneira como nos relacionamos com o outro. Nessa perspec-
tiva mais geral, muito mais há que se falar sobre ela; estaria
não apenas relacionada à cultura brasileira do século XX,
mas inserida numa grande história das relações e dos sen-
tidos, com subcapítulos e patronos ilustres no que se refere
especificamente à literatura: o dialogismo e a paródia em
Bakhtin; a intertextualidade de Julia Kristeva; o hipertexto
de Gérard Genette; a paródia segundo Linda Hutcheon; a
angústia da influência de Harold Bloom (isso tudo apenas
para ficar com alguns poucos exemplos do século XX).
Em todos os casos, como ensinou Montaigne, a questão
justamente é não chamarmos de barbárie o que não é nosso.
E, ainda, como ensinam os aminauás, o que, num momento,
não é “nós” pode vir a sê-lo no momento seguinte. Mas é pre-
ciso atenção também com essa antropofagia dos aminauás.
É certo que tudo depende de sabermos assimilar o outro e
mover nossa identidade numa apenas aparente adesão to-
tal a sua lógica, a seus elementos. E essa adesão deve ser
apenas aparente, pois, se fosse total, permaneceríamos pa-
rados indefinidamente na posição desse outro. Ora, quando
um segundo outro se apresenta, teríamos de manter nossa
identidade processual, essa que nos permite mudar de pers-
pectiva ainda uma vez, e sempre, e assimilar sua nova lógica,
seus novos elementos. Assim, o que nos permite estar sem-
pre indo além, incorporando outras perspectivas, é o fato de
que não há, nem poderia haver, adesão total a nenhuma de-
las, mas a uma identidade como marca-d’água, como fôrma,
[ 40 ]
não como forma. Contudo, se reduzirmos nossa identidade
apenas a uma troca incessante de posições, nem saberemos
mais o que somos; estaremos perdidos em algum lugar entre
o já e o ainda; não haverá acúmulo algum de conhecimento,
base de qualquer grupo social e fundamento de todo proces-
so cultural. Essa lógica dos aminauás não pode ser mera-
mente a lógica do espelho, ou lógica do travesseiro (dizia-se
de um político brasileiro que era como um travesseiro: sua
fisionomia era sempre a da última pessoa com quem ele con-
versasse).
4
Vamos utilizar metonimicamente “meio digital” e “internet”, posso garantir,
sem prejuízo para a compreensão das reflexões aqui expostas.
[ 41 ]
caia à mão e que tenha eventual interesse; ou a utilização
de linguagens (nos vários sentidos) de que não fazíamos uso
até então e que nem nos eram destinadas (como fez Giselle
Beiguelman ao empregar diferentes linguagens de progra-
mação em seu O livro depois do livro5). De fato, é pequena a
distância entre pirataria, cópia, utilização de sons, imagens
e códigos de programação já prontos, apropriação de lingua-
gens, etc. Há no meio digital, claramente, essa lógica do “o
que não é meu me interessa”, traduzida frequentemente por
“o que não é meu, é meu”.
Todavia, nesses tempos de internet, aquilo que, nos
grupos humanos ou nos indivíduos, ainda poderia ser cha-
mado de “identidade” ficaria em perigo, ou posto de lado, por
essa apropriação constante do que não é próprio nem espe-
cífico deles. A questão que se coloca é (e colocando-a em ter-
mos calculadamente ingênuos): como experimentar alguma
sensação de sobrevivência desde o tempo passado – essa in-
variante que associaríamos a uma possível identidade nossa
– se não conseguimos uma estabilidade de elementos que nos
identifiquem? Apenas chamando de identidade essa busca,
por vezes desenfreada, pelo que não é especificamente nosso,
que não nos distingue propriamente? Mas ela leva, no mais
das vezes, à fragmentação e à perda de si. O personagem
Jacobina, de Machado de Assis, mostra uma maneira, talvez
não a melhor, de garantir alguma segurança identitária em
tempos de crise (pessoal e social).6 Por vezes, tudo parece se
resumir a uma de duas possibilidades: ou o enclausuramen-
to numa identificação pétrea e moribunda, igual a si própria
até o final dos tempos; ou a dispersão em fragmentos irre-
5
Disponível em: http://www.desvirtual.com/thebook/index.htm. Acesso em:
24 mar. 2009.
6
Ver o conto O espelho. Disponível em: http://www.machadodeassis.ufsc.br/
obras/contos/CONTO,%20Papeis%20Avulsos,%201882.htm#o_espelho_abaixo
[ 42 ]
conciliáveis para sempre, à feição do que escreveu Mário de
Sá-Carneiro:
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
7
Ver Dispersão, de Mário de Sá-Carneiro, em http://purl.pt/240/1/P23.html.
Acesso em: 18 mar. 2009.
[ 43 ]
àquelas que já explorei há alguns anos em outro local.8 Con-
tudo, aqui, trata-se agora de recusar as duas, como dois sim-
plismos que não levam a saída alguma. Trata-se de tentar
aprender com o digital, sobretudo com suas estratégias dinâ-
micas de apropriação do outro, como construir identidades
fundadas solidamente no fugaz e no precário! Identidades
que saibam se deslocar incessantemente, mas sem perder o
fio da meada de suas próprias questões, de suas necessida-
des, de seus limites e possibilidades, de seus meios expres-
sivos. Identidade não mais como um agora-igual-ao-antes,
mas identidade como exercício de uma possibilidade, a de se
confrontar com o perigo de um outro múltiplo, sem se frag-
mentar. Essa identidade sempre-adiante, que o meio digi-
tal torna possível pela internet, somente pode se consolidar
quando se aprende a se fundar numa constante superação
de si própria; se aprende a se constituir como possibilidade
de percurso a partir do agora, não como percurso já pronto e
definido a partir do antes.
Por tudo isso acima, tenho por claro que, nas leituras
em meio digital, precisamos desenvolver uma espécie de
pensamento de etiquetagem, um pensamento que saiba es-
tabelecer marcadores ou referências em cada canto, em todo
linque, nos distintos elementos que julguemos importantes.
E esses marcadores devem, a seguir, ser reunidos por laços
lógico-cognitivos (quer dizer, percursos de conhecimento, ou
melhor, de saber), sem que percam sua iminência de multi-
plicidade.9 Por etiquetagem deve-se entender, então, a capa-
cidade de descobrir, de encontrar, de repertoriar elementos,
endereços, sítios, expressões, interações, gestos, estratégias,
recortes, etc., submetendo-os a um certo espaço de leitura
8
Ver Leituras de nós. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 2003.
9
Com o que se recusa também um apelo ao bricolage de Lévi-Strauss.
[ 44 ]
ou navegação, esse que se tenta sempre discernir, desenhar,
esboçar ao menos... Todavia, submetê-los todos a um mesmo
e único espaço de leitura não significaria de modo algum que
devemos restringir o pensamento; que devemos submeter os
marcadores a uma mesma lógica, fechada, de leitura. Ler,
no meio digital, implica, mais do que nunca, estabelecer um
entendimento provisório, um equilíbrio fugaz entre a plura-
lidade dos possíveis e a especificidade de nossa leitura, pois
é justamente isso que ocorre material e concretamente com
os objetos que percorremos. Dito de outra maneira, numa
leitura no meio digital devemos deixar que a multiplicida-
de venha habitar concretamente cada elemento aparente-
mente isolado.
Em suma, isso que estou tentando caracterizar como
pensamento de etiquetagem é importante para se entende-
rem tanto as identidades em deriva10 na internet quanto as
leituras no meio digital. Em ambas se faz necessário esse
exercício constante de reconstrução de si e do sentido. Dian-
te do outro que me puxa para si e para fora de mim (em que
tanto eu posso antropofagizá-lo, quanto ele me antropofagi-
zar), minha identidade só pode existir sem se perder pelos
caminhos; se aceito esse jogo de múltiplos percursos, de idas
e vindas entre mim e o outro, sem que eu e o outro se anulem
reduzindo-se um ao outro; se consigo ir associando a esses
percursos meus próprios marcadores para contar, através
destes, em alguns momentos de parada, a minha história
de mim. Da mesma maneira, nas leituras em meio digital o
constante exercício de reconstrução do sentido não pode re-
sultar numa proliferação de significados (como em qualquer
leitura) ou de significantes (como ocorre especificamente na
leitura em meio digital); é preciso guardar sempre aquela
10
A esse respeito, consultar o meu Leituras de nós, p. 19-20 e p. 67.
[ 45 ]
“iminência de multiplicidade” acima mencionada sem cair
numa “hiperinflação informacional”,11 sinônimo de ruído e
de fracasso da leitura. E só podemos manter essa iminência
de multiplicidade quando aprendemos a lidar com a plura-
lidade de marcadores ou de referências de que toda leitura
se faz porta-voz; quando esses marcadores são concretizados
pelo leitor e contrapostos aos significantes do meio digital
(isto é, à sua materialidade potencialmente plural e moven-
te), segundo certos percursos que darão à leitura uma fisio-
nomia de sentido.
11
Processo que venho descrevendo desde 1996 (ver Textualidade literária e hi-
pertexto informatizado. In: Anais do Congresso da Associação Brasileira de
Literatura Comparada, 1996, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Abralic, 1998.
12
Disponível em: http://telepoesis.net/amorclarice/amor.html. Acesso em: 19
mar. 2009. A partir do conto “Amor”, da prosadora brasileira Clarice Lispec-
tor, ele desenvolveu sua criação digital interativa.
[ 46 ]
ra e estabilizada, exigindo do leitor uma redefinição de suas
estratégias, assim como uma reconstrução constante de seu
proceder e, claro!, de sua identidade. Em todos esses casos, o
leitor vai se ver diante de um processo no qual “o que não é
seu” rapidamente vai ter de se tornar “seu”, em que o “mes-
mo” tem de se assimilar ao “outro”, sob pena de a leitura não
ter continuidade. E, uma vez que o “não-seu” passa a ser
“seu”, que o “outro” passa a ser “mesmo”, como lidar com isso
tudo? Como falar de “outro” e de “mesmo”, como saber o que
é “seu” e “não-seu”?
Comecemos pelo mais imediato: a transformação da
prosa escrita-impressa13 em criação digital, ou seja, a an-
tropofagização da tradição impressa pela criação digital. É
possível colocar a questão em outros termos: se a criação di-
gital parece ser o outro da tradição impressa, qual seria o
outro da escrita digital? Seria, por similaridade, essa tradi-
ção impressa? A julgar pelos atuais debates e perspectivas,
sim! Ela é sempre trazida à baila, quando se trata de propor
contrastes ao digital. Ora, seria até possível não pensar no
escrito-impresso como o outro único e exclusivo a ser oposto
ao digital, mas escaparíamos muito aos focos deste trabalho.
Fiquemos, portanto, restritos a tal oposição, tomando
então esse conto “Amor”, de Clarice Lispector,14 e a criação
de Rui Torres. Numa primeira comparação, à vol d’oiseau, o
que surge de mais relevante é o fato de que a criação de Rui
joga com uma pluralidade espacial dos significantes que ele
põe a funcionar. Os fundos de tela, por exemplo, lembram
a página imóvel da tradição impressa, proporcionando uma
continuidade evidente, assentada na imobilidade das frases
(em vermelho sobre fundo azul, na figura abaixo).
13
Por economia, de ora em diante vamos apenas escrever “impressa”.
14
Amor. In: Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960. Disponível
em: http://www.releituras.com/clispector_amor.asp. Acesso em: 24 mar. 2009.
[ 47 ]
Fonte: http://telepoesis.net/amorclarice/amor.html
Figura 1 - Amor de Clarice
15
Embora seja ritmo de especial fatura, ardiloso, é ritmo mesmo de prosa,
ainda que frequentemente descrito como poético por grande número de crí-
ticos. Contudo, cá entre nós, os argumentos que permitiriam reconhecer
essa construção poética da prosa de Clarice sempre me pareceram um tanto
equivocados: erram no que veem de poemático, e não entendem o suficiente
o que seria poético.
[ 48 ]
recortado, reescrito e remontado por Rui, numa evidente e
intensa poetização. Em outras palavras, o ritmo entrecor-
tado e sincopado da criação digital se faz também como as-
similação transformadora (antropofágica, diríamos aqui) da
prosa de Clarice. Mas fica claro que Amor de Clarice não
recria ingênua e diretamente o ritmo poético da tradição im-
pressa. Não se trata de mera poetização de uma obra em
prosa casualmente trazida ao meio digital.16 Rui traz outras
contraposições; ele busca, em variados lugares e tradições,
“outros” ritmos para antropofagizar e incorporar a sua cria-
ção. Uma das possibilidades mais interessantes é a que se
dá no diálogo entre os recortes gráficos, as quebras visuais,
a respiração, às vezes ofegante, às vezes em surdina, das
falas gravadas, de um lado, e, de outro, os recortes sintático-
semânticos no conto original de Clarice. A incorporação an-
tropofágica do ritmo de prosa de Clarice e sua assimilação
em ritmo poético-digital se fazem por intermédio do ritmo
cadenciado do rap e da música eletrônica, que vão balizando
a criação de Rui. Mais abaixo, vamos retomar com mais de-
talhes essas construções e contraposições rítmicas.
Mais uma contraposição ensaiada por Rui, em Amor de
Clarice, se dá entre o contínuo e o fragmentário e/ou alea-
tório. Para dizer a verdade, tenho preferido essa oposição
àquela outra já desgastada, entre linear e não linear, e que
nunca deu conta das complexidades da leitura (seja no im-
presso, seja no digital). Assim, à primeira vista, o próprio
dessa criação digital seria a fragmentação das partes e a
aleatoriedade com que elas podem (devem?) ser lidas; seu
outro (ou o próprio da criação impressa de Clarice) seria a
continuidade material do conto, expressa pela sequência de
16
Como ingenuamente faz Lenilde de Freitas em artigo publicado n’O Estado
de São Paulo, 18 set. 1983. Duisponível em: http://br.geocities.com/clarice-
gurgelvalente/artigos_04.htm. Acesso em: 18 mar. 2009.
[ 49 ]
palavras, frases, períodos, parágrafos criados por Clarice
Lispector. Ressalte-se que a isso ainda vem se somar o alea-
tório que está na leitura da própria (e de toda) obra impressa.
Contudo, a continuidade material do conto de Clarice parece
ser esquecida e relegada a último plano, diante do aspecto
fragmentário da criação digital de Rui Torres. Mesmo assim,
é possível associar, a cada uma das páginas de Amor de Cla-
rice, uma série de elementos que se converteriam então em
suporte de narratividade da criação digital. E eis a continui-
dade aí de volta não mais expressa diretamente na materia-
lidade da obra (como ocorre com o conto), mas na maneira
como essa criação digital permite estabelecer estratégias de
leitura que recomponham uma espécie de continuidade alea-
tória e arbitrária.
*
[ 50 ]
colocar como complemento e instigação às outras; tentando
entender, enfim, como a criação digital pode fazer do conto
impresso o seu “outro”, para se apoderar, então, de alguns
dos elementos, estratégias e operações de sentido dele (do
conto impresso), para trazê-los ao digital, para torná-los seu,
mas fazendo, nesse mesmo percurso, uma transformação e
um deslocamento do que seria próprio dela, criação digital.
Todavia, há ainda outra questão a ser respondida: em
que ordem essas quatro possibilidades seriam exploradas?
Fazê-las todas a um só tempo parece impossível, a princí-
pio. Voltamos, então, ao começo: em que ordem realizar es-
sas quatro explorações? É claro que não poderia haver aí
qualquer improviso, e a escolha de uma dada sequência está
diretamente ligada à intenção com que vamos ler; está di-
retamente relacionada ao que queremos explorar, destacar,
aprofundar, continuar, na criação digital (e, secundariamen-
te, no conto impresso).17 No caso, essa exploração de múlti-
plas possibilidades (quatro, no mínimo) torna mais impor-
tante a estratégia de etiquetagem a que acima me referi.
Trata-se não de explorar indutivamente nossos objetos de
leitura, de encontrar eventualmente alguns elementos inva-
riantes, para submetê-los a seguir a comprovações empíri-
cas que os tornem pragmaticamente verdadeiros. Isso não é
nada novo e tem limites já conhecidos há muito tempo.
O que se pretende com essa estratégia de etiquetagem
talvez seja semelhante ao processo que descrevi, há tem-
pos, através da imagem das garrafas de náufragos.18 Diga-
17
E, ao adotar essa posição secundária – que não significa inferior –, já começa-
mos a esboçar nossas intenções e intuitos, a esboçar um caminho de leitura.
18
Leituras de nós, p. 20-21. Coincidentemente, tempos depois de ter proposto
essa estratégia, deparei com um belo projeto artístico de Paola Rettore, que
consistia justamente em jogar ao mar garrafas contendo cartas de amor:
Pequenas navegações: cartas de amor. Ilustrado por Paula Rettore e Marcelo
Kraiser. Belo Horizonte: Ed. do Autor, 2008.
[ 51 ]
mos que alguém se dedica a coletar mensagens chegadas
em garrafas de náufragos, não se sabe de onde, escritas por
pessoas diferentes. E cada uma dessas pessoas escreveria
sua própria e longa história, mas colocando-a em pedaços,
em garrafas diferentes, para terem mais chances de serem
encontradas por algum leitor. A dificuldade que se coloca-
ria para esse leitor é: como recompor uma única história a
partir de pedaços diferentes de histórias diferentes? Como
associar um sentido comum aos fragmentos abandonados à
deriva para se perderem, deixados ao acaso de um eventual
achamento?
É claro que estamos desconsiderando a hipótese de im-
por-lhes uma coerência já preestabelecida (o que incorreria
no dedutivismo). Também não se trata de percorrer os frag-
mentos vindos pelas cartas, de forma empírica e ingênua,
para induzir uma possibilidade de significação geral. Ora,
não esqueçamos que esse leitor, apenas aparentemente pri-
vilegiado, é ele também (e sempre!) um náufrago; e, como
todo leitor náufrago, não consegue conter a vontade de con-
tar a própria história. Há que se aproveitar, então, justa-
mente essa hesitação entre recompor as histórias de outros
e a vontade de contar a sua própria. De fato, nesse instante,
a história do leitor passa a ser, acima de tudo, a narrativa de
como ele se torna... contador de histórias. Sua história deixa
de ser propriamente a de sua vida e vem se tornar a narrati-
va da maneira como se tornou narrador. Abandonando a ilu-
são de retomar as histórias originais (ou as origens das his-
tórias, o que daria no mesmo), deixando de lado a pretensão
narcísica de colocar em tudo a marca pessoal de sua própria
história, esse leitor-narrador deve então fazer com que os
fragmentos chegados nas garrafas se tornem partes de sua
história como contador de histórias; ele precisa fazer com
que partes de sua história sejam atribuídas aos autores dos
[ 52 ]
fragmentos que ele agora tem em mãos. O que importa, nes-
se caso, são os novos sentidos que ele é capaz de inventar em
comunhão com os fragmentos. Como se cada pequeno frag-
mento se tornasse um marcador, uma etiqueta, a referência
apontando para um sentido original não mais recuperável e,
ao mesmo tempo, delimitando possibilidades de significação
no horizonte de sentidos desse leitor. Estendendo a metáfo-
ra, é como se cada fragmento de mensagem se tornasse uma
cicatriz em sua própria pele.
Digamos que nosso propósito aqui é fazer com que esse
leitor (cada um de nós!) faça o oposto do personagem Bartle-
booth de La vie mode d’emploi, de Georges Perec: que ele não
jogue ao mar uma totalidade recomposta e, depois, destruí-
da; mas que ele propicie o movimento contrário, recolhendo
fragmentos e etiquetando-os como partes de uma totalidade
ainda e sempre em construção (e não em reconstrução!). De
certa maneira, vamos como que ficcionalizar nosso processo
de leitura e fazer com que os marcadores que associamos aos
fragmentos passem a ser eles próprios os fragmentos – ago-
ra de nossa narrativa – que vamos explorando e inserindo
em nossa leitura. As diferentes estratégias de exploração de
Amor de Clarice e de “Amor”, de Clarice Lispector, podem,
assim, seguir esse modus operandi, propondo um mapea-
mento proteiforme que não se esgota nunca, que vai esco-
lhendo pontos, elementos, processos das obras, associando-
os sempre a marcadores com que vamos construindo nossa
leitura. E, se me permitem ainda uma última comparação,
o que estou propondo é que se traga para a leitura crítica
um processo especular ao que está narrado em O castelo dos
destinos cruzados, de Italo Calvino. Não se trata, então, de
associar fatos às cartas do Tarô (como faz o narrador d’O
castelo...), mas de associar cartas19 aos fragmentos de histó-
19
Marcadores, referências ou etiquetas, como venho falando.
[ 53 ]
rias, jogando com elas à semelhança de um baralho em que
elas, as cartas, nunca tenham um sentido definitivo, uma
significação acabada, um significado pronto, mas que carre-
guem sempre, exposta em sua superfície, uma pluralidade
de significações, aquela iminência de multiplicidade a que
me referi acima.
[ 54 ]
ção. Parece tratar-se de uma construção rítmica que poderia
estar, de algum modo, associada aos eventos que vão sendo
contados. Em resumo, uns e outros, períodos e parágrafos,
não são apenas a base material que transportaria os eventos
narrados, que carregariam as possíveis significações da his-
tória. Pelo ritmo, eles poderiam também estar incorporados
à narração. Ora, é certo que essa observação dos ritmos nar-
rativos já apareceu na leitura da obra de Rui Torres, o Amor
de Clarice. Mas, ao transpor para o conto impresso essas
possibilidades de análise do ritmo, que eu intuía na criação
digital, outras possibilidades vieram à tona. Vamos a elas!
A seguir trazemos dois gráficos, nos quais aparecem a
quantidade de palavras (Figura 2) e o tamanho médio dos
períodos (Figura 3) em cada parágrafo. Vale ressaltar que
desprezei os discursos diretos, isto é, os poucos diálogos que
aparecem, atendo-me apenas ao que seria a fala direta do
narrador.
[ 55 ]
É digno de nota que as duas curvas têm praticamente o
mesmo perfil, aumentando e diminuindo quase em sintonia,
ou seja, trata-se de um traço estilístico provavelmente co-
mum a muitos escritores e sem maiores consequências apa-
rentes: Clarice faz parágrafos maiores com períodos maiores
(e parágrafos menores com períodos menores). O que não
parece comum é o fato de a escritora fazer essa oscilação
constante em parágrafos e períodos, aumentando-os e dimi-
nuindo-os ritmicamente ao longo do conto. Seria até possí-
vel fazer uma análise da narrativa tentando entender essa
oscilação rítmica e ver o que se conta em cada parágrafo,
tentando estabelecer alguma hipótese que permita associar
o ritmo narrativo e os eventos narrados. Ficaria mais ou me-
nos assim:
[ 56 ]
Parágrafos Eventos
1 Subida no bonde.
2, 3 Descrição da vida, segundo a perspectiva da protagonista, mas
encaminhando para um final em que se anuncia uma perda com
relação ao tempo de antes, à juventude.
4 Aqui, ela diz que trocou a felicidade pelo casamento.
5 Conforma-se com a rotina e a falta de felicidade.
6 Volta a falar da viagem de bonde.
7, 8, 9 Vê o cego.
10, 11 Contraposição entre o cego e sua vida quotidiana. Desastre (derruba
os ovos).
12 Afirma aí que “o mal estava feito”.
13, 14, 15 Percebe o estranhamento do mundo.
16, 17 Perda de referências de tempo e de espaço.
18, 19 Tentativa de dominar a situação.
20 Tentativa de dominar a situação. Presença de elemento natural: ramos.
21 Tentativa de dominar a situação. Presença de elemento natural:
abelhas.
22 Tentativa de dominar a situação. Presença de elemento natural: gato.
23 Tentativa de dominar a situação. Presença de elementos naturais:
ramos, pardal, jardim.
24 Tentativa de dominar a situação. Presença de elementos naturais:
frutos e água.
25 Tentativa de dominar a situação. Presença de elementos naturais:
plantas, vistas com nojo.
26 Náusea e visão do inferno.
27 Delícia e nojo.
28 Lembrança dos filhos e da vida cotidiana.
29, 30 Estranhamento da vida cotidiana, dos filhos.
31 O nojo da ostra.
32 Voltam à lembrança imagens do cego e de um leproso.
33 Imagens de lobisomem; fala de amor ao cego.
34 Estranha a casa, as pessoas, o cotidiano.
35 Presença do marido, dos irmãos, das mulheres, dos filhos.
36 Há uma rápida volta a um instante de normalidade.
37 Vê-se distante do cotidiano e do estranhamento, assumindo a maldade
do mundo, como uma maldade de amante.
38 Estouro do fogão.
39, 40 Diálogo com o marido (o foco volta-se para ele).
41 A partir do foco no marido, fala-se da quebra do mundo de Ana.
42 "Acabara-se a vertigem da bondade", parece que tanto para ela quanto
para ele.
43 Apagou o estranhamento do dia, como se apaga uma vela.
[ 57 ]
Por exemplo, nos parágrafos 10 a 14, a diminuição dos
períodos pode corresponder a uma tentativa de ir acomodan-
do, aos poucos, o estranhamento à vida corrente. E o pará-
grafo 15, com períodos maiores, parece preparar a mudança
de cenário que vem adiante. Contudo, algo chama a atenção
de modo evidente: o parágrafo 29 traz uma diferença entre
as curvas; é, de longe, o parágrafo mais longo, mas o tama-
nho médio de seus períodos está entre os menores. Aí pode
estar localizado algum ponto importante da construção da
narrativa, não só por estar em posição quase central com
respeito aos demais parágrafos, mas por articular um pla-
no de rotação entre o ambiente externo (rua, bonde, jardim,
pessoas estranhas) e o interno (filhos, família, casa). Esse
ponto de discrepância entre as duas curvas poderia ser to-
mado como o eixo a partir do qual se organizaria uma leitura
minha do conto. Não que isso venha objetiva e consciente-
mente de Clarice, mas é o apoio a partir do qual tentaria
construir minha entrada (leitura e escrita a um só tempo,
num só gesto) no conto.
Todavia, desde o início, estou deixando claro que o foco
privilegiado deste trabalho está na criação digital. A questão,
assim, não é desenvolver a leitura do conto, mas já deixar
claro que a maneira como entrei na leitura dessa obra de
Clarice não pôde (e não pode) fazer tábula rasa de minhas
leituras prévias da criação de Rui Torres. A segmentação do
conto em parágrafos e períodos – não por coincidência! – tem
a ver justamente com a multiplicidade de elementos na obra
digital: os diversos filmes; as muitas frases se dando a ouvir;
as mudanças introduzidas por Rui no original20 de Clarice;
as remontagens à moda cinematográfica que o dispositivo
digital impõe à escrita impressa, etc. Assim, o que acima
20
Se é que ainda se pode falar disso com propriedade.
[ 58 ]
descrevi, a respeito das diferentes ordens possíveis de leitu-
ra do conto e da criação digital, tem a ver, claro, com a cons-
trução deste meu discurso crítico, em que a navegação pelo
digital precedeu, de alguma forma, a leitura do impresso.
Daí, insisto!, minha estratégia de tomar elementos do conto,
no nível sintático-discursivo, para, num primeiro momento,
afastar um dos outros, dar-lhes um mínimo de autonomia;
em seguida, feita essa segmentação, reinseri-los numa tota-
lidade narrativa, trazendo-os de volta à história que está no
conto (daí a tentativa de entender as quebras e modulações
rítmicas dentro de uma lógica do narrado).
Assim, a partir do que entrevi nessa leitura superficial
do conto, retomo, então, a criação de Rui Torres, tentando le-
var para minha leitura do digital alguns dos procedimentos
e alguns dos elementos explorados acima. Há que se ressal-
tar que esta leitura de agora tem o complicante de chamar
distintos recortes textuais à cena do sentido: o próprio conto
de Clarice; as escolhas, montagens e interferências de Rui;
minhas perspectivas críticas e teóricas; o papel, sempre rele-
vante, da programação e, por extensão, dos programadores,
etc. Passemos, pois, à criação digital.
*
[ 59 ]
brasileira; e seria também injusto para com alguns dos efei-
tos mais interessantes da criação digital, em que elementos
mais escondidos da escrita de Clarice são trazidos à cena e
apresentados de forma mais atraente, mais original (por que
não dizê-lo?), a começar pelas possibilidades de VER e de
OUVIR, que na tradição impressa ficam escondidos sob os
hábitos da leitura verbal.
Ao entrarmos em Amor de Clarice, há uma introdução
teórica que passa tão rapidamente que é difícil de ser lida
e, de fato, isso nem importa; apenas o nome de Chklovsky
pode ser entrevisto com alguma facilidade. Ao fundo, há um
acúmulo de palavras e frases, no que vai ser a constante das
páginas todas.
Fonte: http://telepoesis.net/amorclarice/amor.html
[ 60 ]
Fonte: http://telepoesis.net/amorclarice/amor.html
Figura 5 - Procedimentos de leitura
Fonte: http://telepoesis.net/amorclarice/amor.html
Figura 6 - Índice geral
[ 61 ]
Fonte: http://telepoesis.net/amorclarice/amor.html
Figura 7 - Frases
Fonte: http://telepoesis.net/amorclarice/amor.html
Figura 8 - Filme
[ 62 ]
É claro que essas passagens não são instantâneas. En-
tre uma página e outra, temos que nos haver com o arquivo
flash sendo carregando, numa espera em que nos olhamos
olhando,21 através da imagem de nosso rosto refletida no mo-
nitor.
Com respeito aos sons, podem-se perceber vários pla-
nos distintos. Na página correspondente à primeira frase da
página-índice, por exemplo, aparece uma mistura de ruídos
eletrônicos, som incidental, o som da palavra respira, o som
das frases que vamos clicando, o som das frases sendo fala-
das em sequência pré-programada. E essa mistura sonora se
repete em todas as páginas deste tipo: quando clicamos so-
bre várias frases, isso faz com que as vozes se amontoem, em
raro e delicado efeito de multidão, numa espécie de reza ou
de ritual coletivo. Esse efeito poderia até parecer um proces-
so progressivo de apagamento ou de indistinção de significa-
dos, não fosse o caso de, deixada sozinha, sem mais cliques,
a criação digital retomar sua cantilena, sua ladainha, isto é,
a sequência de leitura previamente programada. É como se
fossem pequenos poemas falados, cuja concatenação é reto-
mada incessantemente.
De fato, um dos pontos mais evidentes na criação de
Rui Torres é justamente a maneira de produzir poemas a
partir da escrita de Clarice e, no lado oposto, de fazer com
que alguns poemas encontrem seu ritmo e seu lugar na es-
crita de Clarice, seja no plano sonoro, seja no verbal, seja no
imagético. As frases que se deslocam sem parar nas páginas
propõem quebras que fazem não apenas uma rediagramação
21
Nesses momentos, nossa imagem aparece, claramente, refletida na tela meio
apagada. A esse propósito, ler Identidades e subjetividades no ciberespaço,
em Leitura de nós, p. 24-33. Tal perspectiva não é distante da imagem, usada
por Husserl e, depois, por Merleau-Ponty, das mãos que se tocam e são toca-
das reciprocamente.
[ 63 ]
visual, mas também melódica do conto. E essas quebras, es-
ses rearranjos rítmicos, são os elementos mais interessantes
na criação rítmica de Rui. Trata-se, claro, de uma poetização
da fala, mas é também poetização digital; se temos aí ritmos
sonoros, temos também ritmos musicais, visuais, navegató-
rios. E, por falar em ritmos navegatórios, essas hesitações e
costuras entre os diferentes filmes são uma espécie de recon-
dução do poético à prosa narrativa de onde ela saiu: trata-se
de ampliar, de algum modo, a estreiteza das expressões; em
suma, trata-se de associar às palavras uma sequência maior,
um fôlego mais amplo, de reencontrar alguma linha de sig-
nificação por trás das limitações evidentes e imediatas do
espaço verbal de cada uma das páginas.
Mas é importante notar que esse jogo de buscar signi-
ficações mais largas a partir de um entrelaçamento entre as
páginas reproduz o que se pode fazer, em escala reduzida, em
cada uma. Nelas, há sempre movimentos pré-programados
das frases e do fundo visual, mas nós podemos nos apossar
dos movimentos, voluntariamente, e alterar a posição das
frases e a sequência de leitura que vamos ouvir, mesmo se
a sequência automática de leitura das frases não se altera e
fica como pano de fundo sonoro para o que vamos ouvindo e
que foi por nós provocado (a partir de nossos cliques sobre as
frases). Tanto no caso das sequências aleatórias de páginas e
de filmes, quanto no das frases dentro de uma dada página,
poderia dizer que temos aí uma espécie de teatralização, de
cenografia de elementos. Nesta, além de termos a posição pri-
vilegiada de diretor de cena, também participamos do elenco,
também somos elemento submetido a uma teatralização.22
22
A esse propósito, ver meu trabalho “Palavra e imagem na criação poética
digital”. In: RETTENMAIER, Miguel; RÖSING, T. M. K. (Org.). Questões de
leitura no hipertexto. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2007.
p. 15-31.
[ 64 ]
Neste ponto, devo dizer que a exploração de Amor de
Clarice, desde o início, veio acompanhado de imenso prazer
de leitura, um prazer que traduz um aprendizado de leitura
da prosadora brasileira. Posso dizer com honestidade que
a obra de Rui, além de outras coisas, também me ensina
a ler Clarice. A maneira como ele se apropria de frases do
conto mereceria tratamento à parte: trata-se de estratégia
de leitura que poucos leitores da obra (impressa) de Clarice
perceberam. Primeiramente, deve-se dizer que não há exa-
ta coincidência entre as frases do conto e as que aparecem
escritas ou faladas na criação digital. O filme 24, por exem-
plo, repete insistentemente “Não! Isso não!”, frase que não
está na obra impressa. Aos poucos, nos damos conta de que
é mesmo difícil (senão impossível) resistir à tentação de ir
ao conto de Clarice, para comparar o que lá está com o que
foi posto (trazido e transformado) no digital. E, quando com-
paramos um a outro, percebemos que a criação digital oscila
entre a transcrição fiel de frases do conto e a transformação
motivada, como a da expressão “parte inferior do fogão”, que
na criação digital se torna “parte interior do fogão”. De certa
maneira, e sem querer ser demasiado arbitrário, esse des-
locamento semântico reflete o próprio jogo de apropriação
(estava quase dizendo “apropriação antropofágica”) e de re-
criação digital do conto impresso: troca-se o inferior (que es-
taria em segundo plano) pelo interior (o elemento que é assi-
milado e integrado a outra lógica e a outro meio expressivo).
Por outro lado, será que haveria possibilidade de resga-
tar ou alinhavar algum elo narrativo, quero dizer, cronológi-
co, entre os 26 filmes de Rui? É claro que se pode percorrer
a criação digital sem entrar pelas interações, apenas lendo e
ouvindo em ordem preestabelecida; também se pode ir pela
exploração cuidada e detalhada de cada filme, mesmo man-
tendo essa cronologia preestabelecida (sequência que – é fá-
[ 65 ]
cil de verificar – está próxima da cronologia do conto); enfim,
pode-se ir por qualquer ordem dos filmes, arbitrariamente,
à notre guise. Mas, em qualquer caso, nunca há informação
explícita de onde se está, de qual é a frase do índice que se
está lendo. O único elemento recorrente é o tempo de espe-
ra entre um filme e outro, a barra de porcentagens que vai
se completando de 0 a 100%, para carregar os arquivos em
flash (tempo que varia de um momento a outro, dependen-
do do tamanho do filme e do tráfego na linha da internete).
Esse tempo de espera, além de remeter a nós mesmos (vide
nota 20, acima), também parece que fica à espreita de algu-
ma decisão narrativa nossa, de alguma linha ou de alguma
sequência que decidamos impor ao conjunto e à ordem das
páginas que vamos então trazendo à tela. E ainda, em cada
página as frases vão surgindo e desaparecendo, mas o es-
paço clicável permanece lá, como se fosse ele o espaço de
teatralização, mais importante do que os próprios elementos
colocados em cena.
[ 66 ]
nos, não na exploração das obras artísticas. Trata-se de dar
a tais conceitos e categorias uma dimensão concreta e ime-
diata, uma disponibilidade que também os aproxime do so-
noro, do visual, do tátil, do corpóreo.23 Talvez se possa dizer
que estou tentando recompor uma espécie de corporeidade
do pensamento. Não o nego. É exatamente isso! Lendo (ou
percorrendo) o Amor de Clarice, vou tentando pôr etiquetas
aqui e ali, ou seja, tomar possíveis conceitos e prováveis ca-
tegorias como significantes que posso, a partir daí, deslocar
e justapor a outros elementos, em outros locais.24
Essas etiquetas que vão sendo encontradas, postas ou
impostas, desde o início, ao longo das páginas25 permitem
voltar a elas sem sair da página específica que se está vendo
em um dado momento. Em outras palavras, é possível esta-
belecer cortes transversais em que elementos já lidos vêm
transtornar e deslocar o que está sendo lido no presente. Por
sua vez, o que está sendo lido no presente pode se transfor-
mar em um “já-lido” e que é abandonado na sequência da
leitura; ou pode se tornar um “já-lido” que se transforma em
etiqueta ou marcador, fisicamente disponível, seja armaze-
nado no histórico de navegações, nas anotações que vamos
fazendo, nas páginas outras que vamos abrindo e deixamos
abertas, nos elementos outros que vamos incorporando à
cena de leitura,26 nas maneiras de marcarmos, coreografica-
mente, nossas estratégias de leitura e de categorização do
que lemos. Com tudo isso, poderíamos compor, como fizemos
23
Claro que não falo aqui do corpóreo no senso comum, mas da noção de corpo
como a propõe Merleau-Ponty.
24
Isso não é fundamentalmente diferente do que fez Kurt Gödel, no início de
sua proposição dos teoremas da incompletude e da indecidabilidade, com res-
peito à aritmética e aos sistemas formais.
25
Isso inclui também, claro!, as páginas do conto impresso.
26
Tanto pode ser o próprio conto de Clarice, quanto informações sobre quais-
quer coisas, da teoria do verso à música eletrônica.
[ 67 ]
acima, uma cena de leitura em que os elementos presentes
seriam, por exemplo, os cortes rítmicos na trilha sonora di-
gital, a sintaxe de montagem dos vídeos, o ritmo oscilante da
prosa de Clarice. E nessa cena de leitura, o leitor está cla-
ramente colocado como mais um elemento teatral. Ele pode,
por exemplo, ser o iluminador, quando privilegia determina-
das frases, fazendo-as significar, movimentar ou soar, quanto
pode ser personagem, ao se ver refletido no fundo da tela e
concretizado pelos marcadores que vai amontoando ao lon-
go da leitura. Ele pode estar também na tradicional posição
do coro, quando vai levantando, explicitando e concretizando
possíveis inter e hipertextualidades para a obra que vai lendo.
Ora, com tudo isso, parece que cai mesmo por terra
a possibilidade de se escolher uma das quatro possibilida-
des de leitura do conto e da criação digital (como acima já
discuti). Com isso que estou chamando de “pensamento de
etiquetagem”, até se poderia pensar que as quatro se reali-
zam ao mesmo tempo. Mas, atenção!, realizá-las ao mesmo
tempo não quer dizer um vaivém indistinto entre as quatro
perspectivas. É justamente a escolha de uma perspectiva
privilegiada e, ao mesmo tempo, a opção pela estratégia da
etiquetagem que permite que, a cada instante, as perspec-
tivas e horizontes das outras três leituras venham alterar e
enriquecer a que se está fazendo no momento. É o que ocorre
com os recortes que fizemos no conto de Clarice, analisando
seus períodos e seus parágrafos, através do ritmo, para ten-
tar encontrar, em seguida, alguma lógica que os amarrasse
entre si e os amarrasse à trama narrativa. Essa estratégia,
marcada na leitura do conto impresso, quando trazida à
cena da leitura digital e posta a funcionar com os demais
elementos próprios de Amor de Clarice, permite-nos pensar
numa concatenação entre as páginas e os filmes da obra de
Rui Torres, sem que estejamos obrigados a nos dobrar às
[ 68 ]
lógicas e aos limites da programação e dos instrumentos de
navegação da internet.
