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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

ENTRE A SOCIOEDUCAÇÃO E A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA: CONSIDERAÇÕES


SOBRE A EDUCAÇÃO PARA JOVENS EM VULNERABILIDADE SOCIAL

RAIANA CASSIA FULAN GOMES

RIO DE JANEIRO, RJ

2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Raiana Cassia Fulan Gomes

Entre a socioeducação e a medida socioeducativa: considerações sobre educação para jovens


em vulnerabilidade social

Trabalho de conclusão de curso de Psicologia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito
final para obtenção do grau de psicóloga.
Orientadora: Prof. Dr. Hebe Signorini Gonçalves

Rio de Janeiro, RJ. 2019


Dedico este trabalho aos adolescentes
que não só contribuíram para a pesquisa
e minha formação, mas também fizeram
as quartas pela manhã muito divertidas.
Agradecimentos

Agradeço primeiramente aos meus pais, por absolutamente tudo que fazem e sempre
fizeram por mim, palavras não são o suficiente para expressar o quanto o apoio de vocês é
fundamental. Também agradeço ao Mateus pelo suporte infinito, pelas conversas nas vezes
que eu achei que estava pesado demais e por fim, por acreditar tanto em mim.

Também sou muito grata à Hebe e a Yasmim, a primeira por sempre compartilhar o
seu conhecimento e estimular que a gente cresça, e por ser uma orientadora tão presente. A
segunda pela oportunidade de caminhar junto nessa pesquisa que foi fundamental para minha
formação, e por ser uma pessoa tão gentil e sensível. Sem esquecer de todo o grupo do
Psicologia e Direitos da Infância. Aprendi muito com todos vocês.

Agradeço a cada um que compartilhou um pouquinho da jornada comigo ao longo


desses anos de curso, sempre me ensinando algo novo, ou aliviando um pouco das tensões da
vida. Especialmente a Ana Herdt por fazer mais leve e iluminar tudo ao seu redor, e também
as demais, Desirée, Iza, Laíza, Dandara, Anna Abreu, Anna Becker, e tantas outras mulheres
maravilhosas que mais perto, ou mais longe, me inspiraram a ser uma pessoa melhor.

Também agradeço a toda equipe da unidade em que foi realizada a pesquisa pela
acolhida, pelas conversas valiosas, pelas entrevistas e pelo tempo cedido a nós. E a cada um
dos adolescentes que passou por “nossa” salinha, pelas risadas, histórias, e pelo sopro de vida
real que me trouxeram.

Às políticas públicas de assistência e permanência estudantil, sem as quais eu e muitos


outros sequer conseguiriam chegar ao final do curso.

Ao Bart, pela companhia, afeto e afago.


Resumo

A socioeducação é um campo controverso que desperta muito interesse por parte dos
pesquisadores e da população em geral. Diferentes projetos disputam espaço para definir o
rumo do atendimento aos adolescentes que cometem atos infracionais, e se faz importante
investigar como esses conflitos se manifestam na execução das medidas socioeducativas,
tanto teoricamente como na prática. Iremos analisar o papel da educação considerando o
público majoritário do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), composto
por adolescentes negros e pobres, e como isso se relaciona com o modelo pedagógico
salvacionista presente no atendimento socioeducativo.

Palavras chave: socioeducação, adolescentes, salvacionismo, educação.

Abstract

The social education is a controversial field that arouse concern on the part of the researchers
and population in general. Many different projects dispute space to define the course of the
social educational service to adolescents who commit infractions, and it is important to
investigate how these conflicts manifest themselves on the execution of the social educational
measures, both theoretically and in practice. We will analyze the role of education considering
the majority public of General Department of Social Educational Actions (DEGASE),
composed by black and poor adolescents, and how does it relate to the pedagogical
salvationist model present on the social educational attendance.

Key words: social education, adolescents, salvationism, education.


Sumário

Introdução 6

1. Educação Como Política Colonizadora 9

1.1. A quem e por quê? 9

1.2 Como? 12

2. Socioeducação: Educação e Punição 16

2.1. Como se conjuga o caráter sancionatório com o caráter educativo? 17

2.2. Sanção e punição 21

3. Educação na Socioeducação 26

3.1. Educação e adolescência: algumas armadilhas 27

3.2. Educação e controle 33

4. Proposições 37

4.1. O que é liberdade para você? 37

4.2. Pistas e rupturas 40

Conclusão 45

Bibliografia 47
6

Introdução

Este trabalho surge da integração da licenciatura em psicologia e da experiência com


adolescentes autores de atos infracionais. A primeira por conta das reflexões provocadas sobre
a grande área da educação, sua história, suas múltiplas aplicações e efeitos. A última, por
conta da pesquisa desenvolvida em uma unidade de semiliberdade no Departamento Geral de
Ações Socioeducativas (DEGASE), que se deu através do projeto de extensão Psicologia e
Direitos da Infância, integrada a uma pesquisa de mestrado sobre protagonismo juvenil, que
possibilitou a entrada em campo.

A pesquisa em campo durou aproximadamente três meses e se deu em dois momentos:


o primeiro foi a realização de grupos com os adolescentes para discutirmos questões como
liberdade e participação, com a produção de diários de campo de cada uma das reuniões. O
segundo consistiu em entrevistas semi estruturadas sobre a mesma temática com os
responsáveis e os profissionais (agentes, técnicos e gestores). Ao todo foram 17 entrevistados,
8 responsáveis e 9 funcionários da unidade, sendo estes agentes socioeducativos, técnicas e o
diretor da unidade..

Cumpriam medida na unidade 43 adolescentes no momento do início da pesquisa.


Destes, 23 manifestaram interesse em participar dos grupos, e foram sorteados 13.
Originalmente a pretensão era de abrir dez vagas; contávamos com as progressões de medida,
frequentes na semiliberdade, e também as possíveis desistências em participar da pesquisa. O
que não contávamos era com a fluidez dos grupos; alguns dos selecionados não quiseram
comparecer e outros entraram na sala, porém permaneciam pouco tempo, outros que não
haviam sido selecionados pediam para participar e outros espreitavam pelas janelas e portas.
Com isso, a cada semana nós recebíamos rostos diferentes, contando apenas com dois
adolescentes que permaneceram conosco do início ao fim; tivemos três que eram assíduos e
que receberam progressão de medida durante a pesquisa e dois outros que entraram depois e
também viraram figuras cativas, fora estes, era extremamente variável a composição das
reuniões, não só de uma semana para a outra mas também ao longo das suas duas horas de
duração.

Partindo desta experiência e de uma leitura prévia do Plano Político Institucional (PPI)
do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), algumas questões referentes
7

ao tratamento dispensado a esta população começaram a me mover, especialmente depois de


uma representação teatral que nos provocou incômodo e retratou de modo cristalino que tipo
de educação se pretende para esses jovens. Esse incômodo ganhou nome através da leitura de
Anthony Platt: era de salvacionismo que se tratava, ou seja, uma ideologia de educação que se
baseia na ideia de “salvar” os pobres (em sua maioria negros) para preservar a ordem,
funcionando de modo essencialmente hierárquico e desconsiderando as características do
sujeito, compreendendo-o apenas como risco a ser neutralizado.

Historicamente, jovens, pobres e negros são subjugados e oprimidos das mais diversas
formas, e a educação foi uma delas. Diversos estudos situam a educação no Brasil no século
XIX como colonizadora, ou seja, a sua proposta era a de incutir a moral e os ideais burgueses
na população mais desfavorecida, para realizar sua transformação e com isso transformar
também o país, considerando o ideal de nação eurocêntrico adotado aqui.

Esse segmento da população se torna foco dessa intervenção por um processo que a
levou a ser associada à vadiagem, às doenças, ao crime e a uma série de outros estigmas, mas
principalmente na associação ao risco. Isto é relevante pois até hoje influencia o tratamento
dispensado aos mesmos, como constatado ao observar que os mesmos caracteres de raça,
classe social e idade são os que mais engrossam a população carcerária do país, a população
atendida no DEGASE e também os que mais são assassinados pelas forças policiais.

Os adolescentes que cometem atos infracionais são enviados ao sistema


socioeducativo, que conjuga a execução das medidas sancionatórias à educação social, uma
modalidade pedagógica voltada para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Essa
junção diz respeito a uma disputa entre forças conservadoras e progressistas, na qual a
primeira atende ao clamor punitivo da sociedade em relação ao infrator, e a segunda entende
que a punição não oferece resultados positivos, e por isso privilegia o caráter educativo.

Essa contradição entre as duas faces da medida socioeducativa já levanta uma série de
questões mas, para além delas, é possível também pôr em cheque que projeto pedagógico é
este. A proposta educativa apresenta a autonomia e o protagonismo dos jovens como meta,
porém, na medida em que analisamos o teor da socioeducação em documentos oficiais como
o PPI do DEGASE, percebemos que diferentes intenções se apropriam do discurso,
evidenciando conflitos na própria teoria, e entre teoria e prática.
8

Com isto, propomos uma reflexão sobre educação para classes vulneráveis que parte
do referencial da pedagogia e da psicologia da libertação, traçando um diálogo entre Ignácio
Martín-Baró e Paulo Freire para pensar a socioeducação não apenas questionando suas
práticas mas também propondo algumas pistas para a socioeducação.
9

1. Educação Como Política Colonizadora

A história está ligada a práticas e não ao tempo em si. Ela se organiza como parâmetro
às relações de poder e sentido, e não à cronologia: não é o tempo cronológico que
organiza a história, mas a relação de poder. (Orlandi, 1990, como citado em Ayres,
Cardoso & Pereira, 2009, p.127)

Para melhor entender os acontecimentos do presente é essencial voltar o olhar também


ao passado. Alguns desdobramentos que analisaremos neste trabalho remetem a longos
processos históricos que constituem nosso país, como a desigualdade social e seu reflexo nas
famílias pobres; o racismo; a educação moralizadora, entre outros. Neste capítulo, será
apresentado um panorama que servirá de contexto para a compreensão de como a educação e
a punição comparecem juntas nesse complexo sistema que é o socioeducativo.

1.1 A quem e por quê?

No século XIX, o panorama do Brasil era bastante problemático: o país enfrentava


uma série de questões de ordem econômica e social que desembocavam em grandes
desigualdades, pois enquanto alguns enriqueciam, outros se tornavam cada vez mais pobres.
Em sua maioria negros, ex-escravizados, viviam nas ruas (Feitosa & Boarini, 2014) ou em
moradias precárias, como cortiços, sem acesso a condições básicas de existência.

Além disso, contavam com franca desigualdade de oportunidades, já que era esperado
que os ex-escravizados realizassem os trabalhos mais árduos e de menor prestígio social. Isso
gerava conflitos, pois os negros não aceitavam sair de um regime de submissão para outro e,
por isso, alguns sobreviviam cometendo pequenos delitos e outros preferiam trabalhar por
conta própria (Duarte, 2008, p. 49), o que por si só já significava um desvio da ordem e da
moral burguesa.

Esse veio a se tornar um grande problema, e a imagem do pobre passou a ser atrelada à
vadiagem, à preguiça, ao caos e, posteriormente, ao perigo; desta maneira, a desordem social
passa gradativamente a ganhar cor e forma. Pastana (2007) faz uma análise sobre as obras de
10

diversos autores clássicos para se pensar no sistema penal atual, e discorre sobre uma espécie
de ódio que passa a ser nutrido por essa parcela da população - que por conta da recusa às
péssimas e escassas ofertas de trabalho poderia recorrer ao crime como modo de subsistência.
Assim é feita uma associação quase automática entre pobreza e crime. Esse conceito será
central para entendermos, no próximo capítulo, como a punição comparece enquanto clamor
popular.

Naquela época, o pensamento vigente era fortemente influenciado pelo higienismo,


pelo positivismo criminológico e pela eugenia. O higienismo foi um movimento médico que,
ao ser convocado para auxiliar a erradicar as diversas epidemias que se propagavam pela
cidade, promoveu a vinculação da pobreza com a doença, indicando os cortiços e seus
moradores como focos de disseminação (Duarte, 2008). Com o ideal de formar um “cidadão
apropriado” (Abreu & Carvalho, 2012, p. 447), as intervenções traziam forte apelo moral e
individualizante no sentido de isentar a sociedade da sua responsabilidade sobre as condições
de vida dos cidadãos em condição de pobreza.

