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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
RIO DE JANEIRO, RJ
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Agradeço primeiramente aos meus pais, por absolutamente tudo que fazem e sempre
fizeram por mim, palavras não são o suficiente para expressar o quanto o apoio de vocês é
fundamental. Também agradeço ao Mateus pelo suporte infinito, pelas conversas nas vezes
que eu achei que estava pesado demais e por fim, por acreditar tanto em mim.
Também sou muito grata à Hebe e a Yasmim, a primeira por sempre compartilhar o
seu conhecimento e estimular que a gente cresça, e por ser uma orientadora tão presente. A
segunda pela oportunidade de caminhar junto nessa pesquisa que foi fundamental para minha
formação, e por ser uma pessoa tão gentil e sensível. Sem esquecer de todo o grupo do
Psicologia e Direitos da Infância. Aprendi muito com todos vocês.
Também agradeço a toda equipe da unidade em que foi realizada a pesquisa pela
acolhida, pelas conversas valiosas, pelas entrevistas e pelo tempo cedido a nós. E a cada um
dos adolescentes que passou por “nossa” salinha, pelas risadas, histórias, e pelo sopro de vida
real que me trouxeram.
A socioeducação é um campo controverso que desperta muito interesse por parte dos
pesquisadores e da população em geral. Diferentes projetos disputam espaço para definir o
rumo do atendimento aos adolescentes que cometem atos infracionais, e se faz importante
investigar como esses conflitos se manifestam na execução das medidas socioeducativas,
tanto teoricamente como na prática. Iremos analisar o papel da educação considerando o
público majoritário do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), composto
por adolescentes negros e pobres, e como isso se relaciona com o modelo pedagógico
salvacionista presente no atendimento socioeducativo.
Abstract
The social education is a controversial field that arouse concern on the part of the researchers
and population in general. Many different projects dispute space to define the course of the
social educational service to adolescents who commit infractions, and it is important to
investigate how these conflicts manifest themselves on the execution of the social educational
measures, both theoretically and in practice. We will analyze the role of education considering
the majority public of General Department of Social Educational Actions (DEGASE),
composed by black and poor adolescents, and how does it relate to the pedagogical
salvationist model present on the social educational attendance.
Introdução 6
1.2 Como? 12
3. Educação na Socioeducação 26
4. Proposições 37
Conclusão 45
Bibliografia 47
6
Introdução
Partindo desta experiência e de uma leitura prévia do Plano Político Institucional (PPI)
do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), algumas questões referentes
7
Historicamente, jovens, pobres e negros são subjugados e oprimidos das mais diversas
formas, e a educação foi uma delas. Diversos estudos situam a educação no Brasil no século
XIX como colonizadora, ou seja, a sua proposta era a de incutir a moral e os ideais burgueses
na população mais desfavorecida, para realizar sua transformação e com isso transformar
também o país, considerando o ideal de nação eurocêntrico adotado aqui.
Esse segmento da população se torna foco dessa intervenção por um processo que a
levou a ser associada à vadiagem, às doenças, ao crime e a uma série de outros estigmas, mas
principalmente na associação ao risco. Isto é relevante pois até hoje influencia o tratamento
dispensado aos mesmos, como constatado ao observar que os mesmos caracteres de raça,
classe social e idade são os que mais engrossam a população carcerária do país, a população
atendida no DEGASE e também os que mais são assassinados pelas forças policiais.
Essa contradição entre as duas faces da medida socioeducativa já levanta uma série de
questões mas, para além delas, é possível também pôr em cheque que projeto pedagógico é
este. A proposta educativa apresenta a autonomia e o protagonismo dos jovens como meta,
porém, na medida em que analisamos o teor da socioeducação em documentos oficiais como
o PPI do DEGASE, percebemos que diferentes intenções se apropriam do discurso,
evidenciando conflitos na própria teoria, e entre teoria e prática.
8
Com isto, propomos uma reflexão sobre educação para classes vulneráveis que parte
do referencial da pedagogia e da psicologia da libertação, traçando um diálogo entre Ignácio
Martín-Baró e Paulo Freire para pensar a socioeducação não apenas questionando suas
práticas mas também propondo algumas pistas para a socioeducação.