No caso, é fundamental compreender que esses marca-
dores passam a abrir outros espaços de leitura, quase como
se compusessem uma outra obra. Instala-se aqui um movi-
mento em que, rapidamente, o que organizamos da leitura
da obra passa a ser a leitura de uma nova obra. É certo que
isso pode representar a deriva para o vazio, a vertigem de
se perder numa fuga para frente sem parada, uma mise-en-
abîme da própria leitura em que estaríamos sempre atrás
de uma nova e outra obra, mas sem chegar a ela jamais. Em
tais momentos, é preciso saber fazer o movimento contrário,
especular, e ver a obra originalmente lida (o Amor de Clari-
ce), como o novo campo de marcadores/etiquetas... e voltar
a ela. Fazer com que o outro dessa nova obra (a dos marca-
dores) passe a ser “meu próprio” (ou seja, da criação digital
de Rui Torres). Aqui, essa incorporação (diria novamente,
“antropofágica”) é a maneira de voltar ao espaço que quero
privilegiar, sem me perder nos desvãos e vertigens de uma
leitura sem limites e sem propósito. Pode-se, assim, estabe-
lecer um vaivém constante entre os dois campos, de modo
que a leitura de meus marcadores não se sobreponha em
definitivo à leitura da criação digital. Com isso, podemos fu-
gir a essa tendência narcísica e empobrecedora, muito forte,
da atualidade, em que se quer constantemente se ler a si
mesmo, usando sempre a criação alheia para expressar um
encantamento consigo mesmo. O diabo não é o “outro”, mas,
sim, o “mesmo”.
Devo dizer., por fim, que é difícil não retornar à frase de
Montaigne, colocada em epígrafe, lá ao início. “[…] chacun
appelle barbarie, ce qui n’est pas de son usage.” Assim, não
haveria mais barbárie quando tudo que não é meu pudesse
se tornar meu. Ou talvez sim, mas isso poderia ser apenas
[ 69 ]
uma outra face da... barbárie. De fato, se o que não é meu
se torna sempre meu, posso apenas estar transmitindo mi-
nha própria barbárie a todos quando me aposso de tudo. O
que me garante que não sou o transmissor desse indesejá-
vel vírus da prepotência cultura (ou artística) é eu aceitar
também ser o “outro” dos outros, se aceito que os outros se
apossem de mim. Se, ao invés de apenas tomar para mim,
criador digital, tudo que me interessa da tradição impressa,
eu me deixar também ser levado por ela, também servir a
suas perspectivas, a suas possibilidades. Ora, foi exatamen-
te isso que pude perceber no Amor de Clarice de Rui Torres.
Mesmo tendo escolhido aprofundar, mais do que tudo, as
estratégias de construção do digital, em nenhum momento
pude (nem posso) perder de vista os meandros da criação
impressa. Belo modo encontrou o criador de Amor de Clarice
de espantar para longe essa barbárie tão vizinha nossa! E
de nos ensinar como ler criações digitais, criações literárias
impressas, ao mesmo tempo em que nos lemos. O que mais
se quer de uma obra de arte?!
Referências
ASSIS, Machado. O espelho. Disponível em: http://www.machadode-
assis.ufsc.br/obras/contos/CONTO,%20Papeis%20Avulsos,%201882.
htm#o_espelho_abaixo.
LISPECTOR, Clarice. Amor. In: Laços de família. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1960. Disponível em: http://www.releituras.com/clis-
pector_amor.asp. Acesso em: 24 mar. 2009.
PAZ, Octavio. La tradición de la ruptura.
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Disponível em: http://purl.pt/240/1/P23.
html. Acesso em: 18 mar. 2009.
SÁEZ, Oscar Calavia. Iaminauás: os “índios dos índios”. JB On-line.
Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2008/09/14/
niteroi/iaminauas_os_indios_dos_indios.html. Acesso em: 17 mar.
2009.
[ 70 ]
SANTOS, Alckmar Luiz dos. Textualidade literária e hipertexto in-
formatizado. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
LITERATURA COMPARADA, 1996, Rio de Janeiro. Anais... Rio de
Janeiro: Abralic, 1998.
_______. Leituras de nós. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 2003.
_______. Palavra e imagem na criação poética digital. In: RETTEN-
MAIER, Miguel; RÖSING, T. M. K. (Org.). Questões de leitura no hi-
pertexto. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2007.
TORRES, Rui. Amor de Clarice. Disponível em: http://telepoesis.net/
amorclarice/amor.html. Acesso em: 19 mar. 2009.
[ 71 ]
Literatura, teatro, imagens:
“Geni e o Zepelim”, de Chico
Buarque no YouTube
1
Não temos a pretensão de tratar o site em questão como objeto de pesquisa,
com a formalidade e a seriedade que acreditamos que tal trabalho exige. Tra-
tamos o referido site como objeto de exemplificação das mudanças de nosso
tempo e das possibilidades de encontrar literatura dramática transformada
em imagem no âmbito da internet.
[ 73 ]
“derivados” desta canção no YouTube. Nossas reflexões finais
trazem uma resposta diferente à pergunta de Costa, na me-
dida em que vamos tratar da possibilidade de o navegador
se tornar um espectador do espetáculo teatral, mesmo que
distante do espaço e do momento da representação.2
2
Obviamente, não estamos tratando neste trabalho da substituição ou anula-
ção da arte teatral diante das novas tecnologias. Estamos visualizando uma
possibilidade de as imagens, as luzes e os sons do espetáculo teatral não
desaparecerem na “voracidade do tempo”. Cabe salientar que, para trilhar
o caminho que traçamos para este texto, tivemos de tocar levemente (o ne-
cessário para que nossas ideias ficassem claras) em temas que necessitam de
ampliação e discussões menos superficiais, como expomos em diversas notas.
[ 74 ]
amadores de conteúdo. É importante perceber que, a partir
da ideia de colaboração, os diferentes participantes chegam
ao site com seus objetivos e propósitos e o modelam coletiva-
mente, tornando-o um espaço marcado pelo dinamismo.
Uma vez marcado por mudanças dinâmicas e pela di-
versidade de conteúdos, é de se imaginar que o YouTube seja
considerado um objeto de estudo instável. Além disso, dis-
cutindo essa instabilidade, Burgess e Green (2009, p. 24) ci-
tam uma “complicação adicional”, que é o fato de o site ter
dupla função como plataforma top-down de distribuição de
cultura popular e como plataforma bottom-up de criativida-
de vernacular.3
De maneira simplista, podemos definir o YouTube como
um serviço de publicação de vídeos que possibilita aos parti-
cipantes e visitantes compartilharem e comentarem vídeos
de diversas naturezas, cujo endereço eletrônico é www.
youtube.com. Sua fundação deu-se oficialmente em junho
de 2005, e seu sucesso em relação a outros sites de vídeo
encontra-se, segundo Paulo Henrique Souto Maior Serrano
(2009, p. 3), em pelos menos dois aspectos: no pioneirismo
no processo de digitalização dos conteúdos audiovisuais, já
que o YouTube foi o primeiro site a utilizar a compressão dos
vídeos para o formato Flash Vídeo, o qual reduz o tamanho
do arquivo, potencializando a velocidade de transmissão de
dados; e na interatividade, que, por meio de diversos me-
canismos de respostas, incentiva a troca de informações e
estimula a alteridade com o objetivo de desenvolver o senti-
mento de comunidade.4
3
Esse é um ponto de tensão nos estudos do YouTube como mídia de massa; por
isso gera incertezas, dúvidas e debates profícuos. Optamos por não abordar
essa questão de maneira mais ampla, em razão do recorte que fizemos no
tema, tendo em vista a proposta deste texto.
4
Nas páginas 12 e 13 do estudo citado, Serrano apresenta um amplo mapea-
mento dos recursos disponíveis no referido site, bem como uma classificação
muito pertinente, a qual ele elabora e utiliza na sua pesquisa.
[ 75 ]
A justificativa de Serrano (ou pelo menos a segunda par-
te dela) está de acordo com a afirmação de Burgess e Green
(2009, p. 19) de que Jawed Karim, um dos fundadores do
site, considera que o sucesso do YouTube se deu em virtude
da implementação de quatro recursos essenciais: “recomen-
dações da lista por meio da lista de vídeos relacionados, um
link de e-mail que possibilita o compartilhamento de vídeos,
comentários (e outras funcionalidades inerentes a redes so-
ciais) e um reprodutor de vídeo que pode ser incorporado em
outras páginas da internet”. Há também de se considerar,
nessa justificativa, o fato de que desde sua fundação o You-
Tube disponibiliza uma interface bastante simples, dentro
da qual o usuário pode transferir um arquivo de vídeo de
seu computador para o site, publicá-lo, assisti-lo, sem ne-
cessidade de conhecimentos técnicos avançados. As caracte-
rísticas que apontamos aqui atestam o que afirmou André
Lemos (2003, p. 36) ainda antes da criação do YouTube: “O
ciberespaço cria um mundo operante, interligado por ícones,
portais, sítios e home-pages, permitindo colocar o poder de
emissão nas mãos de uma cultura jovem, tribal, gregária,
que vai produzir informações.”
Fica implícito na breve caracterização que fizemos que o
YouTube não é um produtor, mas, sim, uma plataforma e um
agregador de conteúdo. Seu negócio, ou metanegócio, como
sugere David Weinberger, é mais precisamente “a disponi-
bilização de uma plataforma conveniente e funcional para
o compartilhamento de vídeos on-line: os usuários (alguns
deles parceiros de conteúdo premium) fornecem o conteúdo
que, por sua vez, atrai novos participantes e novas audiên-
cias. Portanto, o YouTube está, até certo ponto, na posição
de um reach business [...]; atendendo um grande volume de
visitantes e uma gama de diferentes audiências, ele oferece
[ 76 ]
aos seus participantes um meio de conseguir uma ampla ex-
posição” (Burgess; Green, 2009, p. 21-22).
Assim, o YouTube é, por um lado, um empreendimen-
to comercial, pois apresenta resultados financeiros ao seu
proprietário; por outro, uma plataforma que possibilita a
participação cultural do cidadão, gerando resultados comu-
nitários. O aspecto comercial não importa de imediato em
nossas reflexões. É na possibilidade de participação do cida-
dão comum como receptor de vídeos de uma categoria especí-
fica que procuramos nos concentrar. Por isso, cabe dizer que,
neste texto, assim como sugerem Burgess e Green (2009,
p. 59), entendemos o YouTube como ocupante de uma função
institucional, atuando como um mecanismo de coordenação
entre criatividade individual e coletiva e a produção de sig-
nificado.
Em relação às categorias que os milhares de vídeos
disponíveis no YouTube podem ocupar, cabe citar que o site
propõe um total de treze: animais, ciência e tecnologia, edu-
cação, entretenimento, esportes, filmes e desenhos, humor,
instruções e estilo, música, notícias e política, pessoas e blogs,
veículos, viagens e eventos. Contudo, como observa Serrano
(2006, p. 6), os vídeos nem sempre são enquadrados pelos
usuários do site nas categorias adequadas. Por isso, para
organizar melhor a amostragem que utiliza em seu estudo,
o autor propõe um método de caracterização que considera
essencialmente a estética de produção de cada vídeo. Des-
sa forma, a segmentação é feita entre vídeos adaptados de
outras mídias e entre vídeos produzidos diretamente para
difusão on-line. O primeiro caso compreende as reproduções
digitalizadas de conteúdos originários de outras mídias; são
adequações de produtos audiovisuais ou artísticos que ti-
nham como objetivo essencial a difusão em outro suporte,
[ 77 ]
mas que são reconfigurados para o formato de exibição na
internet (Serrano, 2009, p. 6). O mesmo autor subdivide essa
categoria em seis grupos de vídeos, dentre os quais cabe ci-
tar, tendo em vista apontar uma categoria para os vídeos
que selecionamos para esse trabalho, a categoria número
três, que se refere às apresentações teatrais registradas di-
gitalmente e publicadas no site.
[ 78 ]
afirma que é no processo de recepção que provavelmente se
apresentam as alterações mais evidentes que o suporte digi-
tal provoca, já que o destinatário não é um recebedor passivo,
porque pode captar várias mensagens concomitantemente,
ao operar com janelas simultâneas, que escolhe voluntaria-
mente. As janelas, segundo a autora, mesclam elementos
verbais e visuais, agudizando, por serem fortemente exigi-
das e estimuladas as capacidades de percepção e atenção do
leitor (p. 189). Zilberman, embora tratando da internet no
seu formato anterior ao sucesso do YouTube, já salienta a
coexistência da imagem e da palavra no suporte digital e a
potencialização das capacidades de percepção e atenção no
processo de leitura.
Eloy Martos Núñes (2007, p. 57) trata de uma classe
de leitor mais ativo, mais diversificado em seus gostos e que,
além disso, não tem uma visão compartimentada das artes,
pois pode passar da leitura de um livro à assistência de um
filme, ou a jogar, como consolo, algum jogo estratégico e, em
todos eles, de alguma forma, pode haver mostras da saga
preferida.5 Núñes nos dá pistas de um leitor “chegado” às
imagens, que transita do verbal impresso ao cinema e ao
jogo relacionado à ficção. A nosso ver, o leitor que hoje chega
ao YouTube é uma evolução do leitor que Zilberman e Núñes
perfilaram há alguns anos. Já insinuavam os pesquisadores
os “outros processos de leitura” e, portanto, o novo leitor que
sites como YouTube forjam na contemporaneidade.
Contudo, não é somente a relação do homem com as
imagens e sons que se encontra em processo de reconfigura-
ção. Tal processo também recai sob as expressões artístico-
literárias, das quais emergem muitas vezes as imagens e
5
Como estava acontecendo com O senhor dos anéis, na época em que o autor
escreveu o texto.
[ 79 ]
os sons disponibilizados no YouTube. Estamos falando dos
vídeos e clipes relacionados à literatura e que podem ser fa-
cilmente encontrados no site em questão, e os quais, a nosso
ver, levam a um grande público o texto literário transforma-
do em imagem e som.6 Essa imensidade de produtos e possi-
bilidades reforça, segundo Silva Filho, o caráter libertário da
rede: “O uso das imagens na rede mundial de computadores
através de sítios como o YouTube resgata um universo fecun-
do de possibilidades para a democracia, para uma nova in-
telectualidade, para uma nova relação entre homem e meio,
mediada pelas imagens; para um outro cidadão que agora
prefere escolher a ser escolhido” (2009, p. 4).
O fato de o YouTube representar um universo fecundo
de possibilidades para a democracia e a nova relação entre
homem e o meio, que leva o cidadão a preferir escolher a ser
escolhido, encontra, a nosso ver, uma ilustração pertinente
na pluralidade de vídeos relacionados à canção “Geni e o Ze-
pelim”, de Chico Buarque de Hollanda, que encontramos no
referido site. Os diversos resultados para a mesma pesquisa
trazem várias e novas possibilidades de fruição artística e de
leitura, as quais se encontram a um clic do espectador-cida-
dão. Contudo, antes de passarmos às referidas possibilida-
des, faz-se necessário uma breve contextualização da canção.
6
Sabemos que tratando sobre esse tema evocamos os estudos relacionados
às transposições da literatura para outros sistemas artísticos. Mas, devido
à brevidade deste texto, não vamos percorrer as veredas desse tema. Suge-
rimos, outrossim, a leitura do ensaio “Conto que vira curta: a propósito da
adaptação de ‘Ruídos de passos’”, de Clarice Lispector para o cinema (Signos,
n. 28, 2007), e do capítulo “Literatura e televisão: possibilidades de leitura
na escola a partir da configuração, na televisão, da obra A hora da estrela,
de Clarice Lispector”, do livro Novas tecnologias de informação e comunica-
ção em redes educativas: diálogos entre praticantes da educação (Erd Filmes,
2008), ambos de nossa autoria.
[ 80 ]
Um espaço para “Geni e o Zepelim” na
literatura dramática
“Geni e o Zepelim”, tomada pela sua origem, é uma can-
7
ção criada para a peça Ópera do malandro, escrita e repre-
sentada pela primeira vez em 1978. Nesta obra, Chico Buar-
que se inspira na Ópera dos mendigos, de John Gay, escrita
em 1728, e na Ópera de três vinténs, de Bertolt Brecht, escri-
ta em 1928, e localiza a ação em fins do Estado Novo.8 Adélia
Bezerra de Meneses Bolle (1978, p. 161) afirma que a peça
mostra que o banditismo e os grandes negócios são a mesma
coisa e que seu enredo focaliza o fim da malandragem arte-
sanal, quando se passa à malandragem em escala industrial.
Trata-se de uma peça sobre o capitalismo, mostrado em seu as-
pecto sedutor, e que destrincha a engrenagem do sistema social:
o chefe de polícia (Chaves), é amigo do dono de um bordel (Du-
ran), e padrinho de casamento de um contrabandista (o malan-
dro Max). Tanto Max como Duran são contraventores, mas só
Max pode ser preso, porque a forma pela qual ele burla a lei é
ilegal. Mas, no fim da peça, a quadrilha de contrabandistas se
vê transformada em uma firma de exportação – e tudo termina
num happy-end: canta-se a vitória do náilon, do dinheiro, da mo-
dernização e da “multimalandragem”. E será Teresinha, filha de
Duran, casada com Max, o agente de transformação. É ela que
percebe a mudança dos tempos e imprime aos “negócios” do ma-
rido o rumo adequado (1980, p. 79-80).
7
Tomada aqui como uma composição musical acompanhada de um texto poé-
tico. O título “Geni e o Zepelim” já aparece no texto de Chico Buarque, que
intitula todas as músicas da peça.
8
Nilson Pereira de Carvalho (2003) se refere à criação literária em questão
como “abrasileiramento” dos temas originários das obras que foram adap-
tadas pelo autor. Cláudia Regina dos Santos (2002) faz um levantamento
das relações entre os três textos, focalizando o aproveitamento dos textos
anteriores para a construção de um texto-chave para o entendimento da es-
querdização do teatro brasileiro a partir da metade dos anos 1950.
[ 81 ]
Ópera do malandro, por se tratar de uma comédia mu-
sical, conforme Chico Buarque a classificou, tem sua ação
dramática entrecruzada por canções. Geni, na história, é um
homossexual que trabalha no contrabando para Max. Seu
nome, que aparece pouquíssimas vezes na peça, é Genival, o
qual vende produtos de contrabando como perfumes e joias,
habitando, assim, tanto o núcleo de Max quanto o de Duran,
pois Vitória, esposa deste, é sua cliente. Para sobreviver no
capitalismo que se desenha à sua frente, ela “vende” infor-
mações importantes de um grupo de personagens para outro.
Suas atitudes estão de acordo com a necessidade de sobrevi-
vência de alguém que é marginalizado no contexto da socie-
dade capitalista. No final da cena quatro, Geni pede a cola-
boração dos demais personagens que estão em cena (Chaves,
Duran e Vitória) para a acompanharem no coro e canta:
[ 82 ]
COM CORO Você vai nos redimir
Essa dama era Geni Você dá pra qualquer um
Mas não pode ser Geni Bendita Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir Foram tantos os pedidos
Ela dá pra qualquer um Tão sinceros, tão sentidos
Maldita Geni Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Mas de fato, logo ela Entregou-se a tal amante
Tão coitada e tão singela Como quem dá-se ao carrasco
Cativara o forasteiro Ele fez tanta sujeira
O guerreiro tão vistoso Lambuzou-se a noite inteira
Tão temido e poderoso Até ficar saciado
Era dela, prisioneiro E nem bem amanhecia
Acontece que a donzela Partiu numa nuvem fria
- e isso era segredo dela Com seu zepelim prateado
Também tinha seus caprichos Num suspiro aliviado
E a deitar com homem tão nobre Ela se virou de lado
Tão cheirando a brilho e a cobre E tentou até sorrir
Preferia amar com os bichos Mas logo raiou o dia
Ao ouvir tal heresia E a cidade em cantoria
A cidade em romaria Não deixou ela dormir
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos COM CORO
O bispo de olhos vermelhos Joga pedra na Geni
E o banqueiro com um milhão Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
COM CORO Ela é boa de cuspir
Vai com ele, vai Geni Ela dá pra qualquer um
Vai com ele, vai Geni Maldita Geni
Você pode nos salvar
(1978, 161-163)
[ 83 ]
Em setembro do ano da estreia, Ópera do malandro é
publicada em livro. Em 1979, Chico Buarque lança o disco
de mesmo nome, com as músicas da peça. “Geni e o Zepelim”
figura entre elas com pequenas mudanças na primeira es-
trofe: os versos “Foi assim desde menina / das lésbicas con-
cubina / dos pederastas amásio”, registrados no livro, foram
substituídos por “Dá-se assim desde menina / Na garagem,
na cantina / Atrás do tanque, no mato”. A música em questão
tem sido seguidamente desligada da peça Ópera do malan-
dro, e ouvida/lida/estudada como texto autônomo em relação
à peça. A falta de ligação com a peça e as mudanças aponta-
das anteriormente levam a que Geni seja considerada uma
prostituta não um homossexual. Contudo, por achar impor-
tante considerar a música desde sua origem, optamos por
não desvirtuá-la do texto original e considerá-la uma cena,
um fragmento da peça. “Geni e o Zepelim”, tomada como tex-
to literário, já foi tema de diversos estudos, dentre os quais
podemos destacar a comparação que Irene Severina Resen-
de (2007) faz entre a música e o conto “Bola de sebo”, de Guy
de Maupassant, apontando indícios de intertextualidade, e
a comparação que Maria do Rosário Figueiredo (2008) faz
entre a Geni e a personagem Mula-Marmela, do conto “A
benfazeja”, de João Guimarães Rosa, dentre muitos outros
que podemos encontrar numa simples busca na internet.
[ 84 ]
quais chamamos de “derivados” (por falta de palavra me-
lhor): cenas de diversos espetáculos teatrais focalizando o
momento em que Geni a canta, clipes nos quais a canção é
interpretada por seu criador, filmagens da televisão e ama-
doras de diversos shows nos quais os artistas interpretam a
canção, animações, filmagens relacionadas a trabalhos esco-
lares, declamações, aulas de violão, entre outros.
Visto o objetivo deste trabalho, escolhemos, dentre os
84 vídeos, dois para ilustrar as possibilidades de leitura (no
sentido que tomamos no início deste texto) e de fruição da
linguagem teatral existentes no site. Nosso critério de es-
colha foi a adequação positiva da cena proposta por Chico
Buarque na peça Ópera do malandro à linguagem teatral.
Selecionamos de cada vídeo algumas imagens que julgamos
significativas no contexto deste trabalho e as relacionamos
às ações que a canção sugere. Também focalizamos algumas
propriedades artísticas de cada imagem comentando breve-
mente aspectos como atuação, cenários, construção de cena,
iluminação, figurino, entre outros.
A primeira sequência de imagens9 refere-se à monta-
gem de Ópera do malandro pela Cia. Minaz, de São Ber-
nardo do Campo, em apresentação no Theatro Pedro II, da
referida cidade, em 2007. No papel de Geni, o tenor Andrei
Frateschi.
9
Captadas em tela cheia no seguinte endereço: http://www.youtube.com/
watch?v=jbAh1EtOrqI, em 27 de fevereiro de 2010. Mais informações sobre
a referida companhia e a montagem em questão podem ser encontradas no
canal que mantém no Youtube (http://www.youtube.com/user/CiAMinaz) ou
no site http://www.minaz.com.br/.
[ 85 ]
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
[ 86 ]
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
[ 87 ]
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
[ 88 ]
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
10
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KZe40azecJo&feature=r
elated. Acesso em: 27 fev. 2010.
[ 89 ]
música, poesia, dança e artes plásticas.”11 Algumas canções
são transformadas em pequenos monólogos, outras, em ce-
nas, e assim é interpretada uma interessante galeria de per-
sonagens da obra de Chico Buarque, dentre as quais encon-
tramos Geni, interpretada por Juliano Almeida. Deslocada
do enredo de Ópera do malandro, a personagem conta ao pú-
blico sua história, numa performance, a nosso ver, exemplar.
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
11
Conforme divulgação sobre a peça disponível em: http://www.correiodobrasil.
com.br/noticia.asp?c=94263
[ 90 ]
e geral revela propositalmente a totalidade do palco e da
atuação de Juliano Almeida.
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
[ 91 ]
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=jbAh1EtOrqI
[ 93 ]
“Geni e o Zepelim” da montagem da peça original; o segundo
desloca-a de um espetáculo que a reaproveitou como texto
dramático (não como canção). Essa “autonomia” que verifi-
camos na canção de Chico Buarque em relação ao enredo da
peça para a qual foi criada, a nosso ver, foi atribuída pelo
próprio autor, que a gravou como faixa do disco Ópera do
malandro, em 1979, e a repetiu em vários outros discos. O
que percebemos é que a música se tornou autônoma e habita
diversas expressões artísticas.
É importante destacar que muitos outros vídeos que po-
deriam ser utilizados aqui, captações da referida canção em
montagens em diversos estados do país. São imagens que lo-
grariam o mesmo efeito em termos de análise, pois carregam
nuanças importantes da arte teatral. Nesse sentido, cabe
destacar a montagem da Companhia de Artes Operária,12
que se utilizou de duas Genis na montagem de Ópera do
malandro. Fora do eixo das criações teatrais, encontramos
diversos outros “derivados” da canção, alguns de qualidade
surpreendente, como a interpretação da cantora goiana Ma-
ria Eugênia13 ou a declamação de Maurício Witczak,14 para
citar alguns.
Teatro no YouTube?
O fato é que a internet parece desterritorializar o tea-
tro, que se retorritorializa através do digital em outro meio.
12
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CknP064HwL0&feature
=related. No YouTube também encontramos uma entrevista com os dois
atores que interpretaram Geni, na qual comentam o processo de criação dos
personagens e a proposta inovadora da utilização dupla dos mesmos. O vídeo
encontra-se em: http://www.youtube.com/watch?v=9AeNIRPxKbQ&feature
=related
13
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8eRI-a9Cv1M
14
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=3FeumW_qVjc
[ 94 ]
Assim como a televisão, o cinema e a música, o espetáculo
teatral também passa a habitar o YouTube, e tal migração
parece obrigar a uma reflexão (ou reformulação?) do conceito
de teatralidade.15 Patrice Pavis, no prólogo de seu Dicioná-
rio de teatro, afirma que o teatro é uma arte frágil, efêmera,
particularmente sensível ao tempo. Salienta que ninguém
poderia apreendê-lo sem requestionar seus fundamentos
(2007, p. XI). Como o que vemos no YouTube é uma “apreen-
são” de algo efêmero e que não foi criado para ser registra-
do em imagem digital, é necessário, sem dúvida, um longo
“requestionamento” em direção aos fundamentos desta arte.
Contudo, os estudos futuros vão apontar os danos que o espe-
táculo teatral sofre nesse processo. Nossa tarefa, neste texto,
torna-se quase oposta: é observar que, mesmo no referido
processo de migração, onde se abalam estruturas elementa-
res da arte teatral, o navegador/espectador pode lograr uma
experiência positiva.
É importante salientar que a migração do espetáculo
teatral para o YouTube não constitui um exemplo daquilo
que o pesquisador Anxo Abuín Gonzálvez (2007, p. 47) in-
titula e descreve como teatro virtual, no qual os recursos
de hipermídia constituem aparatos do ator – “próteses e ex-
tensões”, diz ele. Tais considerações dizem respeito à inser-
ção dos recursos de hipermídia dentro do próprio espetáculo,
mesmo que esses recursos substituam, em parte, o próprio
ator. Mas tais possibilidades não destituem o espetáculo tea-
15
Pavis enumera, valendo-se dos estudos de Alain Girault, os elementos in-
dispensáveis a qualquer fenômeno teatral: “O denominador comum a tudo
o que se costuma chamar de teatro em nossa civilização é o seguinte: do
ponto de vista estático, um espaço de atuação (palco) e um espaço onde se
pode olhar (sala), um ator (gestual, voz) no palco e espectadores na sala. De
um ponto de vista dinâmico, a constituição de um mundo ‘real’ no palco em
oposição ao mundo ‘real’ da sala e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de
uma corrente de comunicação entre o ator e o espectador” (2007, p. 373).
[ 95 ]
tral de ser um acontecimento que reúne o público ao redor de
si, presente e fruindo de uma apresentação e, portanto, da
teatralidade.16
Não se trata também do teleteatro, que representa,
para Pavis (2007, p. 398), um choque de especificidades e
tem como consequência a anulação das características mais
evidentes da teatralidade. Além disso, o autor salienta que
no teatro cada espectador faz sua triagem nos signos da re-
presentação, ao passo que, na televisão, uma crítica do sen-
tido já foi efetuada no enquadramento, nos movimentos de
câmara, na montagem. Assim, o espetáculo teatral acaba
desconstruído e reconstruído no formato da televisão, com
uma dramaturgia televisiva específica, que modifica ima-
gem, som, cenários, iluminação, fábula, encenação, entre
outros (p. 398-399). Os vídeos que comentamos (e os que so-
mente citamos) não passam pela triagem que Pavis aponta,
pois constituem captações rudimentares, se comparadas ao
teleteatro.
Mas o que dizer do teatro que migra do palco para o
site do YouTube, se não se trata do teatro propriamente dito,
nem do teatro virtual, nem do teleteatro? Não podemos ne-
gar que o espetáculo teatral torna-se algo móvel e que na
profusão de vídeos de um site tão dinâmico como o YouTube
camuflam-se as postagens que provêm do cinema e da televi-
são. Contudo, como podemos perceber nas imagens captadas,
em muitos vídeos restam resquícios do espetáculo, ou seja,
do projeto cênico empreendido pelo dramaturgo e levado à
cena pelo diretor e pelos atores, da iluminação, dos cenários,
da construção dos personagens, entre outros.
16
Sobre esse tema, consultar Cibertextualidade, n. 2, Porto: Edições da Univer-
sidade Fernando Pessoa, 2007, em especial o artigo de Gonzálvez, intitulado
“Algumas considerações sobre a possibilidade de um teatro virtual”.
[ 96 ]
Convivemos no ciberespaço com a possibilidade de se
recuperarem, frente ao computador, fagulhas do espetáculo
teatral para além da memória pessoal apontada por Costa
no início deste texto. Sites como o YouTube possuem, confor-
me destaca Silva Filho (2009, p. 8), a potencialidade de se
constituir em novo acervo memorialístico (não do impresso,
mas de imagens – acrescentamos), pois a internet, segun-
do o autor, relaciona-se a uma nova configuração da memó-
ria. Assim, insistimos que vídeos que migram do teatro e
que ainda carregam particularidades desta arte merecem
a atenção do espectador do YouTube, como se a janela de
vídeos do referido site se transformasse, mesmo que preca-
riamente, num pequeno palco ao acesso do navegador/espec-
tador. Afinal, que outro espaço poderia oferecer experiência
tão significativa como a de assistir aos tantos “derivados” da
canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque?
Ao se estender para outros lugares e para outras ver-
tentes, como destacamos no início deste texto a partir de Sil-
va Filho, o homem estende também as suas criações artísti-
cas. E vertentes anteriormente inimagináveis agora fazem
parte do conjunto de recursos disponíveis na rede, os quais
possibilitam que tais criações preencham os espaços abertos
por mídias como o YouTube e cheguem até o navegador/es-
pectador contemporâneo. Contudo, cabe a reflexão: um na-
vegador não iniciado como público de teatro ou como leitor
de literatura dramática (ou mesmo como leitor de literatura
em geral) vai procurar os vídeos em questão?
Tal navegador pode chegar ao YouTube sem a intenção
de a eles assistir, mas a construção do site com as diversas
interligações entre os vídeos disponíveis deixa os vídeos em
questão próximos do espectador. Essa estrutura favorece o
encontro dos espectadores com os tais vídeos, o que ilustra
a possibilidade de ele iniciar sua trajetória no site com obje-
[ 97 ]
tivo de evasão e entretenimento, mas, em pouco tempo, es-
tar participando de uma experiência artística interessante,
possibilidade visualizada por Sérgio Capparelli (2005, p. 61).
É preferível acreditar na possibilidade de aproximação
entre navegadores/espectadores e os vídeos “derivados” da
canção “Geni e o Zepelim”, que sites como o YouTube ofere-
cem, do que nas possibilidades de aproximação entre leito-
res e o texto teatral impresso, visto a falta de incentivo que
constatamos em relação à leitura do gênero dramático. Den-
tre tantos exemplos que sugerem a obstrução de tal gênero
das práticas de leitura em torno do texto literário, cabe ci-
tar que o exemplar de Ópera do malandro, que usamos nes-
te trabalho, emprestado na biblioteca pública da cidade de
Erechim-RS, possui somente um registro de retirada além
do nosso, que data de 3 de setembro de 2002.17 O referido
volume faz parte do acervo há, pelo menos, dez anos.
Referências
BOLLE, Adélia Bezerra de Meneses. Chico Buarque de Hollanda: li-
teratura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980.
BURGESS, Jean; GREEN, Joshua. Youtube e a revolução digital. São
Paulo: Aleph, 2009.
CAPPARELLI, Sérgio. Novos Formatos de leitura e internet. In: RÖS-
ING, Tania; BECKER, Paulo Ricardo. Leitura e animação cultural:
repensando a escola e a biblioteca. Passo Fundo: UPF Editora, 2005.
CARVALHO, Nilson Pereira de. Gota d’água e ópera do malandro: o
abrasileiramento de temas no teatro de Chico Buarque. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2003.
COSTA, Marta Moraes; DOTTO NETTO, Ignácio. Entreatos: teatro
em Curitiba de 1981 a 1995. Curitiba: Edição do Autor, 2000.
17
Conforme se pode observar no volume 869.0(81)-2, que faz parte do acervo
da Biblioteca Gladistone Osório Mársico, mantida pela Prefeitura Municipal
de Erechim - RS.
[ 98 ]
DUARTE, João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. Cam-
pinas: Papirus, 1998.
FIGUEIREDO, Maria do Rosário. Entre a hybris e a apolis: proximi-
dades entre Rosa e Chico Buarque. Revista Crioula. [on-line]. 2008.
n. 3. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edi-
cao/02>. Acesso em: 18 fev. 2010.
HOLANDA, Chico Buarque de. Ópera do malandro. Polygram,
(LP)1979.
_______. Ópera do malandro. São Paulo: Cultura, 1978.
LEMOS, André. Cibercultura tecnologia e vida social na cultura con-
temporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002.
MOTA, Maurício; PEDRINHO, Suzana. Conciliando pensar e fa-
zer com o YouTube ou “fábrica de presentes”. In: BURGESS, Jean;
GREEN, Jushua. YouTube e a revolução digital. São Paulo: Aleph,
2009.
NÚÑES, Eloy Martos. Hipertexto, cultura midiática e literaturas po-
pulares: o auge das sagas fantásticas. In: RETTENMAIER, Miguel;
RÖSING, Tania. Questões de leitura no hipertexto. Passo Fundo: UPF
Editora, 2007.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
RESENDE. Irene Severina. Similaridades temáticas além fronteiras:
Chico Buarque e Guy de Maupassant. Revista Crioula [on-line], n. 2,
2007. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edi-
cao/03. Acesso em: 18 fev. 2010.
SANTOS, Cláudia Regina dos. Ópera do malandro de Chico Buarque:
história, política e dramaturgia. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Universidade de Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2002.
SERRANO, Paulo Henrique Souto Maior. Cognição e interacionalida-
de através do YouTube. Biblioteca On-line de Ciências da Comunica-
ção, 2009. Disponível em: <www.bocc.ubi.pt>. Acesso em: 22 fev. 2010.
SILVA FILHO, Wilson Oliveira da. Mais que um inventário imagético
do Youtube: uma possível leitura da memória na rede. Biblioteca On-
line de Ciências da Comunicação: 2009. Disponível em: <www.bocc.
ubi.pt>. Acesso em: 22 fev. 2010.
ZILBERMAN, Regina. A leitura no mundo digital. In: RETTENMAI-
ER, Miguel; RÖSING, Tania. Questões de leitura no hipertexto. Passo
Fundo: UPF Editora, 2007.
[ 99 ]
Linguagem, tecnologia,
conhecimento e suas relações no
contexto de formação continuada
de professores1
Fernanda Freire
1
Texto apresentado na mesa-redonda intitulada “Tecnologias de linguagem
e conhecimento: modos de dizer, de fazer, de divulgar” do Fórum Perma-
nente de Conhecimento & Tecnologia da Informação: Divulgação Científica
e Novas Tecnologias da Linguagem, ocorrido em 14 de maio de 2009. Esta
reflexão se insere no âmbito do Projeto de Pós-Doutoramento da autora
junto ao Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas
(IC/Unicamp) sob supervisão da professora Dra Heloísa Vieira da Rocha.
preços no supermercado, ao pagar uma compra com cartão
de crédito, ao enviar um torpedo, ao votar, ao receber uma
conta com código de barras. O denominado letramento di-
gital tem sido considerado uma necessidade e o desconhe-
cimento completo dos usos e das funções do computador é
sinônimo de exclusão (Braga; Ricarte, 2005).
Novos espaços de leitura e de escrita surgem na inter-
net – hipertextos, emails, blogs, sessões de bate-papos, fó-
runs de discussão, wikis –, dando origem aos chamados “gê-
neros textuais emergentes” (Marcuschi, 2004) ou “gêneros
eletrônicos” (Paiva, 2004).
O objetivo deste artigo é discutir as relações entre lin-
guagem e conhecimento a partir do papel da tecnologia na
sociedade, em especial, em contextos de formação a distân-
cia. Três questões orientam o desenvolvimento do texto: (i)
como as novas tecnologias2 afetam a construção do conheci-
mento; (ii) como o conhecimento constrói novas tecnologias;
(iii) como as novas tecnologias dão corpo ao conhecimento.
Tais questões são fortemente vinculadas porque enten-
do que são as práticas sociais3 que demandam o desenvol-
vimento de novas tecnologias (inclusive as da linguagem),
gerando novos conhecimentos e novos modos de dizer/de
elaborar, criando, por sua vez, novas práticas sociais, numa
verdadeira cadeia sem fim, como diria Bakhtin (1929/99). As
relações, portanto, entre conhecimento, tecnologia e lingua-
gem são datadas historicamente, e muito do que se pensa e
se diz hoje – tendo as ferramentas de comunicação mediadas
por computador (ou CMC) como da ordem do “novo” – pro-
2
Vou me ater às ferramentas de comunicação mediadas por computador sín-
cronas e assíncronas, conhecidas também como CMC, que fazem parte do
ambiente de ensino-aprendizagem a distância TelEduc: correio, bate-papo,
fóruns, mural, etc.
3
As práticas sociais letradas, segundo Corrêa (2001), podem ser de enuncia-
ção oral e de enunciação escrita, havendo circulação entre elas.
[ 101 ]
vavelmente já foi dito em relação ao cinema, ao rádio e à TV
com base nas práticas sociais de cada época.
Tomo, como ponto de partida para a minha reflexão, o
curso do Centro de Formação Continuada de Professores do
Instituto de Estudos da Linguagem (Cefiel),4 intitulado “A
relação normal/patológico no ensino: cérebro e linguagem”.5
Nesse curso abordamos questões sobre o funcionamento da
linguagem e do cérebro e discutimos o modo como ambos
atuam na produção/interpretação da escrita. O curso propõe
uma análise crítica do que tradicionalmente se toma como
funcionamento cerebral padrão para avaliar o que é patoló-
gico, discutindo procedimentos clínicos que excluem tanto o
trabalho linguístico-cognitivo do falante/escrevente quanto
a diversidade que caracteriza o exercício da linguagem nas
várias práticas sociais dentro e fora da escola.
Esse curso – e mais outros 14, em diferentes áreas te-
máticas – se pauta numa metodologia especialmente elabo-
rada para cursos semipresencias (mais a distância do que
presencial; das 100h apenas 24 são presenciais), continua-
mente renovada pelas avaliações particular (de cada curso)
e geral (de todos os cursos) a cada oferecimento.6 Trata-se de
uma metodologia fortemente focada na interação e, portanto,
no uso das ferramentas de comunicação do TelEduc,7 am-
biente de ensino-aprendizagem desenvolvido pelo Núcleo de
Informática Aplicada à Educação (Nied) em parceria com o
Instituto de Computação (IC), ambos da Unicamp, e adotado
pelo Cefiel.