A criminologia positiva, por sua vez, é uma escola criminológica que surge para dar
conta da questão do crime, e mais especificamente do criminoso (Maurício, 2015), com uma
visão determinista e psicopatologizante. Seus precursores defendiam que certos caracteres
biológicos eram determinantes do crime, tendo inclusive desenvolvido estudos para revelar
características físicas comuns aos criminosos.

A eugenia também é fortemente determinista, afirmando a superioridade da raça


branca sobre as outras. Essa corrente explicava que a genética era responsável por quaisquer
situações de desigualdade que se encontrassem, pois o pobre era pobre por sua natureza
inferior, “nascendo predestinado à pobreza” (Maciel, 1999, p.1). Com isso, justificava a
exclusão de toda miscigenação, pois pretendia que, com o embranquecimento da população,
cessassem os problemas sociais.

Esses três saberes, conjugados, fizeram com que os problemas de segurança e de saúde
pública fossem tratados como responsabilidade específica deste segmento da população (os
pobres e negros). O teor das três teorias se resume no entendimento de que a dificuldade
social era produto de fatores “hereditários, psicopatológicos, ou má influência de uma família
desestruturada ou contexto social” (Feitosa & Boarini, 2014, p. 127).
11

As dificuldades eram criadas sempre pelos indesejáveis que reincidem em


comportamentos de menor gravidade ou que, simplesmente, se manifestam de forma
indisciplinada. Estes seriam os inimigos ou estranhos mais complicados, pois
requerem vigilância, uma vez que, aos olhos do poder, são sempre potencialmente
perigosos. As dificuldades foram acentuadas com o crescimento das cidades e o
consequente enfraquecimento do controle social rural, espontâneo e estrito; se, no
começo, também os indesejáveis eram eliminados, o caráter gregário do ambiente
urbano, que além disso favorece a circulação de informações, foi pouco a pouco
tornando mais difícil o apelo a esse método: não só aqueles indesejáveis tendiam a
aglutinar-se e multiplicar-se como a população dificilmente toleraria a matança
indiscriminada e em massa. (Zaffaroni, 2007, como citado em Ferreira, 2010, pp. 62-
63).

Surge então a necessidade de agir sobre essa parcela da população, entendida como
problemática, para dar conta das demandas de controle. A medicina é então convocada para
essa tarefa, interferindo não só na questão das epidemias, mas na organização da cidade e na
prevenção dos males sociais; ganhou espaço o projeto de embranquecimento da população, já
que se entendia que “não era possível fazer uma grande nação com uma raça inferior, eivada
pela mestiçagem, como eram os brasileiros” (Mansanera & Silva, 2000, p. 119).

O higienismo se tornou a política dominante, e divulgava, inclusive por meio de


pesquisas científicas, o modo de vida europeu como o único correto, condenando as demais
formas de ser no mundo. Esse ideal começa a entrar nas famílias, estruturando papéis sociais e
construindo verdades. A escola não escapa a esse contexto, tornando-se uma ferramenta de
formação moral de crianças na tentativa de prevenir que estas se tornassem adultos
degradados, ou marginais.

A relação dessas propostas com o positivismo está em que, ao pensar sobre o crime, o
higienismo enfoca a mensuração das características do criminoso, e pretende com isso prever
e antecipar o cometimento do crime. Fortemente apoiado nessas concepções racistas, e
inspirado nos criminologistas italianos, o psiquiatra brasileiro Nina Rodrigues dedicou sua
carreira ao estudo da relação entre a criminalidade e o povo negro e mestiço, defendendo que
existiria uma diferença entre níveis de evolução e desenvolvimento mental de acordo com a
raça, conforme Marcela Franzen Rodrigues (2015). Assim, o Estado pode intervir nas
famílias, a partir de um viés de culpabilização e estigmatização da pobreza como
representante das mazelas sociais.
12

Esse contexto histórico, fortemente racista, é determinante para pensar os dias de hoje.
A desigualdade foi sendo produzida e fomentada a partir da marginalização das classes mais
pobres, admitindo que alguns indivíduos são dispensáveis econômica e socialmente,
representando inclusive uma ameaça que pode (e deve, segundo os interesses das classes
dominantes) ser neutralizada (Neuhold, 2018). Ademais, a questão da pobreza frequentemente
se mistura à questão racial, especialmente em um país como o Brasil, com longa história
escravista, e por conta disto é essencial fazer a diferenciação de como na história houve
tratamentos diferentes para os negros escravizados em relação aos negros livres. Isso será
importante para analisarmos adiante a educação.

Com esses princípios, embasados pelo saber científico da época, o Estado concentra o
poder e também “o dever de controlar, higienizar e punir a pobreza brasileira; com poderes
para, inclusive, retirar os filhos dos pais que não se adaptarem às regras familiares burguesas
estabelecidas” (Nascimento, Cunha & Vicente, 2008, p.6). E, ainda nos dias de hoje, justifica
a punição de famílias pobres com a alcunha de “negligentes”.

Em relação às crianças, não foi de imediato que as crianças abandonadas foram


associadas às famílias de escravos e pobres, justamente por essa massa também ser composta
por filhos bastardos das classes dominantes. Porém, conforme mais filhos de escravos libertos
passaram a se somar a esse grupo, o incômodo também cresceu (Nascimento et al., 2008), e a
educação comparece para dar conta desse contexto, conforme veremos a seguir.

1.2. Como?

Um dos primeiros registros da educação como a conhecemos hoje no Brasil parte do


século XVI, com a chegada dos jesuítas. Naquele contexto, educar era colonizar e “civilizar”
os indígenas com a linguagem, a religião e os demais recursos da cultura europeia (Kehler,
2014). Essa informação mostra que o uso da educação como forma de domesticação das
classes subalternas não é um fenômeno novo no Brasil. A influência da igreja na educação
seguiu até que o iluminismo, com seu apelo racionalista, fez com que a educação passasse a
ser exercida como laica e estatal, deslocando o poder da igreja. É só em 1930 que se cria o
ministério da educação, marcando a responsabilidade da república com o ensino.
13

Entre o final do século XIX e o início do século XX, a ideia de educação popular,
importada da Europa, começa a tomar espaço no Brasil; com o objetivo de abarcar um maior
número de crianças, essas escolas chegam com propostas de transformação social e de se
tornarem “redentoras da nação” (Pereira, Felipe & França, 2012, p. 244). Entretanto, a escola,
ainda que pública, não atingia todas as crianças brasileiras.

Apesar da escola pública brasileira nos primeiras décadas do século XX, ter como
objetivo a escolarização das camadas populares, só foram integrados aqueles
pertencentes aos setores ligados ao trabalho urbano, deste contingente ficaram fora da
instrução pública promovida pelo Estado os pobres, os miseráveis e os negros. Setores
que por volta de 1920 começam a reivindicar o seu espaço na instituição pública
escolar, despertando na elite brasileira a preocupação com organização do sistema
capitalista, que dependia da preparação da massa para o mercado de trabalho (Idem, p.
246).

Algumas forças exerciam influência sobre a educação no país, como a ideia difundida
pela Europa de que educação pública era uma ferramenta para o progresso e para a
diminuição das desigualdades sociais. Países latinos como a Argentina, o Chile e o Uruguai
também aderiram ao modelo (Saviani, 2014), indicando uma forte tendência de valorização da
educação pública visando as crianças e os pobres. Deste modo, era possível silenciar os
movimentos reivindicatórios por educação popular e, ao mesmo tempo, manter as práticas
conservadoras que excluíam setores das camadas populares.

Ao contrário do que se acredita, o ensino público não era vetado aos negros e pobres;
na verdade, estes seriam exatamente o público alvo da instituição escolar, já que “em geral,
crianças das famílias abastadas brancas buscavam meios próprios de educação de seus filhos,
por sua vez o discurso civilizador destinava-se àqueles que na percepção das elites careciam
de civilização” (Veiga, 2008, p. 504). A autora aponta que a proibição visava os escravos, e
não a população negra no geral. Conforme citado anteriormente, essa diferença precisa ser
compreendida para se compreender o interesse de se escolarizar.

Logo, assim como no período colonial os jesuítas colocavam a educação a serviço do


processo de colonização, na república ela também foi uma estratégia empregada para, de
acordo com os ideais da época, polir e incutir a moral burguesa entre os segmentos pobres da
sociedade. Tendo em vista o contexto social, econômico e racial do Brasil, a educação entra
em cena como uma possibilidade de solução de problemas, a “escola redentora da
humanidade” (Saviani, 2014, p. 16).
14

Essa ideia não é originalmente brasileira, inclusive o autor Anthony Platt faz uma
análise preciosa sobre esse tema no âmbito estadunidense, compilada no livro The child
savers: the invention of delinquency. Platt analisa o salvacionismo (child saving)
considerando seus interesses e repercussão. Esse fenômeno consiste na ideia de que as
crianças seriam o futuro e que “salvar as crianças era salvar o país” (Rizzini, 2002, p. 2), uma
proposta nomeada no cotidiano ora de assistência, ora de caridade. Apesar de até os dias de
hoje a prática estar fortemente atrelada a instituições religiosas, ela parte da responsabilização
do Estado em afastar a infância potencialmente perigosa dos vícios, das ruas, do crime.

Essa estratégia traz, através da escola, o controle social da população pobre. Em suma,
o público alvo da prática era selecionado pelas lentes do higienismo, ditando a necessidade de
intervenção sobre os pobres; a partir daí poderiam ser recolhidas as crianças que estivessem
“em estado de pobreza, sem roupa adequada para freqüentarem as escolas, ou que vivessem
mendigando” (Neder, 2004, p. 205). Segundo essa mesma autora, as crianças seriam enviadas
a instituições específicas para esse fim, as igrejas; depois de receberem instrução escolar
básica, poderiam também ser encaminhadas ao serviço militar.

A formalização legal sobre o menor dito em situação irregular nos Estados Unidos se
dá em 1899. No Brasil, o Código de Menores só surge em 1927, para tratar da
responsabilidade do Estado sobre essas crianças, e com isso se efetiva uma importante
mudança de cenário que reverbera até os dias de hoje no que chamamos sistema
socioeducativo.

A estruturação de um sistema de justiça juvenil legitimou o redimensionamento da


gestão da tutela de crianças e jovens de famílias consideradas degeneradas. Além
disso, confiou ao juiz a capacidade de gerar parens patriae (proteção) assumindo, sob o
duplo “tutela e proteção”, o processo de busca do “melhor interesse da criança”, em
nome do Estado. Este termo reverberará, no final do século XX, nos movimentos de
garantias para os direitos da criança na tentativa de descriminalizar o castigo por
meios pedagógicos e democráticos. Assim, o que acontece no final do século XIX é a
designação do Estado como principal mediador, mantendo sua jurisdição na execução
de um poder paternal de proteção, mas sem executar todo mecanismo de controle
disseminado em novos campos jurídicos do direito penal e assistências dos guardiões
(Oliveira, 2014, p. 128).
É pensando nessa conjuntura que daremos início à reflexão sobre as faces da
socioeducação. Em um primeiro momento, a análise enfoca os aspectos sancionatórios da
medida em contraponto a seus aspectos pedagógicos, ou seja, como se pensa e se faz
15

funcionar um sistema que pretende punir e educar ao mesmo tempo. Para tal, é preciso dar
importância a algumas características dessa população específica.

Segundo o levantamento do ano de 20161 do Sistema Nacional de Atendimento


Socioeducativo (SINASE), o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE)
atendia o total de 26.450 adolescentes em todo o país, dos quais “18.567 em medida de
internação (70%), 2.178 em regime de semiliberdade (8%) e 5.184 em internação provisória
(20%). Há, ainda, outros 334 adolescentes/jovens em atendimento inicial e 187 em internação
sanção” (p. 5). Dentre esses, 59,08% eram negros, 22,49% brancos, 0,91% amarelos e 0,98%
indígenas. Além disso, “16,54% dos adolescentes e jovens não tiveram registro quanto à sua
cor ou raça, sendo classificados na categoria sem informação” (Ministério dos Direitos
Humanos, 2018, p.9).

