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Índios célebres do rio grande do norte: a naturalidade de um herói indígena


na revista do IHG-RN

Jailma Nunes Viana de Oliveira


Graduanda em História - UERN

Resumo
O artigo tem como finalidade trabalhar com a discussão acerca dos ensaios publicados pelo
intelectual Luís Fernandes na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
(RIHG-RN) nos anos de 1904 e 1908, na seção dos Índios Célebres do Rio Grande do Norte. A história
do Estado estava sendo construída com vistas a incluir também as personalidades históricas que mais
contribuíram na formação do ser potiguar, e o elemento indígena teria papel importante nesse
processo. O interesse pela naturalidade de Antônio Felipe Camarão será uma das primeiras grandes
questões abordadas pela revista do Instituto que se configurava como um importante local de saber
e que aglutinava a mais importante elite política e intelectual da época interessada na construção de
uma história potiguar.
Palavras-chave: Felipe Camarão; História Potiguar; Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte.

Abstract
The article aims to work with intellectual essays published by Luís Fernandes in Journal of the
Institute of History and Geography of Rio Grande do Norte (RIHG-RN) in 1904 and 1908 in the section
Indians Celebretad of Rio Grande do Norte. The history of the state was being constructed with a
view to also include historical figures that contributed most in the formation of the potiguar, and the
indigenous element would have an important role in this process. The interest in naturalness Antonio
Felipe Camarão is one of the first major issues addressed by the magazine of the Institute that was
configured as an important place of knowing and agglutinated the most important political and
intellectual elite of the time interested in building this potiguar history.
Keywords: Felipe Camarão; Potiguar History; Institute of History and Geography of Rio Grande do
Norte.

O presente trabalho tem como base um dos capítulos escritos para a monografia Um
herói para a nação: a escrita sobre o indígena colonial para história do Rio Grande do Norte
no início do século XX, concluída em 2013. Nesse sentido, uma discussão mais geral dos
artigos publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
(RIHG-RN) por Luís Fernandes, no qual discorrerá em grande medida sobre o índio Felipe
Camarão, será nosso foco de análise, ao mesmo tempo em que nos permite compreender a
construção de um herói indígena, e também da visão que se tinha na época acerca do índio
como partícipe dessa história nacional. O ponto de vista racial continua presente, e dessa
forma, a “raça indígena” será interpretada por esse intelectual sob a luz da razão e da
verdade histórica que julgou empreender.
Iniciar uma discussão acerca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte (IHG-RN) é também incluir a importância que teve o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) para a constituição, anos depois, dos demais institutos regionais que seriam
instalados pelo Brasil com a finalidade de se pesquisar e escrever sobre a história local que
integraria a história nacional. Nesse aspecto, entender o papel que o IHGB possui na
formação de uma história nacional é entender ao mesmo tempo o quanto a história do
Brasil foi condicionada pelos intelectuais que logo se propuseram a realizar essa “árdua