9
A história está ligada a práticas e não ao tempo em si. Ela se organiza como parâmetro
às relações de poder e sentido, e não à cronologia: não é o tempo cronológico que
organiza a história, mas a relação de poder. (Orlandi, 1990, como citado em Ayres,
Cardoso & Pereira, 2009, p.127)
Além disso, contavam com franca desigualdade de oportunidades, já que era esperado
que os ex-escravizados realizassem os trabalhos mais árduos e de menor prestígio social. Isso
gerava conflitos, pois os negros não aceitavam sair de um regime de submissão para outro e,
por isso, alguns sobreviviam cometendo pequenos delitos e outros preferiam trabalhar por
conta própria (Duarte, 2008, p. 49), o que por si só já significava um desvio da ordem e da
moral burguesa.
Esse veio a se tornar um grande problema, e a imagem do pobre passou a ser atrelada à
vadiagem, à preguiça, ao caos e, posteriormente, ao perigo; desta maneira, a desordem social
passa gradativamente a ganhar cor e forma. Pastana (2007) faz uma análise sobre as obras de
10
diversos autores clássicos para se pensar no sistema penal atual, e discorre sobre uma espécie
de ódio que passa a ser nutrido por essa parcela da população - que por conta da recusa às
péssimas e escassas ofertas de trabalho poderia recorrer ao crime como modo de subsistência.
Assim é feita uma associação quase automática entre pobreza e crime. Esse conceito será
central para entendermos, no próximo capítulo, como a punição comparece enquanto clamor
popular.
A criminologia positiva, por sua vez, é uma escola criminológica que surge para dar
conta da questão do crime, e mais especificamente do criminoso (Maurício, 2015), com uma
visão determinista e psicopatologizante. Seus precursores defendiam que certos caracteres
biológicos eram determinantes do crime, tendo inclusive desenvolvido estudos para revelar
características físicas comuns aos criminosos.
Esses três saberes, conjugados, fizeram com que os problemas de segurança e de saúde
pública fossem tratados como responsabilidade específica deste segmento da população (os
pobres e negros). O teor das três teorias se resume no entendimento de que a dificuldade
social era produto de fatores “hereditários, psicopatológicos, ou má influência de uma família
desestruturada ou contexto social” (Feitosa & Boarini, 2014, p. 127).
11
Surge então a necessidade de agir sobre essa parcela da população, entendida como
problemática, para dar conta das demandas de controle. A medicina é então convocada para
essa tarefa, interferindo não só na questão das epidemias, mas na organização da cidade e na
prevenção dos males sociais; ganhou espaço o projeto de embranquecimento da população, já
que se entendia que “não era possível fazer uma grande nação com uma raça inferior, eivada
pela mestiçagem, como eram os brasileiros” (Mansanera & Silva, 2000, p. 119).
A relação dessas propostas com o positivismo está em que, ao pensar sobre o crime, o
higienismo enfoca a mensuração das características do criminoso, e pretende com isso prever
e antecipar o cometimento do crime. Fortemente apoiado nessas concepções racistas, e
inspirado nos criminologistas italianos, o psiquiatra brasileiro Nina Rodrigues dedicou sua
carreira ao estudo da relação entre a criminalidade e o povo negro e mestiço, defendendo que
existiria uma diferença entre níveis de evolução e desenvolvimento mental de acordo com a
raça, conforme Marcela Franzen Rodrigues (2015). Assim, o Estado pode intervir nas
famílias, a partir de um viés de culpabilização e estigmatização da pobreza como
representante das mazelas sociais.
12
Esse contexto histórico, fortemente racista, é determinante para pensar os dias de hoje.
A desigualdade foi sendo produzida e fomentada a partir da marginalização das classes mais
pobres, admitindo que alguns indivíduos são dispensáveis econômica e socialmente,
representando inclusive uma ameaça que pode (e deve, segundo os interesses das classes
dominantes) ser neutralizada (Neuhold, 2018). Ademais, a questão da pobreza frequentemente
se mistura à questão racial, especialmente em um país como o Brasil, com longa história
escravista, e por conta disto é essencial fazer a diferenciação de como na história houve
tratamentos diferentes para os negros escravizados em relação aos negros livres. Isso será
importante para analisarmos adiante a educação.
Com esses princípios, embasados pelo saber científico da época, o Estado concentra o
poder e também “o dever de controlar, higienizar e punir a pobreza brasileira; com poderes
para, inclusive, retirar os filhos dos pais que não se adaptarem às regras familiares burguesas
estabelecidas” (Nascimento, Cunha & Vicente, 2008, p.6). E, ainda nos dias de hoje, justifica
a punição de famílias pobres com a alcunha de “negligentes”.