Esses dados se fazem relevantes para situar que, apesar do longo percurso histórico, o
sistema socioeducativo ainda atende majoritariamente adolescentes negros. Informações sobre
escolaridade e nível econômico não aparecem neste levantamento anteriormente citado ou em
algum outro levantamento do estado do Rio de Janeiro.

1
Dados correspondentes ao dia 30 de novembro de 2016, embora o relatório só tenha sido divulgado em 2018.
16

2. Socioeducação: Educação e Punição

A socioeducação surge como uma proposta de reformular o modo como a


adolescência em conflito com a lei vinha sendo tratada até a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. Conforme o dicionário do sistema socioeducativo
do Estado do Rio de Janeiro, “O conceito de socioeducação ou educação social [...] destaca e
privilegia o aprendizado para o convívio social e para o exercício da cidadania.” (Abdalla,
Veloso & Vargens, 2016, p. 348), ou seja, a educação se torna o foco deste modelo.

As medidas socioeducativas, por sua vez, “são responsabilizadoras, de natureza


sancionatória e conteúdo socioeducativo, aplicadas somente a adolescentes sentenciados em
razão do cometimento de ato infracional” (Secretaria Especial dos Direitos Humanos &
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2006, p. 32). Isso significa que
a socioeducação não possui relação, em sua natureza, com os adolescentes que cometem ato
infracional; nesse caso, a relação é criada ao se propor que as medidas aplicadas aos menores
de idade se utilizem desse modelo educacional. Então a socioeducação não é sinônimo de
medida socioeducativa, sendo a primeira uma modalidade pedagógica e a segunda, uma
sanção legal aplicada aos adolescentes, que se utiliza deste modelo.

Como vimos no capítulo anterior, a preocupação em agir sobre essas crianças e


adolescentes para a proteção do próprio Estado é antiga e se perpetua ao longo do tempo e das
diferentes instituições. Como a questão permanece, é importante questionar quais estratégias
permanecem, e se permanecem, junto a ela.

A questão do menor infrator é de todos os tempos e não apenas do nosso. Furtos,


vadiagens, desordens, arrombamentos e toxicomania enchem páginas da História da
Humanidade. A delinquência aparece em todas as épocas, ambientes e idades. É tida
como “patologia social” ou doença da sociedade. A preocupação de nossa época é a de
uma ação intensiva, visando defender a sociedade contra a delinquência [...]
(Funabem, 1970 como citado em Celestino, 2015, p. 122).

Retomando a questão do salvacionismo, a parcela do sistema socioeducativo de que


hoje a educação se ocupa era preenchida pela chamada assistência, que reverbera ideais
caritativos para salvar e transformar.
17

Estamos afirmando que historicamente a “assistência” foi legitimada como ação


prioritária para o atendimento do “menor delinquente”, pois foi utilizada como ação
funcional tanto ao amparo de suas necessidades sociais e materiais, quanto à difusão
de ideologias e visões de mundo da classe dominante, voltadas a sua disciplina e
enquadramento, empenhadas em sua regeneração. (Celestino, 2015, p. 125)

É fundamental entender que a medida socioeducativa é a conjunção de uma prática


pedagógica nova, dentro de um sistema antigo. Veremos como funciona e quais são as tensões
resultantes de se propor a educação social em uma instituição que existe para responsabilizar
o adolescente que comete atos infracionais.

2.1. Como se conjuga o caráter sancionatório com o caráter educativo?

As medidas socioeducativas são amplamente questionadas nas produções acadêmicas,


mas também no senso comum: o último acredita que o sistema é “frouxo” demais, as
primeiras dizem que é violento demais. Entre os críticos, existe ao menos a concordância de
que algo não funciona, embora não haja consenso exatamente sobre o quê. Algumas das
principais críticas levantadas por Costa (2015) são:

a) as medidas socioeducativas são de natureza punitiva, inexistindo caráter


pedagógico;
b) as medidas socioeducativas têm caráter duplamente punitivo e pedagógico;
c) há coexistência do caráter penal com a natureza socioeducativa das medidas, porém,
o primeiro coloca em xeque a legitimidade da segunda;
d) o caráter pedagógico está restrito aos programas de atendimento socioeducativo. ( p.
63)

No nosso entender, o modelo socioeducativo existe para conjugar a necessidade de


punir o adolescente infrator (já que o Código Penal não se aplica a menores de dezoito anos) e
ao mesmo tempo justificar a punição utilizando um discurso educativo que se diz progressista.
De acordo com o referencial teórico recolhido, somado à pesquisa de campo na unidade de
semiliberdade em que tivemos a oportunidade de estar, percebemos tanto a associação da
punição com a educação, quanto as duas dimensões da medida, cada uma pondo a outra à
prova.
18

Este trabalho surge da importância de se analisar se, de fato, é de progresso que se


trata a aplicação da educação enquanto recurso para se trabalhar com adolescentes infratores,
e também o papel da sanção nesse modelo. Em uma primeira instância, a hipótese é de que a
educação comparece apenas para suprir uma necessidade: desenvolver alternativas sobre o
que fazer com estes adolescentes, considerando a necessidade de adequação da medida, já que
a mesma não pode se caracterizar como prisão, ainda que se aplique a privação de liberdade.

É imperioso reconhecer que a medida socioeducativa tem caráter punitivo, aplicando-


se a quem cometeu um ato infracional, a quem infringiu normas sociais estipuladas em
lei, restringindo ou privando o autor do ato de sua liberdade. É a resposta da sociedade
e do Estado a uma transgressão da norma social. Acatando a existência dessa
dimensão, a acentuação do elemento pedagógico visa reduzir o alcance dos efeitos
punitivos sobre o adolescente no contexto do Direito da Criança e do Adolescente.
(Costa, 2015, p. 63).

No trecho transcrito acima, a educação novamente comparece como modo de atenuar


o aspecto sancionatório. Na prática, no entanto, é facilmente identificável a fragilidade dessa
conjunção, pois apesar dos avanços na área dos direitos humanos, que o ECA consolidou, a
lógica penitenciária impregna as unidades do DEGASE. De uma unidade para outra2 já se
pode perceber diferenças marcantes na arquitetura: algumas possuem muros altíssimos, com
arame farpado no topo, portões enormes, sem frestas; outras, além dos muros altos, já não têm
arame farpado e, do lado de fora, são até confundidas com escolas estaduais, pintadas de cores
vivas, às vezes com grafites. Esse é só mais um exemplo de como se misturam os elementos
prisionais e os escolares.

Seja mais ou menos parecida com uma prisão, a instituição existe com o fim de
disciplinar os adolescentes. A medida pode ser entendida como um castigo, relacionada
estritamente ao cometimento da infração, o “errou tem que pagar”, repetido por agentes e
responsáveis durante as entrevistas, mas legalmente constitui um processo de reestruturação,
pretendendo que os adolescentes se tornem pessoas diferentes, e isso não se dá apenas pelo
aspecto sancionatório da medida, ou apenas pelo aspecto dito educativo: ambos se conjugam
na produção desse sujeito.

2
Essa diferença se baseia em apenas duas unidades visitadas: uma unidade de semiliberdade e uma unidade de
internação.
19

Temos também o embate judicial entre privilegiar o status de “agente socioeducativo”,


ou o de “agente de segurança socioeducativo”. Depois de anos, saiu no Rio de Janeiro a
decisão legal3 para mudar o nome do cargo de agente socioeducativo para agente de
segurança socioeducativo; a inclusão da palavra segurança revela um movimento de
aproximação com os agentes penitenciários e suas práticas. Sobre a mudança que a alteração
de nomenclatura traria, um funcionário nos disse:

Apenas essa coisa de mudar a nomenclatura já ajuda em outras situações, porque aqui
nós estamos numa secretaria de educação, mas nós não estamos aqui com alunos de
escola (...). Nós estamos em uma secretaria de educação, só que quando vieram os
aumentos para a secretaria de educação o DEGASE não recebeu, o próprio secretário
de educação disse que nós não somos da educação, mas quando veio para a segurança,
nós também não recebemos porque estamos na secretaria de educação. Aí com isso a
SEAP [Secretaria de Estado de Administração Penitenciária] ganhava menos que o
DEGASE e hoje a SEAP quase dobrou o salário do DEGASE, porque a gente não
ganha por um, não ganha por outro, porque não somos daqui, não somos dali. Então
com isso, segurança, nós entramos no SUSP [Sistema Único de Segurança Pública],
né, tudo isso por Brasília. Então, se nós não tivéssemos mudado a nomenclatura não
conseguiríamos mudar. (...). Estávamos atravancados com a questão do porte de arma
por conta de estar na secretaria de educação e do nome, da nomenclatura
“socioeducativo”. Então essa mudança pra gente foi muito importante, as coisas
andaram depois disso, agora só falta mudar de secretaria, já que a gente entrou no
SUSP, né, agora a gente tem mais possibilidade de sair da educação. (Transcrição de
entrevista, 2018).

A diferença salarial que a inserção na secretaria de segurança pública implicaria para


os agentes nos revela outro fator: o menor prestígio da educação enquanto política para o
enfrentamento do conflito com a lei. O caráter educativo segue desacreditado e o investimento
em práticas repressivas tem cada vez maior apelo na população.

Além disto, os funcionários relatam se sentirem julgados e terem seu trabalho criticado
a todo momento. Na unidade em que pesquisamos, havia, em algumas ocasiões, um
desconforto causado pela nossa presença. De certa forma, habita no imaginário a ideia de que
os agentes são contra os adolescentes e a equipe técnica, assim como os pesquisadores (nós,
inclusas) e o judiciário, a favor deles. Isso produz significados: as práticas das diferentes
profissões que compõem a unidade acabam se opondo uma à outra, representando também o
modo como essa dupla face da instituição reverbera nas práticas profissionais.

3
Lei nº 7694 de 22 de setembro de 2017 (2017). Altera a denominação de cargo que trata a Lei nº 5.933, de 29
de março de 2011, que dispõe sobre a reestruturação do quadro de pessoal do departamento geral de ações
socioeducativas - DEGASE, e dá outras providências.
20

A gente tem algumas dificuldades com algumas pessoas de equipe técnica, isso aí nós
temos. Não aqui, o sistema inteiro. Porque (...) antes do concurso em 2011 ou 2012 os
agentes eram a maioria contratados, o nível dos agentes, intelectual, era um pouco
baixo, pouca escolaridade e tal... E o nível da equipe técnica mais alto, criou-se aí uma
divisão, isso, por essa situação de estar em regime diferente, outra pelo próprio
comportamento da maioria das pessoas que integram essas equipes, porque elas ouvem
o adolescente, né, não interessa se ele está falando a verdade ou não, e encaminham
essas denúncias pro judiciário, e independente de ter comprovação ou não, é
instaurado um inquérito administrativo contra aquele plantão do dia, ou aquele agente
do dia. (...) e quem é encarregado de ficar jogando essas demandas pro judiciário é a
equipe técnica, por isso tem uma separação. Geralmente essas demandas são feitas
mais por psicólogos e assistentes sociais, né, devido até o próprio código deles de ética
e tal, quando eles recebem eles têm que passar, e isso acaba fazendo divisão entre os
funcionários (Transcrição de entrevista, 2018).

Percebe-se que o agente se sente pressionado por diversas frentes, não se sente
integrante de um corpo de funcionários, independente de sua atuação específica. O agente
revela a distância entre o que entende ser a sua função e o que é de fato autorizado a fazer: “O
meu concurso foi para atuar na segurança, né, então assim, o que a gente faz aqui é garantir a
segurança, então se eles saem pra fazer uma atividade, interna ou externa, a gente tem que
garantir a segurança.” (Transcrição de entrevista, 2018).