4
Disponível em: http://www.iel.unicamp.br/cefiel/
5
Esse curso é coordenado pela professora Maria Irma Hadler Coudry e por
mim.
6
Desde 2005 temos oferecido esses cursos para professores de escolas públicas
de secretarias de Educação de Índices de Desenvolvimento da Educação Bá-
sica (Ideb) baixos, uma iniciativa da Rede Nacional de Formação Continuada
do Ministério da Educação (http://portal.mec.gov.br/).
7
Disponível em: http://www.teleduc.org.br/
[ 102 ]
Os cursos do Cefiel têm em comum uma concepção de
formação de professores que se afasta de uma formação com-
pensatória para se propor como espaço de reflexão prático-
teórica. A inversão da expressão é proposital: partimos de
atividades práticas para dar vida aos conceitos desenvolvi-
dos ao longo dos cursos. O professor em formação, ao fazer
a atividade, articula vários saberes – o que já conhece do
assunto, como trabalha com aquele tópico em sala de aula,
suas crenças, seus valores, sua história pessoal e profissio-
nal – e o que está aprendendo durante o curso, seja por meio
das leituras sugeridas, seja das discussões coletivas, da lei-
tura dos trabalhos dos colegas, dos comentários que seus
trabalhos recebem de todos.
Essas diferentes vivências demandam diferentes papéis
discursivos – leitor de si mesmo, leitor do outro, escrevente,
comentador, debatedor, etc. –, o que auxilia o professor em
formação a conceber a leitura e a escrita para além de uma
visão normativa e ortográfica de língua, um dos objetivos
comuns aos cursos do Cefiel (Freire et al., 2007).
Os professores de escola pública não são, em sua maio-
ria, o que se pode chamar de internautas. Ao contrário, mui-
tos deles podem ser ainda considerados tímidos usuários de
tecnologias de informação e comunicação. No entanto, como
todos nós, também esse grupo (ou comunidade discursiva tal
como definem Maingueneau, 1998; Charadeau, Mainguene-
au, 2006)8 é heterogêneo, inclusive em relação ao modo como
seus integrantes utilizam essas tecnologias.
8
Para Charadeau e Maingueneau, o conceito de comunidade discursiva é so-
lidário ao de formação discursiva. A hipótese é que não basta opor as forma-
ções discursivas em termos puramente textuais, porque de um discurso a ou-
tro há mudanças na estrutura e no funcionamento dos grupos que produzem
esses discursos. Os modos de organização dos homens e de seus discursos
são, pois, indissociáveis; as doutrinas são inseparáveis das instituições que
as fazem emergir e que as mantêm (Charadeau; Maingueneau, 2006, p. 108).
[ 103 ]
É a partir do uso que esse grupo particular faz da tecnolo-
gia no contexto de formação continuada que passo, então, a dis-
cutir as relações entre linguagem, tecnologia e conhecimento.
[ 104 ]
importantes para a construção do conhecimento: o modo de
compartilhamento e a possibilidade de postar comentários.
Os comentários podem ter diferentes propósitos. Assim,
uma mesma ferramenta – neste caso, o portfólio –, depen-
dendo da forma como é usada nesse contexto de formação,
serve a diferentes conhecimentos, como mostra a Figura 2:
[ 105 ]
Figura 3 - Diferentes versões do memorial e os comentários recebidos pelo autor.
http://www.cefiel.iel.unicamp.br/~teleduc3/cursos/aplic/index.
php?cod_curso=3409
9
Exemplo retirado do curso “A relação normal/patológico no ensino: cérebro e
linguagem”, oferecido no período de 4/9/2006 a 6/11/2006 e coordenado pela
professora Maria Irma Hadler Coudry e por mim.
[ 106 ]
geral, os leitores dizem o que acharam da história, apontam
relações que fazem com as suas histórias pessoais, falam a
respeito do modo como o texto está escrito, o que pode ser tra-
tado de outra forma, etc.; comportam-se como uma espécie
de “críticos”. E os autores, às vezes, respondem aos comentá-
rios recebidos e/ou incorporam as sugestões que lhes foram
feitas. Cria-se, então, uma rede de escreventes e leitores.
O segundo modo de usar o portfólio visa ao refinamento
de conceitos tratados ao longo do curso. Cada curso se apoia
num texto – os fascículos da Coleção Linguagem e Letra-
mento em Foco –, que apresenta e discute, por meio de dados,
aspectos teórico-práticos que importam à temática do curso.
Com o objetivo de relacionar a teoria com a vivência
educacional do professor em formação, preparamos um con-
junto de perguntas a partir de uma situação-problema, que
pode ser de diferentes tipos. Apresento, como exemplo, uma
atividade baseada num episódio do Chico Bento, conheci-
do personagem caipira de Maurício de Sousa. A escolha da
situação-problema, neste caso uma história em quadrinho,
tem a ver com o tema em discussão naquele momento do
curso: as variedades linguísticas, a relação fala/escrita, os
“erros normais” de escrita, que são muitas vezes – e equivo-
cadamente – tomados como sinais de patologia.
Nessa história, Chico Bento lê em voz alta para os co-
legas, a pedido da professora, a bela redação que fez sobre a
relação do homem com a natureza. E como ele lê? Lê usando
a variedade linguística que tem. E como ele escreve? Sua
escrita traduz a sua fala, sendo, portanto, diferente da escri-
ta convencional tal como escreventes que dominam o portu-
guês escrito o fazem. A partir dessa história, propomos aos
participantes do curso que assumam o lugar da professora
de Chico Bento para refletirem sobre a relação normal/pato-
lógico no contexto de uso da escrita; a respeito dos interdis-
cursos (e saberes) que são convocados quando se escreve um
[ 107 ]
texto sobre determinado tema; sobre o modo como o profes-
sor deve intervir nos textos dos alunos para que aprendam a
escrever a variedade padrão da língua.
Prevemos, para esse tipo de atividade, duas rodadas
de resposta. A primeira versão da atividade feita pelo par-
ticipante do curso é lida e comentada pelo formador, que
observa o entendimento dos conceitos/conteúdos envolvidos.
Orientado pelo comentário que recebe do formador – que não
tem o objetivo de corrigir supondo uma resposta certa, mas
que busca levar o professor a melhor explicitar seu entendi-
mento sobre o conteúdo –, o professor em formação escreve
uma nova versão da atividade, como mostra a Figura 4:
10
Exemplo retirado da Agenda 2 da Turma 2 – coordenada pela professora
Maria Irma Hadler Coudry e por mim – do curso “Linguagem e letramento
nos anos iniciais/educação infantil”, oferecido para professores do estado do
Espírito Santo no período de 13/3/2009 a 23/5/2009.
[ 108 ]
Cria-se, então, um diálogo “teórico” que promove o en-
tendimento e/ou refinamento dos conteúdos tratados.
O terceiro modo de uso do Portfólio é, na verdade, uma
variação do segundo, mas visando a outro objetivo: fazer cir-
cular entre os participantes as diferentes soluções que en-
contram para as questões que propomos. A diferença entre
esses modos de usar o portfólio é que, desta vez, também os
cursistas são convocados a comentar as atividades uns dos
outros (Figura 5).
11
Exemplo retirado do curso “A relação normal/patológico no ensino: cérebro
e linguagem”, oferecido no período de 4/9/2006 a 6/11/2006 coordenado pela
professora Maria Irma Hadler Coudry e por mim.
[ 109 ]
Cria-se, então, um intenso trabalho coletivo (colabora-
tivo), cujo resultado, mediado pelas intervenções dos forma-
dores, é um novo conhecimento, no sentido de ser diferente
daquele originalmente pensado/escrito pelo professor em
formação e motivado pelo confronto de pontos de vista e de
vivências.
12
“Communities of practice are formed by people who engage in a process of
collective learning in a shared domain of human endeavour: a tribe learning to
survive, a band of artists seeking new forms of expression, a group of engineers
working on similar problems, a clique of pupils defining their identity in the
school, a network of surgeons exploring novel techniques, a gathering of first-
time managers helping each other cope. In a nutshell: Communities of practice
are groups of people who share a concern or a passion for something they do
and learn how to do it better as they interact regularly” (Wenger, 2007).
13
Maingueneau se refere à “prática discursiva” quando se trata de apreender
uma formação discursiva como inseparável das comunidades discursivas que
a produzem e a difundem. A formação discursiva, então, pode ser pensada
ao mesmo tempo como conteúdo, modo de organização dos homens e rede
específica de circulação dos enunciados (Charadeau; Maingueneau, 2006,
p. 396).
[ 110 ]
À medida que usamos o ambiente, refinamos a meto-
dologia dos cursos e passamos a querer outras ferramentas
e/ou a usar outros recursos das ferramentas já existentes.
O Bate-papo é um bom exemplo. Inspirados nas salas
de bate-papo disponíveis na web, foram incorporados outros
recursos para que a ferramenta fosse mais bem aproveitada
do ponto de vista educacional: pode-se, por exemplo, agendar
com antecedência uma sessão e indicar seu assunto; pode-se,
ainda, gravar a sessão para posterior leitura da discussão,
como pode ser visto na Figura 6:
[ 111 ]
fio da meada”, tornando difícil a discussão síncrona de lei-
turas, atividades, reportagens. Além disso, é preciso levar
em conta outras dificuldades relacionadas à infraestrutura
usada pelos cursistas (linha discada, computadores mais an-
tigos, etc.).
E o que se faz, então? As sessões são agendadas, mas a
participação é livre. Funcionam como se fossem “plantões de
dúvida”: os professores em formação entram na sala e fazem
perguntas de diferentes tipos ao formador que está on-line.
Outras vezes, inspirados no formato do programa Roda
Viva da TVCultura, propomos uma sessão diferente. Isso
aconteceu, por exemplo, quando oferecemos uma oficina de
trabalho para professores de instituições de ensino superior
que são parceiras do Cefiel. Neste caso, como são poucos par-
ticipantes e cada um atua numa área específica, imagina-
mos que essa seria uma maneira diferente de sabermos mais
a respeito do trabalho de cada um. Como todos conheciam o
programa, não foi difícil seguir as regras que regulam as in-
terações que se dão no Roda Viva. Assim, foram estipulados
os papéis de entrevistado, moderador e entrevistador. Esse
modo de usar o Bate-papo contribui para diminuir o fluxo si-
multâneo de mensagens e auxilia na organização dos turnos.
Os estudos de Oeiras, no entanto, seguem em outra di-
reção (Oeiras, 2005; Oeiras et al., 2005). A autora apresenta
o Bate-papo coordenado,14 cujo desenvolvimento se baseia na
análise do modo como a linguagem funciona em certas prá-
ticas sociais (certos gêneros discursivos, cf. Bakhtin, 1997)
– assembleia, entrevista, seminário, conversa informal – e
14
Em uma sessão coordenada existem três papéis: coordenador, VIPs e plateia.
O papel de coordenador é atribuído a uma única pessoa, que fará o gerencia-
mento da sessão. Os VIPs são pessoas com privilégios especiais e a plateia é
formada pelos demais participantes. No momento do agendamento de uma
sessão, é obrigatória a especificação do coordenador e das pessoas que farão
parte da plateia (Oeiras et al., 2005).
[ 112 ]
propõe um redesign da interface do Bate-papo “convencional”
de modo a explicitar as regras de conduta que orientam tais
práticas, como mostra a Figura 7:
[ 113 ]
ve e o modo como se escreve, especialmente se se trata de
um usuário pouco familiarizado com espaços de leitura/es-
crita virtuais (Rocha et al., 2001; Freire, 2003; Freire et al.,
2007). Outros nomes remetem os usuários a certas funções
específicas. Não foi sem surpresa, à época em que o Brasil
estava enfrentando problemas relacionados à energia elétri-
ca (os famosos apagões), que vimos um professor usuário do
TelEduc usar a ferramenta Parada Obrigatória para avisar
os alunos de que o servidor ficaria fora do ar. A ferramenta,
no entanto, foi desenhada com o objetivo de disponibilizar
materiais que possam auxiliar os cursistas a refletir sobre
tópicos importantes relacionados ao curso em questão.
15
Trata-se do terceiro curso de Formação de Monitores do Cefiel oferecido no
período de 9/3/2009 a 24/4/2009, sob minha coordenação.
[ 114 ]
Desde o dia em que iniciei o curso até agora me deparei com as
sensações mais estranhas. No encontro presencial, a primeira sen-
sação foi a de me maravilhar com tudo o que via e ouvia. Depois
fiquei meio desesperada porque eu tinha que fazer um montão de
coisas e o que eu tinha na cabeça não se materializava, eu não
sabia que botão apertar ou em que lugar entrar no computador. De-
pois percebi que não adianta falar que você precisa de tantas horas
para fazer as atividades durante a semana. E por quê? Porque, por
exemplo, tem passos que eu sigo no computador e não dá certo.
16
Dascal, num de seus textos, diz que “a compreensão de uma enunciação ou
de um texto” – ao que eu acrescentaria, de um programa computacional, de
um site, etc. – “envolve sempre uma pluralidade de habilidades, níveis e sis-
temas diferentes de conhecimento, tanto lingüístico quanto não lingüístico
[...]. Em vista dessa multiplicidade inerente ao processo de compreensão, é
preciso encará-lo como sendo não tanto uma questão de sim/não, de tudo/
nada, e mais como um processo de aproximação gradual” (Dascal, s. d., p. 1).
[ 115 ]
Figura 8 - Visão geral da tela de inserção de arquivos do portfólio
[ 116 ]
Veja-se o que diz, no Diário de Bordo, uma participante
veterana do Curso de Monitores do Cefiel, “ex-avessa” à tec-
nologia e que o faz pela segunda vez:
Quero com isso dizer que, para fazer parte dessa co-
munidade particular – a dos participantes de um curso se-
mipresencial – de alguma forma é preciso, não só aprender
a utilizar as ferramentas, como também aprender a falar
sobre elas, adquirir um conjunto de expressões que se refe-
rem àquele domínio de interpretação particular. Isso não é
simples. Muitas vezes, o usuário novato não sabe nem, ao
menos, descrever o que está acontecendo para que alguém
possa ajudá-lo.
Veja-se a mensagem que recebi, por e-mail externo ao
ambiente, de uma cursista:
Oi,
Você está fazendo nosso curso?
Pode, por favor, enviar o link que está tentando abrir para podermos
ajudá-la (sabe copiar da mensagem que recebeu e colar aqui?)
O link não abre ou o seu login/senha não funcionam?
Precisamos de mais informações para poder ajudá-la.
Aguardamos,
[ 117 ]
Como explicar à aluna o que pode estar acontecendo
se ela não entender o que quero dizer com link, copiar/colar,
login/senha? É como se ela fosse uma estrangeira num país
em que se fala uma língua que não lhe diz nada.
As funções das ferramentas do ambiente, cujos nomes
não têm correlatos na web, são ainda mais abertas em ter-
mos de interpretação, muito embora seus nomes sugiram
certos usos. Esse é o caso do Diário de Bordo, do Mural, da
Parada Obrigatória, do Material de Apoio. Veja-se, na Figu-
ra 10, uma mesma mensagem de um mesmo participante
postada no Mural e no Fórum:
17
Exemplo retirado da Turma 5 – coordenada pela professora Maria Irma Had-
ler Coudry e por mim – do curso “Linguagem e letramento nos anos iniciais/
educação infantil”, oferecido para professores do estado de São Paulo no pe-
ríodo de 24/4/2009 a 27/6/2009.
[ 118 ]
Embora cada ferramenta tenha um rótulo próprio e sua
função original – aquela pensada pelos desenvolvedores do
ambiente – e seja apresentada na ferramenta Estrutura do
Ambiente, como uma espécie de glossário, não é óbvio onde
se escreve. O exercício da linguagem vai além das ferramen-
tas e, para se saber onde se escreve o quê, é preciso conhe-
cê-las. Na dúvida, escreve-se em todos os possíveis lugares,
como é o caso dessa professora em formação.
Trata-se de um aprendizado que se dá on-line, isto é,
à medida que se interage com (o ambiente) e por meio do
ambiente com o outro. Assim, o usuário legitima aquela in-
terface (com todos os seus elementos) como uma espécie de
“língua” que lhe permite interagir com o computador. Uma
“língua” com recursos expressivos, emprestados da sua lín-
gua, com funções específicas.
É o que a aluna do IEL – autora do primeiro Diário de
Bordo que apresentei – parece estar em vias de fazer:
Sabem o que reparei em mim mesma? Não estou mais tão desespera-
da. Acho que estou começando a me sentir confiante diante desse ne-
gócio de link, de agenda, de portfólio, etc. Ainda tem algumas coisas
que me apavoram, mas esta semana vou aprender, por exemplo: zipar,
fazer um arquivo de vídeo. Um abração a todas. Obrigada pela ajuda.
Considerações finais
Ao finalizar esse texto – relendo o que escrevi –, dei-
me conta de que o próprio ambiente de ensino-aprendizagem
ilustra as questões que nortearam minha reflexão com o ob-
jetivo de discutir a relação linguagem e conhecimento a par-
tir do papel da tecnologia em nossa sociedade.
[ 119 ]
O TelEduc pode ser visto como o produto de um conjun-
to de conhecimentos estreitamente relacionados ao exercício
social da linguagem em meio a diferentes práticas sociais
de escrita, em especial. Suas primeiras versões pautavam-se
em nossas experiências em cursos de formação de professo-
res na área de informática na educação: tentávamos repro-
duzir, em alguma medida, nossas metodologias presenciais
bem-sucedidas para o ambiente virtual. Essa, então, “nova
tecnologia”, sem dúvida, interferiu de maneira definitiva
no(s) modo(s) de se construir conhecimento. Cursos como os
do Cefiel são uma prova disso.
O uso continuado do ambiente, com diferentes usuários
e em diferentes contextos de ensino-aprendizagem, impul-
sionou mudanças, colocando desafios que ainda não haviam
sido pensados. Nesse sentido, a cada nova versão ela mesma
é um “novo conhecimento” que apresenta novas tecnologias.
A interface do ambiente – sua nomenclatura com cores,
botões, caixas, links, rótulos – dá corpo a um conhecimento,
em cursos a distância, semipresenciais, sobre metodologias
diferenciadas, hoje cada vez menos orientado por metodolo-
gias presenciais, apontando para a construção de uma cul-
tura própria.
Para terminar gostaria de mostrar – ainda que este
texto tenha focado nas interações que se dão no ambiente
virtual – que o conhecimento que ali é repetido, construí-
do, transformado, extravasa e ganha sentido onde queremos
mesmo que ganhe: na vida dos professores, na sua relação
com os alunos, na sala de aula, na escola. Observem-se duas
mensagens do Fórum de Discussão de duas professoras de
uma mesma escola a respeito dos conteúdos do curso:18
18
Exemplos gentilmente cedidos pela professora Tânia Alkmim, coordenadora
da Turma 3 do curso “Linguagem e letramento nos anos iniciais/educação
infantil”, oferecido para professores do estado do Espírito Santo no período
de 13/3/2009 a 23/5/2009.
[ 120 ]
Professora 1
Fulana, é legal como este curso mesmo à distancia está nos aproxi-
mando, ultimamente no recreio da escola, o nosso comentário é sobre
as atividades, as leituras, as considerações das tutoras. Nossa discus-
são não consiste mais em “atacar” determinado aluno, de que ele não
aprende, ou está na escola só para atrapalhar, mas sim de debater a
melhor maneira de ajudá-lo. Foi isso que aconteceu ontem, a respeito
da atividade dessa semana, uma professora relatou e todas concorda-
mos, que dizemos que o aluno é disléxico sem ao menos entendermos
o significado do termo dislexia, como se fosse uma moda. Ou apenas
como professoras para livrar-nos da preocupação de termos de buscar
maneiras diferentes deste aluno aprender.
Professora 2
Nós passamos quase o intervalo todo discutindo e dando opiniões so-
bre o conteúdo das atividades. Mesmo aquelas que não fazem parte
do curso acabam entrando na conversa e participando das nossas
ideias! Acho que nos tornamos, por tabela, multiplicadoras do curso!
Não é bom?!
Referências
BAKTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ____. Estética da cria-
ção verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 277-326.
BRAGA, Denise Bertóli; RICARTE, Ivan. Letramento e recnologia.
Campinas: Cefiel/IEL/Unicamp, 2005.
CHARSUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário
de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006. 555p.
CORRÊA, Manoel Luiz Gonçalves. Letramento e heterogeneidade da
escrita no ensino de português. In: SIGNORINI, Inês (Org.). Inves-
tigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas:
Mercado de Letras, 2001. p. 135-166.
DASCAL, Marcelo. Dez maneiras de ser incompreendido (e algumas
sugestões para evitá-las). (mimeo). [s. d.], 19 p.
FREIRE, Fernanda Maria Pereira. Armadilhas virtuais na edu-
cação de leitores. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 16.
Anais... Campinas, SP, 2007. Disponível em: www.alb.com.br/anais16/
conferencias/03fernandafreire.pdf. Acesso em: 24 jul. 2009.
[ 121 ]
_______. Formas de materialidade lingüística, gêneros de discurso e
interfaces. In: SILVA, Ezequiel Theodoro (Coord.) et al. A leitura nos
oceanos da internet. São Paulo: Cortez, 2003. p. 65-88.
FREIRE, Fernanda et al. Leitura e escrita via internet: formação de
professores nas áreas de alfabetização e linguagem. Trabalhos em
Lingüística Aplicada, v. 46, n. 1, p. 93-111, 2007.
MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da análise do discurso.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
_______. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, SP: Pon-
tes, 1989. 198p.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais emergentes no con-
texto da tecnologia digital. In: MARCUSCHI, Luiz Antonio; XAVIER,
Antônio Carlos (Org.). Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2004. p. 13-67.
_______. A questão do suporte dos gêneros textuais. DLCV - Língua,
lingüística e literatura, João Pessoa, v. I, n. 1, p. 9-40, 2003.
OEIRAS, Janne Yukiko Yoshikawa. Design de ferramentas de comu-
nicação para colaboração em ambientes de educação a distância. Tese
(Doutorado) - IC/Unicamp, Campinas, 2005.
OEIRAS, Janne Yukiko Yoshikawa et al. Desenvolvimento de uma
ferramenta de bate-papo com mecanismos de coordenação baseados
na linguagem em ação. Novas Tecnologias na Educação, Porto Alegre,
v. 3, n. 2, 2005.
PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira. E-mail: um novo gênero tex-
tual. In: MARCUSCHI, Luiz Antonio; XAVIER, Antônio Carlos (Org.).
Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. p. 68-90.
ROCHA, Heloísa Vieira et al. Design de ambientes de Ead: (re)sig-
nificações do usuário. In: WORKSHOP SOBRE FATORES HUMA-
NOS EM SISTEMAS COMPUTACIONAIS, IV. Florianópolis, 2001.
p. 84-95.
TAKAHASHI, Tadao (Org.). Sociedade da informação no Brasil: livro
verde. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000.
WENGER, Etienne. Communities of practice: a brief introduction.
2007. Disponível em: www.ewenger.com/theory/. Acesso em: 24 jul.
2009.
[ 122 ]
Poesia hipermídia: estado de arte
1
Um estudo mais amplo pode ser lido em Vuillemin (1990), Barbosa (1996),
Glazier (2002), Funkhouser (2007), Cañas e González Tardon (2010) e Anto-
nio (2010).
que permite respostas ou reações (hipertexto) (Nelson, 1992,
p. s. n.).2
O termo equivalente à poesia hipermídia é poesia hi-
pertextual, e a diferenciação entre ambas se baseia nos mes-
mos conceitos apresentados por Ted Nelson: se hipertexto é
uma “escrita não sequencial – texto que se ramifica e per-
mite escolhas ao leitor, que é melhor lido numa tela inte-
rativa” (Nelson, 1992, p. 0/2), ao termo hipermídia pode-se
acrescentar que o texto tem mais componentes, além das pa-
lavras: grafismos, imagens animadas e/ou estáticas e sons.
Hipertexto e hipermídia, como programas computacionais
ou como linguagem, surgem quase que simultaneamente e
são considerados sinônimos por muitos autores.
Para este estudo a poesia hipertextual tem caracterís-
ticas que a diferenciam da poesia hipermídia num aspecto:
enquanto a poesia hipertextual constrói seu significado por
meio dos links ou ligações eletrônicas, a poesia hipermídia
pode ser apenas a reunião de meios (verbais, visuais, sono-
ros, animados ou não), sem a interação do leitor-operador,
ou pode estabelecer a construção de signos por meio de links
verbais e/ou não verbais.
Dois elementos são importantes para a compreensão da
poesia hipertextual e da poesia hipermídia: o hipertexto ou
hipermídia e a rede digital ou web.
Uma história sucinta do conceito de hipertexto começa
com os seguintes precursores: Walter Benjamin (1892-1940),
em dois textos de 1926, reunidos em Rua de mão única de
1928, comenta o uso do fichário, cartoteca ou cartografia pe-
los professores e pesquisadores e lhe atribui efeitos estéticos
e manipulações e leituras não lineares; Paul Otlet (1866-
2
O livro contém vinte páginas não numeradas, incluindo a folha de rosto. O
trecho está citado na página que foi contada como sendo 19, cujo título é:
Erratum; And a Note on the Term “Interactive Multimedia”.
[ 124 ]
1940) cria, por meio de filmes, o seu Traité de documenta-
tion: le livre pur le livre: theorie e pratique, que apresenta
um sistema hipertextual em rede, à semelhança da futura
rede digital; Vannevar Bush (1890-1974) com seu artigo “As
We May Think”, idealizado em 1932 e 1933, escrito em 19393
e publicado em 1945, apresenta o projeto de uma máquina
denominada de Memex (Memory Extender), muito seme-
lhante ao sistema de arquivo da rede digital; Ted Nelson cria
o Projeto Xanadu em 1960 e cria o conceito e termo “hiper-
texto” em 1965. O primeiro programa de hipertexto – HES
(Hypertext Editing System), de Andy van Dam, na Brown
University (EUA) – é de 1967. A partir da década de 1980,
novos programas vão sendo criados constantemente.
A rede digital – World Wide Web, WWW, ou web – foi
criada por um grupo de pesquisadores do Centre Européen
pour Recherche Nucleaire (CERN), da Suíça, chefiado por
Tim-Berners Lee e Robert Cailliau, em 1989. A pesquisa foi
baseada na contribuição da cultura dos hackers da década
de 1970 e parcialmente no trabalho de Ted Nelson em Com-
puter Lib de 1974, o qual imaginou um novo sistema de orga-
nizar informações e o denominou de “hipertexto” em 1965. A
equipe de pesquisadores criou um formato para os documen-
tos de hipertexto, que foi denominado de HTML, adaptou-o
ao protocolo TCP/IP, inventado em 1974, ao protocolo HTTP
e criou um formato padronizado de endereços, o URL. O
software WWW foi distribuído gratuitamente pela internet.
Em 1993, Marc Andreessen criou o navegador Mosaic, que
permitiu ver texto e imagens e ouvir sons na rede, distri-
buído gratuitamente na web do National Center for Super-
computer Applications (NCSA) da Universidade de Illinois.
3
Conforme Nielsen (1995, p. 33), Vannevar Bush desenvolveu algumas ideias
para o Memex em 1932 e 1933 e escreveu um rascunho do texto em 1939.
[ 125 ]
Em 1994, Jim Clark, da empresa Silicon Graphics, fundou,
juntamente com Marc Andreesen, a Netscape, que produziu
e comercializou o Netscape Navigator.
O WWW se tornou um programa e uma parte da in-
ternet, que contém uma imensa quantidade de páginas, de-
nominadas “páginas da rede”, as quais se distribuem por
milhares de servidores na internet e são interligadas por
inúmeras conexões cruzadas. É o primeiro exemplo de uma
hipermídia num ambiente mediado pelo computador. Dota-
da de um conjunto de programas, protocolos e convenções,
a rede possibilita a recuperação, navegação e edição de in-
formações em ambiente virtual. É como se folheássemos,
através da rede, um livro gigantesco, escrito por milhares
de autores. É uma grande teia de informação em hipermídia.
O hipertexto ou hipermídia e a rede digital permitem
um novo espaço da escrita:
A escrita é um jogo criativo de signos, e o computador nos oferece
um novo campo para esse jogo: uma nova superfície para gravar
e apresentar o texto com novas técnicas para organizar nossa
escrita. Em outras palavras, o computador oferece um novo es-
paço de escrita [...].
Por “espaço de escrita”, quero dizer, primeiramente, o campo fí-
sico e visual definido por uma tecnologia particular de texto. To-
das as formas de escrita são espaciais, pois nós podemos apenas
ver e entender signos escritos como ampliados num espaço de,
pelo menos, duas dimensões. Cada tecnologia nos dá um espaço
diferente. Para a escrita antiga, o espaço foi a superfície inter-
na de um rolo contínuo, dividido em colunas pelo autor. Para o
manuscrito medieval e para a impressão moderna, o espaço é
a superfície branca da página, particularmente em um volume
encadernado. Para a escrita eletrônica, o espaço é a tela do com-
putador onde o texto é desenvolvido tão bem quanto o texto ar-
mazenado na memória eletrônica. O espaço da escrita no compu-
tador é animado, visualmente complexo, e, numa surpreendente
extensão, maleável nas mãos do escritor e do leitor (Bolter, 1991,
p. 10-11 - tradução nossa).
[ 126 ]
A escrita como um jogo criativo de signos, em negocia-
ção semiótica com os signos produzidos pelo computador, vai
produzir a linguagem digital, que assume as características
da digitalidade, forma particular de comunicação. As rela-
ções da poesia com as artes e o design são gradativamente
incorporadas ao fazer poético e, por extensão, passam a fa-
zer parte da expressão escrita: “Com ou sem o computador,
sempre que escrevemos, nós o fazemos topicamente. Con-
cebemos nossos textos como um conjunto de gestos verbais
grandes e pequenos. Escrever é fazer coisas com tópicos
ou temas – acrescentar, apagar e combinar. O computador
muda a natureza da escrita simplesmente dando expressão
visual aos nossos atos de conceber e manipular tópicos” (Bol-
ter, 1991, p. 16).
O parágrafo de Bolter remete ao estudo do cartaz de
Abraham Moles, que desloca gradativamente a literatura do
meio impresso fechado (o livro) para o meio impresso aberto
(o cartaz) e oferece a visualidade, representada pelo espaço
em branco ou pela imagem que a letra oferece, apontando
para poetas precursores do uso poético desses recursos de co-
municação de massa, como Mallarmé, Mário de Sá-Carneiro,
Apollinaire, Marinetti, dentre outros:
A cultura é definida pelo ambiente artificial que o homem cria
para si próprio, o que cada vez mais significa, muito mais que
museus, quadros ou bibliotecas, o universo pessoal da concha de
objetos, ou serviços de que o homem se rodeia e o universo das
imagens, das fórmulas, dos slogans e dos mitos, que ele encon-
tra na sua vida social, girando o botão da televisão, ou vagan-
do pelas ruas. Uma nova poesia é proposta: “Un meuble signé
Lévitan est garanti pour long-temps” (Um móvel com a marca
Lévitan é garantido por muito tempo), “Persil rend votre linge
plus blanc, plus blanc, plus blanc” (Persil torna sua roupa mais
branca, mais branca, mais branca). Saibamos apreciá-la (Moles,
2005, p. 14).
[ 127 ]
Essa civilização da imagem de que fala Moles represen-
ta uma negociação semiótica da palavra com a imagem que
tem início com o uso tipográfico da palavra e do espaço de
escrita na poesia das vanguardas, dentre as quais as pala-
vras em liberdade do futurismo, resultando na poesia da era
pós-verso do movimento concretista e no uso do design e da
imagem na poesia visual, elementos que serão incorporados
à poesia digital: “Os filhos do homem tecnológico respondem
com um prazer espontâneo à poesia dos trens, navios, aviões,
e à beleza dos produtos das máquinas [...]. A arte tecnológi-
ca abrange o mundo inteiro e toma a sua população como
material próprio, não como sua forma” (McLuhan, 1980,
p. 219-220).
Outra relação semelhante pode ser feita a respeito do
uso da máquina de escrever como poetização dessa tecnolo-
gia: “Sentado à máquina de escrever, o poeta, muito à ma-
neira do músico de jazz, tem a experiência do desempenho
enquanto composição. No mundo não-letrado, esta fora a si-
tuação do bardo e do menestrel. Ele tinha temas, mas não
textos. À máquina de escrever, o poeta comanda os recursos
da imprensa e da impressão. A máquina é como um sistema
de dirigir-se ao público, imediatamente ao alcance da mão. O
poeta pode gritar, murmurar e assobiar – e fazer engraçadas
caretas tipográficas para a audiência, como o faz e. e. cum-
mings [...]” (McLuhan, 1995, p. 292-293).
Comunicação de massa (cinema, rádio, jornal diário,
televisão), publicidade e propaganda (cartaz e anúncio pu-
blicitário), tipografia e máquina de escrever são elementos
tecnológicos que transformam a comunicação poética, fa-
zendo surgir uma cultura da interface, que Johnson (2001)
analisou por meio de seus elementos constituintes (desktop,
janelas, links, texto e agentes), na qual a poesia digital pas-
sa a existir.
[ 128 ]
As relações entre poesia e computador, do ponto de vis-
ta histórico, correspondem ao período do computador isolado,
que oferece um sistema computacional em constante cons-
trução desde o seu surgimento, dentro dos parâmetros da
miniaturização e potencialização. A partir da existência do
computador em rede, outros programas e recursos estão dis-
poníveis à poetização. De acordo com cada tecnologia de uma
determinada fase, há um tipo de poesia digital, cuja tipolo-
gia pode ser a seguinte, dentre as muitas estabelecidas por
Barbosa (1996), Glazier (2002), Reither (2003), Funkhouser
(2007): poesia-programa; infopoesia; poesia-computador; po-
esia hipertextual e poesia hipermídia; poesia-internet; po-
esia interativa, colaborativa e performática; poesia-código;
poesia migrante e poesia performática cíbrida (Antonio,
2010).
Antologias como Signos corrosivos (Espinosa Vera;
Núcleo Post-Aarte, 1987), Vanguarda européia e modernis-
mo brasileiro (Teles, 2002), Vanguardas latino-americanas
(Schwartz, 2008) e Escrituras en libertad (Sarmiento, 2009)
trazem elementos que ajudam a compreender esses percur-
sos da poesia do século XX. Para a compreensão da poesia
digital, obras como The Language of New Media (Manovich,
2001) e a antologia The New Media Reader (Wardrip-Fruin;
Montforto, 2003) são esclarecedoras para o entendimento
da linguagem digital e seus componentes comunicacionais,
tecnológicos, artísticos e poéticos. A leitura dessas obras é
fundamental para a visão panorâmica da continuidade e da
transformação que a poesia contemporânea apresenta.
Neste artigo, o foco se mantém na poesia que se realiza
no espaço simbólico dos computadores em rede; portanto, o
termo web poetry – cuja versão pode ser poesia-rede, poesia
da rede ou poesia na rede – pode ser usado, mas, neste caso,
faz-se necessária outra delimitação. Usar o termo web ou
[ 129 ]
sua tradução para rede deixaria o enfoque muito amplo, pois
rede pode se referir aos meios físicos e digitais, em seus sen-
tidos reais e metafóricos. Acrescentar o termo digital ao de
rede, como que querendo fugir do excesso de palavras ingle-
sas em nosso idioma, simplesmente poderia delimitar, mas
muito pouco.
Fica mais adequado tratar das questões de poesia hi-
permídia na rede, na web, ou na rede digital, pois assim é
possível ter um ponto de partida para um estudo que trata
de um determinado tipo de poesia digital, que se faz com
os recursos tecnológicos que os programas de hipertexto ou
hipermídia e a rede digital vêm oferecendo desde os seus
princípios. Assim, estaríamos excluindo a referência a todo
tipo de poesia que simplesmente migrou para a rede digital,
em virtude da facilidade de divulgação, da quase ausência
de critério seletivo, em muitos casos, e a um custo razoavel-
mente acessível. Dessa forma, o termo “rede” também não é
confundido, por exemplo, com uma rede de poetas, de várias
localidades, com projetos comuns e diversos meios de comu-
nicação entre si e com um determinado público.
Também parece adequado pensar o conceito de rede
no próprio poema hipermídia: se for um hipertexto, há uma
rede de textos que se entretecem e, em razão do seu com-
ponente eletrônico, trazem implícita uma continuação do
intertexto concebido por Julia Kristeva. Se for uma hiper-
mídia, esse intertexto, com a interação do leitor ou não, se
faz com a presença de vários meios (verbais, visuais, sonoros,
animados ou não).
Mesmo considerando rede como basicamente dois ou
mais computadores interligados, que, assim, passam a com-
partilhar recursos e conteúdos, é preciso estabelecer de qual
tipo de rede estamos tratando. Essa interligação maquínica,
denominada de modem (abreviatura de MOdulador-DEMo-
[ 130 ]
dulador), criada em 1958 pela Bell Company, nos EUA, é um
dispositivo de conversão de sinais de áudio de um aparelho
telefônico em sinais digitais e ligava, até a década de 1980,
poucos computadores, que tinham poucos recursos de edição
e de animação. Também existiu o videotexto, que associava
a telefonia, o computador e o aparelho de televisão, como
o Prestel (Inglaterra) desde 1971, o Teletel (França) desde
1978, o Telidon (Canadá), dentre outros.
Poesia e rede, de um modo geral, trazem algumas se-
melhanças e relações com poesia e internet, principalmente
porque ambas são uma rede de comunicações intermaquíni-
cas e interpessoais, à semelhança de conceitos como a “ga-
láxia de Gutenberg” (McLuhan, 1972), “a sociedade em rede”
(Castells, 2003), “a galáxia da internet” (Castells, 2003a) e
“o computador coletivo” (Lemos, 2002).
Pode-se pensar a poesia digital ou eletrônica na rede
estabelecendo, no primeiro momento, dois importantes as-
pectos: a divulgação de toda e qualquer poesia, graças à fa-
cilidade de publicação que a World Wide Web oferece, e a
criação lenta e gradual de poesia digital com todas as suas
características, como hipertextualidade, hipermidialidade,
interatividade, colaboração, autoria coletiva, trabalho em
equipe, obra em processo e formas híbridas. O estudo do pri-
meiro aspecto não é escopo deste estudo.
A poesia hipertextual/hipermídia fica mais bem enten-
dida como um tipo de poesia digital que, antes, foi feita so-
mente nos computadores individuais e que algumas vezes,
nos meados de 1980, foi apresentada em redes pequenas,
compostas de poucos computadores, por meio de modens.
Hoje ela ainda pode ser feita em computadores isolados e
circular em arquivos eletrônicos, como disquete, CD-ROM,
DVD, pendrive, etc., mas predomina uma tendência de apre-
sentá-la na rede digital.
[ 131 ]
Funkhouser (2007), que é um especialista da poesia di-
gital antes da web, e alguns outros estudiosos consideram
que o ano de 1995 é o do início das atividades artísticas e
poéticas na rede. Desse ponto de vista, estamos tratando de
um tipo de poesia de apenas quinze anos de existência, que é,
paradoxalmente, uma continuação de uma poesia digital ini-
ciada em 1959, a qual se desenvolveu de forma fragmentá-
ria, com atividades isoladas em diversos países, mesmo que
em tempos praticamente simultâneos. Além desse aspecto,
a continuidade sofre significativas interrupções em virtude
da rápida obsolescência das tecnologias computacionais nas
quais a poesia digital vem sendo feita. Mesmo assim, novos
programas surgem e recuperam o material que ficou obsole-
to; emuladores retomam programas que não funcionam nos
computadores contemporâneos; há a recriação atualizada de
programas antigos, nos quais essa poesia digital, anterior-
mente relegada ao depósito de máquinas defasadas, passa
a circular novamente, com roupagem nova ou revelando a
precária apresentação dos seus primórdios.4
O surgimento do programa de hipertexto e da rede di-
gital é, de certa forma, a força motivadora da renovação da
poesia digital até então existente, mesmo fazendo parte de
arquivos sem uso, registros incompletos no meio impresso,
apontamentos e narrativas dos primórdios da poesia digital,
como aparece detalhadamente descrito em Prehistoric Digi-
tal Poetry: An Archaelogy of Forms: 1959-1995 (Funkhouser,
2007).