1.2. Como?
Entre o final do século XIX e o início do século XX, a ideia de educação popular,
importada da Europa, começa a tomar espaço no Brasil; com o objetivo de abarcar um maior
número de crianças, essas escolas chegam com propostas de transformação social e de se
tornarem “redentoras da nação” (Pereira, Felipe & França, 2012, p. 244). Entretanto, a escola,
ainda que pública, não atingia todas as crianças brasileiras.
Apesar da escola pública brasileira nos primeiras décadas do século XX, ter como
objetivo a escolarização das camadas populares, só foram integrados aqueles
pertencentes aos setores ligados ao trabalho urbano, deste contingente ficaram fora da
instrução pública promovida pelo Estado os pobres, os miseráveis e os negros. Setores
que por volta de 1920 começam a reivindicar o seu espaço na instituição pública
escolar, despertando na elite brasileira a preocupação com organização do sistema
capitalista, que dependia da preparação da massa para o mercado de trabalho (Idem, p.
246).
Algumas forças exerciam influência sobre a educação no país, como a ideia difundida
pela Europa de que educação pública era uma ferramenta para o progresso e para a
diminuição das desigualdades sociais. Países latinos como a Argentina, o Chile e o Uruguai
também aderiram ao modelo (Saviani, 2014), indicando uma forte tendência de valorização da
educação pública visando as crianças e os pobres. Deste modo, era possível silenciar os
movimentos reivindicatórios por educação popular e, ao mesmo tempo, manter as práticas
conservadoras que excluíam setores das camadas populares.
Ao contrário do que se acredita, o ensino público não era vetado aos negros e pobres;
na verdade, estes seriam exatamente o público alvo da instituição escolar, já que “em geral,
crianças das famílias abastadas brancas buscavam meios próprios de educação de seus filhos,
por sua vez o discurso civilizador destinava-se àqueles que na percepção das elites careciam
de civilização” (Veiga, 2008, p. 504). A autora aponta que a proibição visava os escravos, e
não a população negra no geral. Conforme citado anteriormente, essa diferença precisa ser
compreendida para se compreender o interesse de se escolarizar.
Essa ideia não é originalmente brasileira, inclusive o autor Anthony Platt faz uma
análise preciosa sobre esse tema no âmbito estadunidense, compilada no livro The child
savers: the invention of delinquency. Platt analisa o salvacionismo (child saving)
considerando seus interesses e repercussão. Esse fenômeno consiste na ideia de que as
crianças seriam o futuro e que “salvar as crianças era salvar o país” (Rizzini, 2002, p. 2), uma
proposta nomeada no cotidiano ora de assistência, ora de caridade. Apesar de até os dias de
hoje a prática estar fortemente atrelada a instituições religiosas, ela parte da responsabilização
do Estado em afastar a infância potencialmente perigosa dos vícios, das ruas, do crime.
Essa estratégia traz, através da escola, o controle social da população pobre. Em suma,
o público alvo da prática era selecionado pelas lentes do higienismo, ditando a necessidade de
intervenção sobre os pobres; a partir daí poderiam ser recolhidas as crianças que estivessem
“em estado de pobreza, sem roupa adequada para freqüentarem as escolas, ou que vivessem
mendigando” (Neder, 2004, p. 205). Segundo essa mesma autora, as crianças seriam enviadas
a instituições específicas para esse fim, as igrejas; depois de receberem instrução escolar
básica, poderiam também ser encaminhadas ao serviço militar.
A formalização legal sobre o menor dito em situação irregular nos Estados Unidos se
dá em 1899. No Brasil, o Código de Menores só surge em 1927, para tratar da
responsabilidade do Estado sobre essas crianças, e com isso se efetiva uma importante
mudança de cenário que reverbera até os dias de hoje no que chamamos sistema
socioeducativo.
funcionar um sistema que pretende punir e educar ao mesmo tempo. Para tal, é preciso dar
importância a algumas características dessa população específica.
Esses dados se fazem relevantes para situar que, apesar do longo percurso histórico, o
sistema socioeducativo ainda atende majoritariamente adolescentes negros. Informações sobre
escolaridade e nível econômico não aparecem neste levantamento anteriormente citado ou em
algum outro levantamento do estado do Rio de Janeiro.
1
Dados correspondentes ao dia 30 de novembro de 2016, embora o relatório só tenha sido divulgado em 2018.