Dentro de um sistema ambivalente, os trabalhadores não podem escapar a essas


questões. Há uma constante disputa entre as possíveis linhas de atuação no exercício
profissional e esse funcionário, especificamente, aponta não se ver como integrante da rede de
proteção, entendendo que esse seria o papel apenas da equipe técnica: psicólogas, pedagogas e
assistentes sociais. Nesse aspecto, a função do agente socioeducativo na proteção integral4
parece incoerente, considerando que toda criança ou adolescente é sujeito de direitos e deve
ser respeitado independente da condição em que se encontre - autor de ato infracional ou não,
o adolescente deve ter seus direitos resguardados.

Entretanto, veremos que apesar dessa aparente contradição, o aspecto sancionatório


encontra lugar nas práticas e nos discursos não só dos agentes, mas também dos responsáveis
e de toda a sociedade.

4
Artigo 227 da Constituição Federal: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
21

2.2. Sanção e punição

Não custa reafirmar: a medida socioeducativa tem conteúdo predominantemente


pedagógico, mas sua natureza é sancionatória. Ela é uma medida imposta, uma medida
coercitiva quanto ao delito praticado por adolescente, e decorre de uma decisão
judicial. Uma medida que deve ser aplicada e cumprida com o estrito respeito às leis.
(Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006, p. 30)

Conforme apontado no início do tópico anterior, existe a crítica de que o sistema seria
muito brando com os adolescentes, dados o tempo máximo de três anos da medida, a
liberação aos fins de semana no caso da semiliberdade, a existência de sanções como a
liberdade assistida, que se dá no meio aberto, entre outros fatores.

Se você comete um delito, vem pra cá, né, e... Vamos dizer um homicida, ele vem pra
cá [DEGASE], fica aqui no máximo oito meses internado, depois mais seis meses na
semiliberdade e volta. Vamos dizer que ele cometeu esse homicídio aos 12 anos, antes
dos 14 ele já tá na rua de novo, ele sentiu alguma condenação? Não. (...) Então esse
tempo que ele passou aqui, além dele não se sentir punido, né... Aí você vai me dizer
que o intuito não é punir, que o intuito é ressocializar... Pra eles é impunidade.
(Transcrição de entrevista, 2018).

A medida de internação, segundo o ECA, deve ter caráter de excepcionalidade e


brevidade, o que significa que só deve ser aplicada em último caso e pelo menor tempo
possível, considerando a condição do adolescente enquanto pessoa em desenvolvimento 5.
Para alguns funcionários e responsáveis, e é importante ressaltar que não são somente os
agentes socioeducativos que pensam assim, a socioeducação seria muito branda com o
adolescente.

Esse é um dos pensamentos que está por trás da discussão sobre a redução da
maioridade penal, que é uma pauta popular em muitos setores da sociedade, defendendo que
os adolescentes que cometem infrações consideradas mais graves já deveriam ser penalmente
imputáveis. O mais comum é se presenciar discussões que defendem a redução para os
dezesseis anos, independente do grau do delito, em outras, para a mesma idade, porém para

5
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
22

delitos graves, e há também propostas de emendas constitucionais (PECs) que sugerem que
dos quatorze aos dezoito anos, a inimputabilidade deva ser relativa (Ribeiro, 2012, pp. 177-
179). Destaca-se a “PEC nº 302/2013 que propõe diminuir a idade penal para 12 anos nos
casos de crimes hediondos, e a PEC nº 332/2013 [...] estabelece que, ao completar 18 anos
durante o cumprimento da medida socioeducativa, o jovem seja transferido para o sistema
prisional.” (Silva, 2015, pp. 34-35).

São diversas as proposições, mas que se conjugam em uma mesma voz, a de aumentar
a punição para os adolescentes que cometem atos infracionais. Isso se dá independente das
evidências de que a internação não apresenta resultados positivos:

(...) Priorizaram-se as medidas em meio aberto (prestação de serviço à comunidade e


liberdade assistida) em detrimento das restritivas de liberdade (semiliberdade e
internação em estabelecimento educacional, haja vista que estas somente devem ser
aplicadas em caráter de excepcionalidade e brevidade). Trata-se de estratégia que
busca reverter a tendência crescente de internação dos adolescentes bem como
confrontar a sua eficácia invertida, uma vez que se tem constatado que a elevação do
rigor das medidas não tem melhorado substancialmente a inclusão social dos egressos
do sistema socioeducativo. (Secretaria Especial dos Direitos Humanos & Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2006, p. 14).

Porém, o que se observa é um clamor popular pela punição, que não necessariamente
se encontra atrelado ao ideal de ressocialização, mas obedece à mesma lógica que fazia com
que os negros e pobres fossem execrados por conta do seu desvio à norma capitalista (por não
aceitarem os trabalhos em péssimas condições e remuneração que lhes eram oferecidos). Esse
padrão se repete nos dias de hoje, fazendo com que a própria população anseie por uma
punição mais severa dos adolescentes que cometem delitos. Essa lógica é reflexo do processo
histórico de marginalização, que faz com que a sensação de perigo esteja fortemente atrelada
a este mesmo público.

Nesse novo arranjo político (...), o alarme social que se cria em torno da criminalidade
acaba por provocar um generalizado desejo de punição, uma intensa busca de
repressão e uma obsessão por segurança, ainda que simbólica. O controle penal passa
a ser a “tábua de salvação” da sociedade e quanto maior for a sua dureza, mais
satisfeita ela estará. (Pastana, 2007, p. 208 ).

Efeito disto é então o clamor punitivo que habita a sociedade, alimentado por uma
cultura do puro pânico, somado ao embrutecimento das relações pessoais por conta do
23

individualismo propagado pelo neoliberalismo e, com isso, a exclusão dos que não são parte
do mercado de trabalho formal. Perpassa o imaginário social a relação entre trabalho e
dignidade, e entre ausência de trabalho e vadiagem, relação que remonta à questão dos
escravos recém libertos que não se propuseram a engrossar a massa de mão de obra barata e
sofreram as consequências dessa escolha. É o trabalho que tudo vence (práxis omnia vincit),
conforme inscrito em uma parede do Museu Bispo do Rosário 6, local que funcionou como
manicômio por longos anos, que além de pacientes psiquiátricos também abrigou ex-internos
da extinta FUNABEM, com ou sem questões de saúde mental.

Conseguimos compreender como esse mecanismo opera com aqueles que são
estranhos ao ator do ato infracional, o desejo de punição para com o outro. Porém, mais do
que isso, essa lógica é tão complexa e tão enraizada na sociedade que reverbera também entre
aqueles que têm proximidade com esses adolescentes. Vimos, na fala de uma mãe, a
reprodução desse paradigma ao preferir que o filho estivesse na unidade de internação, pois,
tendo em vista suas características de instituição total7 (controle absoluto do tempo e das
atividades, isolamento do mundo externo, punição, etc.) ela entendia que a punição estaria
sendo mais fortemente exercida, e assim, traria melhores resultados.

Mãe: Eu preferia que ele estivesse no Padre Severino (unidade de internação) que
aqui, sinceramente, eu como mãe [...] Porque lá ele tava sentindo, o que ele fez ele
tava pagando preso, aqui não [...].
Entrevistadora: Então a senhora acha que a liberdade acaba atrapalhando?
M: Com certeza, no meu modo de ver [...] Ele conviveu (na internação) 45 dias, mas
tô te falando a forma, que lá tinha um tratamento... E tem mães que às vezes acham
que tem certos tipos de tratamento que tu vai sofrer. Sofri sim, muito, de ver ele de
cabeça baixa, de ver ele chorando, mas eu preferia ele lá, sinceramente, eu achava que
lá ele ia pagar o que ele fez, eu sou desse tipo, se você fez, vai pagar o que fez. Depois
que veio pra cá ele vai pra casa rindo, volta rindo. Eu não to vendo como se ele tivesse
pagando alguma coisa, pra ele é uma colônia de férias. [...] Eu acharia que teria que ser
mais rígido, entendeu? [...] Um horário pra fazer as coisas, pra trabalhar [...] ele ia
estudar, ele ia fazer um curso, mas aqui ele não faz nada, só tá indo pro colégio agora.
(Transcrição de entrevista, 2018).

Nessa fala podemos ver como os mecanismos de submissão do corpo operam e


simbolizam algo desejável no cotidiano de alguém que está colocado em posição tão delicada.

6
Museu na Colônia Juliano Moreira, localizado em Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
7
Para melhor entendimento do tema, ver: Goffman, E. (1987). Manicômios, prisões e conventos (7ª Ed.). São
Paulo: Perspectiva.
24

Ao mesmo tempo que ama, e porque ama, deseja que esse filho pague e, para isso, entende
que ele deve sofrer. Há o entendimento de que através da punição é que ele estaria, de fato,
pagando sua dívida. As possibilidades que a medida de semiliberdade poderia oferecer sequer
são consideradas pois, em primeira instância, é a necessidade de constrição que configura a
efetividade da medida.

É manifesta, desde o século XIX, a conveniência da visão durkeimiana de controle


para os interesses liberais. Sob essa ótica, o delito seria um enfrentamento direto entre
indivíduo e coletividade e a punição, teria, portanto, a função de educar e reeducar
para assegurar a coesão social. Atualmente, entretanto, tal serventia já não se sustenta.
Mesmo o modelo disciplinar de Foucault (1987), que atribuiu à punição um caráter
estratégico de dominação, assente no domínio da alma e na produção da docilidade e
da domesticação, foi, de certa forma, suplantado. Essa, aliás, é também uma faceta
perversa da política criminal em curso, ou seja, o abandono do discurso jurídico
ressocializador da pena permitindo, cada vez mais, a consideração da punição como
simples “instrumento de encerramento de uma população considerada tanto desviante
e perigosa como supérflua, no plano econômico” (Wacquant, 2001) (Pastana, 2007 p.
210).

Na atualidade, transformar o prisioneiro em mão de obra útil não tem mais o mesmo
significado que possuía quando as prisões foram criadas; porém, ainda hoje encontramos
resquícios desse pensamento ao ouvir as falas corriqueiras sobre a inserção do apenado no
mercado de trabalho e a inserção dos adolescentes em cursos profissionalizantes ou
programas de jovem aprendiz. No cenário atual, de escassez de empregos para grande parcela
da população, faz cada vez menos sentido a tentativa de conversão desses adolescentes
através do trabalho; o trabalho não constitui o objetivo da prisão, e nem sequer das medidas
socioeducativas.

Algumas políticas permanecem ainda atreladas à concepção de integração dos jovens


no modelo da modernização, típica dos anos 50, atentando para o acesso à escola
como mecanismo de ascensão social e a necessidade de ocupação do seu tempo livre.
Já outras propostas se apóiam exclusivamente em mecanismos de controle social,
típicas do período autoritário, focando suas atividades sobre os jovens pobres,
marginalizados e moradores da periferia (Almeida, 2015, p. 84).

A educação, por sua vez, também não comparece com objetivo profissionalizante. Na
realidade, o papel da educação no sistema socioeducativo é o de transformação, onde se
pretende desenvolver a autonomia, a solidariedade e a construção de projetos pessoais o que
25

contrasta com os muros enormes e intimidadores, com a vigilância de agentes responsáveis


pela fiscalização e segurança e com as restrições a serem seguidas.

Considerando a proposição destacada no início deste capítulo, sendo ela: a duplicidade


da medida socioeducativa enquanto punitiva e pedagógica, foi possível discorrer sobre a
proposição legal da medida e os distanciamentos e aproximações na prática; também os
conflitos resultantes dessa contradição que a medida e a socioeducação evocam e também o
porquê da punição comparecer nas medidas e nos discursos populares.