4
Graças ao trabalho conjunto de programadores, poetas digitais e teóricos,
como Silvestre Pestana, Rui Torres, E. M. de Melo e Castro, João Coelho,
Daniel Lima Santiago, Clemente Padin, Paulo Bruscky, Silvio Roberto de
Oliveira, Márcio Almeida, Alvaro Andrade Garcia, Marcelo Dolabela, etc., foi
possível recuperar poemas dos anos 1980 e incluir numa antologia de poesias
(Antonio, 2010).
[ 132 ]
Questões essenciais
Quais os estudos que tratam da poesia hipermídia na
rede? Quais as características e como vem sendo estudada a
poesia hipermídia na rede digital? Como é conceituada por
esses autores?
Podemos começar com a afirmação de Pierre Lévy:
O engenheiro de mundos surge, então, como o grande artista do
século XXI. Ele provê as virtualidades, arquiteta os espaços de
comunicação, organiza os equipamentos coletivos da cognição e
da memória, estrutura a interação sensório-motora com o uni-
verso dos dados.
A World Wide Web, por exemplo, é um mundo virtual que favore-
ce a inteligência coletiva. Seus inventores – Tim Berners Lee e
todos aqueles que programaram as interfaces que nos permitem
navegar na Web – são engenheiros de mundos. Os inventores
de programas para trabalho ou aprendizagem cooperativa, os
criadores de videogames, os artistas que exploram as fronteiras
dos dispositivos interativos ou dos sistemas de televirtualidade
também são engenheiros de mundos (1999, p. 145).
[ 133 ]
uma predominância de exemplos de narrativas. Vouillamoz,
por exemplo, apresenta pouquíssimos exemplos de poesia hi-
permídia em Literatura e hipermedia (2000). Vários autores
apontam essa predominância do estudo da prosa hipermí-
dia: Glazier (2002, p. 91), Cañas e González Tardon (2010,
p. 11), etc.
Os estudos sobre poesia digital são numerosos na rede,
mas em pequena quantidade somente no meio impresso (li-
vros, principalmente) ou no meio impresso com uma mídia
digital que facilita o acesso à rede. Na maioria das vezes, são
estudos de experimentações poéticas isoladas, que interes-
sam à história dos processos criativos, mas ainda carecem
de mais pesquisas e resgates, ou tratam de obras de difícil
acesso, em virtude de edições reduzidas ou que circulam em
pequenos grupos de aficionados, ou porque foram realizadas
com tecnologias que não estão mais em uso. É o caso, por
exemplo, de Alire Revue animée d’ecrits de source électroni-
que, que existe desde 1989, mas que, além do preço elevado,
tem vários números em disquetes, além de muitos poemas
em Macintosh.
Vale também lembrar que muitas obras de Eastgate
System também estão em Macintosh. Há muitas obras feitas
em disquetes, CD, CD-ROM e DVD que só circularam nes-
ses meios digitais e são de difícil acesso. Está faltando, por
exemplo, um arquivo de poesia digital em algumas univer-
sidades, com material disponível para reprodução e de aces-
so fácil aos pesquisadores e criadores.5 As obras de Glazier
(2002) e Funkhouser (2007) são exceções a essa regra geral,
5
Estamos realizando um arquivo de poesia digital, com uma amostragem in-
ternacional significativa, na biblioteca do Instituto de Estudos da Lingua-
gem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como ativida-
de de bolsista Fapesp de pós-doutorado, sob a supervisão do Prof. Dr. Paulo
Franchetti.
[ 134 ]
pois procuram apresentar um panorama da poesia digital e
estudar poetas de vários países.
Há antologias de estudos teóricos, como A:\ Littératu-
re (1994), Littérature et Informatique: la littérature géneré
par ordinateur (1995), Littérature informatique lecture: de la
lecture assistée par ordinateur à la lecture interactive (1999),
Literatur.digital Formen und Wege einer neuen Literatur
(2002), p0es1s. Ästhetik digitaler Poesie/The aesthetics of di-
gital poetry (2004), New media poetics: contexts, technotexts,
and theories (2006), O caminho do leve/The way to lightness
(2006), etc. Poesia digital: teoria, história, antologias procu-
ra contribuir com duas antologias, uma de poesias e outra de
textos teóricos.
Dentre os vários critérios para apresentar um estado
de arte da poesia hipermídia a partir de sua existência na
rede digital, ou seja, de 1995 até a atualidade, faz-se neces-
sário mapear as ideias principais de alguns estudos teóricos,
exemplos diferenciados de criadores e suas obras. A perspec-
tiva principal é a existência de uma linguagem digital com
todas as suas características essenciais: texto eletrônico, hi-
pertextualidade, hipermidialidade, interatividade, colabora-
ção, autoria coletiva, formas híbridas, por exemplo.
Parece válido um breve relato das antologias de poesias
hipertextuais e hipermidiáticas que vêm sendo realizadas
por pessoas e instituições desde 1995, principalmente, pois
representam reflexões significativas.
O próprio estado de arte da poesia hipermídia pode
ser considerado como um conjunto significativo de comentá-
rios sobre textos teóricos e/ou críticos sobre a poesia digital,
acompanhado de uma antologia, ou amostra de poesias digi-
tais dos criadores mais significativos, mais representativos.
[ 135 ]
Um conceito de poesia digital
Num âmbito maior do que o enfoque deste artigo, é pos-
sível estabelecer alguns elementos para o conceito de poesia
digital como um tipo de poesia contemporânea que mantém
e apresenta um vínculo com as poesias existentes anterior-
mente, pois representa uma continuação ou um desdobra-
mento; tem raízes nos procedimentos da poesia modernista
das vanguardas do início do século XX e é uma continuação
da poesia concreta e da poesia visual. Por ter procedimentos
experimentais bastante acentuados e predominantes, é con-
siderada um desdobramento ou continuação da poesia expe-
rimental, uma denominação geral utilizada por criadores e
teóricos de vários países.
O percurso dos meios nos quais a poesia foi apresen-
tada ajuda a compreender essa continuidade que chega à
poesia digital: teve início no meio impresso, isto é, bidimen-
sional, e em sua primeira fase a execução do programa era
apresentada em forma impressa; assimilou os recursos das
artes (pintura, desenho, escultura, arquitetura) e passou a
se concretizar no espaço físico, no meio tridimensional, como
objeto; depois, foi simulado na linguagem binária dos com-
putadores, tornou-se simulação e foi para o ciberespaço.
É formada por palavras, grafismos, imagens estáticas
e/ou imagens animadas e sons: todo esse conjunto é ela-
borado parcialmente ou totalmente por processos digitais;
portanto, torna-se um texto eletrônico e/ou hipertexto e/ou
hipermídia e passa a existir num arquivo digital ou ciberes-
paço (e-book, rede digital, nos seus mais diferentes suportes
eletrônicos: CD, CD-Rom, DVD, pendrive, etc.), e configura-
se como um produto cíbrido6 desde os seus primórdios.
6
Trata-se de um hibridismo que se faz com os componentes da cibercultura.
[ 136 ]
O entendimento desse tipo de poesia contemporânea
passa por um aspecto interdisciplinar e/ou multidisciplinar
e/ou transdisciplinar, daí a razão de ser denominada de tec-
nopoesia ou tecno-arte-poesia. Há um predomínio de rela-
ções, diálogos ou negociações semióticas com os processos
criativos artísticos, tecnológicos, comunicacionais e poéticos.
Em virtude de ser uma poetização das tecnologias di-
gitais, que se transformam constantemente, a denominação
para esse tipo de fazer poético apresenta uma variedade que
indica o tipo de tecnologia digital utilizada – computer poe-
try, poesia informática, texto computacional, tecnopoesia,
ciberpoesia, poesia cibertextual, tecno-arte-poesia, poesia
do clique, poema pop-up, web poesia, poesia hipertextual,
poesia hipermídia, etc. Realiza-se/passa a existir pela si-
mulação e pela mediação poeta/máquina de maneira total,
parcial, ou por meio de uma relação cíbrida (meios físicos e
meios digitais).
A linguagem da poesia digital apresenta uma textuali-
dade eletrônica que, em muitos casos, tem hipertextualida-
de, hipermidialidade e interatividade. Há processos de cria-
ção e participação colaborativos; há parcerias de autorias e
de participação; há processos coletivos de criação. A partir
da existência das redes sociais, a poesia digital ocorre em
ambientes virtuais multiusuários.
É uma poesia que se transforma com os processos artís-
ticos e, principalmente, com os processos tecnológicos e está
vinculada aos seus estágios, sendo vítima de uma obsoles-
cência rápida, necessitando de transformação, de adaptação
na velocidade do surgimento de novas tecnologias computa-
cionais.
A poesia digital tem duas fases principais: a dos compu-
tadores isolados e a dos computadores interligados em redes
digitais. O período dos computadores isolados tem início em
[ 137 ]
1959 com os grandes computadores que usavam diretamente
linguagem de programa, ou seja, com pouquíssimas inter-
faces e o resultado, em forma impressa, era escolhido pelo
poeta-programador. O surgimento do computador pessoal
trouxe uma maneira mais fácil e individual de trabalhar
com programas simples e contou com algumas interfaces,
como mouse e monitor de televisão.
A criação do modem e da www gerou o computador em
rede e aumentou o ciberespaço, criando uma cibercultura ou
second life, que continua se desenvolvendo e se aperfeiço-
ando até os dias atuais. O computador pessoal e individual
tornou-se um computador coletivo e universal. Sítios, blogs
e redes sociais permitem uma divulgação em tempo real de
praticamente tudo na vida das pessoas. O poeta pode publi-
car seus poemas enquanto estão sendo pensados e escritos
e pode aprender rapidamente a usar os mais diferentes pro-
gramas e poetizá-los.
As tecnologias da comunicação (jornal, cinema, rádio,
televisão, vídeo) também assimilaram as tecnologias com-
putacionais, ocorrendo miniaturização e potencialização:
surgiram as tecnologias móveis, como os telefones celulares
e seus derivados, e os computadores portáteis (lap top, note-
book, netbook).
A poesia digital é um produto da cibercultura ou da
cultura digital e, portanto, pode ser chamada de ciber-arte-
poesia ou tecno-arte-poesia.
Estado de arte
Este sucinto estado de arte da poesia hipermídia apre-
senta uma seleção de criadores e de teóricos de vários paí-
ses que tratam da poesia hipermídia, em ordem cronológica
crescente de publicação geral e de cada autor.
[ 138 ]
Obras teóricas como Literary machines 91.1, de Theo-
dor Holm Nelson, de 1980, e Hypermedia and literary stu-
dies, editada por Paul Delany e George P. Landow, cuja ori-
gem teve início no fórum eletrônico Humanist em agosto de
1988 e cuja primeira publicação ocorreu em 1991, podem ser
consideradas como as primeiras a fomentar estudos da poe-
sia hipermídia.
“To Find the White Cat in the Snow” – <www.cddc.
vt.edu/journals/newriver/herrstrom/hypercat/maincat.
html> – de David Herrstrom (EUA) é outro poema hipertex-
tual, cuja primeira página transcrevemos:
7
Tradução nossa: “Como encontrar um gato branco na neve / Elementos da
busca / Sortilégio na noite anterior é inútil: o real / E o sideral são evidentes
como os sons e enigmas: / O que está além da pedra, dentro da luz, / unido
pela água e o círculo de respiração?”
[ 139 ]
zes; na década de 1990 ele conheceu o hipertexto e construiu
a versão hipertextual em 1996 (Hersstrom, 2004).
William Dickey (1991/1994) afirma que “no computador,
e especialmente em suas aplicações ou ambientes, como o
hipertexto, o último século vinte forneceu uma ferramenta
para composição artística que não apenas admite, mas enco-
raja as várias inquietações da arte contemporânea” (p. 144),
que surgem em processos criativos de escritores e poetas,
como Virginia Woolf, Gertrude Stein, T. S. Eliot e Karl Sha-
piro, e que ele compara com “Nu descendo a escada”, de Mar-
cel Duchamp: multiplicidade de perspectiva, variabilidade
de estruturas e vocabulário da língua, a extensão da ideia de
língua a elementos não linguísticos, rejeição da autoridade
retórica singular e da organização linear causativa, forne-
cendo um padrão apropriado para uma obra de arte literária,
admissão de organizações aleatórias e a efetiva ilusão de si-
multaneidade de experiência.
A partir dessas afirmações, Dickey trata das suas pri-
meiras experiências de poemas feitos em computador como
ferramenta em sua máquina de escrever eletrônica IBM Se-
lectric: “A composição no computador é experimental, fluida,
mutável em uma maneira que não se aproxima de nenhum
outro método que eu havia pensado [...]. Essa liberdade en-
corajou posteriormente a um novo padrão de percepção visu-
al do poema” (p. 145).
No período de 1988 a 1990, o autor também produziu
alguns poemas hipertextuais com o programa HyperCard:
“The throats of birds”, “Zenobia, “Queen of Palmyra”, “Dick
and Jane” e “Statue music”.8 Para Dickey, o HyperCard, cria-
do em 1987, tem o efeito de abolir o conceito de poema como
8
Esses poemas encontram-se no DVD que acompanha The New Media Reader
(Wardrap-Fruin; Montfort, 2003).
[ 140 ]
tendo de estar numa página fixa e imutável, de obedecer a
uma sequência linear; tem a vantagem de permitir outras
estruturas e geometrias de organização.
Em Hyperpoems and hyperpossibilities (1992), Denise
Larsen estuda a teoria do hipertexto eletrônico em suas re-
lações com a poesia, que, para ela, é o hiperpoema ou poema
hipertextual. Sua principal comparação é com seu próprio
hiperpoema “Marble springs”, produzido em CD-ROM. Em
artigo posterior, Larsen conceitua a poesia eletrônica como
aquela “que usa texto e informação sensorial mais do que
texto para transmitir significado. Comumente esse significa-
do é criado num simbiociation9 (associações de símbolos, for-
ma, movimento, imagem, navegação, e estrutura não linear)”.
A coisa mais extraordinária sobre a poesia eletrônica é que há
muitos mundos possíveis para explorar. Cada trabalho é úni-
co; cada um forma um caminho para pensar e comunicar além
das palavras numa página. O computador oferece maneiras de
“simbociar” imagens, som, e movimento que o papel não pode.
Os poetas estão realmente experimentando as novas maneiras
de criar estruturas poéticas e de navegar no poema de tal for-
ma que as mesmas palavras podem ter diferentes associações
(e simbociações) dependendo do caminho que o leitor escolher
(Larsen, 1992 - tradução nossa).
Larsen aproveita essa conceituação para propor uma
classificação da poesia eletrônica: poesia em imagens, poe-
sia em som, poesia que muda de gênero, poesia que constrói
comunidades, poema que altera tempo e espaço, poesia que
modela palavras, poesia que constrói estruturas, poesia pro-
gramada e poesia gerada por computador. As suas classifica-
ções são explicadas com exemplos de poetas, em sua maioria
de língua inglesa.
9
Larsen faz um neologismo, unindo um prefixo de symbol com um sufixo de
association, para designar outro tipo de associação de símbolos na poesia
eletrônica. Em português, o termo poderia ficar como “simbociação”.
[ 141 ]
Ladislao Pablo Györi (1994; 1995; 1996) utiliza o com-
putador, a teoria da informação e o cálculo da probabilidade,
com o fim de modificar a sintaxe usual para postular a não
linearidade como elemento composicional.
Essa experiência poética, que ele denomina de poesia
virtual ou vpoesia, é a produção de construções virtuais em
3D ou poemas visuais 3D com alta entropia e conteúdo vi-
sual. Os critérios para esses poemas virtuais ou vpoemas
baseiam-se em
entidades digitais interativas, capazes de: (i) integrarem-se a ou
bem ser geradas dentro de um mundo virtual (aqui denominado
de DPV ou “domínio de poesia virtual”), a partir de programas
ou rotinas (de desenvolvimento de aplicações RV e exploração
em tempo real) que lhes conferem diversos modos de manipu-
lação, navegação, comportamento e propriedades alternativas
(ante restrições “ambientais” e tipos de interação), evolução,
emissão sonora, transformação animada, etc.; (ii) ser experi-
mentadas por meio de interfaces de imersão parcial ou total (ao
ser “atravessáveis” ou “sobrevoáveis”); (iii) assumir uma dimen-
são estética (de acordo com o conceito de informação - semiótico
e entrópico), não reduzindo-se a um simples fenômeno de comu-
nicação (como mero fluxo de dados) e (iv) manterem-se definidas
em torno de uma estrutura hipertextual (circulação de informa-
ção digital aberta e multíplice), porém sobretudo envolvendo hi-
perdiscursos (caracterizados por uma não linearidade semântica
forte). (1996, p. 162 - tradução nossa).
[ 142 ]
Click poetry, de David Knoebels (EUA, 1996) – <http://
home.ptd.net/~clkpoet/> – é um livro de poesias que se pare-
ce com um livro impresso. Por ser um livro eletrônico com-
posto de poucas palavras, pede a interação do leitor: ele lê a
primeira página, clica nas palavras lidas e lê outras e, pouco
depois, ouve um terceiro verso.
Ao tratar de clip-poemas digitais (Campos, 1997),
Augusto de Campos relata uma de suas experiências
nos meios digitais:
A possibilidade de dar movimento e som à composição poética, em
termos de animação digital, vem repotencializar as propostas da
vanguarda dos anos 50. VERBIVOCOVISUAL era, desde o iní-
cio, o projeto da poesia concreta, que agora explode para não sei
onde, bomba de efeito retardado, no horizonte das novas tecnolo-
gias. Desde que, no início da década de 90, pude pôr a mão num
computador pessoal, enfatizando a materialidade das palavras e
suas inter-relações com os signos não-verbais, tinham tudo a ver
com o computador. As primeiras animações emergiram das vir-
tualidades gráficas e fônicas de poemas pré-existentes. Outras
já foram sugeridas pelo próprio veículo e pelos múltiplos recur-
sos de programas como Macromedia Director e o Morph. Os clip-
poemas são o produto de dois anos de experiências entre muitos
tateios, curiosidades e descobertas. Para orientação do usuário,
decidi dividir as animações em três grupos, distinguindo as inte-
rativas, que denominei interpoemas, das demais, animogramas,
e dos morfogramas, que constituem uma categoria específica.
Que o centenário do Lance de dados me sirva de totem nessa
nova viagem ao desconhecido, e as palavras de Mallarmé, ainda
uma vez, de lema: “Sem presumir do futuro o que sairá daqui:
NADA OU QUASE UMA ARTE (Campos, 1997).
[ 143 ]
imagens e palavras em liberdade das vanguardas históricas,
a poesia virtual, os ciberpoemas, algumas classificações de
outros autores (galerias e coletâneas em rede, fábrica de po-
emas, poesia sonora, poesia declamada, nova poesia visual
e poesia cinética), exemplificando tudo com os ciberpoemas
criados por Capparelli e Gruszyinski.
Currents in Electronic Literacy, publicação eletrônica
do Laboratório de Escrita Computacional e Pesquisa da Di-
visão de Retórica e Composição, da Universidade de Austin,
no Texas, EUA, em seu número 5, do outono de 2001, trata
do tema “Special Topic E-Poetry: New Poetics (?)”, com ar-
tigos de vários autores (Deena Larsen, Bill Marsh, Adrian
Miles, Anthony Enns, etc.) e um inquérito com poetas sobre
o estado da poesia eletrônica.
A enquete com vários poetas eletrônicos baseou-se nas
seguintes perguntas: como eles definem seus próprios tra-
balhos; quais as categorizações ou classificações que distin-
guem a poesia eletrônica em geral e os trabalhos deles em
particular; o que estão fazendo na poesia eletrônica e que
não pode ser feito nos meios tradicionais; se eles trabalham
colaborativamente com outros poetas; quem são seus leito-
res e como estão interagindo com eles; o que os seduz no novo
meio para fazer poesia; como estão integrando e abrangendo
outros meios, como som, animação e navegação; que tipo de
estética está emergindo desse campo e o que eles pensam
que o futuro vai trazer para os poetas e a poesia eletrônicas.
Dentre as várias perguntas optamos por destacar duas
delas. Na primeira – “Como você define o seu trabalho? –
Que categorizações/classificações (tradicional ou o contrário)
usaria para distinguir a poesia eletrônica em geral e o seu
trabalho em particular?” –, os onze poetas entrevistados de-
finiram seus trabalhos como “e-poetry” (Agra, 2001a; Glazier,
2001; Strasser, 2001), uma forma de escrita (Andrews, 2001),
[ 144 ]
escrita ficcional eletrônica, hipermidiática e interativa (Co-
verley, 2001), nova poesia das mídias (Heintz, 2001, Stri-
ckland, 2001), poesia hipertextual (Kendall, 2001; Stricklan,
2001), um gênero completamente novo (Larsen, 2001b),
“mezangelling”, “code poetry” ou “net.wurks” (Mez, 2001),
web-specific (Sanford, 2001), “i-poetry”10 ou “i-art” (Strasser,
2001) e poesia das mídias digitais (Stricklan, 2001).
A segunda – “Que tipo de estética está emergindo desse
campo?” – ofereceu um leque de afirmativas:
10
Segundo Strasser (2001), o “i” é de “interatividade”.
11
Mez conceitua sua poesia como “net.wurk” (net work).
[ 145 ]
estéticas contemporâneas da poesia eletrônica (Mez, 2001 - tradução
nossa).
• O trabalho do qual se faz réplicas, isto é, o trabalho que pode ser usado
e desenvolvido por outros – o trabalho que está definindo a mídia [...],
surgiram o obscurecimento e a combinação dos gêneros (Sanford, 2001
- tradução nossa).
• A estética se modifica pelas combinações e forma um novo tipo de esté-
tica. Olhando para os diferentes elementos (sozinhos), especialmente a
animação (não realmente desconhecida do filme – mas estou pensando
aqui nas estruturas “polilineares”) e a interatividade são campos inexplo-
rados (Strasser, 2001 - tradução nossa).
• Muitas estéticas estão emergindo. Uma rivalidade central no momento é
a entre trabalhos que são mais narrativos e aqueles que se parecem com
jogos (Stricklan, 2001 - tradução nossa).
Referências
ANTONIO, Jorge Luiz. Poesia digital: teoria, história, antologias. São
Paulo: Navegar; Fapesp; Itu, SP: Autor; Columbus; Ohio, EUA: Luna
Bisontes Prods, 2010. Acompanha um DVD.
BARBOSA, Pedro. A ciberliteratura: criação literária e computador.
Lisboa: Cosmos, 1996.
BOLTER, Jay David. Writing space: the computer, hypertext, and the
history of writing. New Jersey, EUA: Lawrence Erlbaum Associates,
1991.
CAÑAS, Dionísio; TARDÓN, Carlos González. ¿Puede un ordenador
escribir un poema de amor? Tecnorromanticismo y poesía electrónica.
Madrid, Espanha: Devenir; Juan Pastor, 2010.
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cul-
tura 1: A sociedade em rede. Trad. de Roneide Venâncio Majer e colab.
de Klauss Brandini Gerhardt. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
______. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e
a sociedade. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges. Ver. téc. Paulo Vaz.
Rio de Janeiro: Zahar, 2003a.
[ 146 ]
CORRÊA, Alamir Aquino (Org.). Ciberespaço: mistificação e paranóia.
Londrina, PR: UEL, 2008.
DELANY, Paul; LANDOW, George P. (Ed.). Hypermedia and literary
studies. Cambridge, Massachussetts, EUA: The MIT Press, 1994.
DICKEY, William. Poem descending a staircase: hypertext and the
simultaneity of experience. In: DELANY, Paul; LANDOW, George P.
(Ed.). Hypermedia and literary studies. Cambridge, Massachussetts,
EUA: The MIT Press, 1994. p. 143-52.
ESPINOSA VERA, César Horácio; NÚCLEO POST-ARTE (Ed.). Sig-
nos corrosivos: selección de textos sobre poesía visual concreta-expe-
rimental-alternativa. Cidade do México, DF: Editorial Factor, 1987.
FUNKHOUSER, Chris. Prehistoric digital poetry: an archaeology of
forms, 1959-1995. Tuscaloosa, Alabama, EUA: The University of Ala-
bama Press, 2007.
GLAZIER, Loss Pequeño. Digital poetics: the making of e-poetries.
Tuscaloosa, Alabama, EUA: The University of Alabama Press, 2002.
GUIMARÃES, Denise de Azevedo Duarte. Comunicação tecnoestética
nas mídias audiovisuais. Porto Alegre, RS: Sulina, 2007.
JOBIM, José Luís (Org.). Literatura & informática. Rio de Janeiro:
Faperj; Eduerj, 2005.
JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador trans-
forma nossa maneira de criar e comunicar. Trad. de Maria Luiza X. de
A. Borges; rev. tec. Paulo Vaz. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
KAC, Eduardo (Ed.). Media poetry: an international anthology. Rei-
no Unido: Intellect Books; Chicago, EUA: The University of Chicago
Press, 2007.
KIRCHOF, Edgar Roberto. Intermedialidade na poesia de Augus-
to de Campos: do impresso ao eletrônico. Anais da Abralic, Rio de
Janeiro, 2007. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/enc2007/
anais/43/626.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2009.
______. A poesia digital sob a perspectiva da semiótica evolutiva da
cultura. In: CORRÊA, Alamir Aquino (Org.). Ciberespaço: mistifica-
ção e paranóia. Londrina, PR: UEL, 2008. p. 128-137.
LANDOW, George P. Hypertext 2.0: the convergence of contemporary
critical theory and technology. Baltimore, Maryland, EUA: The Johns
Hopkins University Press, 1997.
______. Hypertext 3.0: critical theory and new media in an era of globa-
lization. Baltimore, Maryland, EUA: The Johns Hopkins University
Press, 2006.
[ 147 ]
LANDOW, George P. (Ed.). Hyper/text/theory. Baltimore, Maryland,
EUA: The Johns Hopkins University Press, 1994.
LARSEN, Deena [Denise E. Larsen]. Hyperpoems and hyperpossibili-
ties. Colorado, EUA, 1992. Tese (Master of Arts) - Department of En-
glish – Faculty of the Graduate School, University of Colorado, EUA.
______. A quick buzz around the universe of electronic poetry. Currents
in electronic literacy. Texas, EUA: Universidade de Austin, outono
2001. n. 5. Disponível em: <www.cwrl.utexas.edu/currents/fall01/buzz.
html>. Acesso em: 30 jun. 2004.
LEMOS, André. Arte eletrônica e cibercultura. In: MARTINS, Fran-
cisco Menezes; SILVA, Juremir Machado da. Para navegar no século
XXI: tecnologias do imaginário e cibercultura. 2. ed. Porto alegre, RS:
Sulina; Edipucrs, 2000. p. 225-243.
______. Aspectos da cibercultura: vida social nas redes telemáticas.
In: PRADO, José Luiz Aidar (Org.). Crítica das práticas midiáticas:
da sociedade de massa às ciberculturas. São Paulo: Hacker, 2002.
p. 111-129.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. 2. ed.
São Paulo: Ed. 34, 1999.
______. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era
da informática. Trad. de Carlos Irineu da Costa. 9. reimpr. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 2000.
MANOVICH, Lev. The linguage of new media. Cambridge, Massa-
chussets: The MIT Press, 2001.
MCLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg: a formação do ho-
mem tipográfico. Trad. de Leônidas Gontijo de Carvalho e Anisio Tei-
xeira. São Paulo: Nacional; Edusp, 1972.
______. Comunicação de massa e cultura tecnológica. In: CARPEN-
TER, Edmund; MCLUHAN, Marshall (Org.). Revolução na comunica-
ção. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 218-221.
______. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. de
Décio Pignatari. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
MOLES, Abraham A. O cartaz. Trad. de Miriam Garcia Mendes. 2. ed.
São Paulo: Perspectiva, 2005.
______; ROHMER, Elisabeth (Col.). Arte e computador. Trad. de Pedro
Barbosa. Porto: Afrontamento, 1990.
NEITZEL, Adair de Aguiar. O jogo das construções hipertextuais. Flo-
rianópolis, SC: Editora da UFSC; Itajaí, SC: Univali, 2009.
[ 148 ]
______; SANTOS, Alckmar Luiz dos (Org.). Caminhos cruzados: infor-
mática e literatura. Florianópolis: Ed. UFSC, 2005.
NELSON, Ted (Theodor Holm Nelson). Literary Machines 93.1. Sau-
salito, California, EUA: Mindful Press, 1992.
REITHER, Saskia. Computerpoesie Studien zur Modifikation poe-
tischer Texte durch den Computer. Bielefeld, Alemanha: Transcript,
2003.
SANTOS, Alckmar Luiz dos. Por uma teoria do hipertexto literário.
Florianópolis: NUPILL / UFSC, 1996. Disponível em: <http://www.cce.
ufsc.br/~nupill/teoria.html>. Acesso em: 15 maio 2000.
______. Leituras de nós: ciberespaço e literatura. São Paulo: Itaú Cul-
tural, 2003. Acompanha CD-ROM.
SARMIENTO, José Antonio (Ed.). Escrituras en libertad: poesía ex-
perimental española e hispanoamericana del siglo XX. Madrid, Es-
panha: Instituto Cervantes; Sociedade Estatal de Commeraciones
Culturales; Agencia Española de Cooperación Internacional para el
Desarrolllo, 2009. Acompanha DVD.
SCHWARTZ, Jorge (Org). Vanguardas latino-americanas: polêmicas,
manifestos e textos críticos. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2008.
TELES, Gilberto Mendonça (Org.; Trad.). Vanguarda européia e mo-
dernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos,
prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 17. ed. Petró-
polis, RJ: Vozes, 2002.
VOUILLAMOZ, Núria. Literatura e hipermedia: la irrupción de la li-
teratura interactiva: precedentes y crítica. Barcelona (Espanha); Bue-
nos Aires (Argentina); México (DF): Paidós, 2000.
WARDRIP-FRUIN, Noah; MONTFORT, Nick (Ed.). The new me-
dia reader. Cambridge, Massachussets, EUA: The MIT Press, 2003.
Acompanha um CD-ROM.
[ 149 ]
Edição e criação nas sociedades
contemporâneas
[ 152 ]
apresenta dois aspectos bem diferenciados. Por um lado, não
existe fora de seus conteúdos; por outro, o uso mesmo desses
conteúdos está extremadamente aberto e se inscreve num
espaço, cujas dimensões são múltiplas: a análise econômi-
ca dos novos consumidores, as aproximações sociológicas e
psicológicas das práticas e usos, dos comportamentos, etc.
Os produtos culturais respondem, pois, a essas duas acep-
ções com um débil grau de funcionalidade, que pode variar
segundo o uso atribuído, a priori, ao conteúdo. Além disso,
contam com um caráter único, uma diversidade irredutível
estreitamente relacionado com sua debilidade funcional.
Nesse contexto, a edição se centra na produção e na
difusão de conteúdos informativos1 ou de caráter criativo
revestindo uma série de qualidades que a diferenciam de ou-
tros produtos concorrentes.
1
El libro como industria cultural. In: El sector del libro en España: situación
actual y líneas de futuro. Informe de Fuinca. Madrid: Fundesco, 1993.
[ 153 ]
custos médios suficientemente baixos para obter uma clien-
tela ampla (Rouet, 1989, p. 20-21).
Reside na natureza do livro o fato de que pertence a
uma indústria de conteúdos no seio do qual, como assinala
Rouet (1992, p. 14), todo produto é, em maior ou menor medi-
da, um protótipo: a concepção de cada um deles é uma tarefa
quase artesanal. Mas, para fazer emergir e para circular os
saberes, os debates e as imaginações de uma sociedade, não
se pode fazer mais do que perpetuar alguns mecanismos de
ajuste específicos, nos quais os indivíduos jogam um papel
determinante. Dessa forma, é imprescindível a existência de
uma função editorial mediante a qual, em cada setor, uma
série de indivíduos assume os riscos de conceber alguns pro-
dutos e de situá-los no mercado. E não apenas situem os
produtos, mas que lhes outorguem coerência, superando a
natureza nominalista do produto, já que, no sentido restrito,
essa unicidade do livro significaria a prática da inexistência
de um mercado global, coexistindo uma multiplicidade de
mercados independentes correspondentes cada um deles a
uma obra determinada. É a atividade do editor através da
formação de linhas editoriais e de coleções que proporcio-
na essa visão de conjunto que recebe o leitor ou comprador,
identificados como imagens de marca de determinado edito-
rial.
Essa singularidade das obras é um dos fatores consti-
tuintes do mercado de bens simbólicos que articulam o setor
editorial, mas representa, também, uma de suas debilidades
estruturais. Ao contrário de outros produtos, cada uma das
obras que integram o catálogo de um editor reveste um ca-
ráter acumulativo e incluso. Sua presença não está regida
pela obsolescência das anteriores, senão pela oportunidade,
pela planificação e, às vezes, pelo capricho de uma vontade
organizadora, a do editor, que valoriza a idoneidade de sua
[ 154 ]
inclusão e de suas possibilidades de mercado, tanto em ter-
mos quantitativos como qualitativos. Seu lançamento não
elimina os produtos concorrentes da própria editora nem,
certamente, os do resto. Ao contrário, se soma ao contingen-
te de obras preexistentes competindo com elas em termos
físicos, de espaço nas livrarias, e ideológicos, as opções de
compra ou leitura nos interessados que escolherão entre um
acúmulo cada vez maior de produtos.2
As estatísticas são contundentes. Em 2006, havia na
Europa 55.000 casas editoriais que lançam ao mercado vá-
rios milhares de títulos anualmente.3 Só a Espanha con-
tribui com, aproximadamente, setenta mil títulos anuais.4
Ainda que os níveis de participação em atividades culturais
dos cidadãos da União Europeia convidem ao otimismo re-
ferente à leitura de livros,5 a absorção de tamanha oferta é
absolutamente inviável.
O livro encerra algumas características simbólico-es-
truturais que lhe conferem, à diferença de outros produtos
concorrentes no mercado, um sentido marcadamente perma-
nente. Sua condição individuada vincula-o intrinsecamente
a uma recorrente atualização, pela via do mercado ou pela
mente do leitor, que renova persistentemente os circuitos de
interpretação. E isto não é atribuível exclusivamente aos
clássicos, cujo fator determinante, segundo assinala Íta-
lo Calvino, é o da releitura em termos diacrônicos (1995),
2
Sobre a hipertrofia do mercado editorial, foram escritos numerosos artigos
e monografias. Entre elas, por seu caráter quase clássico, podem-se citar:
ZAID, Gabriel. Los demasiados libros. Barcelona: Anagrama, 2001; FLOR,
Fernando Rodríguez de la. Biblioclasmo. Sevilla: Renacimiento, 2005.
3
Eurostats: cultural statistics. Luxembourg: Office for Official Publications of
the European Communities, 2007.
4
Panorámica de la edición Española de libros. Madrid: Ministerio de Cultura,
2008.
5
The cultural economy and cultural activities in the EU27. Eurostat Press
Office, 2007. p. 5.
[ 155 ]
ou os textos canônicos de variado signo e tipologia (Bloom,
2005), que, em todo caso, dependem mais da existência de
um circuito acadêmico e escolar do que de uma autêntica
demanda do mercado, cuja férrea lógica seletiva os tivesse
eliminado da oferta editorial predominante de não mediar
as instâncias de tipo prescritivo que favorecem sua presença
e visibilidade,6 senão a todo tipo de textos.
Se excluirmos o livro de texto e o científico, cuja ne-
cessária atualização obriga a uma renovação permanente, o
resto das obras mantêm sua vigência no tempo requeren-
do, em todo caso, complementos documentais ou renovações
de traduções. Como assinala Farreras (1980, p. 100-102), a
mensagem, já cifrada, permanece incólume ao longo do tem-
po e do espaço. As permanentes “recuperações” e “descobri-
mentos” de autores assim o atestam da mesma maneira que
a criação de coleções dedicadas, quase em exclusividade, a
autores que jaziam sepultados no esquecimento bibliográfi-
co.7 A dimensão quantitativa do contingente de “protótipos”,
somente no mercado espanhol, é surpreendente. Segundo o
Comercio Interior do Livro, em 2007, o número de títulos
vivos disponíveis, isto é, com uma presumível presença nos
circuitos de distribuição, ultrapassava 369.588.8
6
Mesmo com caráter anedótico, mas significativo para os propósitos demons-
trativos do asserto anterior, em 2006, se ofereceram a várias reputados edi-
toriais textos de autores clássicos (ocultando o autor), com vistas a sua pu-
blicação. Invariavelmente se rejeitou a mesma. Os autores do experimento
não esclareceram se a rejeição proveio do descobrimento do engano ou, como
sugerem, da má perspectiva comercial das obras.
7
Casos como os de Djuna Barnes, Henry Roth, Sándor Márai, e um longo
etcétera que pode comprovar-se com somente assomar-se aos catálogos de
El Acantilado, Valdemar, Impedimenta, El Olivo Azul, Artemisa, Nórdica, El
Funambulista, Sexto Piso, Atalanta, Libros del Asteroide, Periférica, Veinti-
siete Letras, Gadir, El Mono azul, etc.
8
Comercio Interior del Libro. Madrid: Federación de Gremios de Editores,
2008.
[ 156 ]
Cada livro lançado ao mercado compete com todo o res-
to dos concorrentes; cada livro de um editorial compete com
aqueles que encerram a mesma imagem de marca e se be-
neficiam dos mesmos mecanismos de marketing e publicida-
de. Inclusive cada livro que publica um autor compete com
o resto dos seus, concorrência que se agrava à medida que
a inércia editorial e a idade literária do criador produzem
bissetrizes coincidentes.9 Uma bibliomaquia estrutural que
se desencadeia nos expositores das livrarias, nos prateleiras
das bibliotecas ou no espaço privado das coleções domésticas,
como expôs Anne Fadiman (2000). Mesmo que, no sentido
contrário, essa singularidade favoreça a aparição de fatores
de arrasto coadjuvantes para um título ou um autor quando
concorrem elementos de retroalimentação externa, como o
são a concessão de prêmios, a translação de um texto ao es-
paço cinematográfico ou qualquer outro feito que lhe confira
significação social ao escritor ou a sua obra (Abiada; Rivero,
1997, 2001). Autor, editor e obra se veem constrangidos pe-
las determinações de um mercado fortemente seletivo tanto
com relação a espaços físicos com relação a espaços simbóli-
cos de representação dos textos.
Vila Matas (2008) havia caracterizado brilhantemen-
te aos autores com vocação de anonimato ou de estupidez
de publicitário, mas os feitos denotam uma realidade muito
mais contundente e indiferente a vontades aprioristicamen-
te negativas: o mercado devora toneladas de livros, mas di-
gere uma mínima parte dos mesmos. No entanto, a singula-
ridade de todos eles nunca desaparece e a possibilidade de
seu resgate tampouco.
9
Sobre idade literária e frequência de produção literária, veja-se GARCÍA,
José Antonio Cordón. La visibilidad en los circuitos de la edición y la traduc-
ción especializada. In: YEBRA, Valentín Garcia; GARCÍA, Consuelo Gonzalo
(Ed.). Manual de documentación y terminología para la traducción especiali-
zada. Madrid: Arco Libros, 2004. p. 127-169.
[ 157 ]
Os espaços autônomos da criação e a autoria
As possibilidades de um autor obter o interesse do mer-
cado estão, portanto, mediatizadas por uma série de con-
dicionantes que convertem em quase milagroso o encontro,
fortuito ou não, com o leitor.