16
Seja mais ou menos parecida com uma prisão, a instituição existe com o fim de
disciplinar os adolescentes. A medida pode ser entendida como um castigo, relacionada
estritamente ao cometimento da infração, o “errou tem que pagar”, repetido por agentes e
responsáveis durante as entrevistas, mas legalmente constitui um processo de reestruturação,
pretendendo que os adolescentes se tornem pessoas diferentes, e isso não se dá apenas pelo
aspecto sancionatório da medida, ou apenas pelo aspecto dito educativo: ambos se conjugam
na produção desse sujeito.
2
Essa diferença se baseia em apenas duas unidades visitadas: uma unidade de semiliberdade e uma unidade de
internação.
19
Apenas essa coisa de mudar a nomenclatura já ajuda em outras situações, porque aqui
nós estamos numa secretaria de educação, mas nós não estamos aqui com alunos de
escola (...). Nós estamos em uma secretaria de educação, só que quando vieram os
aumentos para a secretaria de educação o DEGASE não recebeu, o próprio secretário
de educação disse que nós não somos da educação, mas quando veio para a segurança,
nós também não recebemos porque estamos na secretaria de educação. Aí com isso a
SEAP [Secretaria de Estado de Administração Penitenciária] ganhava menos que o
DEGASE e hoje a SEAP quase dobrou o salário do DEGASE, porque a gente não
ganha por um, não ganha por outro, porque não somos daqui, não somos dali. Então
com isso, segurança, nós entramos no SUSP [Sistema Único de Segurança Pública],
né, tudo isso por Brasília. Então, se nós não tivéssemos mudado a nomenclatura não
conseguiríamos mudar. (...). Estávamos atravancados com a questão do porte de arma
por conta de estar na secretaria de educação e do nome, da nomenclatura
“socioeducativo”. Então essa mudança pra gente foi muito importante, as coisas
andaram depois disso, agora só falta mudar de secretaria, já que a gente entrou no
SUSP, né, agora a gente tem mais possibilidade de sair da educação. (Transcrição de
entrevista, 2018).
Além disto, os funcionários relatam se sentirem julgados e terem seu trabalho criticado
a todo momento. Na unidade em que pesquisamos, havia, em algumas ocasiões, um
desconforto causado pela nossa presença. De certa forma, habita no imaginário a ideia de que
os agentes são contra os adolescentes e a equipe técnica, assim como os pesquisadores (nós,
inclusas) e o judiciário, a favor deles. Isso produz significados: as práticas das diferentes
profissões que compõem a unidade acabam se opondo uma à outra, representando também o
modo como essa dupla face da instituição reverbera nas práticas profissionais.
3
Lei nº 7694 de 22 de setembro de 2017 (2017). Altera a denominação de cargo que trata a Lei nº 5.933, de 29
de março de 2011, que dispõe sobre a reestruturação do quadro de pessoal do departamento geral de ações
socioeducativas - DEGASE, e dá outras providências.
20
A gente tem algumas dificuldades com algumas pessoas de equipe técnica, isso aí nós
temos. Não aqui, o sistema inteiro. Porque (...) antes do concurso em 2011 ou 2012 os
agentes eram a maioria contratados, o nível dos agentes, intelectual, era um pouco
baixo, pouca escolaridade e tal... E o nível da equipe técnica mais alto, criou-se aí uma
divisão, isso, por essa situação de estar em regime diferente, outra pelo próprio
comportamento da maioria das pessoas que integram essas equipes, porque elas ouvem
o adolescente, né, não interessa se ele está falando a verdade ou não, e encaminham
essas denúncias pro judiciário, e independente de ter comprovação ou não, é
instaurado um inquérito administrativo contra aquele plantão do dia, ou aquele agente
do dia. (...) e quem é encarregado de ficar jogando essas demandas pro judiciário é a
equipe técnica, por isso tem uma separação. Geralmente essas demandas são feitas
mais por psicólogos e assistentes sociais, né, devido até o próprio código deles de ética
e tal, quando eles recebem eles têm que passar, e isso acaba fazendo divisão entre os
funcionários (Transcrição de entrevista, 2018).
Percebe-se que o agente se sente pressionado por diversas frentes, não se sente
integrante de um corpo de funcionários, independente de sua atuação específica. O agente
revela a distância entre o que entende ser a sua função e o que é de fato autorizado a fazer: “O
meu concurso foi para atuar na segurança, né, então assim, o que a gente faz aqui é garantir a
segurança, então se eles saem pra fazer uma atividade, interna ou externa, a gente tem que
garantir a segurança.” (Transcrição de entrevista, 2018).