Tendo isto em vista, no capítulo seguinte iremos discorrer sobre como a educação
pode cumprir seu papel no sistema socioeducativo, e iremos analisar a serviço de quê essa
pedagogia comparece; se, de fato, o caráter pedagógico da medida é conflituoso com o caráter
sancionatório, ou se poderiam ser complementares.
26

3. Educação na Socioeducação

Tendo em vista a aparente divisão entre a punição e a educação dentro do sistema


socioeducativo, iremos analisar agora de que se trata a parte pedagógica da medida. O
DEGASE está vinculado à Secretaria de Estado de Educação, e o cumprimento da medida
socioeducativa também inclui a obrigatoriedade do adolescente estar matriculado e
frequentando uma escola; porém, muitas vezes essa inserção é apenas burocrática, pois
obrigar alguém a ir à escola pode até escolarizar, mas não implica em educar. É por isto que o
projeto pedagógico não se limita à inserção do aluno na escola, mas se compromete com a
educação, que significa:

1 Ato ou processo de educar(-se);

2 Processo que visa ao desenvolvimento físico, intelectual e moral do ser humano, através da
aplicação de métodos próprios, com o intuito de assegurar-lhe a integração social e a formação
da cidadania;

3 Conjunto de métodos próprios a fim de assegurar a instrução e a formação do indivíduo;


ensino;

4 Conhecimento, aptidão e desenvolvimento em consequência desse processo; formação,


preparo;

5 Nível ou tipo específico de ensino;

6 Desenvolvimento sistemático de uma faculdade, um sentido ou um órgão;

7 Conhecimento e prática de boas maneiras no convívio social; civilidade, polidez;

8 Adestramento de animais;

9 Prática de cultivar e aclimatar plantas.8

A palavra educação, ao mesmo tempo em que significa adquirir conhecimento e


promover o desenvolvimento humano, também quer dizer a apreensão de boas maneiras e
civilidade. Se ao refletirmos um pouco sobre a palavra já encontramos múltiplos sentidos, a
reflexão sobre a sua aplicação pode demonstrar uma variedade de intenções. Por conta disso é
que a educação deve ser observada com atenção, e especialmente na socioeducação, tão
permeada de disputas.

8
Educação (2018). Dicionário Michaelis online. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/educa%C3%A7%C3%A3o/
27

3.1. Educação e adolescência: algumas armadilhas

O atendimento socioeducativo visa os direitos e deveres dos adolescentes, observando


sua condição de pessoa em desenvolvimento e promovendo a educação, a liberdade, a
solidariedade, a cidadania e o preparo profissional9. A “condição de pessoa em
desenvolvimento” é um termo que merece atenção: por um lado, garante a esse público a
aplicação de medidas específicas para a sua faixa etária, mas por outro, acaba por conferir aos
jovens - por conta desse caráter de transitoriedade - uma certa descrença em sua vivência, seu
conhecimento, seu modo de vida e sua expressão.

Tuteladas e ‘menorizadas’, a infância e a adolescência são ‘roteirizadas’ dentro de uma


ordem previsível de aquisições, conquistas e habilidades, e mutatis mutandis, de
deficiências, defasagens e incapacidades. A imaginação desenvolvimentista sobre a
criança e o adolescente pauta-se pelo raciocínio do “já chegou”, “já conseguiu”, ou do
“ainda não consegue”, “ainda não faz”, ou “ainda não pode fazer”. (Castro, 1998, p.
25).

Essa concepção é pautada na compreensão do desenvolvimento humano em etapas


mais ou menos definidas, nas quais certas habilidades deverão ser apreendidas pelo sujeito em
um momento expectável. Em contraponto, encontramos teorias que entendem o
desenvolvimento não pautado em períodos, mas sim como um processo constante que se dá
durante toda a vida do sujeito. Com isso, o objetivo é questionar a linearidade do conjunto de
aprendizados que o ser humano deve adquirir para alcançar a maturidade (Coimbra, Bocco &
Nascimento, 2005), defendendo que o sujeito esteja constantemente nesse processo de
desenvolvimento. Sendo assim, entendemos que o adolescente, e tudo que faz parte do seu
universo, deve ser levado em consideração também no momento presente.

A partir das idéias de Foucault e da Filosofia da Diferença, defendemos que os sujeitos


não possuem identidades fixas e impermeáveis, mas são atravessados por uma
multiplicidade de forças que os subjetivam incessantemente. Dentro disso, a noção de
desenvolvimento é uma construção, pois não há um conjunto de características a
serem obtidas. Preferimos pensar em termos de processo, apostando que a vida se
constrói a cada momento e não pode ser reduzida a qualquer modelo ou norma.
(Coimbra et al., 2005, p. 7).

9
BRASIL (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Nº 9394 de 20 de dezembro de 1996.
28

Como o nome deste tópico sugere, existe uma armadilha na argumentação em defesa
da autonomia do adolescente, no que tange à coexistência com a proteção, preconizada na
legislação sobre a infância e adolescência. Existe a possibilidade de, ao se entender o
adolescente enquanto ser autônomo, incorrer na crença de que não haja necessidade de
medidas protetivas para eles, o que não é o caso. Souza (2010) compreende que adultos e
adolescentes estão colocados em patamares muito distantes na sociedade e mantêm “relações
assimétricas e inevitáveis” (p. 95); a autora defende que o paradigma da proteção é
imprescindível, mas precisa ser revisado e atualizado.

Essa ressalva é essencial, pois o argumento da autonomia pode ser incorporado ao


discurso punitivista, desejando a redução da maioridade penal, como citamos no capítulo
anterior. Arantes diz, em relação aos direitos da adolescência: "parece que nos encontramos
numa espécie de armadilha, como se os direitos que as libertam fossem os mesmos que as
aprisionam" (2012, p. 54). É esse embate que nos impede de continuar progredindo em
relação a muitas práticas fundamentais - não só em relação à infância e adolescência, mas aos
direitos humanos em geral. As forças conservadoras se apropriam do discurso autocrítico
como argumento não para evoluir as práticas sociais-humanitárias, mas sim para desmontá-
las.

A segunda armadilha se dá no que tange à autonomia e o que ela pode representar. No


SINASE, a socioeducação é um projeto pedagógico voltado para a promoção de autonomia, o
que no contexto do sistema socioeducativo também significa unir a responsabilidade ao
conjunto de características que são desejáveis.

O adolescente deve ser alvo de um conjunto de ações socioeducativas que contribua na


sua formação, de modo que venha a ser um cidadão autônomo e solidário, capaz de se
relacionar melhor consigo mesmo, com os outros e com tudo que integra a sua
circunstância e sem reincidir na prática de atos infracionais. Ele deve desenvolver a
capacidade de tomar decisões fundamentadas, com critérios para avaliar situações
relacionadas ao interesse próprio e ao bem comum, aprendendo com a experiência
acumulada individual e social, potencializando sua competência pessoal, relacional,
cognitiva e produtiva. (Secretaria Especial dos Direitos Humanos & Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, p. 46, 2006)

No plano político pedagógico (PPI) do DEGASE, comparecem os mesmos ideais:


29

Criar espaços e condições de atendimento socioeducativo, que possibilitem ao


adolescente em conflito com a lei desenvolver seu potencial como pessoa, cidadão e
futuro profissional, através das competências pessoais, relacionais, produtivas e
cognitivas e que lhes permitam desempenhar-se no convívio social sem reincidir,
através do emprego de conceitos, métodos e técnicas de ação socioeducativa
comprometidos, ao mesmo tempo, com os seus direitos fundamentais e a segurança da
população. (DEGASE, 2012, p. 370)

Podemos perceber o compromisso de produzir meios para que esse adolescente possa
desenvolver as características esperadas. Ainda no PPI, é introduzido o conceito de
protagonismo juvenil, que é assim definido: “Consiste em ver o adolescente como fonte de
iniciativa, compromisso e liberdade, atuando como parte da solução e não como parte do
problema, no enfrentamento de problemas reais na unidade educativa, na comunidade e na
vida social mais ampla.” (2012, p. 380). Esse termo vem sendo amplamente explorado, não
somente na socioeducação, mas também nos setores privados, e não existe apenas um sentido
para ele:

Em alguns momentos parece referir-se a método, princípio ou eixo pedagógico cuja


ênfase na atividade do educando, ou do jovem a quem se dirigem as medidas
socioeducativas, o deslocaria de uma posição considerada passiva, de mero
beneficiário ou depositário de conhecimentos, para uma posição de participação ativa.
Outras vezes, protagonismo juvenil parece designar não um método ou princípio
pedagógico, mas certa capacidade intrínseca ao jovem, a de ser protagonista – ou o
ator principal – no desenvolvimento do país, da chamada comunidade e do seu
próprio. (Souza, 2009, p. 3)

A armadilha consiste justamente nesse duplo sentido do termo, apresentado nos


documentos oficiais como uma prática de autonomia. Mas o próprio PPI nos oferece pistas
para desconfiar do que trata o protagonismo. Na página 378 do documento, são apresentados
os quatro pilares da educação segundo o relatório Jacques Delors10: Ensinar a ser, ensinar a
fazer, ensinar a conviver e ensinar a conhecer.

Quando relacionamos tais pilares com o histórico salvacionista da educação para as


classes desprivilegiadas, percebemos que o mesmo mecanismo opera, com uma nova face.
Parte-se do mesmo princípio, de que tais crianças e adolescentes seriam depósitos para
conhecimentos e habilidades. Quando se propõe ensinar alguém a ser e a conhecer, ou se

10
Relatório "Educação, um Tesouro a descobrir", que leva o nome do autor, para a Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI, da UNESCO.
30

entende que o adolescente até o momento da medida não sabe nada, ou que o seu aprendizado
até o momento é inválido, que é preciso apagar o que ele já sabia, para receber conteúdo
novo. Presenciamos uma cena emblemática durante a pesquisa, quando uma organização não-
governamental que atuava na mesma unidade em que estávamos, propôs uma representação
teatral baseada no filme Escritores da Liberdade (2007):

A peça, ou esquete, pois era pequena, consistia numa sala de aula em que os meninos
brigavam entre si divididos entre dois grupos rivais. Não havia fala, era só gestual. A
única fala seria a minha ao final: “Não podemos voltar atrás e fazer um novo começo,
mas podemos começar agora e fazer um novo final”. Marcadamente havia dois
momentos. No primeiro os meninos brigavam entre si e ao fundo tocava a música “A
vida é desafio” dos Racionais MCs (...). No segundo momento os meninos faziam as
pazes e a música que tocava parecia ser uma música evangélica. Obviamente foi
colocado o rap do lado “mal” e a música evangélica do lado “bom”. Quem era o
personagem que promovia a mudança de um momento para o outro? A professora! A
professora passava pelos meninos fazendo-os abaixar as armas, se colocando na frente
das balas e fazendo-os baixar também a cabeça para depois ajudá-los a sorrir
novamente. Por fim, a professora estimulava todos a ler, e entre os livros havia a
Bíblia. Nada mais contraditório do que eu assumir aquela posição, aos meus olhos e
aos olhos da outra pesquisadora. “Você vai fazer um papel que é tudo o que você
critica” – ela disse. A velha política de duplo foco. A professora salvando o aluno. A
mulher salvando o homem. A branca salvando o negro (Trecho de diário de campo,
2018).

Apesar das propostas educativas que se dizem incentivar o protagonismo do jovem, na


realidade esse modelo replica o ideal de tentar configurar a infância e adolescência como se
fossem tábula rasa, e se desconsideram as particularidades dos sujeitos no processo.

A educação não deve comparecer como algo externo que (como representado nos
livros na esquete) transforma a vida dos jovens; assim também a figura da professora. A
emancipação, tal como o aprendizado, não é nem de fora para dentro, nem de si pra si mesmo,
de maneira individualizada. Paulo Freire (2018) diz que ensinar é criar possibilidades para a
construção do conhecimento, o que significa que não podemos emancipar ninguém, mas
podemos construir juntos, de maneira coletiva, esse processo. Essa pista não descaracteriza o
papel do profissional, e sim oferece outras ferramentas para que este possa atuar com, ao
invés de atuar sobre.