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missão”, e que acabaram deixando marcado nas páginas dessa história tantas idealizações e
compreensões que precisam ser desconstruídas e distanciadas de um estereótipo ou
interpretadas sob um viés em que se faça jus, tanto ao pensamento da época de quem
escrevera – quem escreve não é nada mais do que fruto do seu tempo -, quanto levantar a
poeira de uma história encoberta onde jazem tantos sujeitos, e nesse processo os índios são
encontrados em uma posição de completa generalidade – ou mesmo dualidade – e cuja
história acabou sendo escrita por uma elite intelectual, que não buscava nestes sujeitos
nada mais do que uma gênese digna para o Brasil a fim de legitimar uma história política e
econômica que serviria apenas para poucos.
Acerca disso, é interessante a reflexão que Manoel Luiz Salgado Guimarães
(2011) faz sobre a escrita da história no século XIX, momento em que a história se
consolidava como disciplina, e tinha-se a construção de uma identidade da nação brasileira
sob a responsabilidade de uma elite letrada e homens de Estado. Portanto, que projeto
historiográfico seria o mais adequado para dar base a essa nação que seria imortalizada pela
história? A retórica da nacionalidade seria uma saída para empreender esse projeto,
constituindo-se em um “conjunto de estratégias discursivas cuja característica é a dispersão
de seus elementos constituintes, utilizadas para persuadir os brasileiros de que “[...]
compartilhavam um passado comum e, consequentemente, a mesma origem e identidade”
(KNAUSS, CEZAR, 2011, p. 13).
Outro ponto importante é pensar como se deu a formação dessa elite letrada
que irá dominar as produções historiográficas no século XIX e consequentemente uma
história da nação. Se a Espanha desde cedo autorizou a criação de universidades em suas
colônias, a elite portuguesa dispunha apenas, de imediato, da Universidade de Coimbra,
situada em Portugal, onde tal concentração fez com que houvesse uma “homogeneização
intelectual da elite letrada do Brasil”. Formando seu próprio público, tal elite não imaginava
uma separação real de Portugal, mesmo após a Independência – que fora negociada –
temendo uma “anarquia”. (cf. Guimarães, 2011, p. 36 e 48). Mesmo assim, ocorrendo tal
independência política, viu-se a necessidade de uma independência cultural, no qual se
percebe os intelectuais românticos tomando a frente nessa missão.
Assim, os primeiros relatos sobre a colonização portuguesa e os indígenas
passaram a ter bastante importância no século XIX, no qual podemos perceber, de fato, de
que forma tais visões iniciais influenciaram e permaneceram no ideário que o intelectual
daquele século e do início do século XX tiveram acerca dos índios. Monteiro (2001, p. 13), ao
analisar a obra do português Gabriel Soares de Sousa tanto no contexto do século XVI,
quanto quando é revisitado no século XIX pelos intelectuais, percebe que historiadores
acabaram formando uma imagem estática do indígena colonial, ignorando suas
transformações após a chegada do europeu na América, aparecendo como povos “originais,
atemporais e imutáveis”.
O historiador John Monteiro também aponta para o tom memorialista com que
foram tratados os índios Tupinambá, ao mesmo tempo em que Soares de Sousa buscou
justificar a conquista portuguesa. Paralelamente, os “Tapuia” pareciam-lhe o oposto dos
Tupi, “castas” pensadas em suas diferenças e cada qual unificando aspectos culturais e
linguísticos de grupos indígenas que possuíam especificidades que iam além da divisão por
“castas” que buscou abranger os índios. Porém, Soares de Sousa ficaria por duzentos anos
sem suscitar nenhum interesse, este resgatado em princípios do século XIX, tendo Francisco
Adolfo de Varnhagen dispendido bastante atenção para os escritos, principalmente por ser

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um intelectual ligado ao IHGB e empenhado numa “tradição histórica nacional”, resgatando


e recuperando textos importantes na constituição das origens do Brasil.
Monteiro (2001, p. 27) ainda ressalta que “na obra de Varnhagen, o papel que os
índios desempenhariam nesse projeto estava claramente delimitado desde o início, uma vez
que este autor assimilava explicitamente a postura pessimista que Carl Friedrich von Martius
propagava”. Este venceu o concurso lançado pela revista do IHGB em 1847 e sobre os
indígenas brasileiros escreveu como sendo certo no futuro que estes completamente
desapareceriam. Reconfigurando a dicotomia Tupi-Tapuia, os historiadores do império
acrescentaram “um novo eixo temporal à análise”. Como se pode perceber:

[...] Os Tupi foram relegados a um passado remoto, quando contribuíram de


maneira heroica à consolidação da presença portuguesa através das alianças
políticas e matrimoniais. Mas as gerações subsequentes cederam o lugar para a
civilização superior, deixando algumas marcas para a posteridade, inscritas nos
topônimos, nos descendentes mestiços e na persistência da língua geral que, no
século XIX, ainda vigorava entre algumas populações regionais e era cultivada por
setores das elites imperiais como a autêntica língua nacional. [...] Os Tapuia, por
seu turno, situavam-se no pólo oposto, apesar das abundantes evidências
históricas que mostravam uma realidade mais ambígua. Retratados no mais das
vezes como inimigos e não como aliados – dos portugueses, bem entendido –
representavam o traiçoeiro selvagem, obstáculo no caminho da civilização, muito
distinto do nobre guerreiro que acabou se submetendo ao domínio colonial [...]
(MONTEIRO, 2001, p. 29-30).

Nesse sentido, O IHGB surge após um momento de independência do Brasil e o


IHG-RN em um contexto pós-proclamação da República. Mas ambos se constituíram como
lugares científicos, onde novos modelos e necessidades estavam em curso, novas
conjunturas e o saber ali produzido estava indissociavelmente ligado a esses institutos. O
IHG-RN estava inserido em um campo fechado onde uma intelectualidade trabalhava a
partir de uma prática histórica e distinta da sociedade. Nesse campo, as ideias adquiriam
uma relatividade que resistia, devido ao isolamento do grupo, privilegiado e munido de
determinada autonomia ideológica. Ou seja, o discurso científico da época ignorava uma
função social da história, não pensada pelas leis e o grupo de intelectuais, nem de examinar
o poder que havia em suas decisões pessoais perante o público leitor.
Como coloca Certeau (2008, p. 66), “a operação histórica se refere à combinação
de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita”. Desse modo, o IHG-RN no início
do século XX esteve inserido em um contexto que o denotava como um dos principais
lugares de produção de conhecimento no Estado. Sendo um espaço com suas imposições e
privilégios, composto, sobretudo, por uma “categoria de letrados”, os documentos e ensaios
publicados na Revista foram organizados seguindo uma linha de particularidades,
funcionando a partir de um método historiográfico que frisava um sentido linear em suas
questões: resolver a princípio quem constituiu o rol de personalidades importantes e os
heróis potiguares na gênese de uma história potiguar.
Tomando as primeiras páginas de alguns volumes publicados da Revista do IHG-
RN em sua primeira década, verificar-se frases que indicam o norteamento da concepção de
história dos intelectuais sócios do instituto. Por exemplo, frase de J. de Maistre, um filósofo
francês: “Nada do que é grande, começou grande”; Alexandre de Gusmão, diplomata
brasileiro: “Procura ressuscitar também as memórias da pátria da indigna obscuridade em
que jaziam até agora”; Alexandre Herculano, historiador e político português:

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“Reimprimamos os nossos cronistas; revolvamos os arquivos; estudemos os monumentos, as


leis, os usos, as crenças, os livros, herdados de avoengos”; e o filósofo romano Cícero:
“Historia magistral vitae, lux veritates”.
Destas frases podemos analisar o teor científico e patriótico que o instituto
deveria assumir, valorizando aqueles que os antecederam na escrita de uma história da
pátria, apesar dela ainda não possuir essa objetividade de se constituir uma nação brasileira,
mas são importantes na medida em que dão base para se partir de um começo que deve dar
orgulho para o brasileiro. Sobre a célebre frase de Cícero aplicada ao Rio Grande do Norte,
vemos que:

O axioma historia magistral vitae, no caso da escrita da história do Rio Grande do


Norte, era tomado com um exemplo cuja repetição se deveria evitar a todo custo.
Seu espaço de experiência indicava a necessidade de encetar um horizonte distinto
de expectativa. Era preciso tomar outro curso, promover a mudança, buscar um
novo norte. É assim que o projeto de uma identidade atrelada ao sonho, ao desejo
de modernidade vai sendo construído para o potiguar (GOMES NETO, 2011, p.
142).