Evidentemente, o contexto histórico e tecnológico de-
termina a importância variável da criação e da recepção no
seio de um equilíbrio sempre instável. A própria condição
do autor se vê submetida a mudanças e transformações que
permeabilizam suas possibilidades constitutivas. Se o nas-
cimento da função editorial no século XIX havia facilitado
igualmente o nascimento do escritor, no sentido profissional
do termo, isto é, a existência de uma nova classe de autores
que viviam de seus escritos (Mollier, 2002, p. 47-72), tam-
bém havia estabelecido o marco fronteiriço entre a formula-
ção de “eu escrevo” à confirmação de “eu sou escritor”, o pas-
so de um ato a uma identidade (Heinich, 1999). A publicação
se converte na única objetivação suscetível de transformar
a atividade de escritura em identidade de escritor. É o que
distingue o projeto de escrever “para os outros” da escritura
para “si mesmo”. A planificação editorial favorece a emer-
gência do fenômeno indelével da identificação profissional
através de três elementos-chave para entender a figura do
escritor a partir de então:
– autor percepção (se percebe como escritor);
– representação (se expõe como tal);
– designação (é reconhecido por outros).
Nesse contexto, a publicação permite a passagem do
privado ao público, do informal ao formalizado, graças à in-
tervenção editorial. Possibilita a constituição no espaço, per-
mitindo o acesso a um mercado e a um público, instaurando
no tempo a durabilidade do status de autor. Daniel Pennac
[ 158 ]
(1997) expressa graficamente num de seus romances: “Os
corredores de Las Ediciones del Talión (As Edições do Ta-
lião) estão cheios de pessoas do singular, que só escrevem,
para chegar a ser terceiras pessoas públicas... não escrevem
para escrever, senão para haver escrito e que se digam...”
É pela mediação de um objeto, o livro impresso, sob a
marca de um editor reconhecido, que o ato de escrever es-
capa ao seu status de ação para converter-se em fator de
identidade, instrumento de qualificação de uma pessoa ao
mesmo tempo durável, comunicável a outros, aceitável pelo
interessado e compatível com outros. A prova da publicação
permite uma medida da qualidade e uma mudança no esta-
do do sujeito, formalizando mediante contrato o passo para
a continuidade temporal que conferem um editorial e um pú-
blico de leitores. A percepção dessa linha divisória instituída
pelo contrato editorial, a configuração de um antes e de um
depois fundacional, forma parte da constituição da profissio-
nalização escritora.10
Desde a época moderna se assiste a uma consolidação
do status profissional do escritor, que, graças à mediação
editorial, adquire um status jurídico, que conforma e arti-
cula sua localização no campo editorial. A intervenção em-
presarial, a inserção em uma cadeia de caráter mercantil,
regulada pela oferta e pela demanda, pela conformação de
um mercado de interesses contrapostos que se alimenta da
atividade criativa do escritor, define setorialmente a ativida-
de vinculada à geração de textos de natureza complexa e va-
riada. O editor, como empresário, e o mercado, como regula-
dor, operam como seletores entre o contingente daqueles que
10
Esta convicção se pode rastrear em uma multidão de textos nos quais os es-
critores falam de suas primeiras experiências editoriais. Sirva como exemplo:
MAINAT, Noemí Montetes. Qué he hecho yo para publicar esto: XX escrito-
res jóvenes para el siglo XXI. Barcelola: DVD Ediciones, 1999.
[ 159 ]
aspiram ingressar no reduzido grupo dos escritores. Da Ida-
de Média até a época moderna, a obra se define por oposição
à originalidade, ou porque estivesse inspirada por Deus, e,
nesse caso, não era mais que um veículo para a transcrição
de sua palavra, ou porque se inscrevesse em uma tradição e
era uma simples continuidade dos textos preexistentes, ou
uma mera recopilação deles. Segundo Chartier (2000, p. 26),
há um momento no século XVIII no qual aparece a função de
autor, definida precisamente por ocupação original diferen-
ciado da tradição anterior, um momento que, terminologica-
mente, está discriminado através dos vocábulos écrivains (os
que escrevem, literalmente) e auteurs (autores). O escritor
é o que redige um texto, que pode ser um manuscrito sem
circulação, o autor recebe tal qualificativo, porque publicou
obras impressas. Em inglês, essa diferença é mais clara, di-
ferenciando-se writer e author. A prática da escritura não
valida, portanto, a atribuição genérica de profissionalização.
Por outro lado, a prova definitiva, por imposições de
caráter puramente técnico, passava pela forma tipográfica.
Nenhum original, em seus diversos estágios, pode ser consi-
derado definitivo, nenhuma obra editada, até que não este-
ja encadernada e inscrita no circuito de validação editorial,
disponível para um público, independentemente de que seja
ou não lida. A conformação do campo editorial, no sentido
que Bourdieu (2001, p. 185) atribui ao termo, baseia-se pre-
cisamente na preexistência de todo um conjunto de filtros e
de sistemas de valorização articulados em torno dos siste-
mas de seleção e de avaliação editorial. O dimensionamento
da própria estrutura de campo se articula em torno dos es-
paços conformados pela função editorial. O campo não pode
existir fora desta. A sobrevivência de autores narrativos e
suas possibilidades de continuidade radicam na preexistên-
cia de uma rede articulada de elementos confluentes que
[ 160 ]
sustentam e alimentam a estrutura. Assim, certos editores
neófitos podem tentar conciliar estratégias aparentemente
inconciliáveis como investimentos, necessariamente de lon-
go prazo, em autores de longa duração, e a busca do êxito
comercial de uma produção literária de rotação rápida. Tudo
isto, apoiando-se numa forma de marketing modernizado,
fundamentado sobre uma exploração metódica da heterodo-
xia. Em associação com certos jornalistas que se relacionam
com eles, em nome da solidariedade geracional, por pensar
as lutas literárias segundo a categoria incerta de “geração”.
Exemplo disso são as operações que algumas editoras jovens
(ou de ramas jovens de velhas editoras) desenvolvem ofere-
cendo aos leitores jovens, valorizados enquanto tais, alguns
autores capazes de romper com as características da geração
precedente (Bourdieu, 2001). No entanto, essas homologias
estruturais, a que faz referência Bourdieu, localizam-se ne-
cessariamente numa situação contextual definida por um
fazer e uma ocupação ligada à obra impressa, e aos circuitos
que a canalizam e a representam, e a um conceito de escri-
tura em estreita simbiose com a mesma.11
Neste contexto, as formas de escritura moderna se ca-
racterizam, principalmente, por uma relativa especialização
na atividade e pelo fato de exercê-la em tempo integral. Es-
crever em tempo integral aparece como um desejo recorren-
te em qualquer escritor. Poder escrever sem ter que desen-
volver outra atividade para viver é a marca por excelência
do criador, ainda que, à luz dos dados, essa aspiração seja
dificilmente alcançável para a maioria deles. Em diferentes
11
De qualquer modo, a teoria que articula o “campo editorial” é aplicável, qua-
se que exclusivamente, à edição literária e tampouco em sua totalidade. O
âmbito do livro infantil e juvenil, por exemplo, escapa completamente da
maioria dos supostos explicados por Bourdieu. Algo similar ocorre com o
livro científico, no qual os sistemas de validação discorrem por circuitos pa-
ralelos, quando não antagônicos, aos próprios da edição literária.
[ 161 ]
estudos desenvolvidos para realizar uma análise da saúde
econômica dos autores, concluiu-se, invariavelmente, a ne-
cessidade de um segundo ofício em mais 3/4 partes dos casos,
para poder viver.
Não existe nenhuma fórmula para romper essa depen-
dência do autor com relação ao mercado, somente alguns pa-
liativos, como subvenções e bolsas de estudo, que mitigam,
mesmo que debilmente, essa situação. Nenhum contrato as-
segura aos autores que todas as condições estipuladas com o
editor serão cumpridas, ainda que seus interesses pareçam
comuns. Juan Benet (1996)12 analisava, num lúcido artigo,
os interesses contrapostos de autor e editor e a difícil con-
dição econômica pela qual, paradoxalmente, atravessam os
primeiros:
Estimo que a situação atual do escritor (e me refiro àqueles cujo
trabalho se transforma em livros comerciais, não em outra sorte
de publicações) convida a reconsiderar as condições nas quais
usualmente se realiza a edição de obras, a fim de pronunciar-se
sobre sua participação numa indústria, que, dependendo essen-
cialmente dela, apenas leva em consideração seus interesses. De
uma certa forma, escritor e editor são antagonistas. O primeiro
12
Sobre as relações dos autores e editores, numerosos textos foram escritos.
Pela sua significação, destacam-se: UNSELD, Siegfried. El autor y su editor.
Madrid: Taurus, 2004; UNSELD, Siegfried. Goethe y sus editores; BOTREL,
Jean François. Clarín y sus editores (65 cartas inéditas de Leopoldo Alas
a Fernando Fe y Manuel Fernández Lasanta, 1884-1893). Edición y notas
por Josette Blanquat y Jean-François Botrel. Rennes: Université de Haute-
Bretagne, 1981. Para uma revisão da condição do escritor, em anos mais
recentes, são interessantes as memórias de editores como HERRALDE,
Jorge. Opiniones mohicanas. Barcelona: El Acantilado, 2001; HERRALDE,
Jorge. Por orden alfabético: escritores, editores, amigos. Barcelona: Anagra-
ma, 2006; BORDAS, Pierre. L’édition est une aventure. Paris: Fallois, 1997;
BOTHOREL, Jean; GRASSET, Bernard. Vie et passions d’un éditeur. Pa-
ris: Bernad Grasset, 1989; FORTIN, Jacques. L’aventure: récit d’un éditeur.
Montréal: Québec Amérique, 2000. ASSOULINE, Pierre. Gaston Gallimard:
medio siglo de edición francesa. Barcelona: Península, 2003; COCCETTI,
Maria Grazia. L'autore in cerca di editore: istruzioni e consigli pratici per
farsi pubblicare un libro: con 40 interviste a editori, scrittori e consulenti
editoriali. Milano: Editrice Bibliografica, 1996; SANTANTONIOS, Laurence.
Auteur-éditeur: création sous influence. Paris: Loris Talmart, 2000.
[ 162 ]
desenvolve todo seu esforço para conseguir um livro com carac-
teres próprios e que, por assim dizer, se constitua como um indi-
víduo no seio da multidão. Ao contrário, o editor – cada dia mais
envolvido pelo processo industrial e mais sujeito ao império dos
números – atende, antes de tudo, à harmonia da massa. Não o
preocupa tanto um título como uma coleção, pode observar com
calma a escassa venda de um autor, se o volume de vendas anu-
ais não descende. Dessa forma, são esforços heterogêneos e de
certa forma antagonistas... (Benet, 1996).
[ 163 ]
desfrutam das percepções geradas pelos mesmos durante
um tempo limitado, ainda que, por outra parte, mantenham
a garantia da imutabilidade da obra, graças à exigência de
respeito à integridade da mesma. De uma certa maneira,
podemos falar da existência de direitos patrimoniais e de
direitos morais, os primeiros com data de caducidade, os
segundos com caráter indefinido. Os direitos morais estão
ligados ao autor de maneira permanente e são irrenunciá-
veis e imprescritíveis. Os de caráter patrimonial facultam ao
autor a decisão sobre o uso de sua obra, que não poderá ser
levada a cabo sem sua autorização, salvo em determinados
casos, como os previstos na Lei de Propriedade Intelectual
espanhola, que se conhecem como limites ou exceções. Esses
direitos de exploração, que podem ser cedidos a terceiros, re-
vestem diversas variantes:
• reprodução – ato de fixação da obra num meio que
permita sua comunicação e a obtenção de cópias de
tudo ou parte dela;
• distribuição – ato de colocar à disposição do público o
original ou cópias da obra mediante sua venda, alu-
guel, empréstimo ou qualquer outra forma;
• comunicação pública – ato pelo qual uma pluralidade
de pessoas possa a ter acesso à obra, sem prévia dis-
tribuição de exemplares a cada uma delas;
• transformação – ato de tradução, adaptação e qual-
quer outra modificação de uma obra em sua forma da
que se derive uma obra diferente.
Por outro lado, com relação à exploração da obra prote-
gida, é necessário distinguir entre direitos exclusivos e direi-
tos de remuneração.13 Os direitos exclusivos são aqueles que
permitem ao seu titular autorizar ou proibir os atos de ex-
13
Ministerio de Cultura. La propiedad intelectual: derechos de la propiedad
intelectual. En internet: http://www.mcu.es/propiedadInt/CE/PropiedadIn-
telectual/Derechos.html
[ 164 ]
ploração de sua obra ou prestação protegida pelo usuário e a
exigir deste uma retribuição em troca da autorização que lhe
conceda. Os direitos de remuneração, diferentemente dos di-
reitos exclusivos, não facultam ao seu titular autorizar ou
proibir os atos de exploração de sua obra ou prestação prote-
gida pelo usuário, mesmo que se obriguem a este pagamento
de uma quantidade de dinheiro pelos atos de exploração que
realize, quantidade esta que é determinada pela lei ou, na
sua falta, pelas tarifas gerais das entidades de gestão.
Pois bem, esta pormenorizada proteção não salva o pa-
radoxo referenciado, existente com relação à duração dos
direitos morais e dos patrimoniais. Javier Marías já inda-
gava num artigo: Se todas as fortunas se herdam indefini-
damente, por que os direitos de autor têm uma caducidade
de setenta anos para os futuros herdeiros? Para este autor,
e outros na mesma linha, “convém recordar que esta práti-
ca é uma anomalia e uma exceção, uma grande injustiça. O
restante das pessoas deixa em herança o que possui sine die,
sem limite algum de tempo, para que possam receber não
só seus filhos e netos, mas também todos seus descendentes,
por distantes que sejam”. Assim, o que as leis garantem com
caráter permanente é a manutenção da propriedade intelec-
tual por parte dos autores que alienaram sua fixação, repro-
dução, uso ou comunicação pública, assim como o respeito à
integridade da obra.
O autor oscila entre categorias opostas, mas simulta-
neamente presentes no seu discurso. Frente ao compromis-
so artístico se localiza a dimensão mercantil de seu trabalho,
diante do interesse por obter um benefício de seu trabalho, a
gratuidade: os bens que se produzem não estão destinados a
satisfazer a um mercado, a algumas necessidades definidas
exteriormente ao seu autor e estabelecidas por uma deman-
da anterior a sua produção. Ao contrário, devem satisfazer a
uma aspiração pessoal, sob pena de serem acusados, em caso
[ 165 ]
contrário, de não-autenticidade, como ocorre com os livros
“programados” para serem best-sellers. Por um lado, nos en-
contramos diante do “mundo inspirado”, onde reinam a an-
terioridade e a interioridade da satisfação engendrada pela
obra; por outro, há o mundo do mercado, onde o produto se
adapta à demanda antecipando-se a ela. O esforço necessário
para fazer convergir esses dois mundos toma a forma de êxito
ou de fracasso quando o criador leva a generalidade da deman-
da até a singularidade do produto, o mercado até a inspiração.
De qualquer maneira, na atividade do escritor se pro-
duz a inversão de meios e de fins próprios das atividades
criadoras. Se nas atividades ordinárias a especialização e o
trabalho em tempo integral têm essencialmente como obje-
tivo assegurar uma remuneração suficiente, nas atividades
de criação o trabalho em tempo integral é um meio para con-
sagrar o maior tempo possível a sua arte.
Pois bem, a aparição das tecnologias da informação, so-
bretudo da internet, deu lugar a novas formas de escritura e
a novas formas de autoria, que rompem com a concepção cer-
rada vinculada ao regime impresso e que redimensionam a
concepção criativa, dando lugar ao surgimento de noções que
redirecionam a função num sentido polimórfico, extraindo-a
em muitos casos do próprio circuito editorial.14 A vinculação
contratual e tecnológica própria do sistema impresso se dilui
14
Os escritores são um dos setores que acolheram com maior interesse as opor-
tunidades que oferece a web ensaiando fórmulas criativas novas. Nesse sen-
tido, é interessante o pioneiro ensaio de MURRAY, J. H. Hamlet en la holo-
cubierta: el futuro de la narrativa en el ciberespacio. Barcelona: Paidos, 1999.
Inclusive os autores de mais êxito exploraram as possibilidades de visibili-
dade que oferece o novo meio. Stephen King lançou seu romance Riding the
Bullet através da rede a um preço de 2,50 euros. Em 48 dias, meio milhão de
pessoas o haviam adquirido. Jordi Sierra i Fabra fez o próprio com El miste-
rio del Goya Robado, com um êxito considerável, ainda que distante do King.
Fernando Arrabal, Pérez Reverte e outro provaram fortuna igualmente na
rede, com distinta sorte. Outros autores, como Juan José Millas, iniciaram
projetos de escritura colaborativa na internet, ao tempo que mantêm pági-
nas web ou blogs pessoais, através das quais se relacionam com os leitores e
publicam, regularmente, suas impressões sobre os temas mais diversos.
[ 166 ]
numa variedade de formas, que ampliam consideravelmente
o campo editorial.
O desenvolvimento da web 2.015 e de suas numerosas
aplicações deu lugar a uma multiplicação exponencial de
autores que conformam um espaço criativo cada vez mais
inabordável e à margem do âmbito editorial. Uma das for-
mas mais originais e que alcançou um desenvolvimento ver-
tiginoso nestes últimos anos são os blogs, bitáculas (bitáco-
ra, em espanhol). São sítios (sites) da web periodicamente
atualizados que recopilam cronologicamente textos de um
ou de vários autores, aparecendo primeiro o mais recente,
onde o autor conserva sempre a liberdade de deixar publica-
do no que acredita ser pertinente. O termo blog provém das
palavras web e log. O termo “bitácula”, com referência aos
cadernos de bitácula dos barcos, é utilizado preferentemente
quando o autor escreve sobre sua própria vida, como se fosse
um diário.
Um aspecto importante dos weblogs é sua interativi-
dade, especialmente em comparação a páginas web tra-
dicionais. Dados que se atualizam frequentemente e que
permitem aos visitantes responder às entradas, os blogs fun-
cionam frequentemente como ferramentas de interconexão
social, dando lugar à geração de autênticas comunidades
virtuais constituídas por elementos que participam de um
interesse comum, geralmente de caráter temático.
Os blogs são o transunto contemporâneo e virtual de
algumas das práticas mais antigas e socorridas na constitui-
ção da personalidade e de um dos gêneros mais prolíficos no
15
Sobre a web 2.0 e suas implicações editoriais, desenvolveram-se alguns tra-
balhos interessantes. Entre eles, RODRÍGUEZ, Joaquín. Edición 2.0. Bar-
celona: Melusina, 2007; Tendências web 2.0 no setor editorial: uso das novas
tecnologias no fomento da leitura e promoção do livro. Barcelona, Espanha:
Dosdoce.com; Ministério de Cultura. Incidência das novas tecnologias no se-
tor do livro na União Européia. Madrid: Ministério de Cultura, 2008.
[ 167 ]
âmbito editorial: o da escritura do eu (Cordón, 1997). Desde
tempos imemoriais, toda pessoa com uma formação mínima
sentiu a indeclinável propensão a ensimesmar-se e exterio-
rizar o fruto da ação introspectiva. Tão potente é a tendência
que, em ocasiões, essa necessidade de verbalizar as experi-
ências vividas, mais passionais que reflexivas, quer passou
pela frase prévia mencionada. Muitas grosserias e excursos
contemporâneos respondem a essa inapelável lógica. O gê-
nero autobiográfico, diarístico ou memorialístico sofreu sem-
pre um paradoxo ou contradição interna irresolúvel em seus
termos. Como o transunto de uma pirâmide de população,
na base, se agrupavam as centenas de milhares de aspiran-
tes a ver suas desventuras, veleidades e ocorrências impres-
sas e encadernadas. Na cúspide, estreita e reduzida em grau
extremo, os que realmente o conseguiam. Enquanto o leito
para sua expressão e concreção dependeu de algumas estru-
turas de publicação vinculadas a sistemas editoriais forte-
mente restritivos, as reflexões vinculadas a considerações
de caráter pessoal, imbricadas na realidade mais imediata,
dependeram sempre do capricho, da oportunidade ou da pla-
nificação empresarial de instituições alheias às querenças e
inclinações dos escritores, ou, ao menos, sujeitas a interes-
ses não sempre coincidentes, nem no tempo nem no espaço.
E foi a tecnologia que veio resolver essa contradição in-
superável, pois a internet permite saltar da escrita à publi-
cação sem a necessária intervenção editorial. As centenas de
milhares de páginas web, existentes são uma demonstração
disso. E, no meio do imenso ruído publicitário no qual se con-
verteu a rede, com seus acertos e seus erros, esse gênero dos
blogs, relativamente recente, conciliou as virtudes do ime-
diato com as necessidades de visibilidade de quem atende a
suas expressões mais urgentes.
[ 168 ]
O blog está para a escrita, como o instantâneo está
para a fotografia, uma impressão versátil das realidades
mais variadas. Ainda que personalista e individual em sua
iniciativa, constitui uma das expressões mais depuradas do
bom funcionamento das novas redes de comunicação social.
Graças à interação permanente e à necessidade de alerta
que o próprio formato impõe, erigiu-se numa das formas co-
municativas mais frescas e potentes das existentes na rede.
Evidentemente, a qualidade e a profundidade diferem consi-
deravelmente de uns aos outros, mas, como fenômeno, reves-
te uma importância cuja proteção real já foi percebida pelos
responsáveis de marketing de muitas empresas, que detec-
taram a mudança de orientação dos ventos comunicativos,
começando a prestar especial atenção a esses novos espaços,
que, já consolidados como formas de publicação, acabarão
sucedendo-se em novas categorias editoriais.
Sua multiplicação nos últimos anos dá fé de um fe-
nômeno que não fez mais que começar, e que se enriquece
permanentemente com milhares de colaborações. Apesar de
sua lógica e comportamento, respondem aos princípios mais
consolidados do âmbito sociológico, criativo e documental.
Os blogs constituem uma potente ferramenta de visibilida-
de para escritores ou aspirantes a escritores. Numa inves-
tigação desenvolvida para comprovar a natureza, profissão
e vinculação com o âmbito editorial dos blogs existentes no
âmbito da criação e da edição, obtiveram-se resultados signi-
ficativos nesse sentido (Oria; García; Cajade, 2008). A maio-
ria dos autores dos blogs é constituída por escritores, segui-
do de editores e críticos literários, mas 80% deles carecem de
relação com o mundo editorial.
[ 169 ]
Fonte: Oria; García; Cajade, 2008.
[ 171 ]
compõe livros, o editor planeja e compõe bibliotecas, opinava
Laín Entralgo ressaltando essa tarefa de planificação e de
sistematização conceitual e ontológica com a qual se enfren-
ta todo editor. O que não deixa dúvidas é que, parafraseando
Octavio Paz, a existência de nossa literatura se deve não
apenas ao gênio e ao talento de nossos grandes poetas e es-
critores, mas também à ação de muitos editores arrojados e
inteligentes.
A função editorial é determinante para explicar todos
os fenômenos que analisaram previamente. Sua presença,
ou sua ausência, articula o conjunto de discursos textuais,
ou de outra natureza, que atualmente estrutura o âmbito
da criação. Não é possível analisar as posições do autor no
campo literário e editorial, ou a do resto dos elos da cadeia,
sem examinar a intervenção da competência editorial tal e
como se desenvolve através das atuações de seus componen-
tes. Mas no que consiste e como se formou essa função edi-
torial? Mesmo que suas origens não sejam muito remotas, o
editor é uma figura ligada à contemporaneidade e à Europa.
Ainda que com a aparição e o desenvolvimento da imprensa
comecem a aparecer figuras que poderiam se associar ao que
posteriormente forma a figura editorial,16 não é até o século
XVIII quando se desenha com nitidez o perfil do editor, di-
ferenciando-se de outras profissões com as que inicialmente
aparece associado, principalmente com as do livreiro e do
impressor. E esse fenômeno acontece em quase todos os paí-
ses de Europa, com lapsos de tempo diferenciados, mas com
resultados similares. Chartier (2000, p. 37) data a consolida-
ção desse fenômeno na década de 1830. Segundo este autor,
é quando se fixa a figura do editor que hoje conhecemos, ou
seja, uma profissão de natureza intelectual e comercial que
16
MARTIN, Henri-Jean. La aparición del libro.
[ 172 ]
aponta a procurar textos, a descobrir autores, a vinculá-los à
casa editora, a controlar o processo que vai desde a impres-
são da obra até sua difusão e recepção. Mesmo que no século
XIX o fato desses editores poderem possuir imprensas ou
livrarias, não é imprescindível. Anteriormente, não existia
tal autonomia da função editorial. Ou se era livreiro ou im-
pressor, e,, por esta razão, se tornava editor, mas como uma
atividade subsidiária, complementar e vinculada a uma fun-
ção principal pré-existente. Na França, haviam feito alguns
ensaios desta nova figura, encarnada como ninguém por
Panckoucke, o editor da Enciclopédia, que desenvolve uma
série de estratégias editoriais (adaptação de preços, fixação
de formatos, políticas de promoção versáteis e adaptadas a
diferentes contextos, etc.) que prefiguram as funções que se
estabilizam em séculos posteriores (Mollier, 2002, p. 50).
A França representa o paradigma da consolidação da
figura editorial que adquire uma importância singular no
século XIX, conhecendo uma rápida expansão, não só no in-
terior de suas fronteiras, mas o que á mais importante para
explicar sua aparição em outros países, fora delas. Charles-
François Bailliere funda, em Madrid, a grande livraria es-
panhola Bailly Bailliére, uma das mais prestigiosas, duran-
te décadas, do país (Botrel, 1986, p. 61-84). Num mercado
como o espanhol, com elevadas taxas de analfabetismo até
muito avançado no século XX, o editor há de adaptar-se às
condições de vida da sociedade e formar um mercado com-
binado com as mesmas. Os Bailly-Balliere, como mais tar-
de os Ollendorf, saberão levar em conta estas realidades e
adaptar-se ao mercado local do livro. Um dos exemplos mais
significativos da pujança do modelo francês é o representa-
do pelos irmãos Garnier, que não se contentam em editar
livros em espanhol ou em português, a fim de alimentar os
mercados da América Latina, senão que se assentam no Rio
[ 173 ]
de Janeiro, em 1844. Seu mérito não é só o da publicação de
obras, senão, fundamentalmente, o de estabelecimento das
bases de uma literatura brasileira, transformando os auto-
res do Brasil em escritores, ou seja, em autores remunerados
(Lopes, 1998). Outros países, como Inglaterra (Raven apud
Michon; Mollier, 2002, p. 19-30) e Alemanha (Barbier apud
Michon; Mollier, 2002, p. 31-46) experimentam desenvolvi-
mentos similares, mas a presença francesa, e o êxito de seu
modelo, repousam menos sobre a existência de comunidades
linguísticas ou concentrações de emigrantes nostálgicos de
seu passado, que sobre a capacidade das letras francesas de
exercer uma influência permanente. Nisso se separa neta-
mente do modelo britânico que se apoia sobre o vigor das
imprensas universitárias de Oxford, ou de Cambridge, ou do
alemão, que se dirige principalmente ao público cultivado
dos territórios germanizados de Europa Central ou de seus
emigrantes no mundo. O fato de que o primeiro Congresso
Internacional de Editores se celebre em Paris, em 1896, não
é casualidade. Os editores franceses haviam sido os mais
ativos nas reuniões preparatórias das Exposições Univer-
sais, para exigir que se reconhecesse um lugar diferenciado
daquele dos impressores. Nesse congresso, em que partici-
pam 250 representantes, houve uma elevada participação
de organizações de diferentes países, o que mostra a consoli-
dação da função editorial em nível internacional (Loué apud
Michon; Mollier, 2002, p. 531-543).
Na Espanha, a depuração da figura do editor é também
um processo verificado ao longo do século XIX, diferencian-
do-se de impressores, livreiros, litógrafos e encadernadores.
Trata-se de uma figura que atua em sua dupla dimensão de
financiador e de gestor, acoplando a dupla função técnica e
intelectual para o conjunto de operações vinculadas à fabri-
cação de livros. De acordo com as palavras de Jesús A. Mar-
[ 174 ]
tínez (2001, p. 34), “Contribuía um trabalho intelectual para
discernir textos e acoplá-los à demanda, projetando gostos
ou assumindo-os, uma planificação técnica na fabricação
das formas dos livros e uma estratégia comercial para sua
difusão…” Ao longo do século se desenvolve uma atividade
na qual a planificação, a conformação de catálogos, a adap-
tação ao mercado, o desenvolvimento de fórmulas adaptadas
a um público leitor muito débil e fragmentado, constituem
os sinais de identidade de editores como Manuel Delgado –
editor que carecia de livraria ou de qualquer estabelecimen-
to tipográfico, mas que construiu um dos catálogos editoriais
mais interessantes do século XIX (1999) – Eusebio Aguado,
Dionisio Hidalgo, Benito Monfort, Hernando, Alegría, Gas-
par i Roig, Ayguals de Izco, Bergnes de las Casas, Verdaguer
e um longo, etc. de personagens que, graças ao seu trabalho,
prefiguram a aparição das grandes figuras do panorama edi-
torial espanhol do século XX.17
Essa função editorial que vai se articulando em toda
Europa no século XIX e no resto do mundo com posteriori-
dade permaneceu invariável ao longo do tempo. Certamente,
com o passar dos anos a edição foi se especializando, adap-
tando-se a segmentos de mercado cada vez mais fragmen-
tados, e cada uma de suas especializações reveste algumas
características particulares, estabelecendo-se regulagens de
campo diferenciadas para a edição científica, literária, in-
fantil ou de livros de texto. Os movimentos de capital intra e
extrassetoriais provocaram profundas retiradas na estrutu-
ra empresarial, tanto em nível nacional como internacional
(Shiffrin, 2001). Os processos de concentração e internaciona-
17
Para o conhecimento da edição espanhola no século XX, ver MORET, Xavier.
Tiempo de editores: historia de la edición en España (1939-1975). Barcelona:
Destino, 2002; VILA-SANJUÁN, Sergio. Pasando página: autores y editores
en la España democrática. Barcelona: Destino, 2003.
[ 175 ]
lização do setor provocaram redistribuições variáveis nos
intercâmbios econômicos e culturais, dando lugar ao apare-
cimento de uma dimensão mais estritamente comercial ou
mercantil da tarefa editorial, como em seu momento detec-
tou Carlos Barral:
Não saberia explicar como começou esse fenômeno, esse proces-
so de descaramento da profissão entre as pessoas das letras que
foi contagiando-se aos letraheridos. De repente, todas as con-
versações derivavam a assuntos relacionados com o êxito e o di-
nheiro. Sem nenhum pudor por parte de seus praticantes e dos
aspirantes. A literatura era uma questão de mercado e se falava
dela nos termos que até então haviam sido privativos da infra-
literatura e da escritura de consumo. Por fim, os escritores eram
produtores, mas no pior sentido da palavra... Os novos escrito-
res aspiravam triunfar e não escrever... Começava a falar-se de
triunfadores inclusive nas carreiras do espírito (Barral, 1988).
[ 176 ]
depósito. Independentemente do que ocorra com os livros
eletrônicos, como meio emergente e significativo para os au-
tores, editores e leitores, a revolução digital transformou o
negócio editorial de uma forma profunda e irreversível.18
Segue, porém, mantendo-se uma forte repetição com re-
lação a sua função. Uma função que, como observamos, foi se
depurando ao longo do tempo, e admite matizes e diferenças,
segundo o contexto e a posição de “campo” que se ocupe, mas
que, no essencial, foi e será sempre igual. A função do editor
é a de garantir a qualidade dos textos que publica, desde o
ponto de vista formal e conceitual, e proporcionar-lhes visi-
bilidade através de sua inserção num circuito adequado e de
acordo com a natureza dos textos em questão. E esta função,
que implica o domínio de uma grande quantidade de sub-
competências, estará sempre presente independentemente
do entorno tecnológico, cultural ou social onde se desempe-
nhe o cometido editorial.
Já em 1920, Unwin (1961), em um dos primeiros es-
critos sobre edição realizados com vocação didática, havia
tentado sistematizar os principais atributos do oficio que, se-
gundo este autor, eram:
18
Existem inúmeros artigos e publicações em geral que analisam o fenômeno.
Alguns dos mais significativos: APPLETON, L. Using electronic textbooks:
promoting, placing and embedding. The Electronic Library, n. 23, p. 54-63,
2005; COX, J.; J. Scholarly publishing practices: a case of plus ça change,
plus c’est la même chose? Learned Publishing, n. 19, p. 273-276, 2006;
GOLDSWORTHY, S. Oxford scholarship online. Learned Publishing, nº 19,
2006, pp.175-181; HERTHER, N. The e-book industry today: a bumpy road
becomes an evolutionary path to market maturity. The Electronic Library,
n. 23, p. 45-53, 2005; International Digital Publishing Forum. Ebook user
survey. http://www.idpf.org/doc_library/surveys/IDPF_eBook_User_Survey_
2006.pdf; MORGAN, R. The online reading list project using Talis List at
the University of Glamorgan. Program - Electronic Library and Information
Systems, n. 41, p. 262-275, 2006; NICHOLAS, D.; JAMALI, H. R.; ROW-
LANDS, I. On the tips of their tongues: authors and their views on scholarly
publishing. Learned Publishing, n. 19, p. 193-203, 2006.
[ 177 ]
1 Conhecimento da literatura do gênero ao qual se de-
dica;
2 Critério, senso comum, olfato para selecionar os ma-
nuscritos a publicar e a determinação do número de
exemplares a imprimir;
3 Conhecimentos técnicos (sobre papel, imprensa, en-
cadernação);
4 Bom gosto.
Mais recentemente, Javier Pradera (1990) havia esti-
pulado que as competências que um bom editor tem que pos-
suir seriam:
1 Conhecimento da demanda atual e futura da socieda-
de;
2 Posse de imaginação e inventiva para encontrar o
ponto intermediário entre a oferta e a demanda;
3 Capacidade empresarial para organizar e canalizar a
vocação;
4 Conhecimento dos mecanismos que façam a empresa
viável;
5 Capacidade para organizar o conhecimento que se
quer transmitir;
6 Posse de um projeto cultural;
7 Organização de um catálogo coerente e associação a
uma imagem de marca;
8 Aposta a curto, médio e longo prazo pela produção
editorial.
Poderiam ser multiplicadas as definições e sistematiza-
ções que os editores fizeram de sua tarefa, basta ler algumas
das biografias, memórias ou reflexões que se publicaram
nesses últimos anos, como as de Einaudi (1994), Muchnik
(1999) Unseld (2000), Betriu (2005) ou Tusquets (2005).
Sempre se encontrarão, contudo, propostas parecidas e
convicções similares como resposta ao desafio permanente
[ 178 ]
da função editorial: a incerteza de uma demanda de difícil
gestão, que é sempre posterior a uma oferta sempre nova.
Pode haver edição sem editores, mas sempre que, subjacen-
te, tenha presença a função editorial, independentemente de
quem acabe assumindo-a.
Tradução
Professora Tania Keller
Referências
ABIADA, José Manuel López de; RIVERO, José Peñate (Ed.). Exito
de ventas y calidad literaria: incursiones en las teorías y prácticas del
best-sellers. Madrid: Verbum, 1997.
_______. Entre el ocio y el negocio. Industria editorial y literatura en la
España de los 90. Madrid: Verbum, 2001.
BARBIER, Frédéric. La librairie allemande comme modèle? In: MI-
CHON, Jaccques; MOLLIER, Jean-Ives. Les mutations du libre te de
l’édition dans le monde: du XVIII síecle á l’an 2000. Québec: Presses
de l’Université Laval, 2002.
BARRAL, Carlos. Cuando las horas veloces. Barcelona: Tusquets,
1988.
BENET, Juan. Páginas ímpares. Barcelona: Alfaguara, 1996.
BETRIU, Rafael Borrás. La guerra de los planetas: memorias de un
editor. Barcelona: BSA, 2005.
BLOOM, Harold. El canon occidental. Barcelona: Anagrama, 2005.
BOTHOREL, Jean. Bernard Grasset. vie et passions d’un éditeur. Pa-
ris: Bernad Grasset, 1989.
BOTREL, Jean François. Les librairies français en Espagne (1840-
1920). In: Histoire du libre et de l’edition dans les pays ibériques. Bor-
deaux: PUB, 1986.
BOURDIEU, Pierre. Las reglas del arte. Barcelona: Anagrama, 2001.
CALVINO, Italo. Por qué leer a los clásicos. Barcelona: Tusquets, 1995.
CANCLINI, Nestor Garcia. Las industrias culturales y el desarrollo
de los países americanos. Disponível em: www.oas.org/udse/espanol/
documentos/1hub2.doc
[ 179 ]
CHARTIER, Roger. Las revoluciones de la cultura escrita. Barcelona:
Gedisa, 2000.
EINAUDI, Giulio. Conversaciones con Severino Cesari. Madrid: Anaya
y Mario Muchnick, 1994.
FADIMAN, Anne. Ex-libris: confesiones de una lectora. Barcelona:
Alba, 2000.
FERRERAS, Juan Ignacio. Fundamentos de sociología de la literatu-
ra. Madrid: Cátedra, 1980.
HEINICH, Nathalie. L’epreuve de la grandeur: prix littéraires et re-
connaissance. Paris: La Découverte, 1999.
GARCÍA, José Antonio Cordón. La información biográfica: sobre la
memoria y sus representaciones. Boletín de la Asociación Nacional
de Archiveros, Bibliotecarios, Museólogos y Documentalistas, n. 1,
p. 103-127, Enero-Marzo 1997.
_______. La edición científico-técnica: balance y perspectivas. In: LAN-
CASTER, W.; PINTO MOLINA, María (Ed.). El procesamiento de la
información científica. Madrid: Arco, 2001.
LOPES, C. Neves. Les relations editoriales entre le Brésil et le Portu-
gal: la place du libre et de l’édition dans le processus de la colonisation
et de la décolonisation culturelles, 1889-1989. Paris: Université, 1998.
LOUÉ, Thomas. Le Congrès international des éditeurs, 1896-1938:
autour d’une forme de sociabilité professionelle internationale. In:
MICHON, Jaccques; MOLLIER, Jean-Ives. Les mutations du libre te
de l’édition dans le monde: du XVIII síecle á l’an 2000. Québec: Pres-
ses de l’Université Laval, 2002.
MARTÍN, Jesús A. Martínez. La edición artesanal y la construcción
del mercado. In: MARTÍN, Jesús A. Martínez (Ed.). Historia de la
Edición en España: 1836-1936. Madrid: Marcial Pons, 2001.
_______. Las ediciones de Delgado en el siglo XIX: actividad editorial e
inventario de obras. Pliegos de Bibliofilia, n. 8, 1999.
MOLLIER, Jean-Ives. La construction du système editorial fran-
çais et son expansion dans le monde du XVIII au XX siècle. In: MI-
CHON, Jacques; MOLLIER, Jean-Ives. Les mutations du lívre et de
l’edition dans le monde: du XVIII síècle à l’an 2000. Quebec: Presses
de l’Université Laval, 2002. p. 47-72.
MUCHNIK, Mario. Lo peor no son los autores: autobiografía editorial
(1966-1997). Barcelona: Taller de Mario Muchnick, 1999.
ORIA, María Bretones; GARCÍA, Mª Jesús Fernández; CAJADE, José
Flores. Los weblog literarios. Trabajo de investigación dirigido por
José Antonio Cordón García. Salamanca: Universidad, 2008.
[ 180 ]
PENNAC, Daniel. La pequeña vendedora de prosa. Barcelona: Tha-
salia, 1997.
PRADERA, Javier. Apagones en la Galaxia Gutenberg. Claves de Ra-
zón Práctica, n. 8, p. 75-80, 1990.
RAVEN, James. British publishing and bookselling: constraints and
developments. In: MICHON, Jaccques; MOLLIER, Jean-Ives. Les
mutations du libre te de l’édition dans le monde: du XVIII síecle á l’an
2000. Québec: Presses de l’Université Laval, 2002.
ROUET, François. Economie et culture: actes de la Conférence inter-
nationel d’Avignon sur les Industries Culturelles, Mai 1986. París: La
Documentation Française, 1989. v. III.
_______. Le Livre: mutations d’une industrie culturelle. París: La Do-
cumentation Française, 1992.
SHIFFRIN, André. La edición sin editores. Barcelona: Anagrama,
2001.
TUSQUETS, Esther. Confesiones de una editora un poco mentirosa.
Barcelona: R que R, 2005.
UNSELD, Siegfried. El autor y su editor. Madrid: Taurus, 1985.