A terceira armadilha, intrinsecamente ligada às duas anteriores, consiste em partir da


visão tutelar sobre a infância e a adolescência. Existe todo o aparato profissional e científico,
desde a área da saúde até as ciências sociais, que se propõe a discorrer sobre a adolescência e
31

o adolescente (Castro, 1998), todos tendo algo a dizer sobre e por eles. Essas áreas em muito
contribuem para a discussão. Mas, considerando que estamos tratando de um público há muito
reprimido e invisibilizado; que, apesar da vasta produção acadêmica sobre juventude,
pobreza, relações raciais, crime, violência etc., pouco nos deparamos com esses sujeitos
falando por si mesmos; e que inclusive, podem ou não estar familiarizados com as discussões
que os concernem, existe o risco desses saberes trabalharem juntos na manutenção do status
quo.

Foi nesse movimento que tentei falar com eles que estávamos ali pra falar de igual pra
igual, e que a gente reconhecia a necessidade deles falarem por eles, e citei que existe
um tanto de produção acadêmica sobre socioeducação (não com essas palavras), eles
perguntaram se era falando bem ou mal deles, [A pesquisadora] disse que tinha gente
criticando e gente defendendo. “É, tem muita gente que fala mal do que nós faz”, um
deles disse. [A pesquisadora] percebeu o termo que eu não estava conseguindo
traduzir e perguntou se eles sabiam o que era adolescente em conflito com a lei, o L.
[um adolescente] disse que já tinha visto no facebook, mas não sabia o que era. V.
[outro adolescente] disse que era quando um adolescente era contra a lei, ou fora da lei
(Trecho de diário de campo, 2018).

Isso não se restringe aos adolescentes. Um dos agentes, ao falar conosco sobre uma
possível reforma do sistema, dadas as diversas e constantes críticas que sofrem, disse:

Então acho que são questões que precisam ser revistas, mas só que as pessoas, elas só
fazem estudos acadêmicos, elas não fazem estudos de campo, então a realidade da
academia é uma, a realidade do campo é outra. E o que vejo sempre são estudos
baseados nessas teorias, trazendo exemplos de outros lugares, é o que acontece em
todos os ramos, mas eu acho que quando se fala de segurança pública deveria ser
diferente, deveria ver a realidade (Transcrição de entrevista, 2018).

Não necessariamente toda produção acadêmica irá demandar a pesquisa de campo,


porém a crítica do agente permanece válida pois, quando pesquisamos, estamos fazendo isso
com sujeitos, e não meros objetos de pesquisa. Os sujeitos têm sua própria fala pra
compartilhar, suas experiências para contar, eles têm coisas a dizer e sabem melhor do que
ninguém como fazê-lo, e nós temos muito para aprender e ouvir. A própria dicotomia nós e
eles fica um pouco pulverizada ao, apesar das diferenças que cada um traz, transpor a
hierarquização das relações.
32

É delicado o lugar que se termina por ocupar enquanto porta-voz de um saber. O


caminho mais natural, tendo em vista o modo com que aprendemos durante toda a nossa vida
e que é diariamente reforçado por toda a sociedade, é a hierarquização nas relações; existe o
risco de o profissional assumir uma postura autoritária e de superioridade; ou ainda, que o
próprio público se submeta por pensar que sabe menos, que é menos “inteligente”.

Em um dado momento, alguém tentou dizer algo e V. [um adolescente] disse


“favelado não sabe nem falar” e corrigiu o colega, dizendo que ele tinha que falar
igual a nós duas, que era o jeito certo de falar. Eu e a outra pesquisadora intervimos,
nós falamos que cada um tinha um jeito de falar e que não tinha um mais certo que o
outro (Trecho de diário de campo, 2018).

Faz-se necessário o constante exame sobre nossas práticas profissionais pois, não custa
salientar novamente, esses adolescentes - pobres, negros e principalmente que cometem
algum ato infracional - já carregam uma série de estigmas, por vezes durante a pesquisa se
referiram a eles mesmos e seus pares como “retardado”, “burro”, “sem futuro”, “marginal”,
entre outros. O educador que tenha como público alvo essa população, especialmente no que
tange à pobreza, que é julgada como sinônimo de ignorância ou incultura, e que não tenha a
sensibilidade, o respeito e a consideração pelo saber de seus alunos, por exemplo, corrigindo
sistematicamente todo e qualquer desvio do português padrão, não ensina, mas distancia e
constrange. Se assumimos uma postura autoritária em relação a eles, estamos corroborando
práticas opressoras. Nesse sentido, deve-se também questionar sempre os interesses para os
quais se atua, de que forma o saber está sendo aplicado e com que finalidade.

É importante ressaltar que ao assumir a posição de detentor do conhecimento,


investigando o sujeito, falando por ele, o profissional recai no especialismo, a lógica de se
delimitar o “campo de competência, de agentes autorizados” (Hüning & Guareschi, 2005, p.
90). Incorporando o papel de porta-voz da verdade, pode até mesmo se colocar como alguém
capaz de (e autorizado a) mudar o outro alguém.

É exatamente aí que se encontra a questão central do presente trabalho, pois o Plano


Político Pedagógico do DEGASE, apesar de todo o tempo teorizar sobre a interação dialógica
entre funcionários e adolescentes, traz uma lista de valores que o adolescente deve adquirir
durante o cumprimento da medida: aprender a não agredir o semelhante, aprender a
comunicar-se, aprender a interagir, aprender a decidir em grupo, aprender a se cuidar,
aprender a cuidar do lugar em que vivemos, aprender a valorizar o saber social (DEGASE,
33

2012, pp. 374-376). São três páginas dizendo tudo o que se deve aprender, partindo portanto
da premissa de que o sujeito seria tábula rasa, pronto para ser socializado, ou como um disco
rígido que precisa ser formatado para receber novos dados – em resumo, “ressocializado”.

Essas páginas reforçam o ideal do especialista e reiteram a verticalidade, pois o


educador é colocado no lugar de detentor do conhecimento e da verdade absolutos sobre o
adolescente, sobre o que ele é e não é, e sobre o que ele deve vir a ser. Duas conclusões são
possíveis partindo dessas propostas: ou se é pretensioso o suficiente para ensinar alguém a ser,
ou se pretende desconsiderar o que a pessoa tem sido durante toda sua vida e formar nela algo
novo, o “sujeito ressocializado”. Trata-se da sobreposição dos saberes técnicos e formais aos
saberes das massas, o saber não acadêmico e não científico, em total desconsideração de toda
a construção da vida do sujeito ao longo dos anos.

3.2. Educação e controle

A educação, assim como apresentado no primeiro capítulo deste trabalho, traz de


longa data o papel de disciplinar a infância e a adolescência pobres, e isso ressoa ainda hoje
no modelo de educação vigente. Essa disciplina “estabelece o que é proibido, o que é
permitido e o que é obrigatório, ou seja, a disciplina prescreve e, de certa forma, complementa
a realidade” (Monteiro & Pinto, 2015, p. 80), e a escola, tal como o departamento
socioeducativo, não funcionam isolados das demais instituições que compõem a sociedade.
Esta, por sua vez é permeada de disputas políticas e ideológicas que produzem o modo de
funcionar dessas instituições. Essas disputas não se restringem a nenhum espaço específico,
pelo contrário, são constituintes da organização social e abrangem todos os sujeitos.

Dessa forma, as estratégias de poder visam a controlar as atitudes dos indivíduos, a


governar suas ações. O indivíduo submetido a este regime de relações tem sua
subjetividade moldada. Com esse objetivo, criam-se estratégias de exercício de poder
direcionadas em produzir uma espécie de subjetividade, o que configura na construção
do sujeito dócil, ou seja, corpo eficiente em termos de produção e incapaz de
problematizar e reagir ao sistema (Galvão, 2014, p. 9).

Nesse sistema de construção de um sujeito dócil, a educação tem um papel


fundamental. Ela poderá funcionar para “a conservação [das estruturas] ou para a
34

emancipação humana” (Lima, 2009, p. 481). O que não se pode perder de vista é a dinâmica
dessas relações de poder e como elas produzem a sociedade e os sujeitos, e isso ocorre por
uma série de mecanismos:

A sociedade disciplinar demanda ainda, para completar o quadro, certos tipos de saber,
o do técnico, o do especialista na área, que é veiculado por certo tipo de discurso, o da
eficiência, da norma, sempre respaldado pelo fator “científico”, isto é, o lugar
institucional de onde ele pode falar é o lugar que nossa sociedade tem reservado à
ciência, como autoridade máxima e como modelo e padrão pelo qual as demais
atividades e práticas devem se guiar (Araújo, 2002, p. 5).

Todos esses fatores se conjugam: o profissional ocupa o lugar de detentor do saber, em


relação ao adolescente, às famílias, à sociedade, e isso conduz a uma prática que pode operar
no sentido de reforçar a disparidade, tal qual a ciência racista e classista no século XIX. Não é
simples atuar em uma esfera disputada como a da socioeducação, e os embates se refletem até
mesmo nos documentos legais, como o plano político pedagógico ou o próprio SINASE.
Nestes, identificamos muitos elementos progressistas, mas também encontramos, de modo
mais sutil, diretrizes para atuação um tanto quanto reacionária. Como por exemplo, o PPI que
diz que o adolescente:

Ao ser considerado responsável pelo cometimento do ato infracional e associado a um


processo judicial, o primeiro passo em direção a uma justiça juvenil é o de identificar e
explicitar com clareza a dimensão pedagógica das garantias processuais. À medida que
o adolescente percebe que não foi vítima de um ato discriminatório, mas que teve a
condição de defender-se, ele passa a perceber e compreender a justiça como um valor
concreto em sua existência. (2012, p. 377).

O trecho que versa sobre discriminação é tanto cruel quanto ideológico. Ao fazer com
que o adolescente seja individualmente responsabilizado pelo ato, exime-se de culpa a
sociedade e a relevância dos fatores classe e perfilamento racial 11 para as abordagens
policiais, o que engrossa a massa das detenções. Com isso, ignora-se o contexto histórico-
político-econômico em que está inserido. Insistir nesse discurso meritocrático que prega que
cada um é o único e suficiente responsável pelo seu sucesso ou seu fracasso, é insistir em

11
Perfilamento racial é a utilização da raça como determinante para eleger quem será o foco das abordagens
policiais.
35

fechar os olhos não só para os milhares de exemplos do cotidiano 12, mas também para a vasta
produção acadêmica que mostra o público específico sobre o qual se investem as práticas de
controle:

O fato é que, dos capoeiras aos funkeiros, uma parcela massiva da nossa força jovem
deve ser controlada minuciosamente, da teoria à prática: do correcionalismo ao
ressocialismo, do cerco aos quilombos, às blitzen e incursões policiais. O inimigo é
sempre o mesmo, construído via histórica do medo nas cidades (Batista, 2008, p. 198).

Retomando o conceito de salvacionismo, entendemos que a mesma lógica aplicada


para a dita salvação dos pobres consiste na verdade numa estratégia que visa neutralizar as
classes perigosas para assegurar o bem estar da sociedade. Conforme também pontuado pela
autora, "o menino pobre aparece como representação ‘daquele que naturalmente cairá no
crime’, se não for contido pela polícia ou pelo voluntariado, ou pelos dois, na simbiose da
prevenção/repressão” (Idem, p.198). Segundo a autora, como resultado dessa estratégia, se
silencia a potência da juventude, com o objetivo de promover a obediência e a não resistência.

Se entendermos que a educação é aplicada no sistema socioeducativo com o sentido de


ensinar boas maneiras e “civilizar”, o resultado esperado é justamente essa obediência e não
resistência. Inicia-se um processo chamado docilização, no qual se pretende ensinar ao
adolescente a “ser, fazer, conviver e conhecer”, deste modo ensinando como ser, como fazer,
como conviver e como (e o que) conhecer, formando o sujeito, no sentido de colocá-lo em
uma fôrma, esse é o projeto da famigerada ressocialização.

Considerando o que foi apresentado ao longo de todo o texto até aqui, não podemos
olhar com inocência para as práticas pedagógicas que são oferecidas a esses jovens, é
necessária uma análise das intencionalidades a serviço das quais funciona este sistema e das
práticas que são demandadas de seus profissionais: o saber do especialista, respaldado pelo
seu valor científico, e com isso de seus efeitos.