O papel dos estudiosos no início do século XX seria, portanto, dar continuidade


aos registros de “acontecimentos e vidas que mereçam [ser] lembrados na crônica do
mundo” (RIHG-RN, 1903, p. 3). Para se realizar a pesquisa já eram conhecidas instituições
que serviriam de base para iniciar os estudos: as associações e os institutos de arqueologia,
história, geografia e etnografia, estes, possuidores de amplo material e “velhos
documentos”. Ainda é evidenciado a importância e o orgulho que se tem da presença
portuguesa na colonização brasileira, onde a história seria escrita a partir do legado da
dinastia de Aviz, “em que Oliveira Martins imortalizou, em livros que ficaram, a ‘invicta
geração’ dos portugueses” (idem, p. 4).
Luís Manuel Fernandes Sobrinho, um homem típico da intelectualidade potiguar
na época, poeta, jornalista, desembargador e ensaísta, ao publicar seu ensaio na Revista do
IHG-RN e apresenta-lo em uma sessão do instituto, o faz com base em critérios que buscam
justificar o seu trabalho, para àqueles interessados e preocupados com a formação política e
social do Estado e também para outros núcleos intelectuais, mas inseridos no mesmo
âmbito institucional, onde se apreciará essa produção e considerará válida perante seus
pares. O mesmo se encontrava em um contexto onde eram comuns produções voltadas para
uma história da nação, dentro de um núcleo intelectualizado, mas com diversas formações –
sendo os mais recorrentes os ligados à área jurídica – que na sua escrita protegia interesses
ou ideias para blindar-se uma causa importante – como a nacionalidade e a ligação do índio
Camarão com a história do Rio Grande do Norte. Associava-se assim a produções de
abrangência local ou regional.
É pela percepção da omissão em um discurso que podemos perceber e
interpretar o funcionamento da história que se pretendia escrever nos ensaios publicados
por Luís Fernandes. Partindo de um lugar, este assume um discurso individual que
representará o seu local de fala. Portanto, o negativismo colocado sob o índio que não
contribuiu com o português, dá lugar a um tipo de índio privilegiado como um exemplo
determinado do que se queria para a instituição de um herói indígena encontrado em Felipe
Camarão. Porém, tal “homenagem póstuma é polissêmica”:

Afinal, os índios potiguar antes referenciados como canibais, selvagens, bárbaros,


foram depois “convertidos” à fé cristã. Vitimados pelo aparato repressivo de que

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dispunha o colonizador, foram “convidados” a sair de cena, ou nas palavras de


Cascudo (1999), consentiram em desaparecer, para que a obra da colonização
seguisse seu curso. Antônio Felipe Camarão representava a vitória da “operação
civilizatória” encetada pelo homem branco e a aposta de que, no futuro, seria
possível se construir nesta espacialidade, uma civilização nos moldes europeus.
(GOMES NETO, 2011, p. 108).

Nesse sentido é interditada a influencia daquele índio que causou problemas e


não se adequa ao perfil de um herói indígena pretendido pelos intelectuais do IHG-RN.
Escrevendo a partir deste, objetivando contribuir na discussão sobre a história indígena
potiguar, o ensaio de Luís Fernandes acerca do índio Camarão nos mostra uma análise do
índio Tupi e a ausência do índio “Tapuia” como constituinte de uma história para o Rio
Grande do Norte. Os “Tapuia” seriam personagens de outra história, figurando na crônica
daqueles a quem eles se aliaram. Assim, o ensaio tomado em seu aspecto geral, teve como
recorte a trajetória de Camarão em paralelo com a crítica aos argumentos de Francisco
Augusto Pereira da Costa.
Os propósitos de se escrever e publicar tal ensaio na primeira edição da Revista
do IHG-RN adveio, sobretudo, por meio de uma discussão da época entre alguns intelectuais
acerca da naturalidade do índio Felipe Camarão, visto que Rio Grande do Norte,
Pernambuco, Ceará e Paraíba eram os principais interessados. Dessa forma, era um dever
das “autoridades literárias” ou intelectuais defenderem tal naturalidade para o Rio Grande
do Norte, visto que de Pernambuco havia quem defendesse para o Estado a origem do
aclamado indígena, assim como haviam aparecido trabalhos sobre o Ceará nesse sentido.
Portanto, era uma questão de defender para o Rio Grande do Norte a origem de um herói
que viria honrar a história do Estado potiguar e ser o “berço” de um dos grandes aliados da
Conquista portuguesa.
Tal investida seria feita contra o Dr. Francisco Augusto Pereira da Costa, membro
do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, a partir de um trabalho publicado no
Jornal do Recife em novembro de 1903. Logicamente, o tom utilizado por Luís Fernandes ao
criticá-lo em seu ensaio, esteve repleto de ironia, mas o mesmo faz questão de demonstrar,
previamente, respeito pelas argumentações do seu “ilustrado” colega. Não obstante, Luís
Fernandes deixa bem claro com quais métodos realizaria seu trabalho e refutaria as
questões postas por Pereira da Costa:

[...] porque nesses estudos vamos beber a verdade nas fontes brumosas dos
primitivos tempos de nossa história, e aí muitas vezes ela nos escapa à falta
absoluta de dados certos e positivos que nos guiem o espírito em suas
investigações. Então, só um procedimento deve ter o historiador ou cronista
imparcial e desapaixonado: estudar os fatos à luz da razão e descobrir neles a
verdade conforme os princípios da verdadeira crítica histórica (FERNANDES, 1904,
p. 141).

Luís Fernandes (1904, p. 144) possuiu como base para a escrita do seu ensaio
livros de cronistas como Cândido Mendes, Porto Seguro, Gabriel Soares de Souza, Southey,
escritos de padres jesuítas como o Pe. José de Moraes, além de ter tido acesso a
documentos da Coleção de Notícias publicadas pela Academia Real das Ciências de Lisboa e
fontes publicadas na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. A estes,
toma-os como historiadores, e o Visconde de Porto Seguro como “incontestavelmente o
príncipe dos historiadores brasileiros”, devido a sua conclusão de que Camarão era do Rio

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Grande, demonstrando “elevação de espírito e alto critério”. Mas o autor demonstra


também ter consciência da história que intencionou fazer acerca do Camarão:

Já longe vão, felizmente, os tempos em que as asserções escritas eram aceitas sem
exame, hoje estudam-se os fatos, confrontam-se os documentos e nenhuma
afirmativa, por mais respeitável e acatado que seja o seu autor, é tida como
verdadeira senão depois de inteligentemente depurada no cadinho da crítica
histórica (FERNANDES, 1904, p. 218).