_______. Goethe y sus editores. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2000.
UNWIN, Stanley. La verdad acerca de un editor. Madrid: Aguilar,
1961.
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby y compañía. Barcelona: Anagrama,
2008.
ZALLO, Ramón. El mercado de la cultura: estructura económica y
política de la comunicación. Donostia: Garkoa, 1992.
[ 181 ]
A quarta era da ficção interativa1
Nick Montfort
1
Texto anteriormente publicado na revista Nada, v. 8, out. 2006, aqui publi-
cado e traduzido mediante autorização do autor.
O rei está mort e vc trá que te a cetez que nade de mau aontece!
Eu dissi aos guardas pra não dizer a ninguóm mas eu não penso
que ele irem ovir i qui sabe o qui ir acontcer agora – vc trá que
te a cetez que nenu dos mininistros tenta qualquir cosa doida ma
cas qualque cosa acontce a mim ou ao carlos então vou madar os
guardas matr vc e a sua mãe – é da sa responsiblidde!!
[ 183 ]
tacional baseada em texto, que é frequentemente desafiado-
ra e intrigante; é também uma forma de arte literária. De
certa maneira, os programas FI, por meio da simulação do
mundo, vão além de um dos seus antepassados mais esper-
tos, o Eliza/Doctor, o psicoterapeuta rogeriano simulado que
Joseph Weizebaum desenvolveu no MIT entre 1964-1966.
Esse sistema e os chatterbots2 que o seguiram podem diver-
tir e, algumas vezes, conversar de maneira incomum. Mas o
mundo simulado na FI significa que há mais para fazer do
que conversar: o sistema pode narrar o que aconteceu e pode
representar os efeitos dos comandos dados pela pessoa ou
“jogador interativo”.3
A ficção interativa, ao permitir que se tome parte nes-
sas conversas estranhas, pode fornecer experiências trans-
formadoras que podem auxiliar os leitores a compreenderem
o mundo a partir de novas perspectivas. É difícil explicar as
qualidades literárias e de reflexão da FI sem ligar o compu-
tador e começar uma dessas conversas, do mesmo modo que
há cem anos seria difícil explicar um filme sem mostrá-lo. O
cinema foi, inicialmente, menosprezado como uma novidade,
como entretenimento e como não sendo apto para a expres-
são artística. Da mesma forma, a ficção interativa é frequen-
temente rejeitada tanto pelos que se interessam pelos jogos
de vídeo comerciais como por aqueles que se interessam pelo
trabalho literário. Do ponto de vista de um criador, jogador
ou crítico de jogos de vídeo, a ficção interativa é, às vezes,
considerada uma curiosidade histórica, faltando-lhe triste-
mente qualquer potencial comercial. Para muitos (mas, fe-
lizmente, não para todos), dentro da poesia e literatura con-
temporâneas, a FI é, ironicamente, apenas um jogo. Apesar
2
Programa que simula conversas, semelhante ao Eliza/Doctor.
3
O autor utiliza o termo interactor, que também poderia ser traduzido como
interagente.
[ 184 ]
disso, por estranho que pareça, novos trabalhos brilhantes
continuam a ser escritos, programados e publicados por au-
tores de FI: a ficção interativa é escrita em todos os países,
sendo frequentemente desafiadora e provocadora para seus
leitores, e, do mesmo modo, a investigação em sistemas ino-
vadores de desenvolvimento de ficção interativa continua
progredindo.
[ 185 ]
linguagem Basic.4 Essas pessoas geralmente elaboravam jo-
gos em quadriculados cartesianos, mas o primeiro jogo de
navegação numa cave, o Hunt the Wumpus, de Gregory Yob,
quebrou esse padrão, sendo representado num dodecaedro.
Embora muito mais simples do que o Adventure e não per-
mitindo nada parecido com uma conversa, o jogo não apenas
se passava numa caverna – encorajou também a construção
de mapas que os jogadores iriam mais tarde utilizar para en-
contrar o caminho no Adventure e em outros trabalhos de FI.
Houve também alguma investigação oficial que explo-
rou a relação entre uma conversa em linguagem natural e
um modelo do mundo. O SHRDLU de Terry Winograd, de
1972, era um sistema de blocos simulados que podiam ser
manipulados através de um robô simulado, demonstrando
como se poderia desenvolver um diálogo em linguagem na-
tural sobre um domínio restrito. Não era uma aventura ex-
citante, mas revelou como uma pessoa e um computador po-
deriam falar de modo competente sobre um mundo restrito
particular. No início dos anos 1970, também foi feita uma va-
riedade de trabalhos em poesia computacional e de produção
de texto divertido. Os criadores do Adventure não escavaram
sua caverna colossal completamente do nada; pelo contrário,
combinaram vários aspectos de sistemas anteriores, definin-
do uma forma duradoura de um jogo eletrônico e de uma
literatura eletrônica.
Will Crowther, programador da BBN, foi quem desen-
volveu a primeira versão de Adventure, provavelmente em
1975. A essa altura, ele estava ajudando a desenvolver al-
gumas partes do Arpanet, o precursor da internet na Bolt,
Beranek & Newman em Cambridge, Massachusetts. Ele era
4
Linguagem Basic (Beginner’s All-purpose Symbolic Instruction Code), cria-
da para facilitar a programação de computadores, muito popular na década
de 1980.
[ 186 ]
um explorador de cavernas e tinha recentemente jogado um
novo jogo, chamado Dungeons and Dragons. Crowther deci-
diu escrever o código de um jogo para suas duas filhas, si-
mulando, num texto, uma caverna real que ele havia explo-
rado. Para tanto, utilizou uma estrutura interativa que se
assemelha à forma como um jogador fala com o game master,5
no Dungeons and Dragons. No entanto, a primeira versão
mais famosa do Adventure não foi esse original, mas uma
versão que Don Woods – que fazia trabalhos independentes
por todo o país – corrigiu e expandiu. Essa versão foi lançada
em 1976, completada com puzzles e elementos de fantasia, e
foi um sucesso instantâneo – o trabalho na indústria de com-
putadores parava enquanto as pessoas que tinham acesso a
um computador tentavam resolver o Adventure.
Algumas pessoas conseguiam perder ainda mais tempo
escrevendo as suas próprias versões, expandidas, modifica-
das ou reimaginadas do Adventure. Começava a era main-
frame6 da ficção interativa, à medida que outros utilizado-
res de sistemas de time-sharing7 construíam suas próprias
“aventuras”, ou “jogos de aventuras”. Um jogo de casa mal-
assombrada, chamado Haunt, foi desenvolvido na Universi-
dade de Carnegie Mellon. O primeiro jogo criado fora dos Es-
tados Unidos foi o Achton, desenvolvido no sistema Phoenix,
na Universidade de Cambridge – que hospedou uma longa
série de outras aventuras. De volta a Cambridge, Massachu-
setts, no MIT, quatro colaboradores desenvolveram o Zork,
um rastejador de cavernas que tinha um espírito diferente
do Adventure e que incorporou muitas inovações tecnológi-
cas. O Zork incluía uma personagem memorável, um anta-
5
Literalmente, “mestre do jogo”, aquele que concebe o mundo virtual do jogo.
6
Computador com grande capacidade computacional, geralmente comparti-
lhado por vários usuários conectados através de terminais.
7
Compartilhamento de recursos ociosos do sistema, permitindo que vários
usuários executem processos simultaneamente.
[ 187 ]
gonista, “o ladrão”. Uma versão do Zork, conhecida como
Dungeon, foi a inspiração para o Multiple Users Dungeons
(MUD) e, através do MUD, para todos os tipos de aventuras
on-line a múltiplos jogadores simultâneos. Outra versão foi
a trilogia Zork para os computadores pessoais, que foi publi-
cada pela companhia Infocom, fundada pelos criadores do
Zork e por outros do MIT. Essa série acabou por ser o início
daquela que se tornaria a companhia mais importante de
ficção interativa nos Estados Unidos.
À medida que os computadores pessoais se tornavam
mais populares, a era comercial da ficção interativa tam-
bém decolava. A Infocom pode ter sido a maior companhia
de ficção interativa nos Estados Unidos, mas a primeira foi
a Adventure International, que iniciou ao publicar uma ver-
são em miniatura do Adventure. A Infocom ganhou fama por
seus jogos de alta qualidade, que eram bem testados e bem
escritos. A companhia também explorou numerosos gêneros
populares, afastando-se primeiro do mundo dos calabouços
(dungeons), em 1982, com Deadline, uma história de dete-
tives. A seguir, sucederam-se jogos de ficção científica de
diversos tipos (desde ficções científicas hard até novelas es-
paciais picantes e mesmo distopias políticas), uma aventura
arqueológica, um jogo de estilo de novela-romance, uma caça
ao tesouro numa mansão, um jogo baseado em jogos de pala-
vras, duas peças de ficção juvenis e muitas outras.
Os gêneros populares não foram a única coisa a ser to-
mada de assalto pela ficção interativa. Em 1980, tornou-se
moda adaptar livros populares. A Infocom conseguiu fazer
com que Douglas Adams colaborasse com um criador ex-
periente de ficção interativa para desenvolver um Guia do
Mochileiro das Galáxias interativo. Outra ficção interativa
famosa também baseada num livro foi o Hobbit, da compa-
nhia australiana Melbourne House. O Hobbit era uma aven-
[ 188 ]
tura gráfica, mas, como muitas aventuras gráficas, perten-
cia à tradição das aventuras textuais, oferecendo uma troca
conversacional que ia além das imagens de cada localização.
Durante os anos 1980, alguns autores-em-papel, já estabe-
lecidos, trabalharam em conjunto com programadores para
desenvolver ficção interativa original. Entre eles estava Ro-
bert Pinsky, cujo Mindwheel seria desenvolvido na Synapse
e publicado pela Broderbund em 1984, e Thomas M. Disch,
cujo Amnesia seria desenvolvido com a Cognetics Corpora-
tion e publicada pela Electronics Arts, em 1986.
Outras companhias dos Estados Unidos, assim como de
outros países falantes de inglês e de outras partes do mundo,
auxiliaram a levar a ficção interativa a outras direções. Na
Inglaterra, existiram muitos criadores de ficção interativa
com gráficos. A Level criou inúmeros títulos de qualidade;
por sua vez, a Magnetic Scrolls entrou no jogo mais tarde
com ficção interativa inovadora e de qualidade. Na Espa-
nha, a Aventuras AD produziu jogos de aventuras para o
Spectrum. Apesar de existirem companhias FI em muitos
mercados nacionais, as diferenças nas plataformas e as bar-
reiras à distribuição internacional de software limitaram a
circulação da ficção interativa através das fronteiras nacio-
nais, mesmo quando a linguagem não era um empecilho.
No final da década de 1980, quando os screenshots in
boxes venderam jogos e a interação computacional estava se
tornando mais gráfica, o mercado para a ficção interativa
começou a evaporar. A ficção interativa deixou de estar no
topo das tabelas do software de entretenimento e deixou de
ser o motor das principais companhias de jogos, mas existia
ainda uma corrente de interesse no formato. No início da
década de 1990, alguns desenvolvimentos interessantes de-
ram indícios de que a ficção interativa iria migrar ao invés
de se extinguir. Por um lado, disponibilizaram-se poderosos
[ 189 ]
sistemas para criar ficção interativa: primeiro o TADS, de-
pois o Inform, que permitiriam a qualquer pessoa criar jogos
no mesmo formato da Infocom. Embora já existissem kits do
tipo “faça-você-mesmo” de ficção interativa desde há muito
tempo, a sofisticação desses novos sistemas tornou possível
criar algo que tivesse a escala e o nível de complexidade de
uma peça comercial. Além disso, o público já tinha consegui-
do acesso a um novo canal, que permitia a cada um distri-
buir ficção interativa internacionalmente, essencialmente
sem custos para o jogador ou autor – a internet. Apareceram
várias outras instituições para apoiar a ficção interativa no
seu novo contexto: grupos de discussão; a Competição Anual
de Ficção Interativa, entrando agora no seu décimo segundo
ano; e o arquivo FI, um repositório para a FI e para as suas
ferramentas de desenvolvimento.
Assim, enquanto o desaparecimento das aventuras
textuais comerciais das prateleiras entristeceu muitos fãs –
sem mencionar os autores que foram contratados para criar
ficção interativa –, essas conversas curiosas continuaram a
ser desenvolvidas por hackers e escritores, tal como já havia
acontecido antes do advento dos computadores domésticos. A
era independente forneceu muitas experiências interessan-
tes e inovações poderosas – peças de ficção interativa que
seriam demasiado interessantes e incomuns para ficarem
sob o rótulo da Infocom. É possível catalogar algumas des-
sas inovações recentes, mas também será interessante focar
numa delas.
[ 190 ]
desvendar os mecanismos secretos do mundo simulado de
Shiovitz. Mas, enquanto Bad Machine foi lançado gratuita-
mente e ainda está disponível gratuitamente no arquivo FI,
poucos fora dessa comunidade – mesmo os interessados em
codework, camadas de significação, utilização de bases de
dados na arte digital, e na complexidade da interface e dos
sistemas subjacentes – tinham sido alertados para ele até
que foi publicado em Poems that go, no outono de 2003, ao
ser executado pelo próprio interpretador Jetty de Shiovitz.
Mesmo então, muitos se afastaram dessa obra ao se aperce-
berem que não é “clicável” nem instantaneamente compre-
ensível.
Williams Carlos Williams descreveu um poema como
uma “pequena (ou grande) máquina de palavras”. Bad Ma-
chine é um grande poema/máquina, um programa de compu-
tador que aceita linguagem e fornece linguagem em resposta.
Como um enigma literário, é literário e pode ser soluciona-
do (tais poemas, em inglês, levaram as pessoas a lê-los e a
resolvê-los simultaneamente desde o anglo-saxônico Exeter
Book. Foram ainda mais proeminentes em outras tradições
literárias). Bad Machine é diferente na aparência e em vá-
rios outros aspectos em relação ao estereótipo da ficção in-
terativa que se baseia nas famosas primeiras explorações
das cavernas: Adventure e Zork. Mesmo assim, é um mundo
simulado, que é descrito em texto e que é afetado por um
conjunto de comandos, com significado que o jogador envia
pelo teclado. Ex.: “ÍNDICE SALVADOR”, “VÁ PARA NOR-
TE”, “TRANSMITE 11000011 PARA O MONITOR”.
Bad Machine começa apenas com um “?”, com o cursor
piscando, perguntando “O que você quer fazer?” e refletindo
a surpresa do leitor – mesmo aquele experiente em ficção
interativa espera algum prólogo, alguma descrição do que
[ 191 ]
está acontecendo. Como o “?” não é o prompt8 “>” que se espe-
rava, ele assinala que a experiência será substancialmente
incomum. Na verdade, depois de começar de um modo ainda
menos inteligível, Bad Machine fornece este tipo de texto:
8
Caracteres na tela de um computador, indicando que o usuário pode escrever
um texto ou dar novo comando.
[ 192 ]
zangão,9 será levado para ser reparado. O resultado é equi-
valente à morte: o movimentador é reintegrado nos meca-
nismos do Armazém e não mais poderá ser comandado para
explorar e compreender o lugar. Depois de o jogador ter visto
o movimentador tornar-se uma máquina boa, a natureza do
erro inicial torna-se mais clara: o vírus que supostamente
afeta o movimentador é a consciência individual.
Bad Machine foi, possivelmente, influenciado por dois
trabalhos de ficção interativa de Michael Berlyn, Cyborg e
Suspended, mas Shiovitz também cita (com ligações a partir
da sua página web crítica dedicada ao projeto) The Digital
Landfill, meta.am, jodi.org, e o grupo Omnicircus de teatro
robótico de Frank Garvey. Embora no início Bad Machine
pareça resistir a uma leitura, ensina o jogador persistente a
ler de uma maneira nova – não a dar uma olhada superficial
na superfície e apreciar o jogo de símbolos; não a ver uma
confusão de códigos que comunicam apenas através da esté-
tica visual, mas a ler e a compreender a descrição inovadora
do mundo FI e a avançar para a compreensão da sua nature-
za sistemática. Para conseguir isso de maneira progressiva,
é necessário investigar o mundo, manipulando-o. Do mesmo
modo que nós progredimos nas nossas tentativas de solucio-
nar um enigma literário, testando-as contra cada figura e
adjetivo, o jogador tem de lançar comandos para estimular
o mundo e ver o que acontece. Para fazê-lo, são necessários
comandos e pensamentos apropriados a um movimentador,
em vez de um rastejador de cavernas; uma nova escrita tem
de ser feita para desenvolver a compreensão do mundo FI.
O Armazém é o reflexo da natureza do mundo numa
sociedade pós-industrial, em que os ambientes do dia a dia
dos operários fabris e dos profissionais da tecnologia da in-
9
Traduzido de drone, que se refere a uma aeronave não pilotada, comandada
por controle remoto.
[ 193 ]
formação parecem automáticos e sem significado. O mundo
FI apoia-se na natureza da individualidade, oferecendo um
mito alternativo da origem da consciência, que pode ter sur-
gido como um defeito num sistema coletivo. Algumas das
conclusões a que o jogador pode chegar num esforço con-
certado – existem várias bem-sucedidas – acabam fazendo
aparecer mais questões confusas do que aquelas às quais
dão resposta – tal como acontece num enigma. Isso só pode
ser conseguido porque o jogador, tal como quem soluciona
um enigma literário, compreendeu profundamente o funcio-
namento desse mundo atípico. Na Riddle of Creation, Ruth
Wehlau descreveu o criador de enigmas Anglo-saxônico como
alguém que transforma objetos conhecidos em algo comple-
tamente novo, rearranjando as partes das peças das coisas
de modo a produzir criaturas com combinações estranhas de
braços, pernas, olhos e bocas. Nesse mundo transformado,
um espelho distorcido do mundo real, o construtor de enig-
mas controla, mas o leitor tem a capacidade de quebrar o
código e resolver o mistério.
Em Bad Machine, Shiovitz oferece exatamente esse
tipo de cosmos engenhosamente criado, esse tipo de código
decifrável. O enigma oferecido nessa peça, deslumbrante, in-
trincado, altamente relevante, torna-a um bom ponto de par-
tida para os interessados na poesia digital e no modo como
a linguagem e o código podem colidir, e mostra um pouco do
potencial incomum da ficção interativa.
[ 195 ]
personagem principal nessa cidade atípica, num apartamen-
to escuro. Depois de lidar com as frustrações iniciais de res-
ponder ao pager, o jogador pode guiar essa personagem para
o exterior, para a cidade bastante ampliada que reflete a ex-
periência urbana de um trabalhador/consumidor ocidental.
O funcionamento da cidade é obscuro, já que acordos não re-
velados e subdivisões da companhia mantêm a personagem
à parte do que se passa. Mas o sistema da nTopia, dobrado
sobre si próprio, pode ser compreendido até certo ponto, e a
forma como é descrito através da escrita está pensada para
ser contemplada em termos do simulacro.
Há vários sistemas de desenvolvimento de ficção inte-
rativa que são capazes e gratuitos. O que utilizei para criar
Book and volume, e também as minhas peças mais recentes
Ad Verbum e Winchester Nightmare, é o Inform 6. Desde en-
tão, foi editado o Inform 7, com um upgrade considerável. O
Inform 6, bem como o seu sucessor, tal como outros sistemas
de desenvolvimento como o TADS e Hugo, disponibilizam
uma linguagem de programação capaz de uma computação
geral, mas está projetado especialmente para a ficção in-
terativa. Um objeto simulado tal como, por exemplo, uma
lâmpada é representado por um objeto no código. A persona-
gem controlada pelo jogador, também representada por um
objeto, torna-se o ascendente do objeto lâmpada quando a
personagem agarra a lâmpada. Alguns aspectos da percep-
ção são simulados juntamente com o funcionamento básico
do mundo físico. Por exemplo, uma fonte de luz tem de estar
presente para que se possa ver o que será o interior de um
quarto, escuro na sua ausência; se a fonte de luz estiver den-
tro de um recipiente fechado que não seja transparente, o
quarto não ficará iluminado.
Além de permitir a simulação do mundo, os sistemas de
desenvolvimento de ficção interativa fornecem mecanismos
[ 196 ]
para compreender o input. O tipo padrão de input com vista
a ser compreendido é, em inglês, um comando que começa
com um verbo e é seguido por zero ou dois substantivos, com
algumas preposições e, possivelmente, adjetivos. Isso sim-
plifica consideravelmente a tarefa da compreensão da lin-
guagem. Geralmente, supõe-se que os comandos referiram-
se a alguma coisa na área vizinha imediata, o que simplifica
ainda mais as coisas. Como resultado, foram necessários
poucos avanços substanciais em relação aos que foram feitos
no Zork para fazer um trabalho decente na compreensão de
comandos.
O subsistema que processa o input numa ficção inte-
rativa é chamado de “analisador sintático”, enquanto que
o que simula o espaço físico e as leis que governam o seu
comportamento é chamado de “modelo do mundo”. Muitas
das aplicações frequentemente discutidas da tecnologia da
inteligência artificial têm como alvo o modelo do mundo:
as personagens individuais que atuam com intencionalida-
de estão nessa categoria, tal como a gestão do drama, de
forma a orquestrar o comportamento das personagens em
geral. No entanto, as inovações não têm de estar limitadas
ao mundo simulado. No Book and volume, incorporei um
classificador perceptron,10 para distinguir os nomes próprios
típicos das personagens masculinas e femininas (uma tarefa
que é, de algum modo, um desafio para o inglês), de forma
a que o texto de output pudesse ser sutilmente ajustado ao
nome próprio da personagem principal. Embora seja apenas
um detalhe menor em toda a experiência de Book and vo-
lume, foi uma tentativa de integrar um método estatístico
10
Tipo de rede neural artificial inventado em 1957 que utiliza um modelo ma-
temático ou computacional para o processamento da informação. O percep-
tron pode se adaptar, aprendendo a reconhecer padrões utilizando um con-
junto de exemplos de treino.
[ 197 ]
de aprendizagem automática na estrutura “boa inteligência
artificial à moda antiga”, baseada em regras da ficção inte-
rativa.
[ 198 ]
No estudo das narrativas, que nos tempos modernos
se chama de “narratologia”, há uma diferença fundamental
entre o plano do conteúdo e o plano da expressão. Na histó-
ria que está para ser contada os eventos se sucedem numa
certa ordem cronológica, sendo ligados pela causalidade; os
discursos que narram essa estória podem variar de todas as
maneiras possíveis. Os eventos poderiam ser relacionados
fora da ordem cronológica; alguns poderiam ser represen-
tados demoradamente, outros completamente omitidos, e
o mesmo evento poderia até mesmo ser narrado múltiplas
vezes ser enfatizado. A distinção básica entre conteúdo e ex-
pressão é conhecida desde Aristóteles e nas últimas décadas
foi profundamente explorada por Seymour Chatman, Gérard
Genette, Gerald Prince, Mieke Bal e outros. Mas a ficção
interativa, bem-sucedida na simulação do plano do conteú-
do, não foi organizada para incorporar essa distinção. Como
o texto dispara à medida que os eventos se sucedem, é ex-
tremamente difícil narrar as coisas que aconteceram numa
ordem diferente. A estrutura básica da ficção interativa, na
qual se sucede aproximadamente um evento em cada vez
da conversa, significa que essa deficiência não causa muitos
problemas. Contudo, também impede simulações mais ricas,
nas quais muitas coisas podem acontecer em cada turno do
diálogo (e são narradas de uma forma interessante), a uti-
lização de flashbacks para eventos que ocorreram antes na
interação e a capacidade de narrar eventos de perspectivas
diferentes.
Ao modelar a narrativa de eventos de forma separa-
da, a ficção interativa poderá fazer o trabalho de simulação
mais facilmente – o que nos trouxe recentemente os desafios
dos jogos computacionais – e o trabalho de literatura – que
transformou os leitores e as suas relações com a linguagem
ao longo dos anos. Se a ficção interativa tivesse aspectos
[ 199 ]
literários, o desenvolvimento mais além da capacidade de
narrar poderia ser suficientemente significativo para ex-
pandir a era corrente em um nova era. A ficção interativa
poderia ser vista pelo establishment literário, o mundo da
arte, e pela academia como uma forma expressiva, provo-
cativa e tão legítima como uma pintura ou um poema. Pela
combinação do poder de cálculo e de simulação, juntamente
com a capacidade de narrar, para criar algo de estranho e
não familiar e para revelar as texturas e complexidades da
linguagem, o potencial da ficção interativa poderia ser mais
amplamente reconhecido, para ser mais do que um jogo que
vicia e mais do que software campeão de vendas. Isso pode-
ria permitir à ficção interativa ser o ponto em que a profun-
didade da tradição literária e o poder total da computação
poderiam se fundir.
Tradução
Professora Ricardo Moura Buchweitz
[ 200 ]
A solidão impossível:
a (hiper)literatura e o (hiper)leitor
Miguel Rettenmaier
Tania Rösing
O garoto que mergulha na internet porque o
mundo é hostil é tão natural quanto o garoto
do século 20 que vivia lendo Peter Pan, Rei-
nações de Narizinho, em cima de uma árvore,
para fugir do mundo real e duro lá embaixo.
Marcelo Carneiro Cunha,
escritor gaúcho
[ 202 ]
A tecnologia e o (hiper)leitor
A nova cognição, própria dos nativos à era da infor-
mática globalizada, possivelmente represente o elemento
mais desafiador no contexto da atualidade. E esse desafio
tem atrás de si um histórico de outros receios. O triunfo da
técnica e as inovações no campo das tecnologias, desde os
primeiros momentos da revolução industrial e da inserção
da máquina nas rotinas públicas e privadas, emergiram na
ordem das relações do homem com o mundo como uma ater-
rorizante ameaça. Temeu-se, até bem pouco tempo – como
se pode perceber em parte da literatura de ficção científica
distópica e da estética ciberpunk –, que o contínuo progresso
tecnológico, levado ao extremo descontrole, implicasse a su-
pressão absoluta dos valores humanitários.
Na ordem dos piores desígnios a máquina assumiria o
controle da vida, impondo aos homens a situação de servidão,
ou colaboraria para uma estrutura social na qual princípios
de solidariedade e de afeto seriam colocados na ordem dos
comportamentos inadequados. Admirável mundo novo, do
inglês Aldus Huxley, obra da década de 1930, 1984, do britâ-
nico George Orwell, publicado na década seguinte, e Fahre-
nheit 451, de Ray Bradbury, publicado na década de 1950,
podem ser vistas como a tríade distópica por excelência na
previsão de sociedades fechadas aos extremo, nas quais são
ilegítimos a sensibilidade, os sentimentos, a emoção e a re-
flexão. Em nome da reprodução de um sistema imposto a
priori, absolutamente controlador, cujo totalitarismo teria a
seu favor a força invencível do desenvolvimento tecnológi-
co, os mundos descritos nessas previsões se assemelhavam
em mais um ponto: a leitura de livros é impossibilitada por
decreto. Na mesma linha de previsão de um futuro negro,
ocasionada pela e na derrocada da humanidade, nos anos se-
[ 203 ]
guintes, a ficção científica elegeria o computador como pre-
tenso destruidor das conquistas do mundo antropocêntrico.
Willian Gibson, criador do termo “ciberespaço”, publica, em
1984, Neuromancer, no qual, de alguma forma, as demandas
de um poderoso ciberconstruto fazem da inteligência arti-
ficial na rede o lugar de uma neurose descontrolada, com
perigosíssimas implicações ao destino humano.
O mundo da atualidade, interligado pelo digital wireless
e pelo wi-fi, acrescido das possibilidades da nuvem virtual –
que fora antes, rede de computadores –, não parece assus-
tar tanto quanto um dia pareceram temíveis as máquinas
que pareciam “pensar” como os humanos. Na realidade, a
inteligência artificial parece estar ganhando mesmo um sta-
tus de “pensamento”, sem que se institua um estado de ca-
tástrofe, segundo o que afirma a pesquisadora de literatura
eletrônica Katherine Hayles: “Like humans, intelligent ma-
chines also have multiple layers of processes, from one and
zeros to sophisticated acts of reasoning and inference” (2008,
p. 55). E mais, a inteligência humana e os processos interio-
res da subjetividade estariam muito mais num processo de
conexão do que em litígio com a máquina. Na realidade, os
seres humanos e os computadores digitais seriam parceiros
em uma “heterarquia dinâmica”, ligados por um jogo de in-
termediação (Hayles, 2008, p. 47): “Diferences in complexity
notwithstanding, the human and computer are increasingly
bound together in complex physical, psychological, economic,
and social formations” (p. 47).
De alguma maneira, ou da maneira mais complexa (e
colaborativa) que possamos imaginar, os seres humanos
projetam os computadores, os quais reprojetam os seres
humanos, num contínuo processo de alimentação e retroa-
limentação. Daí acontecer o que parece que se confirma: os
seres humanos não criaram um fruto maldito, um replicante
[ 204 ]
agressivo ou Frankenstein invisível e onipresente. Tudo in-
dica que ambos, computadores e seres humanos, interagem
em intermediação ininterrupta, alterando-se, e – se tudo cor-
rer bem – melhorando-se entre si, no que pode ser compreen-
dido na seguinte analogia: da mesma maneira que o corpo da
mãe forma o feto, o feto reforma o corpo da mãe: “Both are
bound together in a dynamic heterarchy, the culmination of
which is the emergent complexity of a infant” (Hayles, 2008,
p. 45). E essa criança, se nascida nos últimos anos do sé-
culo XX, seria diferente – sob uma nova condição cognitiva e
uma nova nomenclatura ilustrativa, proposta por Wim Veen
e Ben Vrakking, o homo zappiens.
“Primeiros seres digitais”, nascidos no início da déca-
da de 1990, esses sujeitos “cresceram em um mundo onde
a informação e a comunicação estão disponíveis a quase to-
das as pessoas e podem ser usadas de maneira ativa” (Veen;
Vrakking, 2009, p. 29). Tais sujeitos aprenderiam muito cedo
que há muitas fontes de informação e que essas fontes po-
dem possuir verdades diferentes, as quais necessariamente
devem ser filtradas e reordenadas. Para esse jovem, não ha-
veria dados transparentes, referências incontestáveis, saber
legitimado. A informação, de onde viesse e como viesse, de-
veria ser pensada e adequada a objetivos. O homo zappines
não seria, assim, exclusivista no que diz respeito à forma e
ao canal pelos quais chega a informação. As linguagens não
verbais, para ele, teriam tanto valor como as sentenças ver-
bais, o que colaboraria também para sua capacidade de ma-
nipular excessos. O homo zappiens não restringiria o saber
ao escrito impresso e ao conceitual. De maneira muito mais
ampla, incorporaria às suas fontes e ao ser acervo pessoal
de leitura todo e qualquer enunciado, do verbal ao visual,
do impresso ao digital. Assim, sem a ambição de controlar o
todo, de classificar o absoluto, o novo leitor seria preocupado
[ 205 ]
mais com o percurso particularmente escolhido pela parti-
cularidade de sua experiência do que com a cartografia com-
pleta e definida de determinado território ou área do saber.
Dessa forma, pode-se dizer que a noção de área, per-
mutada pela noção de trilha, torna-se incompatível com a
liberdade (e o aparente caos) assegurada por um sujeito que
é uma espécie de antena aberta a várias fontes concomi-
tantes de inputs, que chegam por várias mídias, das mais
tradicionais, na tela dos computadores, às mais avançadas,
em smartphones ou iphones. A esse sujeito parece ser mais
válido modalizar a atenção no que lhe interessa; em outras
palavras, para ele parece ser melhor zappear, à medida que
aprendesse a reconhecer padrões de formatos e indicadores
de estrutura. Tal mudança de perspectiva, que colocaria o
sujeito no centro do próprio saber e das próprias escolhas,
fazem levam a que o jovem esteja “no centro do processo de
aprendizagem, decidindo quais perguntas e sequências de
questões serão definidas e respondidas. A consequência é
que o homo zappiens é um aprendiz ativo, que adota uma
abordagem não linear pela qual formula a sequência de
perguntas necessárias e eficientes à pesquisa que realiza”
(Veen; Vrakking, 2009, p. 68).
O jovem espécime homo zappiens seria um sujeito dota-
do de importantes habilidades colaborativas, as quais deman-
dariam liderança, planejamento e aptidões sociais. A vida do
novo humano seria majoritariamente social, orientada pelo
contato com o outro em organizações comunitárias circuns-
tanciais em conformidade com objetivos, desejos, gostos, etc.
O fundamento de tudo seria a descoberta pelos jovens, pos-
sivelmente por seu contato com os jogos eletrônicos, de que a
colaboração é a melhor maneira de resolver problemas e de
enfrentar (além de descobrir novos) desafios. A comunidade,
acrescida de importância, seria também reconfigurada pela
[ 206 ]
possibilidade da presença a distância e em tempo real. Para
o homo zappiens, tanto a vida real quanto a virtual seriam
componentes da existência, de sua existência. Pierre Lévy,
da mesma forma, vê na base da cibercultura a integração de
cada sujeito num imenso e indefinido hipercorpo:
Meu corpo pessoal é a atualização temporária de um enorme hi-
percorpo híbrido, social, tecnobiológico. O corpo contemporâneo
assemelha-se a uma chama. Freqüentemente é minúsculo, isola-
do, separado, quase imóvel. Mais tarde, corre para fora de si mes-
mo, intensificado pelos esportes e pelas drogas, funciona como um
satélite, lança algum braço virtual bem alto em direção ao céu, ao
longo de redes de interesse e de comunicação. Prende-se então ao
corpo público e arde com o mesmo ardor, brilha com a mesma luz
que outros corpos-chamas. Retorna em seguida, transformado, a
uma esfera quase privada, e assim sucessivamente, ora aqui, ora
em toda a parte, ora em si, ora misturado. Um dia, separa-se
completamente do hipercorpo e se extingue (1996, p. 33).
[ 207 ]
A tecnologia e os (hiperescritores)
Talvez um dos fenômenos textuais mais relevantes da
atualidade seja o blog e seu derivado mais atual, o micro-
blogging. O primeiro é, em essência, uma espécie de diário
eletrônico disposto em ordem cronológica, constantemente
atualizado e estabelecido, contrariamente aos antigos diá-
rios íntimos, na exposição incondicional. O blog não preten-
de, em hipótese alguma, segredar o que registra. Seu conte-
údo é público, seu manejo dispensa maiores conhecimentos
técnicos de informática e seu formato admite ou, ainda, pro-
move a “convivência de múltiplas semioses” (Komesu, 2004,
p. 11), por meio da coexistência combinada entre textos es-
critos, imagens, fotos, gráficos, desenhos, animações, sons,
músicas, efeitos. Já o micro-blogging tem no Twitter o servi-
ço mais popular.
Com uma feição mais dinâmica e uma textualidade
mais específica, condicionada às dimensões de enunciados
de 140 caracteres, o Twitter, no fundamento utilitário da
ferramenta, permite enviar e receber, em tempo real, entre
um usuário e seus contatos (os followers), tudo em torno de
quaisquer conteúdos, os quais variaram, inicialmente, no
histórico da ambiente, de uma pergunta padrão: what are
you doing?. As inter-relações humanas, entretanto, altera-
ram substancialmente o teor das mensagens, em posts ou
tweets de irrestritos conteúdos, que, de qualquer maneira e
sem qualquer compromisso com relação à questão original,
passaram a responder atualmente à pergunta what’s happe-
ning? Blog e micro-blogging tornaram-se espaços de expres-
são de grande popularidade na internet, embora o primeiro
já esteja na crise da meia-idade, cada vez mais precoce quan-
do se trata de ferramentas e serviços digitais. Isso, contudo,
não implica dizer que a obsolescência tornou ou tornará os
[ 208 ]
ambientes inadequados à escrita literária. Embora a estéti-
ca da criação verbal ainda tenha no velho livro seu espaço de
excelência, os serviços da web, dos mais “antigos” aos mais
recentes, apresentam-se como interessantes ambientes para
a escrita e a leitura literária.
No que se refere ao blog, os escritores blogueiros são
sujeitos que, como os leitores da atualidade, não ignoram as
combinações multimidiais, apelando, a seu desejo, a vários
códigos significantes. Entre os artistas dessa nova leva, a
escritora Índigo, ou Ana Cristina Araújo Ayer de Oliveira,
faz do blog – além dos seus livros (Saga animal, Caixinha de
madeira e Festa da mexerica) – um canal de constante ex-
pressão. Em 6 de maio de 2009, por exemplo, maravilha-se
sobre o caráter grandioso – e exigente – das pequenas coisas
num post intitulado “Observações sobre o comportamento
dos beija-flores”:
[ 209 ]
Figura 1 - Blog de Índigo. Disponível em: http://diariodaodalisca.zip.net
[ 210 ]
Figura 2 - Blog de Índigo. Disponível em: http://diariodaodalisca.zip.net
[ 212 ]
Blog é um bloco de anotações que a gente abre todo dia e escreve
as bobagens que viu, que está pensando, que descobriu e que acha
“importantíssimo” repartir com as pessoas. Um ponto de encontro,
uma esquina onde falo com centenas de pessoas sem ter ninguém
ao redor; o púlpito de onde faço meus sermões apaixonados; o tabla-
do onde represento monólogos para espectadores ausentes; o palan-
que onde profiro discursos e defendo idéias que doze horas depois
sou capaz de negar. Basicamente, isso aqui é um diário sim. Nada
contra os diários. Mas o que me deixou chateada na sua entrevista
(em meio a tantas coisas legais que você falou) foi a comparação com
diário de debutantes. Pô, Milton, eu nunca debutei!
(http://doidivana.wordpress.com/2009/02/14/diario-de-debutante/)
[ 213 ]
O debutante é que me chateou, entende? Aí é que eu acho que teve
uma pontinha de mordacidade da sua parte. Quer dizer que você nos
vê (eu, o Marcelino Freire, o Joca Reiners Terron, o Ronaldo Bressa-
ne, o Mário Bortolotto, o Michel Laub, o Fabrício Carpinejar, a Andréa
Del Fuego, a Índigo, o Antonio Prata, o Daniel Galera, o Daniel Peli-
zari, o Emílio Fraia, o Xico Sá, o Douglas Diegues, o Ademir Assun-
ção, o Cláudio Daniel, o Nelson de Oliveira, o Marcelo Rubens Paiva,
o Santiago Nazarian e tantos outros) como menininhas deitadas na
cama com as perninhas pra cima e o lápis na boca pensando com
quem dançaremos a valsa logo mais? Pô, sacanagem. Retire o adje-
tivo e eu te perdoo. Caso contrário, dá aqui o mindinho. Ou eu não
comprarei seu livro novo. De contos, veja você! – um gênero tão caro
às debutantes (http://doidivana.wordpress.com/2009/02/14/diario-de-
debutante/).
[ 214 ]
Carpinejar alterna em sua obra a profundidade dos
sentimentos diante das surpresas de algumas constatações
violentas da vida, entre elas o amor, da mesma forma como
não teme rir de tudo e fazer rir de todos, inclusive de si mes-
mo. Seus textos, na realidade, espelham pela linguagem as
surpresas da vida, o que talvez explique seu fazer criativo
e, segundo Luís Augusto Fischer, “sua disposição para tro-
cadilhos que desacomodam a nossa maneira de viver a lin-
guagem” (2002). No Twitter (www.twitter.com/carpinejar),1
seus posts também expressam a irônica propensão de tentar
compreender a vida pela via de aforismos, mesmo que neles
não se possa imaginar ou atingir uma verdade que se queira
realmente consistente (talvez como todo aforismo):
Fonte: http://twitter.com/CARPINEJAR
Figura 4 - Post de Carpinejar
O problema da bondade é que ela não consegue ficar calada. (20
jun. 7:31 PM)
1
Todos os tweets de Carpinejar serão retirados da página http://twitter.com/
CARPINEJAR, no dia e hora indicados no corpo do texto.
[ 215 ]
Na maior parte das vezes, a compreensão é apenas interesse. (19
jun. 12:03 PM)
A independência estraga a paixão. A paixão só funciona no cati-
veiro. (19 jun. 03:06PM)
Atenção absoluta me proíbe de ver. É a distração que enxerga.