4
Artigo 227 da Constituição Federal: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
21
Conforme apontado no início do tópico anterior, existe a crítica de que o sistema seria
muito brando com os adolescentes, dados o tempo máximo de três anos da medida, a
liberação aos fins de semana no caso da semiliberdade, a existência de sanções como a
liberdade assistida, que se dá no meio aberto, entre outros fatores.
Se você comete um delito, vem pra cá, né, e... Vamos dizer um homicida, ele vem pra
cá [DEGASE], fica aqui no máximo oito meses internado, depois mais seis meses na
semiliberdade e volta. Vamos dizer que ele cometeu esse homicídio aos 12 anos, antes
dos 14 ele já tá na rua de novo, ele sentiu alguma condenação? Não. (...) Então esse
tempo que ele passou aqui, além dele não se sentir punido, né... Aí você vai me dizer
que o intuito não é punir, que o intuito é ressocializar... Pra eles é impunidade.
(Transcrição de entrevista, 2018).
Esse é um dos pensamentos que está por trás da discussão sobre a redução da
maioridade penal, que é uma pauta popular em muitos setores da sociedade, defendendo que
os adolescentes que cometem infrações consideradas mais graves já deveriam ser penalmente
imputáveis. O mais comum é se presenciar discussões que defendem a redução para os
dezesseis anos, independente do grau do delito, em outras, para a mesma idade, porém para
5
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
22
delitos graves, e há também propostas de emendas constitucionais (PECs) que sugerem que
dos quatorze aos dezoito anos, a inimputabilidade deva ser relativa (Ribeiro, 2012, pp. 177-
179). Destaca-se a “PEC nº 302/2013 que propõe diminuir a idade penal para 12 anos nos
casos de crimes hediondos, e a PEC nº 332/2013 [...] estabelece que, ao completar 18 anos
durante o cumprimento da medida socioeducativa, o jovem seja transferido para o sistema
prisional.” (Silva, 2015, pp. 34-35).
São diversas as proposições, mas que se conjugam em uma mesma voz, a de aumentar
a punição para os adolescentes que cometem atos infracionais. Isso se dá independente das
evidências de que a internação não apresenta resultados positivos:
Porém, o que se observa é um clamor popular pela punição, que não necessariamente
se encontra atrelado ao ideal de ressocialização, mas obedece à mesma lógica que fazia com
que os negros e pobres fossem execrados por conta do seu desvio à norma capitalista (por não
aceitarem os trabalhos em péssimas condições e remuneração que lhes eram oferecidos). Esse
padrão se repete nos dias de hoje, fazendo com que a própria população anseie por uma
punição mais severa dos adolescentes que cometem delitos. Essa lógica é reflexo do processo
histórico de marginalização, que faz com que a sensação de perigo esteja fortemente atrelada
a este mesmo público.
Nesse novo arranjo político (...), o alarme social que se cria em torno da criminalidade
acaba por provocar um generalizado desejo de punição, uma intensa busca de
repressão e uma obsessão por segurança, ainda que simbólica. O controle penal passa
a ser a “tábua de salvação” da sociedade e quanto maior for a sua dureza, mais
satisfeita ela estará. (Pastana, 2007, p. 208 ).
Efeito disto é então o clamor punitivo que habita a sociedade, alimentado por uma
cultura do puro pânico, somado ao embrutecimento das relações pessoais por conta do
23
individualismo propagado pelo neoliberalismo e, com isso, a exclusão dos que não são parte
do mercado de trabalho formal. Perpassa o imaginário social a relação entre trabalho e
dignidade, e entre ausência de trabalho e vadiagem, relação que remonta à questão dos
escravos recém libertos que não se propuseram a engrossar a massa de mão de obra barata e
sofreram as consequências dessa escolha. É o trabalho que tudo vence (práxis omnia vincit),
conforme inscrito em uma parede do Museu Bispo do Rosário 6, local que funcionou como
manicômio por longos anos, que além de pacientes psiquiátricos também abrigou ex-internos
da extinta FUNABEM, com ou sem questões de saúde mental.