O que queremos com esse texto não é ressaltar a contradição entre o sancionatório e o
educativo da medida e sim demonstrar que, na verdade, o próprio caráter pedagógico é tão
parte da estrutura de controle quanto o aspecto punitivo da medida. A socioeducação

12
Noticia de 2017 revela que maior parte dos assassinatos são de pretos ou pardos, e que isso se dá
majoritariamente nas áreas mais pobres da cidade. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2017/07/26/rj-9-em-cada-10-mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos.htm
36

comparece aqui como mais uma ferramenta de docilização, dada uma tentativa constante das
classes dominantes de “salvar os pobres”, e nesse processo preservar o projeto de país dentro
das estruturas pré-estabelecidas que atendem aos interesses das mesmas.

São as necessidades que as diversas instituições têm de modificar suas funções em


consonância com as mudanças mais amplas nos fatores sociais, econômicos e
culturais, que mostram como a educação, ao se escolarizar na modernidade, passou a
exercer um papel de controlador e adaptador daquelas necessidades. E elas são, grosso
modo, tanto necessidades técnicas (aprender ofícios e funções) como necessidades
operatórias, estratégicas, ou como mostrou Foucault, disciplinares, fruto do tipo de
sociedade que, desde fins do século XVIII, vem reforçando práticas que distribuem
saber e poder por todo o corpo social, especialmente por instituições em que o
indivíduo precisa ser curado, examinado, treinado, exercer ofícios. Dentre as
conseqüências negativas do modelo técnico/cientificizante, proveniente da sociedade
moderna tecnicizada, está o indivíduo treinado, pedagogizado. Neste sentido, a escola
funciona como operador de pedagogização, pois reúne a capacidade de habilitar com
recursos educacionais básicos a criança e o jovem, com a capacidade de fornecer os
mecanismos e instrumentos pedagógicos que asseguram obediência, responsabilidade,
prontidão, docilidade, adaptabilidade (Araújo, 2002, pp. 4-5).

Esse trecho consiste em uma análise da instituição escolar, porém, dentro dessa lógica
de controle, é possível traçar paralelos entre a escola, a prisão, o hospital, etc. (Brighente &
Mesquida, 2011, p.2397). Refletindo sobre a educação sob essa ótica, percebe-se que é
impossível a promoção da autonomia e da emancipação, tendo em vista que “a docilização
dos corpos pela disciplina visa tornar as pessoas ‘boazinhas’ [sic.], sem lhes dar um espaço de
reflexão acerca de sua posição na sociedade ou no mundo.” (Idem, p. 2395).

A educação tem, pelo menos, dois sentidos possíveis: o primeiro, uma educação para a
docilidade, conforme citado acima; o segundo, uma educação libertadora. Para Freire (2016),
a educação libertadora consiste em reconhecer as estruturas de opressão para que se possa
então subvertê-las. A seguir, iremos analisar as possibilidades e dificuldades que se
encadeiam na aplicação da educação no sentido proposto por Freire, enquanto prática
libertadora.
37

4. Proposições

Acreditamos que as críticas são fundamentais para o processo de aprimoramento, mas


também se fazem necessárias tentativas de se pensar alternativas ao que está estabelecido.
Partimos de dois trabalhos executados na América Latina, um sendo Paulo Freire, com a
Educação Libertadora, e o outro de Ignácio Martín-Baró, com a Psicologia da Libertação.
Apesar de não compartilharem diretamente o campo de estudo, é possível encontrar
similaridades entre os dois autores no que diz respeito à emancipação e liberdade das classes
oprimidas através da conscientização, tema que trataremos adiante.

4.1. O que é liberdade para você?

Ao fazermos a pergunta que o título deste tópico leva, os participantes da pesquisa


imediatamente respondiam que liberdade era o direito de “ir e vir”. Dentro de um contexto de
medida de semiliberdade é compreensível que tenha sido a resposta que mais apareceu; no
entanto, apesar de prevalecer, não foi uma resposta única. Como disse uma das técnicas
entrevistadas:

Eu penso que liberdade aqui dentro do sistema socioeducativo, e de maneira geral, é o


ir e vir. Essa é a principal liberdade, que aqui no sistema ela é tolhida, porque o
menino está internado [...] Os meninos aqui estão só privados do ir e vir, mas as outras
liberdades eles têm acesso, que é a expressão, a escolarização, a profissionalização e
tudo mais, então eu acho que liberdade pra mim, em termo geral, é essa questão do ir e
vir (Transcrição de entrevista, 2018).

A análise da palavra liberdade é relevante porque iremos tratar da chamada educação


libertadora. Paulo Freire entende que a educação liberta quando permite ao educando tomar
consciência da estrutura de opressão que o envolve, através de uma “reflexão crítica sobre a
realidade, firmada na prática e não apenas ancorados em ideias, mas em compromisso com a
própria existência” (Rossetto, 2015, p. 82). Essa conscientização implica no resgate da
história, e recuperando-a e refletindo sobre ela é que o sujeito se aparelha para fazer e refazer
o mundo (Contreras, 2013).
38

A educação para a decisão, participação e autonomia sintetizam-se, em Freire, na


responsabilidade de assumir uma postura crítica diante da vida. Este desafio constitui a
finalidade do processo de conscientização como forma de produzir conhecimento
‘situado’ - não alheio às condições materiais de vida - na comunhão e convivência da
realidade concreta como produto do seu trabalho (Idem, p. 6108).

Com isso, compreende-se que o conceito de liberdade aqui empregado difere do


sentido neoliberal individualizante de liberdade, do sujeito acima de tudo (Oliveira, Guzzo,
Tizzei & Neto, 2014). Aplicamos o sentido que implica a tomada de consciência das
estruturas sociais e nessa conscientização é que podem se dar a prática emancipadora e a
promoção da autonomia. Entendemos que a educação que visa a promoção de liberdade e o
protagonismo se dá no sentido de criar junto aos próprios sujeitos as ferramentas para que eles
possam refletir e agir sobre a realidade, transformando-a.

Freire (1967, p. 11) diz que “conscientizar não significa, de nenhum modo, ideologizar
ou propor palavras de ordem. Se a conscientização abre caminho à expressão das insatisfações
sociais é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”, ou seja, a
indignação frente à opressão só aparece porque ela já existe, a conscientização provoca o
entendimento do que já imobilizava antes, só não era visível.

Outro conceito fundamental diz respeito a situar o aspecto político da educação,


considerando que “a educação não é neutra, caso seja, não se constitui em liberdade, mas em
manipulação e engano, negando sua essência e fator de humanidade, ou seja, a constituição do
novo” (Rossetto, 2015, p. 76). Assumir esse caráter político é entender que não há como
existir a neutralidade, e sendo assim existem duas possibilidades: enfrentar a discriminação e
a opressão histórica, cuidando da relevância destas questões; ou ignorá-las e negá-las, e com
isso contribuir para a persistência dessas estruturas.

Existem fortes resistências, principalmente quando falamos em sistema


socioeducativo, é por isso que entendemos que “não se pode conseguir a reintegração social
do sentenciado através do cumprimento da pena, entretanto se deve buscá-la apesar dela; [...]
a melhor prisão é, sem dúvida, a que não existe.” (Baratta, 1999, como citado em Monteiro &
Pinto, 2015, p. 79). Ou seja, não será possível promover a autonomia e a liberdade com a
medida, mas propomos que esses caminhos sejam explorados, que possa haver espaços de
diálogo, de acolhimento, de compreensão, de promoção da emancipação, apesar da medida
socioeducativa.
39

É preciso compreender as inúmeras limitações que a aplicação desse projeto de


educação acarreta. De acordo com Araújo (2002, p. 13), não é possível “nas sociedades
complexas em que vivemos a adoção de modelos redentores, crítico-revolucionários, nos
quais vêm embutidas ideologias ingênuas”. Uma postura crítica sobre a educação, esvaziada
da certa ingenuidade que possui o encanto revolucionário, deve ser implicada, de fato, em sua
potência política, nas microestruturas, nas pequenas possibilidades de ação. Não é possível
mais acreditar em promessas institucionalizadas, ou seja, não podemos acreditar que a
educação seja efetivamente libertadora se apoiada em práticas macroestruturais, que vêm de
cima pra baixo.

O certo é que, a partir dos 1970, a criminologia crítica constitui-se como saber que
deslegitima o sistema penal como solução à conflitividade social. A partir daquelas
leituras, já não se podia crer nas ilusões "re": reeducação, ressocialização,
reintegração. Pelo contrário, a clientela do sistema penal foi sempre a dos
dessocializados, desintegrados, desclassificados. A prisão surge como grande fracasso
nos objetivos explícitos, mas sempre como sucesso, para diferenciar, arrumar e
controlar as ilegalidades. A justiça penal é construída para o controle diferencial das
ilegalidades populares (Batista, 2008, p. 195).

Sendo assim, a proposta de educação libertadora na socioeducação só é possível ao


investir nas microestruturas como possibilidade de resistência ao modelo de educação
bancária (Freire, 2016), no qual os educandos são considerados depósitos onde os educadores
são portadores do saber e despejam o conteúdo, em uma relação hierárquica e nada
participativa. Essa perspectiva de resistência permitiria aos profissionais subverterem em suas
práticas o modelo bancário, seguindo as pistas apresentadas por Freire ou, como veremos a
seguir, por Martín-Baró.

A Conscientização freiriana, é muito presente e é um dos princípios básicos na obra de


Martín-Baró, em que ele a coloca como um do quefazer (quehacer) da Psicologia da
Libertação. A conscientização no sentido freiriano, não consiste em uma
conscientização individual, mas comunitária, ou seja, não é apenas uma compreensão
da própria vida, mas a compreensão das condições concretas que seu grupo social está
submetido, e, principalmente, na elaboração de ações que sejam transformadoras
dessas condições (Guzzo, 2013). A transformação das condições materiais, às quais
um grupo social está submetido, leva à libertação pessoal (Martín-Baró, 1996). Trata-
se, portanto de um processo de direção inversa - inicia-se no coletivo e atinge o
pessoal (Oliveira et.al, 2014, p. 212).
40

A conscientização, no sentido proposto por Martín-Baró, não é imposição de valores


ou conteúdos para que aquilo suscite a mudança, a “salvação”, mas é um verdadeiro
comprometimento com o educando de modo a entender, e principalmente respeitar e
valorizar, a sua história, o seu modo de funcionar no mundo, seu contexto de vida, o lugar de
onde vem, enfim, um panorama o mais completo possível, procurando escutar o sujeito para
muito além do ato infracional.

4.2. Pistas e rupturas:

Após o levantamento das armadilhas identificadas ao longo do texto, encontramos


também na literatura algumas pistas para o exercício da tentativa de se subverter essa lógica.
Martín-Baró13 foi um autor que se debruçou sobre a América Latina para sua pesquisa, e é um
precursor da chamada Psicologia da Libertação. Assim como Paulo Freire, destaca a
importância do resgate da historicidade dos sujeitos, como elemento fundamental para sua
liberdade, além de também ressaltar a influência dos aspectos socioeconômicos e o contexto
nos quais estão inseridos na produção desses sujeitos (Oliveira et. al, 2014). Essa é a primeira
pista das três que os autores nos oferecem. Esta versa sobre uma prática contextualizada, que
não vise um suposto ser universal, considerando as peculiaridades do público a que se refere,
o que inclusive é a razão para essas proposições estarem pautadas em teorias de autores
pesquisadores na América Latina.

A segunda pista consiste no resgate das vivências do grupo, e partindo disto analisar
teoricamente, para que haja total apropriação por parte dos sujeitos da sua própria experiência.
Colocando isto em análise é possível conjugar a realidade dos sujeitos com o saber, que se
coloca a serviço da população com que se pretende trabalhar (Idem, 2014). Essa proposta cria
uma ruptura com a postura do especialista, colocando a relação entre profissional e sujeito
como uma troca.

A terceira consiste na valorização das tradições, cultura, religiões e práticas afins do


saber popular, em compreender sua importância e seu funcionamento no cotidiano (Ibidem).