(17 jun. 11:40 AM)
A infância é o orkut dos amigos imaginários. (19 jun. 9:04 AM)
O Twitter também se mantém como espaço colaborativo
de um fazer literário no qual os novos escritores garantem
possibilidades de expressão. É o caso dos autores que mo-
bilizam o coletivo “Sem ruído”, que se propõem a escrever
“(quase) um microconto por dia.”
Fonte: http://twitter.com/CARPINEJAR
Figura 5 - Post do “Sem ruído”
2
O Flickr, que também pode ser considerado um flog, é um site de hospeda-
gem e de compartilhamento de imagens fotográficas e de outros enunciados
visuais. No site, os usuários podem criar álbuns e entrar em contato com
outros usuários, de diferentes locais do mundo. www.flickr.com
[ 217 ]
pelo hipertexto digital – o próprio livro revela-se como mídia
e como código significante. Assim, saindo da natureza multi-
midial da tela, a literatura das novas gerações faz do próprio
códice um elemento semântico, um signo reconstituído.
É o caso da obra Passaporte, de Fernando Bonassi, a
qual semantiza a materialidade do livro à encadernação, ao
formato, às cores e ao tipo de papel de um passaporte. A obra
é uma espécie de livro de viagens que desconstrói a essência
do gênero. Uma gilete na capa do livro fornece sentidos pos-
síveis, intensificados, ao termo “viagem”, ao mesmo tempo
em que a própria estrutura da obra fragmenta o que poderia
ser um percurso definido. Na realidade, não há um percurso
definido, assim como não há uma realidade indiscutível a ser
reportada, nem “documento” algum absolutamente idôneo:
Mentindo sinceramente
Willian comprou um álbum cheio de fotografias no mercado de
pulgas de Münster. Pagou 120 marcos, mas até pagaria mais.
Aquilo era “um verdadeiro documento”. Depois começou a tentar
entender quem era quem: casou pares abraçados, matou velhos
que desapareciam no meio e fez das senhoras das últimas pági-
nas, aquelas meninas das primeiras. Agora mostra o álbum e diz
que são seus próprios antepassados. Para cada um inventa uma
história. Afinal, todos acabam inventando uma história e, dessa
forma, pelo menos Willian acredita estar mentindo sinceramen-
te. Münster – Alemanha – 1998 (Bonassi, 2001, p. 38).
[ 218 ]
ideia opressora, um limite à liberdade delirante de um via-
jante sem rumo; a veracidade deixa de ser verídica por ser
convenção adequada. Toda palavra mente, todo documento
é forjado em pequenos textos aleatoriamente “carimbados”,
junto a outros ícones, nas páginas do “livro”. E o impacto de
cada texto, verbal ou visual, lembra o choque de uma batida
seca de um fiscal da imigração desconfiado.
A natureza multimidial com a qual interage conflita,
dialoga com a literariedade verbal, obrigando a uma nova
acepção do que se pretende entender por leitura. É necessá-
ria uma articulação em constante interface entre os enun-
ciados verbais e visuais para também se repensar constan-
temente o que é literatura. É preciso conexão e contato; é
fundamental que se julguem os termos “leitura” e “literatu-
ra” como elementos que se constituem em e por práticas, as
quais estão em constante transformação. E tudo se transfor-
ma porque “leitura” e “literatura” são, já em si, termos em
ininterrupta modificação. Na mesma sorte, leitores e auto-
res são, pelo contato, pelo intercâmbio recíproco de posições,
pelas mútuas influências, sujeitos em formação.
[ 219 ]
que possa parecer nas práticas de vida, não há solidão em
nenhuma leitura, quanto mais se a leitura é literária.
Quem sobe na árvore para ler não foge do mundo, mas
busca comunicação, contato, como se estivesse num ponto
mais alto da paisagem para ver melhor, como se estivesse
numa melhor posição de recepção, quando, agora, essa ár-
vore se converte em antena wireless. Porque estamos vivos,
precisamos estar conectados com os outros. Assim, a solidão
impossível que nos integra ao hipercorpo, quando respalda-
da pela sensibilidade estética, reconfigura e aprofunda o ser
individual de cada um pelo exercício da alteridade. Se o uni-
verso digital permite a certos críticos a ideia de navegação
superficial, sem profundidade e rumo, talvez a integração
no corpo coletivo pelo entrechoque artístico de códigos, pela
reinvenção de gêneros tradicionais, hibridizados de múlti-
plas linguagens, tudo isso sirva ao mergulho em nossa pró-
pria alma, “ora em si, ora misturad[a]” (Lévy, 1996, p. 33).
Referências
BONASSI, Fernando. Passaporte. São Paulo: Cosac&Naify, 2001.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2003.
FERRARI, Bruno; GUIMARÃES, Camila. 27 pessoas que você precisa
conhecer. Época, São Paulo, 27 maio 2010.
HAYLES, Katherine. Electronic literature. New horizons for the lite-
rary. University of Notre Dame, 2008.
HUXLEY, Aldus. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2003.
KOMESU, Fabiana Cristina. Blogs e as práticas de escrita sobre si na
internet. In: MARCHUSCHI, Luiz Antônio; XAVIER, Antônio Carlos.
Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996.
ORWELL, George. 1984. 8. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1975.
URBIM, Emiliano; OLIVEIRA, Jorge; FERNANDES; Simon. Solidão
impossível. Superinteressante, São Paulo, ano 23, ed. 265, p. 61-63,
maio 2009.
[ 220 ]
VEEN, Win; VRAKKING, Bem. Homo zappiens. Educando na era di-
gital. Porto Alegre: Artmed, 2009.
http://doidivana.wordpress.com
http://diariodaodalisca.zip.net
http://twitter.com/semruido
www.flickr.com/semruido
[ 221 ]
A ficção em hipertexto
Sérgio Capparelli
[ 223 ]
específica são coisas amplamente reconhecidas em nossos
dias, juntamente com a verdade de que certos grupos sociais
foram injustamente excluídos deles” (Eagleton, 1997, p. 329),
ou reformulados os conceitos de alguns de seus elementos
tradicionais. Um dos teóricos literários mais conhecidos, E.
Foster, entende, por exemplo, que a história é “uma narrati-
va de acontecimentos dispostos em sua sequência no tempo
- o jantar depois do almoço; terça-feira depois de segunda:
decomposição da morte, e assim por diante” (Foster, 1969,
p. 21). Essa afirmação quanto à sequência temporal difi-
cilmente poderia se aplicar a certo tipo de romance, onde o
tempo se fragmenta, anda em ziguezague ou segue tendên-
cias do cinema, com avanços e recuos temporais das ações.
Para reforçar a peculiaridade do hipertexto e a possibi-
lidade de estarmos no limiar de um novo tipo de literatura,
os autores salientam a grande mudança por que passa a so-
ciedade, saindo do texto escrito para entrar no texto eletrô-
nico, no qual, conforme Negroponte, os átomos dos livros são
transformados em bites (1997). Elementos novos no estudo
da literatura já vinham sendo discutidos há mais tempo.
Gertrud Stein, por exemplo, mais de meio século atrás fazia
experiências para romper com linearidade; os anos 1960 e
1970 assistiram a uma polêmica sobre a morte do romance,
substituído pela literatura de não ficção, com Norman Mai-
ler, Truman Capote, Gay Talese, Tom Wolfe e outros (Hollo-
well, 1977).
Essa presumível morte do romance prenunciava as dis-
cussões acaloradas dos anos 1980 sobre a inevitabilidade de
se aplicar o conceito blurred genre, de Geertz, entre a histó-
ria e a ficção. Talvez essa polêmica se constitua numa das
mais vigorosas sobre o assunto desde que, há quase dois mil
anos, Aristóteles, em sua Póetica, indicou que a história é a
narrativa de fatos acontecidos e o drama, ou ficção, a nar-
[ 224 ]
rativa de fatos que poderiam ter acontecido. O certo é que,
sem o hipertexto, a ideia do romance já tinha se estilhaçado,
seja com o conceito de carnavalização ou de plurivocalidade
(ou multivocalidade), de Bakhtin, seja com a explosão dos
limites entre a história e a ficção com os pós-modernistas,
trazendo para a arena as ideias de intertextualidade. Não
foi certamente o hipertexto que provocou tantas mudanças.
A verdade é que nas décadas de 1980 e 1990 ressurgiu
a metáfora do labirinto, imagem explicativa do hipertexto ou
da hipermídia (Machado, 1997), mas, então, já se tratava de
uma metáfora migrante: “O que há de novo, se pudermos di-
zer que se trata de algo novo, é que hoje o labirinto se move
da área da imaginação e da especulação literária para esta
que é estritamente política e social, um símbolo da impossi-
bilidade de se decifrar o mundo, por um lado, e, por outro, a
lógica que podemos usar para penetrar nele.” Ao citar Lucia-
no Violent, Baudino avança um pouco mais na ideia de labi-
rinto: “Uma metáfora para a estratégia de como confrontar
o novo Minotauro cheio de violência, cinismo, racismo, dis-
criminação, em outras palavras, você pode dizer tudo sobre
labirinto, mas nunca terá dito tudo (Baudino, p. 15).
A partir da metáfora do labirinto, este trabalho visa re-
fletir sobre alguns aspectos do que se conhece como “narrati-
va de ficção em hipertexto”, ou seja, aquelas obras de ficção
escritas na forma de hipertexto, que são disponibilizadas
pela www – World Wide Web, a parte da internet que permi-
te a publicação de documentos em hipermídia, isto é, infor-
mação de vários tipos diferentes, como texto, sons e imagens,
e que possuem, devido ao meio pelo qual são veiculados, ou
seja, o computador, ligado em rede (à internet), algumas ca-
racterísticas próprias e definidoras de suas diferenças para
com o texto impresso. Esses elementos estão introduzindo
[ 225 ]
novas relações entre obra, autor e leitor, e, assim, transfor-
mam radicalmente a comunicação.
Mesmo que as análises do hipertexto assim disponibi-
lizado venham acompanhadas dessa metáfora, não se tem
aqui a pretensão de mostrar as pertinências ou impertinên-
cias do labirinto como processo ou produto para explicar a
política, a cultura, novas tecnologias ou voltar aos enigmas
de Teseu e do Minotauro. Pretendemos apenas refletir sobre
uma prática cultural da internet, chamada hiperficção ou ci-
berliteratura. Pretendemos mostrar que o labirinto, enquan-
to metáfora explicativa, não é um procedimento original; em
segundo lugar, é discutível a aplicação na análise da ficção
hipertextual, de elementos tradicionais como ficção, leitura
sequencial, tempo, espaço, enredo, autoria e interatividade.
Sendo um estudo exploratório entre dois modelos, o do
impresso e o virtual, utilizaremos a imagem do labirinto jus-
tamente para que conceitos próprios do modelo de expressão
através do impresso não pareçam fora de lugar, quando apli-
cados a esse novo meio de expressão. Para tornar nossa tare-
fa mais compreensível, num território ainda pouco surfado,
nos deteremos em algumas entradas da hiperficção A dama
de espada(s), de Marcos Palácios, como trampolim virtual
para o mergulho exploratório.
[ 226 ]
pela história, porque a autoria da hiperficção é quase sem-
pre coletiva. Seu espaço pode abranger milhões de páginas
da www, e, conforme a entrada que o leitor fizer, o enredo
de seu livro será diferente. Repentinamente, o leitor poderá
descobrir-se como um dos autores do livro.
Suponhamos que esse leitor, depois de algumas peri-
pécias num trem que deixou Belo Horizonte rumo a Vitória,
“virasse” a página, encontrando um mapa da cidade, sendo
que cada elemento desse mapa fosse um início para o livro
que se dispôs a ler. E ele, então, clicasse sobre o ícone de
um gato, na praça da cidade. Ele imediatamente se veria
num documento intitulado “Ela me disse que adorava ga-
tos”. Avançando na leitura de um texto quase intimista, o
leitor pode se distrair com a beleza da ilustração. E pode
ficar em dúvida. Sabe que, se clicar sobre a imagem, sign-
ficará um desvio, que o levará aparentemente para fora do
texto, numa página em inglês da web, chamada “Cat Yoga”.
Chegando a esse lugar, nova dúvida: voltar ao que parecia
ser o caminho original (mas existem caminhos originais?) ou
avançar na nova senda, até o caminho se bifurcar novamen-
te, pois o diálogo dos dois personagens na escrita acena com
duas perguntas. Na verdade, trata-se da bivia, de que fala
Peneope Doob ao tratar dos labirintos: “Vamos? – perguntei”
e “Para onde?”
Essas idas e vindas, esses saltos da ficção para a histó-
ria e da história para a ficção, tudo isso é uma renovação do
labirinto, de morte e renascimento, fascínio e medo. São sen-
sações opostas e, principalmente, essa aparência de um caos
dinâmico, capaz de se transformar mais uma vez, dependen-
do da perspectiva do observador. Alguém que subisse num
promontório e dele observasse esse labirinto enquanto es-
trutura ou artefato eletrônico – obra coletiva realizada atra-
vés de uma divisão de trabalho que marca cada vez mais as
[ 227 ]
indústrias culturais – descobriria que se trata de uma obra
racionalmente organizada, nada apresentando de caótico.
Um pouco como aqueles jardins labirínticos que apa-
recem em thrillers de cinema. Do alto, é um jardim onde
as plantas bem aparadas formam uma muralha verde,
impedindo que se veja o que está do outro lado. Para co-
nhecer, é preciso percorrer os corredores cuidadosamen-
te traçados pelo paisagista. O caminhante não sabe para
onde seus passos o levarão. Mas a responsabilidade pelo
caminho é dele. Os labirintos multicursivos, cheios de bi-
furcações, impõem essa responsabilidade ao indivíduo.
Poderíamos tornar ainda mais insípida – ou fascinante
– essa imagem do labirinto do hipertexto visto de fora, en-
quanto estrutura, enquanto artefato eletrônico, enquanto
forma objetiva. Porque vencer as bifurcações é de nossa res-
ponsabilidade; nossas decisões tomam a forma de leves pres-
sões sobre o mouse e a promessa que se descortina, ou que se
oculta, é de prazer ou de frustração.
Vamos voltar à A dama de espada(s): logo que se ul-
trapassa a entrada do site, chega-se ao lugar de partida,
propriamente dito, porque explicitamente este termo ali
pode ser encontrado. Talvez o autor, ciente de que o hi-
pertexto não tem início – pelo menos é o que dizem – re-
solvesse blefar. Um trem leva-nos para a frente, deixando
ao lado um texto belíssimo intitulado Fiat Lux, que o au-
tor tem o cuidado de datar como de 1992. Chega-se, então,
ao mapa, coleção de grids de largada: mais de trinta links.
A forma privilegiada da Dama é a rede. Apresenta-se como
uma estrutura não linear, na qual o link, quando aciona-
do, leva a um documento, que, por sua vez, tem ligação com
outros links, sendo que cada link pode ser bidirecional, ou,
como é o caso da Estação, no Mapa, que pode levar a cinco
ou mais opções diferentes.
[ 228 ]
Apesar de a estrutura de rede privilegiar múltiplos
links entre nós de informação, isto é, com referências cru-
zadas, a Dama é pobre nessa virtude. Há muitos poucos ca-
sos em que, como num labirinto multicursivo, o caminhante
descobre já ter estado naquele exato lugar. Palácios faz al-
guns cruzamentos, sim, sugerindo no percurso de uma das
entradas uma Peixaria ou um Hospital, já aparecidos noutro
percurso, mas o faz através da escrita, através de nós que se
passam por associação na cabeça do leitor, não nós explícitos,
frutos da eletrônica e da estrutura da rede. No hipertexto
de Palácios, as referências cruzadas só são possíveis voltan-
do ao mapa. Não se constitui, portanto, de forma perfeita, o
que Landow trata como uma pluralidade de conexões que in-
crementam as possíveis interações entre seus componentes
(Landow, 1995). A Dama vai até certo ponto, portanto, mas
até onde vai já consegue um feixe de prazeres de leitura
A estrutura do labirinto multicursivo adotada por Pa-
lácios comporta também diversos tipos de informação, por
se constituir numa forma dinâmica com a qual é contada a
história, o que se dá de diversos pontos de vista numa mes-
ma estrutura narrativa. Bolter (1991) fala em “geometria”
da ficção interativa ao analisar os modelos da sua estrutu-
ra. Segundo o autor, no meio eletrônico é possível narrar o
mesmo acontecimento de diferentes pontos de vista – o leitor
pode seguir para frente ou para trás em sua leitura, compa-
rando a versão do narrador uma após a outra. Em termos
de estrutura, apresentam-se níveis diferentes de discurso.
“Na organização eletrônica da ficção, o autor pode refratar
a realidade em séries de perspectivas sem destruir o ritmo
ou a compreensão do texto” (Bolter, 1991, p. 129 - tradução
nossa).
Se o observador a que nos referíamos utilizar um bi-
nóculo poderá enxergar detalhes do hipertexto, deixando
[ 229 ]
momentaneamente de lado seu aspecto macro, de conjunto.
Verá, por exemplo, que A dama de espada(s) apresenta links
em formas diferentes entre si para dar seguimento à histó-
ria. Eles podem estar na forma de palavras, sublinhadas ou
não, ou na forma de figuras ou fotos.
Ao mesmo tempo em que promove o deslocamento do
leitor pelos vários caminhos da sua narrativa ficcional, a par-
tir dos links propostos, Palácios oferece esse grande número
de páginas externas. Essa possibilidade faz o leitor transitar,
assim, entre a ficção e a realidade. Mas o que significa para
ele, leitor, abandonar as aventuras do viajante que saiu de
Belo Horizonte em relação a uma revista on-line, de Pôquer,
norte-americana, ou ao site da AmWay? Cabe a ele escolher
entre continuar a seguir o caminho da ficção – para isso, en-
contra-se o ícone do labirinto, presente a cada página aberta,
ou percorrer os caminhos da realidade, através das páginas
da www. Ocorre, dessa forma, um descentramento da ativi-
dade de leitura, o que faz com que os modelos tradicionais
e sedimentados de leitura sejam questionados. Essa outra
faceta da gama de possibilidades de análise da narrativa de
ficção em hipertexto não será desenvolvida neste trabalho
por motivos óbvios.
O espaço da narrativa também é posto em questão,
pelo mesmo motivo levantado anteriormente. Se, na nar-
rativa ficcional, temos um espaço que é dado pelo autor e
percorrido pelo leitor, ainda que percorrido conforme um
trajeto de leitura escolhido pelo próprio leitor, no caso da
hiperficção, uma vez que essa narrativa é invadida pelas
páginas disponibilizadas pela web, que correspondem a
documentos da realidade palpável e social que está a nos-
sa volta, esse espaço de leitura deverá ser ramificado em
direções diferentes. Quando opta por seguir os links dis-
ponibilizados pelas páginas da web, o leitor certamente
[ 230 ]
muda seu foco de atenção para o real, ou seja, a não ficção.
A presença das páginas da web no corpo da hiperficção, que
significam documentos externos ao texto, também permi-
tirá o surgimento de uma característica interessante nes-
se tipo de narrativa, qual seja, a multivocalidade. Mikhail
Bakhtin desenvolveu o conceito de polifonia no roman-
ce, ao sustentar que este é composto por uma combinação
de vozes que não se submetem a leis nem a hierarquias
(Bakhtin, 1990), uma pluralidade de elementos linguísticos
que se comunicam através de um relacionamento dialógico.
Entrando na esfera da hiperficção A dama de espada(s),
que é nosso objeto de estudo, podemos afirmar que o autor
utiliza-se da multivocalidade na sua narrativa. Isso porque,
permitindo o surgimento de páginas da web, permite que
outros autores tenham voz, ou seja, os autores que criaram
as páginas. Essas páginas da realidade são uma contribui-
ção que o autor vai buscar na internet para enriquecer sua
fantasia narrativa.
De tudo isso, podemos concluir a insuficiência dos con-
ceitos tradicionais de gêneros literários para classificar a hi-
perficção, ou a insuficiência do conceito de hiperficção para
caracterizar o que não é apenas ficção, pois o leitor descobre
que em A dama de espada(s) há narrativa ficcional, mas há
também banco de dados, revistas, jornais, memórias, dicio-
nários, enciclopédia, saber caseiro, ironias, pastiches, paró-
dias, intertextualidade, salada de gêneros à moda mineira,
tutu, receita de bacalhau, música, guaximins e rabadas.
[ 232 ]
quiseram não só acabar com o tempo, mas também com o
enredo, com os personagens, com a trama, com o espaço e
com a literatura. Num outro tempo e sob outras condições,
A dama de espada(s) também explode o relógio e a bússola.
Os fragmentos espalham-se pela rede. Alguns deles, como
objetos à deriva, são localizados pelo cursor. Bum! E A Dama
se abre, como mensagem perdida.
Com o trem, por exemplo, chega-se à Estação. De trem?
Aparentemente, sim. O texto tem o tom de memórias. Al-
guém se lembra da infância, quando saía, com o pai, a caçar
guaximins. Clica em guaximim. Link: verbete enciclopédico.
Os gêneros embaralham-se. Forse che si, forse che no. Pode
ser apenas o leitor tirando o dicionário da estante. Virtual,
por certo. Mas se ele prossegue, chega à Estação Gênesis. A
seção Próximos Eventos, com ícone de bússola, leva ao dia
28 de junho, num domingo, no Hotel Belém Hilton. Corredor
sem saída. Volta às opções anteriores. Hot Links conduzem
aos Arquivo X; à secção de Quadrinhos, da Editora Abril;
ao site de Metal Pesado, ao DC Comics. Onde está o tempo
de que falava Foster. Onde os personagens? Qual o enredo?
Quem são os autores? E os gêneros? Onde quadrinhos, de
Hot Links, combina com artigos jornalístico/científicos, Early
Edition, com as páginas pessoais do César, do Manoel, do
Carlos, do Horácio e do Armando, com a Unicamp, com a
imagem móvel de um foguete cortando a página na horizon-
tal, sob um fundo de céu quase escuro, e estrelas, quase (de)
cadentes? Gertrud Stein explodiu novamente seu relógio?
Pode ser que sim, pode ser que não. A prova é o ícone do labi-
rinto, no canto direito, embaixo, convidando os angustiados
a voltarem ao mapa. Quem diria! O labirinto, que paradoxo,
representa também a volta à ordem da narração, ao permitir
que o leitor retorne ao mapa da cidade, ou seja, ao fio con-
dutor da narrativa, de onde partem seus caminhos e onde
[ 233 ]
parece existir um porto seguro... São obrigatórias as pergun-
tas, mas as respostas não têm importância. Porque o hiper-
texto vive um tempo cínico, de blefes, de ironias, de aspectos
lúdicos e de trocadilhos. Antes de sair, Gertrud aconselha e
Palácios explode o espaço.
Para quem está no labirinto, a perspectiva do tempo e da
linearidade é outra. Esse caminhante descobre, por exemplo,
que o fio de Ariadne continua sendo a escrita, dispostas em
linhas, mesmo que perturbadas por um ícone aqui, outro ali.
O pós-modernismo não conseguiu abolir a escrita, onde se lê
uma palavra depois da outra, e mesmo que leve a um link
interno, externo, volte ao ponto de partida, ao mapa, ao la-
birinto, sempre isso acontecerá numa sequência temporal. O
relógio explodido continua a fazer tique-taque, tique-taque,
enquanto o leitor não se transformar num Chico Xavier da
leitura. Contam que o visionário de Uberaba escrevia dois
livros ao mesmo tempo. A cabeça inclinada piedosamente, a
mão direita escrevendo o livro da direita; a mão esquerda, o
segundo livro, sobre os joelhos. A da esquerda não sabendo
o que fazia a da direita e vice-versa. O leitor celebrará real-
mente o cumprimento de promessas do hipertexto, quando
tiver diante de si dois computadores e for capaz de dizer SIM
e NÃO ao mesmo tempo, percorrer simultaneamente dois
caminhos, matar e ser morto pelo Minotauro que o espera
no centro.
Talvez para fugir da síndrome de Gertrud Stein e de
Chico Xavier os teóricos do hipertexto prefiram explicar o
que querem dizer com a quebra de linearidade. Para Aar-
seth, esse conceito refere-se exclusivamente à forma físico-
lógica (ou disposição, ou aspecto) dos textos e de nenhuma
maneira a qualquer significado novelesco ou referência ex-
terna que o mesmo possa ter. Esse autor trabalha o conceito
de não linearidade exclusivamente relacionado à forma que
[ 234 ]
o texto ocupa na sua disposição espacial. Lembra, entretan-
to, que uma narração pode ser não linear, isto é, apresentar
uma sequência de acontecimentos de forma não sequencial
e estar representada num texto totalmente linear. Define o
texto não linear como “um objeto de comunicação verbal que
não consiste apenas de uma sequência fixa de letras, pala-
vras e frases, ou, no caso do hipertexto, sons e imagens; é
um texto cujas palavras ou sequências de palavras podem
variar de leitura a leitura devido à forma, às convenções ou
aos seus mecanismos” (Aarseth, 1997).
Portanto, a não linearidade inclui, no mínimo, dois ele-
mentos para que ocorra a disposição física do texto e a sua
leitura, ou seja, o tipo de percurso que o leitor realiza na sua
relação com o texto. No caso do hipertexto, esses aspectos
são bastante visíveis, já que esse tipo de texto se apresen-
ta ao leitor como uma série de nexos interligados entre si,
que podem ser ativados ou não pelo leitor à medida que este
avança na leitura. Em termos de narrativa, isso significa
dizer, como Liestol (1997) bem referiu, que há um “discurso
discorrido”, que a leitura de fato do hipertexto articula, isto
é, ao eleger os caminhos pelos quais seguirá a narrativa, ca-
minhos esses previstos (ainda que não ordenados) no corpo
da obra, o leitor realizará seu percurso de leitura, que é o
discurso discorrido.
O próprio Marcos Palácios (1999) procura refletir a
respeito do uso do conceito de não linearidade em relação à
narrativa do hipertexto. Para ele, é válido afirmar que cada
leitor, ao estabelecer sua leitura de um hipertexto, constrói
uma linearidade específica, que é, provavelmente, única.
Para o autor, mais apropriado em relação à narrativa em
hipertexto seria o uso do conceito de multilinearidade.
Em resumo, os relógios de Aarseth e de Gertrud Stein
são feitos por relojoeiros diferentes, não só marcando horas
[ 235 ]
incompatíveis entre si, mas participando de um tempo de-
sigual. A linearidade e a quebra de sequência temporal de
Aarseth provêm da técnica, é objetiva, ao passo que a de Ger-
trud Stein vem da estética, é subjetiva; a primeira, exigência
de um engenheiro eletrônico; a segunda, dos próprios perso-
nagens dentro do labirinto.
Conclusão
Esta é uma das riquezas do hipertexto, que quebra o
conceito tradicional de narrativa definido por Aristóteles,
como um “todo orgânico”, e inclui a expansão dos seus limi-
tes. Em hipertexto, a narração poderá sofrer tantas altera-
ções de suas partes quantas forem sugeridas pelo autor e
discorridas pelo leitor em seu percurso de leitura, por meio
de suas escolhas. A presença de páginas disponibilizadas
pela web no corpo da hiperficção, como o faz Palácios, per-
mite que essas escolhas recaiam sobre o imenso e infinito
ciberespaço dos computadores ligados em rede.
Essa possibilidade fascina e dá medo. Porque os labi-
rintos também fascinam e dão medo. Marco Fragonara ob-
serva que a cada época de incertezas renasce na cultura a
ideia do labirinto (Fragonara, 1998, p. 147). Isso acontece,
diz ele, desde que Cnossos apareceu enquanto um mito de
Teseu e de Minotauro. Ele tem razão apenas em parte. É
verdade que o mundo ganhou um novo mito depois que Pasi-
phae pediu que Dédalus lhe construísse uma vaca de madei-
ra e ajeitou-se dentro dela, nessa posição trazendo ao mundo
três rebentos: a) um ser mitológico, parte homem parte tou-
ro, que no registro civil recebeu o nome de Minotauro; b) um
homem que queria voar e cujas asas se derreteram por ter
se aproximado demasiadamente do sol; c) o patrono da arte e
[ 236 ]
dos artefatos, artífice chamado Dédalus. E por que Fragona-
ra tem razão apenas em parte? Tem razão apenas em parte
porque, conforme revela Doob, labirinto de Cnossos também
não é o primeiro. O artífice desse labirinto, conforme relata
o romano Plínio, inspirou-se em outro, mais antigo, encon-
trado no Egito.
As formas e expressões, portanto, multiplicam-se: cas-
telo, igreja, jardim, cidade, gráfico, floresta, livro, narrativa.
E jogos. Porque A dama de espada(s) – e o hipertexto em ge-
ral – não deixa de ter um caráter lúdico. Como no CD-ROM
Just granma and me. Clica-se no mar e saltam peixes; numa
moita, e voam pássaros; no céu, e voam aviões. Muitos jogos.
Para Hodrová, há uma mudança na ideia e no interesse pelo
labirinto conforme a época. O labirinto da Idade Média, do
romantismo e o nosso, do século XX, é um labirinto “inquieto,
mudando constantemente, que talvez tenha sentido e talvez
não, e cuja significado e significação são buscados” (Hodrová,
1998, p. 15). De maneira similar acontece com o texto sobre
o labirinto, o texto-labiríntico, na busca de significado e de
forma. Bem diferente do labirinto do pós-renascimento e do
iluminismo, quando ele perde sua ligação mitológica e torna-
se algo como uma peça artística, de decoração. No limiar da
condição pós-moderna, ele reaparece como espaço de signifi-
cação, como metáfora, que, ao final, através de uma técnica
sinuosa ou angulada – eletrônica ou não – é um símbolo da
busca do conhecimento.
Está, talvez aqui, uma das imagens mais belas sobre o
conhecimento, sobre a verdade, sobre a vida e sobre o labi-
rinto enquanto espaço de significação. A busca pode aconte-
cer na biblioteca labiríntica, de O nome da rosa, de Umberto
Eco, onde o bibliotecário Jorge procura o livro perfeito, que
contém a suprema verdade, livro de todos os livros. Ou no
conto “A biblioteca de Babel”, de um outro Jorge, o Luis Bor-
[ 237 ]
ges, em que o leitor fica diante das galerias que se estendem
ao infinito e onde ele também busca um livro, que contém
todas as escritas e suas variantes. Jorge, de O nome da rosa,
ao buscar o livro único tem de repassar todos os outros para,
em seguida, descartá-los. O ato de abri-lo e de estudá-lo em-
bebe-o do conteúdo dos outros, dispostos na galeria. No fim,
para o leitor, um são todos.
É essa a imagem que se tem de A dama e de outras hi-
perficções. Imerge-se como nas iconografias do século XVIII
e XIX, jovens mergulhadas na leitura em salas burguesas. E
repassa-se livro por livro, fragmento por fragmento. Os links
internos e os externos. Basta passar pelo pórtico de A dama
de espada(s). Esse é o sentido de uma busca labiríntica. A
busca de um centro que não se sabe onde fica, especialmente
no hipertexto, cuja característica básica é não ter início, fim,
ou centro, ser a soma dos livros e do conhecimento, ser a
soma dos corredores ao mesmo tempo impenetráveis e inex-
tricáveis.
Neste caso, quem realmente é o autor de A dama de
espada(s)? Quem é o bibliotecário que vai classificar essa bi-
blioteca, essa hemeroteca, essa videoteca, essa cornucópia
eletrônica do tamanho da imaginação e do desejo? Até onde
vão esses hexágonos eletrônicos que se repetem, e se repe-
tem, e se repetem? O que dizer desse espaço ciberal, onde o
bibliotecário tem apenas um cubículo mínimo, onde conse-
gue dormir de pé? Porque a biblioteca formada por A dama
de espada(s) e da ficção hipertextual, com seus links exter-
nos, é uma reprodução de “A biblioteca de Babel”, de Borges.
Essa imagem da biblioteca eletrônica (não as bibliote-
cas virtuais, mas a biblioteca de todas as bibliotecas, a bi-
blioteca/rede) assusta o leitor no labirinto. A perplexidade,
nessa fase de transição do impresso para o eletrônico, tem
analogia com a evolução dos primeiros bibliotecários. Os
[ 238 ]
monges, diz Browning (1997), colecionavam livros e os con-
servavam para o uso comum. Faltava-lhes um sistema de
organização para que esses mesmos livros pudessem ser en-
contrados mais tarde. E algumas vezes eles ficavam atônitos
procurando saber onde poderia estar determinado volume.
Já os monges de nossas bibliotecas virtuais não escondem
sua perplexidade diante dessas entradas que se multiplicam
ao infinito, sem tempo ou habilidade para classificar as in-
formações, interconectá-las, impor uma ordem perdida.
Talvez sintam uma nostalgia dessa ordem, conquista-
da antes, depois de tão grande esforço. Mais do que sentir,
eles vivem a nostalgia de uma ordem preexistente. Talvez
sonhem com o eterno viajante de Babel: se ele atravessasse
a biblioteca em qualquer direção, comprovaria ao fim dos
séculos que “os mesmos volumes se repetiriam na mesma
desordem – que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem”. E
exclamaria; “Minha solidão alegra-se com essa elegante
esperança” (Borges, 1976, p. 70). Bem diferente de uma bi-
blioteca virtual febril, cujos fortuitos volumes correriam o
incessante risco de se transformarem em outros, e que tudo
afirmariam, negariam e confundiriam, como uma divindade
delirante (Borges, 1976, p. 68).
Referências
AARSETH, Espen J. No linealidad y teoría literaria. In: LANDOW, G.
(Comp.). Teoría del hipertexto. Barcelona: Paidós, 1997.
ARISTÓTELES. A poética clássica: Aristóteles, Horácio, Longino. In-
trodução por Roberto de Oliveira Brandão, tradução direta do grego e
do latim por Jaime Bruna. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. A teoria do roman-
ce. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1990.
[ 239 ]
BAUDINO, Mario. The last temptation. In: Labyrint - visions and in-
terpretation of the eternal myth in contemporary printmaking. Praga:
Inter-Kontakt-Grafik Foundation, 1998.
BOLTER, Jay D. Writing space: the computer, hypertext, and the his-
tory of writing. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates, 1991.
BORGES, J. L. Ficções. Porto Alegre: Globo, 1976.
BROWNING, John. What is the role of libraries in the information
economy? Disponível em: http://www.Wired.com/wired/1.1/features/
libraries/html. Acesso em: 12 jul. 1997.
DOOB, Penelope Reed. The idea of the labyrinth from Classical Anti-
quity through the Middle Ages. Ithaca: Cornell Universty Press, 1990.
EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
ECO, Umberto. Le nom de la rose. Paris: Grasset, 1980.
FOSTER, E. M. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1970.
FRAGONARA, Marco. Teseu o eterno seeker. In: Labyrint - visions
and interpretation of the eternal myth in contemporary printmaking.
Praga: Inter-Kontakt-Grafik Foundation, 1998.
HODROVÁ, Daniela. Trial by labyrinth. In: Labyrint -visions and in-
terpretation of the eternal myth in contemporary printmaking. Praga:
Inter-Kontakt-Grafik Foundation, 1998.
HOLLOWELL, John. Realidad y ficción. El nuevo periodismo y la no-
vela de no ficción. México: Noema, 1977.
JOYCE, Michael. Sustituyendo al autor: “un libro en ruinas”. In:
NUNBERG, Geoffrey (Comp.). El futuro del libro. Barcelona: Paidós,
1998.
LANDOW, George (Comp.). Teoría del hipertexto. Barcelona: Paidós,
1997.
_______. Hipertexto: la convergencia de la teoria crítica contemporánea
y la tecnología. Barcelona: Paidós, 1995.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Editora
34, 1995.
LIESTOL, Gunnar. Wittgenstein, Genette y la narrativa del lector en
Hipertexto. In: LANDOW, George P. (Org.). Teoria del hipertexto. Bar-
celona: Paidós, 1997.
MACHADO, Arlindo. Hipermídia: o labirinto como metáfora. In: DO-
MINGUES, Diana (Org.). A arte no século XXI: a humanização das
tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997.
[ 240 ]
MURRAY, Janet H. Hamlet on the holodeck: the future of narrative in
cyberspace. New York: Free Press, 1997.
NEGROPONTE, N. Bits and atoms. Disponível em: http://wired/3.01/
departments/negro. Acesso em: 2 jul. 1997.
PALÁCIOS, Marcos. Hipertexto, fechamento e o uso do conceito de não-
linearidade discursiva. Compós, 1999. Mimeografado.
WIILIAMS, Raymond. Television. Technology and cultural form. New
England: Wesleyan University Press, 1974.
[ 241 ]
O leitor e a leitura do ciberpoema
Simone Assumpção
O que é literariedade?
O que é literariedade, afinal de contas, e como isso re-
percute sobre ou a partir da produção contemporânea da
assim chamada ciberliteratura? Segundo Alckmar Santos,
“quando indagamos qual seria o estatuto da criação verbal
no ciberespaço, estamos propondo o mapeamento de um sis-
tema literário que já esteja abertamente (que nunca será
completamente) ancorado no meio eletrônico” (Santos, 2003,
p. 60). No entanto, sabe-se que há vários modos de o texto li-
terário se relacionar com o ciberespaço: há textos que foram
escritos para o meio impresso e que são transpostos para a
web – como é o caso do livro Poesia visual, de Sergio Cappa-
relli e Ana Cláudia Gruszynski (2002) –, ou ainda ciberpoe-
mas especialmente criados para o suporte virtual.
Estamos mais acostumados ao objeto livro como sig-
nificado de poesia ou narrativa. É nele que supostamente
nascem os gêneros (como se isso fosse algo da natureza), não
uma produção cultural historicizada com datação para tér-
mino e desenvolvimento.
Ainda segundo Santos, “o meio eletrônico abre duas
direções para o leitor: de um lado, ele é instado a mapear
um campo de sentidos possíveis, utilizando não apenas as
linguagens costumeiras (visuais, verbais, sonoras, etc.), mas
também e sobretudo os processos, procedimentos, ferramen-
tas informáticas” (Santos, 2003, p. 63). Assim, se, de um lado,
o criador não trabalha mais sozinho, mas junto com webde-
signers e programadores, por outro, o leitor se vê diante da
necessidade de elaborar e desenvolver novas competências
para a leitura em tal ambiente.
[ 243 ]
gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que po-
dem eles mesmos ser hipertextos” (Lévy, 1993, p. 33), cujas
conexões se organizam de modo reticular. Hipertexto tam-
bém é um programa voltado para a organização de dados.
Lévy informa que, em 1990, cerca de vinte universidades
norte-americanas estavam desenvolvendo pesquisas utili-
zando sistemas de hipertexto voltados para a área de educa-
ção. Hoje, a facilidade em obter um programa de hipertexto
permite que sejam utilizados para os mais diversos objetivos,
seja para criar um banco de dados para um estudante, seja
para qualificar o audiovisual utilizado por um professor em
sala de aula, ou, ainda, para hipertextualizar poemas.
O termo hipertexto descreve um texto eletrônico com-
posto de nós − blocos de texto também denominados lexias
por Roland Barthes −, os quais podem ser ligados não se-
quencialmente. A rede mundial de computadores é um
exemplo de hipertexto. Nela, cada página é um nó, e elos
podem ser estabelecidos com outras páginas, que podem fa-
zer parte do mesmo ou de qualquer outro site do mundo.11O
CD-ROM (Compact Disc – Read Only Memory), por sua vez,
é o suporte material de um hipertexto que apresenta as mes-
mas características da web. Tanto a web como o CD-ROM
partilham de uma mesma natureza hipertextual, diferindo,
entretanto, quanto ao suporte técnico utilizado, bem como
na quantidade de informação a ser armazenada.