Dessa forma, os holandeses foram traiçoeiros, e nesse mesmo grupo estariam os


“Tapuias”, a quem Camarão também teve de lutar em favor da causa lusitana. Um dos
acontecimentos mais disseminados sobre os indígenas no Rio Grande do Norte, “o massacre
de Cunhaú e Uruacú” é para Luís Fernandes um momento em que Camarão demonstra a
“coragem e disciplina de seus índios” frente aqueles índios bárbaros guiados pelos
holandeses, tão bárbaros quanto, apesar dos nomes cristãos. Em nenhum momento o autor
considera que Camarão teria desistido da aliança com os portugueses, onde uma carta
mandada por Camarão ao Conde de Nassau não teria abalado sua lealdade.
A ideia que passa, afinal, é que Camarão seria incorruptível. Discutindo a idade
do Camarão e reforçando sua naturalidade do Rio Grande, o autor quebra a oposição das
opiniões ao considerar Camarão um índio pernambucano devido aos seus anseios de ajudar
a pátria por uma causa em comum, e isso poderia ser tomado como verdade, já que um
herói nacional não dispensa o seu sentimento por nenhum lugar no qual tenha lutado.
Sendo irrefutável a conclusão de que Camarão era filho da capitania do Rio Grande e
concluído que não existiram índios Petiguares em Pernambuco antes de 1620, percebe-se o
sentimento de patriotismo e defesa de um herói para o Estado do Rio Grande do Norte.
Em todos os três tópicos do qual Luís Fernandes subdivide seu trabalho no
ensaio publicado na Revista em 1904, atribuiu a Camarão um adjetivo: selvagem,
catecúmeno e herói, em paralelo também às mudanças do seu nome, adquirindo uma
acepção cristã. Demonstração de uma divisão pautada no progresso da biografia desse
indígena, onde de um índio selvagem e volúvel, Camarão passa a um aprendiz que consegue
desenvolver e atrair o interesse do europeu para o que ele possuía de melhor: sua lealdade
como vassalo do poder colonial português na América, o que fez com que o herói nacional
que tanto o europeu precisou em suas batalhas, estivesse presente, incondicionalmente.
Por fim, em 1908 é publicado um dos últimos textos escritos por Luís Fernandes
da série de ensaios sobre o índio Camarão ser natural do Rio Grande do Norte, antiga
capitania do Rio Grande. O texto, titulado “Última verba” já fora publicado no final de 1907
no jornal A República. Trata de refutar, mais uma vez, argumentos publicados no Diário de
Pernambuco (n. 224) sobre Camarão ter nascido em Pernambuco. Retorna ao documento
em que Capistrano de Abreu e o Barão de Studart encontraram onde diz Camarão ter
nascido no ano de 1601. Fernandes (1908) compreende que ao Capistrano de Abreu utilizar
o termo “infere-se” para chegar a sua conclusão, “é possível que nós, e conosco muita
gente, não infiramos; porque as inferências não se impõem, dependem do modo de encarar
o trecho submetido à nossa apreciação” (p. 144).
A preocupação de Fernandes (1908), todavia, gira em torno da crítica ao opinar
que “um homem da estatura literária” de Capistrano de Abreu estaria errado, e para se
justificar escreve o ensaio com vistas a retificar sua opinião, mas também demonstrar seu
respeito pela autoridade dos estudos de Capistrano de Abreu. Já que Fernandes (1908) não
teve contato com o referido documento quando de sua crítica, lamenta ter lhe faltado a

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devida paciência, onde estando em sua “obscuridade de provinciano atrasado” não esperou
que fosse publicado antes de sua crítica.
Chega então à conclusão de que Capistrano de Abreu estava certo, e que
Camarão nascera realmente em 1601, e o parabeniza, “por ter dado o tiro de morte neste
ponto de nossa controvérsia com os pernambucanos”. Recusando assim, a afirmação de
Porto Seguro de que teria nascido em 1580, Fernandes (1908) tem como dada a última
palavra. Porém sua concordata não seria geral, já que se nascera em 1601 não fora em
Pernambuco. Segundo “a rabulice literária” de sua terra, Fernandes (1908) insiste em
discordar dessa questão, analisando a passagem transcrita no Diário de Pernambuco quando
Camarão é interpelado sobre o padre Manoel de Moraes. Explica-se:

Não, não somos usurpadores, nem para servir-me da expressão de ilustre


pernambucano, infelizmente já falecido – ambicionamos para nossa terra glórias
que lhe não pertencem; cedemos, como acabamos de fazer com toda a lealdade.
Mas – convença-se o articulista pernambucano – sofismas e afirmações inanes não
passarão sem reparo e só cederemos à evidência (FERNANDES, 1908, p. 148).