13
Martín-Baró realizou suas pesquisas em El Salvador, em um contexto de guerra que compõe o teor de seu
trabalho, pensando em uma psicologia poderia servir àquela população dado o momento que o país enfrentava.
41

Desta forma, se preserva o saber do sujeito, conforme a proposição de Freire de que “ensinar
exige respeito aos saberes dos educandos”.

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o
dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes
populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária -
mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a
razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos (…) Por
que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina
cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a
convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não
estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares fundamentais
aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir
as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas
pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador
reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é
partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes
operam por si mesmos (Freire, 2018, p. 16).

É importante ressaltar que, para Paulo Freire, o saber popular significa o conjunto de
conhecimentos, práticas e experiências de um povo sobre seu contexto de vida e que de
maneira alguma se confunde com opiniões, como no caso do senso comum, que é comumente
embasado em preconceitos e não são propriamente um saber. Segundo o Dicionário Priberam
(2018), saber, enquanto substantivo, é: “Conjunto de conhecimentos adquiridos = Ciência,
Ilustração, Sabedoria; Experiência de vida; [Figurado] Prudência; sensatez. Malícia.” 14. É
nesse sentido que Paulo Freire reitera a valorização do saber popular, por entender que
aqueles que estão distantes da academia não são ignorantes por isto, e por entender que
ninguém mais apropriado para discorrer sobre certa realidade do que aqueles que nela estão
inseridos.

Com isso, vemos que o profissional não deve se colocar em uma relação hierarquizada
com o adolescente, mas isso não significa desconsiderar o próprio papel. Freire (2016) propõe
o seguinte título para um dos subtópicos de seu livro: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se
liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (p.95). Com isso, entendemos como a
ideia de coletivo se coloca. É possível um trabalho conjunto, numa via de mão dupla onde se
dá e recebe, para a produção de novas possibilidades de existência, relações e de fato escrever

14
"Saber", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, disponível em:
<https://dicionario.priberam.org/saber>, consultado em Jan, 2019.
42

a própria história (como a premissa de autonomia da socioeducação), construindo um saber


crítico sobre o mundo e sobre si mesmo, que seja transformador da realidade.

O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua


inquietude, a sua linguagem, mais precisamente a sua sintaxe e a sua prosódia; o
professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que ‘ele se ponha em seu
lugar’ ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se
exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se
furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora
do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência
(Idem, pp. 58-59).

Esse desrespeito ao conhecimento e à postura do educando sinalizado pelo autor


revela como o apagamento da cultura periférica, tal como o apagamento da cultura afro
brasileira, é produto da nossa herança colonizada, e como isso é entranhado na educação, que
valoriza os saberes europeus e norteamericanos mas despreza o que é produzido nos países
explorados.

Freire escreve suas pistas para uma pedagogia libertadora, Martín-Baró escreve para
uma psicologia da libertação, porém elas se aproximam, pois Martín-Baró desenvolve seu
trabalho sobre conscientização partindo do trabalho de Freire sobre o tema. Os dois autores
têm muito a contribuir para todos aqueles que se propõem a trabalhar com todos os públicos
em situação de opressão estrutural, inclusive com os adolescentes em vulnerabilidade social.

A opressão não se dá em categorias fixas, o que significa que quem é oprimido em


uma estrutura pode se tornar opressor em outra. A opressão se dá especialmente quando o
sujeito não tem consciência das estruturas de dominação que permeiam a sociedade (Rossetto,
2015). O ato infracional cometido é algo que fez parte daquele momento da vida do
adolescente, mas não é determinante e nem dá conta da dimensão maior da sua vida, Martins
e Lacerda Jr. (2014), apoiados nos estudos de Martín-Baró, mostram que aqueles que estão
inseridos por muito tempo em uma realidade cotidianamente violenta tendem a naturalizá-la,
não só no seu entendimento, mas também nas suas ações, ou seja, podem agir com violência
também. Nesse sentido podemos afirmar que a violência estrutural presente nas estruturas de
dominação desembocam em outra forma de violência, que se volta para a sociedade. É por
isso que a conscientização é primordial para diluir o ciclo de violência em que estes jovens
estão inseridos.
43

Fazer essa ressalva é de fundamental importância para se escapar das tendências


culpabilizantes e individualizantes que se manifestam em relação ao adolescente que comete o
ato infracional. O que propomos é o ajuste, deslocar o olhar do ato para olhar na direção do
adolescente, é “pensar essa energia viva, esse tempo livre como categoria de força, potência
que é, na verdade, o grande e eterno recalcado da história brasileira” (Batista, 2008, p.196).

A psicologia surge como ciência buscando atender um suposto ser universal. Sendo
assim, desconsidera características determinantes como o contexto em que o sujeito está
inserido, sua cor de pele, sua condição financeira, e isso faz com que sua aplicabilidade à
população vulnerável seja nula, pois esse não é seu objetivo. Para a mudança deste paradigma,
Martín-Baró propõe que “o trabalho profissional do psicólogo deve ser definido em função
das circunstâncias concretas da população a que deve atender” (1996, p. 7). O autor, ao
pesquisar a psicologia no contexto da América Latina, aponta essas incongruências e nos traz
ferramentas para promoção de liberdade. Para isso, deve-se procurar entender a situação
social dos povos os quais se pretende acompanhar, pois:

Ainda que o psicólogo não seja chamado para resolver tais problemas, ele deve
contribuir, a partir de sua especificidade, para buscar uma resposta. Propõe-se como
horizonte do seu quefazer a conscientização, isto é, ele deve ajudar as pessoas a
superarem sua identidade alienada, pessoal e social, ao transformar as condições
opressivas do seu contexto. Aceitar a conscientização como horizonte não exige tanto
mudar o campo de trabalho, mas a perspectiva teórica e prática a partir da qual se
trabalha. (Martín-Baró, 1996, p. 7).

A tomada de consciência sobre as estruturas de dominação, o resgate do aspecto


histórico dos sujeitos, o respeito à autonomia e à especificidade do público com o qual se
trabalha são possibilidades que se colocam para o trabalho sem que se caia no reformismo, ao
assumirmos que devemos buscar uma educação libertadora apesar da institucionalização do
adolescente. Por fim, temos uma síntese de como seria possível uma educação emancipadora,
pautada na realidade, na relação entre os sujeitos e que preserve a autonomia.

A) O ser humano transforma-se ao modificar sua realidade. Trata-se, por conseguinte,


de um processo dialético, um processo ativo que, pedagogicamente, não pode
acontecer através da imposição, mas somente através do diálogo.

B) Mediante a gradual decodificação do seu mundo, a pessoa capta os mecanismos


que a oprimem e desumanizam, com o que se derruba a consciência que mistifica essa
situação como natural e se lhe abre o horizonte para novas possibilidades de ação. Esta
consciência crítica ante a realidade circundante e ante os outros traz assim a
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possibilidade de uma nova práxis que, por sua vez, possibilita novas formas de
consciência.
C) O novo saber da pessoa sobre sua realidade circundante a leva a um novo saber
sobre si mesma e sobre sua identidade social. A pessoa começa a se descobrir em seu
domínio sobre a natureza, em sua ação transformadora das coisas, em seu papel ativo
nas relações com os demais. Tudo isso lhe permite não só descobrir as raízes do que é,
mas também o horizonte do que pode chegar a ser. Assim, a recuperação de sua
memória histórica oferece a base para uma determinação mais autônoma do seu futuro
(Martín-Baró, 1996, p. 16).
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Conclusão

Mediante as informações expostas nesse texto, é possível ter um panorama breve da


amplitude de algumas das problemáticas que concernem à socioeducação, considerando suas
origens e o contexto de vida de seu público alvo, ou seja, como classe e raça, mas também a
faixa etária, interferem no tipo de tratamento dispensado aos adolescentes que cometem atos
infracionais. É importante perceber que não só estas práticas discriminatórias permeiam a
prática relativa aos adolescentes, antes, durante e depois da institucionalização, mas também
no teor dos documentos que regularizam a socioeducação enquanto modelo pedagógico.

É possível perceber isto na quantidade de jovens negros e pobres que são abordados e
apreendidos, e como isso se relaciona com ideais salvacionistas existentes no Plano Político
Institucional do DEGASE, bem representados pelos ditos pilares da educação: aprender a ser,
a conhecer, a fazer e conviver. Também se reproduz a lógica assistencialista nas práticas de
organizações não governamentais inseridas na unidade e daqueles que, com boas intenções,
defendem a falácia da ressocialização.

Com isso, se revela um movimento conservador ambivalente, ora direcionado para a


punição mais severa, alimentado por um clamor vingativo espalhado pela sociedade, e ora
com sentido caritativo e que não propõe emancipação, a ampliação das potências dos jovens,
e sim uma docilização que desconsidera as diversas formas de existir no mundo para
preconizar o modelo ideal que atende aos interesses das classes dominantes.

Só é possível uma mudança de paradigma com relação a estes jovens quando se


desloca o foco do delito e se volta o olhar para o adolescente enquanto sujeito complexo e
dotado de vida e de saberes, e é preciso o respeito a isto. Com isto, as ações ficam restritas e
precisam funcionar de maneira não institucionalizada, ou seja, não na socioeducação, mas
apesar dela. Só é possível investir no coletivo como ferramenta, considerando igualmente
todos os sujeitos do processo, se isso ocorrer por fora do prescrito: na mudança de postura dos
profissionais engajados e na atuação de parceiros externos para trabalharem em vias de
promoção da autonomia dos adolescentes.

Considerando que não se trata de uma fórmula pronta, e sequer há garantias de uma
aplicabilidade que seja efetivamente libertária, é preciso questionar os usos que podem ser
feitos de toda e qualquer ferramenta e as possibilidades de deturpá-los. É preciso atenção
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redobrada na prática do cotidiano, em não permitir a captura dos meios, mas também do
próprio exercício profissional. É por conta dessa possível captura, tendo em vista a
constituição do sistema socioeducativo e os seus fins, que se torna essencial que as práticas
educacionais libertárias se deem em um plano informal e não institucionalizado. Assim, a
prática pode ocorrer independente de mudanças estruturais, com a participação de todos os
atores interessados, funcionários, adolescentes e familiares e pesquisadores.

Para isto, deve-se sustentar que os protagonistas debatam, levantem suas questões e
reflitam, estimulando que o grupo possa discutir livremente sobre o que faz sentido pra eles,
de um modo que não preconize uma mudança, uma transformação que além de não acontecer,
ainda é pautada em princípios racistas e classistas. Isto tudo tem a ver com as questões
levantadas por Freire e Martín-Baró, sobre autonomia e construção coletiva, ao chamar para o
debate todos os atores no campo, não só se aproxima verdadeiramente das questões
pertinentes ao grupo, afastando opiniões e teorizações pré concebidas, mas também é um
exercício de visibilizar, ouvir a voz de quem não é ouvido costumeiramente.

É possível desenvolver um trabalho progressista, focado na criação de um espaço


aberto de escuta, do compartilhamento do conhecimento, da invenção e da reinvenção, de
possibilidades, de parcerias. Nesse processo é que se dá a conscientização, a afirmação de si,
em resposta ao hegemônico silenciamento dos oprimidos. E também podendo assim aprender
algo que seja interessante, que faça sentido, em contraponto de adquirir habilidades sociais
para submissão.

Evidente que inúmeros são os obstáculos, não é tarefa fácil trabalhar com classes
subjugadas, tampouco fazer isto de dentro de estruturas rígidas e constituídas de relações tão
complexas. Porém, é um compromisso ético lutar contra as estruturas de dominação. É dessa
forma que nos posicionamos, se queremos estar ao lado de quem perpetua a estrutura de
dominação das classes vulneráveis, por ignorá-los, ou quem se compromete a descruzar os
braços e agir como forma de resistência a toda e qualquer opressão, especialmente com a
perspectiva de continuarem crescentes nesse novo ano e nos seguintes, porém é preciso mais
do que nunca assumir o caráter de resistência da educação libertadora, da potência
revolucionária que é viver e continuar existindo enquanto minorias.
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