O estabelecimento dos elos obedece a um princípio de
livre associação. Essa ideia é fundamentada num artigo de
Vannevar Bush,22no qual afirma que a mente humana opera
por associação. Segundo Bush, a ineficiência dos mecanis-
1
The electronic labyrint home page. Disponível em: http://jefferson.village.
virginia. edu/elab
2
BUSH, Vannevar. As we may think. Disponível em: http://www.theatlantic.
com/unbound/flashbks/computer/bushf
[ 244 ]
mos adotados pelas bibliotecas se deve à artificialidade dos
sistemas de indexação. Segundo o autor, com uma informa-
ção ao alcance das mãos, a mente humana apodera-se da
próxima (informação), que é sugerida pelos pensamentos, de
acordo com uma rede tecida por múltiplos caminhos. A ten-
dência é de que tais caminhos não se dissipem; entretanto,
as informações não permanecem de forma completa, e sua
memória é transitória. Já a rapidez da ação, a rede de cami-
nhos, o detalhe das imagens mentais são admiráveis. Não se
pode reproduzir esse processo mental artificialmente, mas se
pode aprender muito com ele. A rapidez e a flexibilidade da
mente humana talvez não possam ser reproduzidas − apesar
das tentativas de inteligência artificial −, mas o método sim.
O texto de Bush tem um valor histórico, na medida
em que impulsiona as pesquisas sobre a relação entre texto,
cognição e informática. Ainda nesse texto, datado de 1945,
o autor descreve o projeto Memex − Memory Extender −, o
primeiro sistema hipertextual de que se tem notícia. Apesar
de, à época, ainda não dispor de uma tecnologia informati-
zada, o Memex foi a primeira experiência de organização de
documentos baseada na associação entre os textos. A pesqui-
sa de Bush foi complementada por Douglas Engelbart, que,
na década de 1960, aplicou os princípios explicitados pelo
primeiro, criando um programa de hipertexto, batizado de
Augment. Posteriormente, Theodor Nelson desenvolveria o
Xanadu (Landow, 1997; Machado, 1996).
As mesmas preocupações encontradas em Bush são re-
discutidas em Negroponte. A ideia de Negroponte (1996) de
que há seres humanos inteligentes e máquinas estúpidas já
havia sido apontada por Bush. Afirma que o processo de ela-
boração do pensamento não se reduz a problemas matemá-
ticos e estatísticos, havendo um aspecto criativo a ser consi-
derado. Para ele, um matemático não é alguém que se limita
[ 245 ]
a manipular números; é, antes de tudo, um indivíduo capaz
de usar a lógica simbólica e, mais do que isso, é dotado da ca-
pacidade de julgamento diante das escolhas que surgem nos
processos com os quais se relaciona, sendo o discernimento
e a intuição as características que tornam o homem capaz
de utilizar as máquinas de forma avançada. Essa, aliás, é
uma ideia basilar para se entender também a relação entre
conhecimento e informação. A informação disponibilizada
pelas máquinas não garante a construção do conhecimento,
que depende necessariamente do trabalho humano. Somen-
te o homem é capaz de selecionar a informação e julgar sua
validade em diferentes e infinitas situações possíveis. O tra-
balho de organização e sistematização da informação resulta
em novo conhecimento.
O poema e as potencialidades de um
ciberpoema
Imaginemos como se dá o processo de constituição do
poema. Sua disposição gráfica pode sugerir a forma de um
animal, como, por exemplo, um jacaré, e nos trazer à lem-
brança determinadas formas, cores e imagens relacionadas
ao tema. Podemos, ao ler o verso inicial de um poema, lem-
brar um outro que trata de tema semelhante, ou ainda de
um texto que o analisa criticamente. A experiência do leitor
diversifica seu relacionamento com o texto, que é aberto a
suas conjecturas e ilações. Um texto artístico, muito espe-
cialmente um poema lírico, disponibiliza uma série de ele-
mentos que são acionados no ato da leitura. Em nosso estu-
do, o texto artístico é o embrião do hipertexto. Voltemos a ele:
imaginemos agora que a palavra “jacaré”, no poema citado,
seja uma área sensível ao toque e, a partir de um clique du-
[ 246 ]
plo do mouse, apresente algumas dezenas de ilustrações de
jacarés, um de cada região do planeta, acompanhada de um
dispositivo sonoro contendo a reprodução do som produzido
por esses animais.
O que existe potencialmente no texto literário, en-
quanto alusão e isotopia, faz-se presente materialmente
no hipertexto, compondo essa nova forma de expressão. O
paradigma hipertextual torna material o que era potencial
no texto literário. Enquanto, no suporte livro, o leitor é in-
duzido a estabelecer determinados elos que podem vir ou
não a se configurar, no suporte hipertextual isso se torna
concreto, na medida em que os elos já foram estabelecidos
por um profissional ou por uma equipe. Essa materialidade,
por sua vez, causa-nos ainda estranheza − talvez a mesma
estranheza que o livro saído do prelo nos primeiros anos de
utilização da prensa de Gutemberg tenha provocado em seus
contemporâneos.
Segundo Alckmar dos Santos,33devemos buscar o em-
brião do paradigma hipertextual tanto na tradição ocidental,
com a divisa, a iluminura, o rébus, como na tradição oriental,
com o haicai, onde se tem a reunião entre o texto verbal e o
não verbal. Para Pierre Lévy (1996, p. 44), uma abordagem
mais simples do hipertexto se limitaria a descrevê-lo como
um texto não linear, no qual os nós (como os parágrafos, as
páginas, as imagens, as sequências musicais, etc.) e as liga-
ções entre esses nós (as referências, as notas explicativas, os
ícones que efetuam a passagem de um nó a outro) constitui-
riam uma estrutura em rede. A organização de uma enciclo-
pédia impressa utiliza esses recursos de orientação com os
índices, os atlas, os quadros de sinais e as notas explicativas
3
SANTOS, Alckmar dos. Textualidade literária e hipertexto informatizado.
Anais... do V Encontro da ABRALIC. Disponível em: http://www.cce.ufsc.
br/~nupill
[ 247 ]
ao pé de página. A diferença em relação ao hipertexto infor-
matizado consiste na rapidez com que a passagem de um
nó a outro é realizada e também na possibilidade de reunir
num único suporte os sons, as imagens e os textos.
Um nó é uma unidade de informação, ao mesmo tempo
integrada e autossuficiente, parte de um documento comple-
to. Num ensaio, um nó poderia ter o tamanho de um pará-
grafo ou dois; numa livraria, cada livro poderia ser um nó;
na web, um nó equivale a uma página.
A representação visual dos nós pode dispor de recursos
como tipo de letra, tamanho e cor. O tamanho da página,
os cabeçalhos e outras convenções estruturais contribuem
para a melhoria da interface; eles implicam a seleção e a
hierarquização das informações, desde as do cabeçalho até
as subordinadas e de menor importância. Também a cor, as
margens e os formatos das janelas são signos ordenadores
dos nós, devendo o elemento convencional ou costumeiro ser
adequado ao contexto, de forma a ser reconhecido ou estra-
nhado – de acordo com o objetivo – pelo usuário/leitor.
A representação visual dos nós apresenta três possibi-
lidades de exibição: a) o novo nó pode substituir completa-
mente o antigo; b) o novo nó pode aparecer em outro lugar na
tela; por exemplo, podem-se ter duas telas, uma ao lado da
outra; c) o novo nó pode ser sobreposto ao anterior, cobrindo-
o apenas em parte e permitindo que o usuário/leitor estabe-
leça relações entre eles.
Um link é a relação estabelecida entre dois nós. Por re-
lação entenda-se nexo ou conexão lógica. Há uma área sen-
sível − pode ser uma palavra ou uma imagem, indicada na
tela pelo surgimento de um ícone na forma de uma pequena
mão − responsável pelo estabelecimento do nexo entre dois
nós. Essa área sensível é chamada de link; quando acionada,
geralmente por meio de um clique do mouse, o link é ativado.
[ 248 ]
O hipertexto, a ciberpoesia e o leitor
O caráter emancipatório da literatura revela-se quan-
do sua estrutura permite a realização de um processo co-
municativo desencadeado no ato da leitura. Se, para Iser, o
efeito estético se dá na interação entre o texto e o leitor, es-
timulado pelas indeterminações constitutivas do primeiro e
sugeridas pelo corte, pela negação e pela alusão, para Jauss,
a compreensão estética torna o leitor cônscio de si mesmo
e do mundo que o rodeia. Tanto para Iser como para Jauss,
o leitor é o sujeito responsável pela ação da leitura; é o ele-
mento fulcral, responsável pela ativação dos significados.
Por outro lado, se o trabalho do leitor aciona o poten-
cial estético da obra de arte literária, também a sua estru-
tura material contribui para essa relação dialógica, o que
nos obriga a conhecer sua composição enquanto responsável
pelo alargamento das significações. Para tanto, as catego-
rias semióticas podem nortear uma leitura do texto lírico,
evidenciando suas características estruturais que contri-
buem para o sucesso daquela. Ao abordar o problema da sig-
nificação no texto artístico, Lotman afirma a existência de
um preconceito corrente em relação ao estudo semiótico da
literatura, segundo o qual esse deixaria de lado o conteúdo, a
significação, o valor social e ético da arte e suas relações com
o real, o que não procede. Segundo o autor,
O próprio conceito de signo e de sistema de signos está insepa-
ravelmente ligado ao problema da significação. O signo realiza
na cultura da humanidade uma função de intermediário. O obje-
tivo da atividade semiótica é a transmissão de um determinado
conteúdo.
O esquecimento da significação não pode ser o resultado de um
método que coloca ao centro a investigação do próprio problema
da semiosis. É precisamente o estudo do que significa “ter uma
significação”, do que é o ato de comunicação e qual é o seu papel
social que constitui a essência da abordagem semiótica (Lotman,
1978, p. 74).
[ 249 ]
Se, por um lado, o leitor procede à transformação do ob-
jeto artístico em estético, por outro, é preciso complementar
esse processo tendo em vista as características estruturais
específicas da poesia lírica. Nesse sentido, faz-se necessária
a fusão entre a análise estrutural e semiótica e a reflexão
hermenêutica a partir da estética da recepção e da teoria do
efeito estético.
A ideia da emancipação se conjuga a uma concepção de
leitura entendida como ação realizada pelo leitor, tanto por
Iser e Jauss como por Lotman. Esse último enfatiza a estru-
tura imanente como o fundamento da obra de arte. Para o
teórico da Escola de Tartu, a obra de arte tem uma estrutura
relacional complexa, a partir da qual se podem estabelecer
relações que a transcendem. A abordagem semiótica de Lot-
man abre uma trilha ao postular que as ligações sintáticas
do texto correspondem à sucessão de cenas enquanto qua-
dros que se movimentam à medida que são apresentadas
pela estrutura material da obra.
[ 250 ]
até que os nossos aromas/ e os nossos sabores/ se misturem”)
e não verbal (o desenho de uma xícara contendo um saco de
chá preso por um fio/barbante a uma etiqueta na qual usual-
mente se informaria o tipo de chá). A disposição gráfica na
página – a xícara está centralizada – e a presença de riscos
pontilhados indicando o lugar sobre o qual o objeto é coloca-
do, assim como a escolha de um traço estilizado e também
uma cor (preta) para delinear a xícara, contribuem para a
materialidade deste poema visual.
No site, o poema “Chá” torna-se ciberpoema e vem
acompanhado da indicação de que ele é “superinterativo”.
Nele são acrescidos elementos, como corações, estrelas, um
porta-retrato com a foto de um casal apaixonado. O leitor
internauta recebe agora instruções sobre o modo como su-
postamente deve constituir sua leitura: “Clique e arraste os
ingredientes para dentro da xícara para preparar seu chá”,
“Quando você achar que já tem ingredientes suficientes cli-
que no botão” e “Avançar”. Depois de ter clicado sobre o link
“Avançar”, tem-se nova tela, na qual se encontram a xícara,
um porta-retratos com a foto de um casal apaixonado, cora-
ções, estrelas, o saco de chá, uma colher e um bule.
Ao se acionar o mouse e passar sobre esses links, ouvem-
se sons como o barulho de um beijo estalado, por exemplo.
Ao arrastar os ingredientes para dentro da xícara e poste-
riormente clicar sobre o bule, este se movimenta e derrama
não água, mas letras, que sugerem uma transformação: o
que supostamente representaria a água quente transforma-
se em vapor. Esse vapor aparece na forma de ondas de ca-
lor, que são versos nos quais se lê: “Deixe a infusão o tempo
necessário até que os nossos aromas e os nossos sabores se
misturem.” Isso ocorre somente depois de o leitor agir e cli-
car sobre o bule. Caso não o faça, é constantemente alertado
pelo programa quanto à expectativa que se tem de seu papel:
cabe ao leitor agir de tal maneira, a fim de que a materia-
[ 251 ]
lidade do ciberpoema vá pouco a pouco se (re)constituindo.
Em outras palavras, sem o leitor, não há ciberpoema.
“Gato letrado”, por sua vez, é um ciberpoema que priori-
za o aspecto lúdico. Assim que o leitor clica sobre o desenho
de um computador onde se lê o título, abre-se nova página,
onde se vê uma folha de caderno pautado. As linhas da pau-
ta são azuis e apresentam as pegadas de um gato na cor
marrom claro; além disso, aparecem as letras a, b, c, d, e, f
na sua forma cursiva, indicando ou sugerindo alguém que
inicia o aprendizado do alfabeto. Esses primeiros passos na
vida são reforçados pela associação com o bichano, tão caro
ao mundo infantil. Ao mesmo tempo em que a página se des-
cortina aos olhos do leitor, ouve-se o miado constante ao fun-
do, bem como o desenho da “cara” de um gato. Ao clicarmos
sobre a figura do gato, todo o alfabeto aparece no caderno,
ao mesmo tempo em que se estabelece uma correlação com
o miado constante do gato: ele parece ser o responsável pela
escrita e leitura daquelas letras. Tal ideia é reforçada pelo
fato de que, ao final deste ciberpoema, tem-se o texto verbal:
“gato marrom (alfabetizado)”.
Muito interessante é a recriação do poema “Navio”. O
texto verbal que aparece já na versão impressa é: “Neste
mar a vida é breve a vinda breve a volta para o Rio Bombaim
ou Mombassa a vida breve a vida passa como um rolo de
fumaça breve breve passa passa qual Caronte (o barqueiro)
ansioso em sua barca ou um besouro sob a chuva na vidraça
na vidra na vi na vi o.” Aqui reproduzido, no entanto, perde
o seu maior traço: a disposição gráfica em forma de fumaça
que sai de um navio preto sobre um mar azul. Como poema
visual que é, seus sentidos constituem-se a partir disso, as-
sim como da disposição e fragmentação dos vocábulos, que
adquirem nova significação a cada quebra que aqui se pro-
cura reproduzir: na vidraça/ na vidra/ na / vi.
[ 252 ]
Na versão digital, tem-se, inicialmente, uma tela preta
na qual se lê a palavra NAVIO grafada em maiúsculas, numa
faixa horizontal onde se vê também uma imagem do planeta
Terra rodando sem parar. É preciso clicar sobre o planeta a
fim de que nova tela apareça, contendo uma foto de satéli-
te na mesma e estreita faixa horizontal. Aparecem ainda a
imagem de um mapa de uma cidade alemã, o que se pode
depreender em função dos nomes que ali se leem, e a foto
de microscópio, possivelmente, de um organismo vivo ou a
reprodução da imagem de um DNA. A partir daí, o texto ver-
bal é apresentado de forma segmentada, reconstituindo sig-
nificados e enfatizando aspectos antes não permitidos nem
percebidos no poema visual, como é o caso de “mar”, de onde
é retirada a vogal “a” e recomposta em nova palavra, no caso,
o artigo “a”. Trata-se de recurso material, tornado possível
pelo software utilizado. Quando a palavra “fumaça” aparece
na tela, ao mesmo tempo se vê a imagem de nuvens/fumaças,
sugerindo ao leitor associações possíveis entre palavra e ima-
gem. Também a associação final entre navio e planeta estava
ausente anteriormente e aqui, no ciberpoema, se constitui a
partir da letra “o”, que finaliza o poema e se transforma na
imagem diminuta de um planeta em movimento. São múlti-
plas as potencialidades do ciberpoema, que, nesse caso, não
parece depender tanto assim do leitor, que vê seu papel rela-
tivamente reduzido, uma vez que os nós e nexos são em nú-
mero reduzido, cabendo a ele um papel de espectador diante
do movimento constante de imagens e palavras.
Considerações finais
Haveria uma conexão entre o poema tradicionalmen-
te postulado como manifestação de um gênero particular, o
lírico, e os ciberpoemas aqui apresentados? Caberia a in-
vestigação acerca do lirismo? Mas esse lirismo já não teria
[ 253 ]
sido abandonado desde o aparecimento da poesia concreta?
Enfim, que categorias seriam adequadas para pensar esses
novos objetos artísticos produzidos em ambiente virtual?
Nesta breve reflexão, cabe ponderar sobre as caracte-
rísticas da materialidade do ciberpoema, assim como o papel
que o leitor adquire diante desta modalidade de literatura.
Nesse sentido, precisamos estar atentos às particularidades
deste objeto, como a existência de nós e de nexos que, quan-
do acionados materialmente pelo leitor, abrem novas mate-
rialidades e novas possibilidades de leitura. Também o apro-
veitamento de recursos sonoros – como o miado do gato em
“Gato letrado”– acrescenta elementos que norteiam a leitura
que se faz a partir dali. As imagens – como a do planeta Ter-
ra que gira incessantemente no ciberpoema “Navio”– contri-
buem para este novo constructo. Entretanto, tais elementos
estão no site ciberpoesia como uma potencialidade a ser acio-
nada por um indivíduo pensante, um leitor que dará vida ao
objeto artístico.
Sem a interação entre leitor e ciberpoema, não há cons-
tituição de nexos, nem observação de nós; consequentemen-
te, o hipertexto não se configura. Assim, o criador oferece o
roteiro e pressupõe o papel do leitor, pois, sem este, o ciber-
poema não se materializa nas suas mais diferentes possibili-
dades. No caso dos ciberpoemas aqui analisados, observa-se
que aquela discussão inicial sobre literariedade precisa ser
reformulada, uma vez que o suporte material faz emergir
novas características materiais – como é o caso do movimen-
to das palavras na tela –, que nos obrigam a repensar as
características desses novos objetos que parecem se associar
à tradição do que chamamos de “literatura”. Entretanto, tal
fator não muda. Se olharmos para o passado recente, sem o
leitor, o poema não se constituía. Se olharmos para o presen-
te, sem o leitor, o ciberpoema não se constitui.
[ 254 ]
Referências
CAPPARELLI, Sergio; GRUSZYNSKI, Ana Cláudia. Poesia visual.
São Paulo: Global, 2002.
LANDOW, George. Hypertext 2.0. Baltimore, London: John Hopkins
University Press, 1997.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. São Paulo: Editora 34,
1993.
_______. O que é virtual. São Paulo: Editora 34, 1996.
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978.
MACHADO, Arlindo. Máquina imaginário, 1996.
NEGROPONTE, Nicholas. Ser digital. Lisboa: Caminho da Ciência,
1996.
SANTOS, Alckmar Luiz dos. Leituras de nós: ciberespaço e literatura.
São Paulo: Itaú Cultural, 2003.
_______. Textualidade literária e hipertexto informatizado. In: EN-
CONTRO DA ABRALIC, V. Anais... Disponível em: http://www.cce.
ufsc.br/~nupill.
[ 255 ]
A não diacronia da poesia digital
e a influência do poema processo
Wilton Azevedo
Alguns indícios nos apontaram através desses anos que
sistemas de linguagem programática têm formatado nosso
planeta de maneira a nos pregar algumas peças, porque a
implantação da internet, celulares, TVs de plasma interati-
vas acabou por trazer outro sentido para o verbo “ler”. Esse
estado efêmero nos faz perder a dimensão da escrita hipotá-
tica e, por não se tratar mais de um texto de retórica linear,
as mudanças culturais se fazem no modo como a humanida-
de passará a adquirir o conhecimento.
A poesia digital e, principalmente, o poema digital ser-
vem de experimentação, propiciando novas narrativas e
discursos na hipermídia – que venho chamar de Interprosa1
– para que, no desenrolar do pensar o percurso dos signos
imersos nesta ambiência da escritura numérica, questione o
sentido da compreensão e da eloquência.
Nesta ambiência observamos, de alguns anos para cá,
que não há colisão de códigos; vemos um movimento de ex-
pansão destes – escritura expandida –, que não pertence
mais a códigos isolados em seu espaço temporal, e sim a um
tempo/espaço sígnico que trabalha com a articulação e regis-
1
AZEVEDO, Wilton; MENESES, Phildelpho. Interpoesia. São Paulo: Fapesp,
Editora Mackenzie, 2000. CD-ROM.
tro de signos multidimensionados em espaço/tempo que não
é mais bidimensional, paradigmático formado por processos
sintagmáticos.
Para isso, a semiótica de C. S. Peirce (1977) tem de ser
retomada na compreensão de uma tríade que parte em dire-
ção a um sistema rizomático, nada diádico, muito menos dia-
crônico, que, no pensamento abdutivo na semiótica peirciana,2
acaba por desconsiderar o sentido maniqueísta entre erro e
acerto, estranhamento e mesmice, abstrato e figurativo. Isso
porque, se observarmos a ação de qualquer signo, ele sempre
será imensurável, não podendo ter esta divisão em seu pro-
cesso expansivo em que um signo gera outro signo.
Na poesia digital, os códigos não se dividem mais dia-
cronicamente no conceito de mesmice e estranhamento, fic-
ção e realidade, como preconizado nos manifestos do século
passado. Insistiu-se tanto nessas rupturas que a arte aca-
bou por criar na invenção da performance algo que tornava
a linguagem poética vulnerável ao registro histórico – hic
et nunc. Assim, toda e qualquer manifestação artística não
ficou mais a serviço da ficção, nem da realidade; só valia o
que em sua presentidade – real time – era realizado. Com
isso, a poesia digital terá de ser revista como um ambiente
de signos que se articulam, assim como a fala e a música,
operando numa somatória de ambientes – ambiência – em
que, no sentido semiótico, o fazer sígnico da poesia digital
se torna visível de maneira indicial em relação ao modelo
matemático adotado.
A grande dicotomia a ser vencida, então, começaria
com: o oral/escrito (Zumthor, 2007, p. 13), pelo imagético/ca-
nônico e sonoro/cifrado em que todo o espaço digital, por ope-
2
Para Charles Sanders Peirce, abdução é o processo de formação de uma hi-
pótese explanatória. É a única operação lógica que apresenta uma ideia nova,
pois a indução nada faz além de determinar um valor, e a dedução meramen-
te desenvolve as consequências necessárias de uma hipótese pura (Peirce,
1977, p. 220).
[ 257 ]
rar dentro dos conceitos da simulação, nos transmite uma
sensação de artificialidade. Porém, tudo que passa pelos
nossos processos cognitivos – juízo perceptivo – não pode ser
considerado como simplesmente abstração. Esse dado me
parece uma maneira simplista de, mais uma vez, explicar
os princípios que envolvem o conceito do virtual: “Parece-me
ao menos poder dizer isto: de todo modo, aquilo que se perde
com os media, e assim necessariamente permanecerá, é a
corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual
a voz é apenas expansão” (Zumthor, 2007, p. 16).
Concordo em parte com Zumthor, porque a cada dia o
mundo digital também se corporifica na sua forma de acesso
e expressão, e não é apenas a voz – som – que ganha sua
expansão sígnica, mas todo código que, antes de se tornar
software, já tinha características virtuais, como é o caso do
verbo. Se este dado corpóreo também se dá em sua expressi-
vidade programática, em seus aspectos de ambientação des-
ses códigos – verbal, sonoro e visual – tanto seus aspectos
epistemológicos quanto a dicotomia, diacrônica/sincrônica,
desaparecem. Não podemos nos esquecer de que essa escri-
tura é promovida por um programa que tem de ser precon-
cebido como escritura para existir; fomos acostumados pela
cultura tecnológica anterior a usurpar do código o lado prá-
tico e performático, mas, se ficarmos atentos, programar é
criar performance. Essa expansão intercódigos possibilitou,
através da nomenclatura programática (stage, cast, member,
behavior) de softwares, como Director MX da Adobe, a opção
de programarmos atuação e simulação.
A poesia digital, por incrível que possa parecer, retoma
a ritualização da linguagem, porque é um fazer pré-progra-
mado previsto por sua escritura, e é este crédito que o eman-
cipa como novidade. Toda prática desse exercício passa a ser
poética, uma poética que não sobrevive sem ser precedida
[ 258 ]
por uma escritura. O que faz o poeta digital nessa situação
é lidar com as contradições desse programa em seu modelo
numérico, conceito este desenvolvido – Looppoesia3 – reti-
rando dessa escritura matemática randômica, mas fixada, o
que ela pode nos dar como signo de leitura e interpretação
programática. Assim, o poema pode ser desprovido de pa-
lavras; a enunciação não está no discurso, a narrativa não
conta histórias; o que é poético é a expansão dos signos. Fa-
zer poesia digital é construir ambientes – ambiência – em
mutação constante, uma experiência que não se preocupa
em criar fórmulas.
A palavra hoje passa por um processo de não ser mais
o único signo que representa o objeto de conhecimento. No
mundo cyber da memória não pertencente à espécie huma-
na, quem é o sujeito falante, ou melhor, quem é o sujeito? O
conhecer a sua aquisição e sua decorrência no saber criaram
uma cultura semiótica dos códigos na criação da demanda
da compreensão, se é que podemos chamar assim.
A poesia digital, nesse sentido, é a última instância
para servir de demarcação de significado linguístico. A poe-
sia digital não o demarca porque é parte de um sistema que
se processa em várias direções, como é o nosso cotidiano. Se
existe essa demarcação, do que duvido, esta será de nature-
za generalizada, nada específico em seu discurso, e está aí
a dificuldade de localizar o seu comportamento linguístico.
O saber poético é o ato cognitivo que nos faz parceiros
desse processo. Começamos a articular outros sistemas síg-
nicos das trocas desses signos, não mais diacrônico no jogo
semiótico da poesia digital, e, pelo que entendo, essa troca
se dá num sistema mais triádico que diádico, com origem
matricial da linguagem. A condição programática que é ain-
3
Looppoesia: A poética da mesmice CD-ROM, Wilton Azevedo, Mackpesquisa,
São Paulo, 1994.
[ 259 ]
da seu princípio gerativo de significado não fixa a qualidade
dessa escritura.
4
Alerto que para toda citação referente a Wlademir Dias-Pino, seu livro Pro-
cesso: linguagem comunicação, Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro,
não tem referência de ano nem número de página, o que torna difícil a fonte.
Esse livro, segundo o autor me disse em entrevista concedida no Rio de Ja-
neiro em março de 2006 no Hotel Othon Leme, é de 1972.
[ 260 ]
sasse o software como forma de produção poética. Por isso,
é importante tentarmos entender quais são os poetas e as
poesias que operam a mídia digital em seu amplo sentido
hipermidiático.
5
Aqui me refiro ao grupo Noigandres criado por Augusto de Campos, Haroldo
de Campos e Décio Pignatari, em 1952, e é dessa data o surgimento da re-
vista Noigandres 1. O lançamento oficial da poesia concreta foi em 1956, e o
manifesto Plano Piloto para Poesia Concreta é de 1958.
6
Em 1956, Dias Pino traz como novidade informacional o livro A ave, cuja
proposta era criar uma leitura sem intervalos: “O livro recebeu um trata-
mento de máquina, com suas folhas soltas, perfuradas, cortadas, codificada
em séries, etc., quase ao ponto de ser um computador de bolso.”
[ 261 ]
leitura é conseguida pela transparência do papel, desenvolvida
até a transparência total que é a perfuração. Ao tratar do pro-
blema da transparência atinge-se uma problemática oposta de
superposição de informação: isto impede a figuração pelo exces-
so de ruído que causaria (Dias-Pino, s. d.).
As especificidades dos sistemas de linguagem que cha-
mamos tradicionais e o que conhecemos como digitais se fa-
zem cada vez mais evidentes. Falar de produção de lingua-
gem e sua disseminação é falar de um complexo tecnológico,
porque um código sempre vai precisar de uma tecnologia que
o sustente. Em termos semióticos, para ser disseminado o
que antes era visto como middleware hoje vemos como signo
novo – semiose.
A preocupação quanto à poesia e suas consequências
poéticas se fez sempre sobre suas estruturas e o quanto de
novidade a linguagem traria para ser aceita como vanguar-
da. Wlademir Dias-Pino (Dias-Pino, s. d.) abre essa discussão
com mais foco para a sua época, quando começa a desenvol-
ver a ideia do poema processo como conceito de movimento,
no qual coloca que a necessidade de um poema ter variações
de sua própria solução faz do processo poesia permitir diver-
sas estruturas de suporte; o processo é o poema, não mais a
poesia. “Não há poesia/processo. O que há é poema/processo,
porque o que é produto é poema. Quem encerra o processo é
o poema. O movimento ou a participação criativa é que leva
a estrutura (matriz) à condição de processo. O processo do
poeta é individualista, e o que interessa coletivamente é o
processo do poema” (Dias-Pino, s. d.).
Para mim, analisando mais atentamente o que de con-
ceito de hipermídia a poesia processo carrega com ela, é esta
forma de poema que estava ligada às variáveis informacio-
nais, para que o poema atingisse um estágio de autofagia, de
se autossuperar. Por não contar mais com a importância da
ordem alfabética, a palavra, neste caso, é dispensada, o que
[ 262 ]
a torna mais aberta e não se detendo especificamente a uma
língua. “Não se trata como alguns poderiam pensar, de um
combate rígido e gratuito ao signo verbal, mas de uma explo-
ração planificadas possibilidades encerradas em outros sig-
nos (não verbais). É bom lembrar que mesmo as estruturas
não se traduzem: são codificadas pelos processos que visam
à comunicação internacional” (Dias-Pino, s. d.).
7
Ver nota 4.
[ 263 ]
Dentro desses conceitos taxionômicos desenvolvidos
por Wlademir Dias-Pino quanto ao poema processo, propo-
nho aqui uma atualização para o meio digital:
Processos interativos:
[ 264 ]
cally, for Landow, hypertext can be defined as a technology
of text put into a web that can make clear the intertextuality
inherent in literary works” (Meneses; Azevedo, 2004, 2000).
Para analisar essas mudanças, teremos de levar em
consideração um argumento que defendo desde o Collo-
quium de Cerisy La Salle em 2004,8 organizado por Jean
Pierre Balpe e Manuela de Barros. Tudo que adquirimos por
meio da linguagem digital tem o sentido de produção de ar-
ticulação sígnica. Não há mais a manipulação em termos de
montagem; tudo nessa escritura em expansão é articulado.
A poesia digital coloca a produção numa nova escala alfabé-
tica – de escrita – gerenciando máquinas que integram essa
articulação.
A composição, que desta formação sígnica se integra
para se expandir, faz com que as diferenças de códigos de-
sapareçam, formando uma espécie de pulsar e quasar da
linguagem humana, porque não há aqui uma tecnologia ape-
nas mediática ou intermediática, mas uma tecnologia que
insere e intervém, alterando os signos como processo em sis-
tema de escritura:
8
Esse texto está publicado em L’art a-t-il besoin du numérique? Colloque de
Cerisy. Org. Jean Pierre Balpe e Manuela Barros. Lavoisier, Paris, 2006.
[ 265 ]
núcleo de signos se expandindo, criando um corpo virtual,
que existe potencialmente como poética, mas nunca estará
pronto, definido, acabado ou reconhecido, e isso para a espé-
cie humana, que criou sinais e inventou tecnologias para seu
memorial, passa a ser difícil de aceitar:
Os aspectos culturais quanto à credibilidade da compreensão e
a produção de conhecimento estavam ligados apenas à tecnolo-
gia da escrita, como questiona Alberto Manguel (1997). Assim,
veremos que as tentativas de uma prática semiótica nos tornam
atentos ao fato de que o código verbal, como agente articulador
de signos – software –, fez mudar seu referencial de arbitrarie-
dade deste “vir a ser” histórico como forma de registro. Com o
mundo da escritura numérica advindo da cultura dos suportes
digitais, a linguagem verbal, que tem como modelo um alfabeto,
teve sua práxis há muito transformada na obtenção para o que
chamar de conteúdo analítico. Com esta tradição, notamos que
o algoritmo nada mais é do que uma escritura que, a cada dia,
deixa de ser um modelo matemático de simulação, passando à
condição de intercódigo hipermídia ou escritura expandida (Aze-
vedo, 2004, p. 7).
[ 266 ]
século deixará de ser inevitável pensarmos em novos ins-
trumentos de análise, porque a poesia digital como produ-
to hipermídia e de natureza plural envolve outras ciências
além da semiologia linguística. De tudo que entendemos por
discurso, ainda podemos dizer que estamos fazendo poesia,
e este como processo semiótico; a pesquisa agora deve se vol-
tar para o experimento poético que vem potencializando seu
significado pelo que nos aculturamos, ou seja, os códigos e
seus suportes tradicionais.
Todo o invento performático da vanguarda poética, o
tempo e o espaço – cronotopos poético –, a poesia esteve su-
jeita por séculos ao espaço bidimensional do papel. Mesmo
que mais tarde tenham surgido os novos meios eletroeletrô-
nicos, sua espacialidade sempre foi uma espécie de ilusão de
nossa percepção.
Na ambiência digital, o que noto é que o significado das
palavras não cabe mais nelas mesmas, assim como mate-
maticamente há um lado escuro do cubo e sua existência,
apenas não conseguimos vê-lo. A palavra nessa ambiência
digital parece sofrer do mesmo problema, há um significado
que não mais está ligado a um signo usual ou poético, mas a
um signo que se mostra em expansão, dilatando-se; ele está
lá, mas só é detectado pelos seus componentes binários.
O mesmo ocorre com a maioria dos poemas digitais;
eles surgem e são palavras, sons e imagens que aparecem
e somem continuamente em situações de significados variá-
veis dentro de sua própria sintaxe, ou melhor, dentro de sua
propriedade programática, o que acaba determinando o seu
movimento ambiental. Esse espaço de obscurecência decor-
rente dos signos, que se encontram em movimento, dá às
palavras e aos sinais, ou o que quer que seja, um estado de
flutuação, quase uma lexicografia de aparição de possíveis
significados. Só com muita acuidade e percepção sobre esse
[ 267 ]
novo comportamento dos códigos, que se deslocam e se ex-
pandem – fusão – como um processo poético, é que podemos,
então, chamá-lo de fazer poesia, não porque há palavras ou
aparentes jogos semânticos de significado, mas porque o que
estamos presenciando é um alto nível de variabilidade não
“do” espaço /tempo, e sim “no” espaço/tempo.
Para apontar esses fenômenos semióticos que a natu-
reza do suporte tecnológico transforma em novos fenômenos
epistemológicos, torna-se necessário criar uma tecnologia
para uma análise mais segura de novos componente signos
que nos aparecem em forma semelhante a um poema. Os
únicos instrumentos que há séculos temos para analisar e
fomentar o significado histórico de um poema têm sido a lin-
guística e a análise do discurso semiológico, que sempre se
mostraram como tábulas rasas, nas quais o código analisado
se atualizava por ele mesmo se aferido dentro das regras,
nunca pela contribuição de outra natureza científica.
Agora o que notamos é um processo de significado vari-
ável no qual o papel não mais existe, o espaço bidimensional
deixou de existir e, como se trata de poemas que se demons-
tram através de evocação matemática, que são os progra-
mas, esses instrumentos para uma medida mais criteriosa
são mais que necessários. Já é de longe que deixamos de
analisar atividades artísticas e poéticas pelo que sentimos,
ou pelo nosso sentimento. Essa atitude não tira do autor ou
do leitor o direito de chorar ou rir diante de um verso ou uma
palavra, mas a tecnologia surge em nossa sociedade quase
como uma demonstração do limite de nossa percepção hu-
mana.
Os limites de um poema agora são imensuráveis, não
dependem mais de sua língua de origem, de haver necessa-
riamente palavras, o que tornou nossos códigos de relacio-
namento humano muito denso, como a palavra, que ganha
[ 268 ]
espaço principalmente no que nela não está revelado, no seu
lado escuro do significado, em que nada estará nunca pronto.
Se antes demorávamos muito tempo para que uma pa-
lavra perdesse seu significado, me arriscaria a dizer que com
o tempo o significado de uma palavra poderá durar semanas,
dias ou horas, isto porque o seu significado estará ligado a
sua variável de mutabilidade cronotopo – já que percebemos,
na poesia digital, a mutação de espaço temporal no qual se
alojam os sons, as imagens e as palavras e que se tornam em
rotas de signo. Nossa dificuldade, para certas análises do
signo e suas variáveis poéticas, está nesse impasse.
Não podemos tocar um poema digital, cheirá-lo, prová-
lo, aumentar seu tamanho físico, apontar como vejo a escri-
tura expandida, rejeitando totalmente o conceito de hibridis-
mo em sistemas digitais. Não foi e nunca será para que eu
dê início a uma análise de “como funciona”, com finalidade
utilitária, como acontece no design. Minha intenção aqui
sempre foi e será a de introduzir no universo da poética no-
vos repertórios para a compreensão, ao invés de colocar uma
camisa-de-força científica, cujo ato de fazer poesia desapare-
ça. Essas características que apontei são apenas para tentar
localizar o foco de meu problema.
A funcionalidade dessa forma de poesia passa a ser uma
aparente imprevisibilidade e a não periodicidade de seus
acontecimentos. A dependência exercida por um programa
existe, mas é aí que surgem a poesia e o poeta, que são suas
possibilidades de atualização num programa disponível, e a
maneira que essa poesia vai sendo processada poderá mudar
na intenção das possibilidades de suas regras, mas apenas
na intenção.
A tentativa neste trabalho foi mostrar o quão mutável
está sendo nossa aquisição do fazer poético – espaçotempo-
ral – em que se alojam os sons, as imagens e as palavras
[ 269 ]
em uma mesma ambiência. Poesia digital nos aparece em
rotas de signos, imprevisíveis, de periodicidade intersígni-
ca e indeterminada, na qual a programação ganhará outros
terrenos, cada vez mais interativos, assim como num alfa-
beto. Nem por isso se deixou de fazer poesia por todos estes
séculos. A edição programática hoje já é linguagem pronta e
continuará gerando outros formatos nessa ambiência, para
que a escritura digital expandida encontre espaço para sua
expansão de signos em rotação e, quem sabe, não precisare-
mos mais de tradução.
Referências
JENNERET, Yves. Límagineire de L’Ecran/Screen imaginary. Nova
York: Rodopi B. V. Amsterdam, 2004.
MENEZES, Philadelpho; AZEVEDO, Wilton. Interactive poems: in-
tersign perspective for experimental poetry. In: ROELENS, Nathalie;
DIAS-PINO, Wlademir. Processo: linguagem e comunicação. Rio de
Janeiro: Vozes.
SANTARCANGELI, Paolo. El libro de los laberintos: historia de um
mito y de um símbolo. Prólogo de Humberto Eco. Ediciones Siruela,
1997.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. de Jerusa Pi-
res Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[ 270 ]
Autores (ou “navegadores”)
Alberto E. Martos García - é professor contratado Doutor da Universidade
de Extremadura, no Departamento de Didática de Ciências Sociais, de
Línguas e de Literaturas, na Faculdade de Educação, em Badajoz. É autor
da obra Introdución al mundo de las sagas. E-mail: aemargar@gmai.com
[ 271 ]
Miguel Rettenmaier - possui mestrado em Teoria da Literatura (1998) e
doutorado também em Teoria da Literatura (2002), ambos pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. No que se refere à área de
estudos literários, é pesquisador da obra de Josué Guimarães, coordenan-
do o Acervo Literário do Autor (ALJOG/UPF), além de desenvolver pro-
jetos na linha de pesquisa de “Leitura e formação de leitor”, focalizando
seus trabalhos na questão da leitura relacionada às múltiplas linguagens.
Atualmente coordena o programa de Pós-Graduação em Letras da UPF e
participa da Comissão Organizadora das Jornadas de Literatura de Pas-
so Fundo. Edita a seção “Tigre digital” na revista Tigre Albino. E-mail:
mrettenmaier@hotmail.com
[ 272 ]
de do Sul e pesquisadora do programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade de Passo Fundo. Coordena o Centro de Referência de Lite-
ratura e Multimeios – Mundo da Leitura – e as Jornadas Literárias de
Passo Fundo. Exerce atividades de ensino, pesquisa e extensão na área
de Letras, atuando principalmente na formação do leitor em múltiplas
linguagens.
[ 273 ]