Verifica-se que o autor faz questão de demonstrar a subalternidade do


conhecimento potiguar, ou seja, tratando aqueles que escrevem no Rio Grande do Norte
ironicamente como “usurpadores”, exercendo um “provincianismo atrasado” e realizando
“rabulice literária”. E como último argumento de fôlego, irredutível, o autor complementa:

Camarão entra para o cenário histórico, indo apresentar-se a Mathias de


Albuquerque para servir a Sua Majestade na guerra contra os holandeses, em 1630,
com 29 anos de idade e já principal e capitão de sua aldeia e de outras que lhe
eram subordinadas, segundo o testemunho do contemporâneo frei Manuel Calado.
Ora, se era, como afirma seu companheiro d’armas Duarte de Albuquerque,
sobrinho de Jaguarary, o famoso chefe potyguar que durante muitos anos estivera
preso nos cárceres da fortaleza dos Reis Magos, d’onde saíra por ocasião da
conquista da Capitania pelos holandeses; se era filho do velho Potyguassú, o
poderoso chefe da aldeia de Ygapó, no Rio Grande do Norte, como conjeturava
Cândido Mendes e afirma agora Rocha Pombo em sua excelente História do Brasil,
Potyguassú, o mesmo que a benevolência pernambucana nos concede e faz
desaparecer no Ceará em 1614; - como despresarem-se todas estas provas
circunstanciais, de eloquência esmagadora em nosso favor, e outras mais
constantes de nossas publicações anteriores, para afirmar que Camarão é natural
de Pernambuco, simplesmente porque está hoje provado que nasceu em 1601 e
com 28 anos de idade ali residia? (FERNANDES, 1908, p. 150-51).

Percebe-se com essas passagens que o autor só se deixou convencer por um


argumento contrário ao seu devido à “evidência”. Não tanto pela influencia que Capistrano
de Abreu possuía entre os intelectuais e por quem escrevia história, mas pela comprovação
do documento que encontrara. Quanto às evidências do local de seu nascimento ele parte
da própria família de Camarão que reconhecidamente vivia em aldeias situadas na capitania
do Rio Grande. Outro ponto interessante é que o “cenário histórico” a que Fernandes (1908)
se refere é justamente ao da historiografia europeia feita na América, onde os cronistas,
como ele próprio observou, irão tomar a sua ajuda na guerra contra os batavos como o
momento em que adquire visibilidade. Também não é à toa que Fernandes se refere a Rocha
Pombo, sendo que ele, posteriormente, seria um dos primeiros a publicar um livro
objetivando totalizar a história do Rio Grande do Norte desde as suas origens até aquele
momento. Esta visibilidade ainda possui um teor demarcado pelas escolhas do autor em

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também o escolhe-lo como herói indígena do Estado. O índio que originou o cidadão
potiguar deveria conter toda a carga de virtudes, coragem e liderança, o que explicaria
posteriormente a manutenção de tais virtudes em quem nascesse em solo potiguar.

Fontes:

Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal – Typographia d’O
SECULO, 1903. Vol. I. N. 1. p. 3-23.

FERNANDES, Luís. Índios Célebres do Rio Grande do Norte – D. Antonio Philippe Camarão.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Natal – Typographia d’O
SECULO, 1904. Vol. II. N. 2. p. 139-238.

FERNANDES, Luís. D. Antonio Felippe Camarão – Última verba. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Norte. Natal – Typographia d’O SECULO, 1908. Vol. VI. N. 1. p.
143-152.

Referências:

CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A escrita da história. 2 ed. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 65-109.

GOMES NETO, João Maurício. Entre a ausência declarada e a presença reclamada: a


identidade potiguar em questão. Natal: EdUFRN, 2011. 178p. – (Coleção Dissertações e Teses
do CCHLA-UFRN).

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857 / trad. Paulo
Knauss e Ina de Mendonça – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. Edições Anpuh. 284 p.

KNAUSS, Paulo. CEZAR, Temístocles. Prefácio: o historiador e o viajante – itinerário do Rio de


Janeiro a Jerusalém. In: Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857 / Manuel Luiz Salgado
Guimarães, trad. Paulo Knauss e Ina de Mendonça – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. p. 7-21.

MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História Indígena e do


Indigenismo. Campinas: Departamento de Antropologia, IFCH-Unicamp. Tese apresentada
para o Concurso de Livre Docência, 2001. 234 p.

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