Conseguimos compreender como esse mecanismo opera com aqueles que são
estranhos ao ator do ato infracional, o desejo de punição para com o outro. Porém, mais do
que isso, essa lógica é tão complexa e tão enraizada na sociedade que reverbera também entre
aqueles que têm proximidade com esses adolescentes. Vimos, na fala de uma mãe, a
reprodução desse paradigma ao preferir que o filho estivesse na unidade de internação, pois,
tendo em vista suas características de instituição total7 (controle absoluto do tempo e das
atividades, isolamento do mundo externo, punição, etc.) ela entendia que a punição estaria
sendo mais fortemente exercida, e assim, traria melhores resultados.
Mãe: Eu preferia que ele estivesse no Padre Severino (unidade de internação) que
aqui, sinceramente, eu como mãe [...] Porque lá ele tava sentindo, o que ele fez ele
tava pagando preso, aqui não [...].
Entrevistadora: Então a senhora acha que a liberdade acaba atrapalhando?
M: Com certeza, no meu modo de ver [...] Ele conviveu (na internação) 45 dias, mas
tô te falando a forma, que lá tinha um tratamento... E tem mães que às vezes acham
que tem certos tipos de tratamento que tu vai sofrer. Sofri sim, muito, de ver ele de
cabeça baixa, de ver ele chorando, mas eu preferia ele lá, sinceramente, eu achava que
lá ele ia pagar o que ele fez, eu sou desse tipo, se você fez, vai pagar o que fez. Depois
que veio pra cá ele vai pra casa rindo, volta rindo. Eu não to vendo como se ele tivesse
pagando alguma coisa, pra ele é uma colônia de férias. [...] Eu acharia que teria que ser
mais rígido, entendeu? [...] Um horário pra fazer as coisas, pra trabalhar [...] ele ia
estudar, ele ia fazer um curso, mas aqui ele não faz nada, só tá indo pro colégio agora.
(Transcrição de entrevista, 2018).
6
Museu na Colônia Juliano Moreira, localizado em Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
7
Para melhor entendimento do tema, ver: Goffman, E. (1987). Manicômios, prisões e conventos (7ª Ed.). São
Paulo: Perspectiva.
24
Ao mesmo tempo que ama, e porque ama, deseja que esse filho pague e, para isso, entende
que ele deve sofrer. Há o entendimento de que através da punição é que ele estaria, de fato,
pagando sua dívida. As possibilidades que a medida de semiliberdade poderia oferecer sequer
são consideradas pois, em primeira instância, é a necessidade de constrição que configura a
efetividade da medida.
Na atualidade, transformar o prisioneiro em mão de obra útil não tem mais o mesmo
significado que possuía quando as prisões foram criadas; porém, ainda hoje encontramos
resquícios desse pensamento ao ouvir as falas corriqueiras sobre a inserção do apenado no
mercado de trabalho e a inserção dos adolescentes em cursos profissionalizantes ou
programas de jovem aprendiz. No cenário atual, de escassez de empregos para grande parcela
da população, faz cada vez menos sentido a tentativa de conversão desses adolescentes
através do trabalho; o trabalho não constitui o objetivo da prisão, e nem sequer das medidas
socioeducativas.
A educação, por sua vez, também não comparece com objetivo profissionalizante. Na
realidade, o papel da educação no sistema socioeducativo é o de transformação, onde se
pretende desenvolver a autonomia, a solidariedade e a construção de projetos pessoais o que
25
Tendo isto em vista, no capítulo seguinte iremos discorrer sobre como a educação
pode cumprir seu papel no sistema socioeducativo, e iremos analisar a serviço de quê essa
pedagogia comparece; se, de fato, o caráter pedagógico da medida é conflituoso com o caráter
sancionatório, ou se poderiam ser complementares.
26
3. Educação na Socioeducação
2 Processo que visa ao desenvolvimento físico, intelectual e moral do ser humano, através da
aplicação de métodos próprios, com o intuito de assegurar-lhe a integração social e a formação
da cidadania;
8 Adestramento de animais;
8
Educação (2018). Dicionário Michaelis online. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/educa%C3%A7%C3%A3o/
27
9
BRASIL (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Nº 9394 de 20 de dezembro de 1996.
28
Como o nome deste tópico sugere, existe uma armadilha na argumentação em defesa
da autonomia do adolescente, no que tange à coexistência com a proteção, preconizada na
legislação sobre a infância e adolescência. Existe a possibilidade de, ao se entender o
adolescente enquanto ser autônomo, incorrer na crença de que não haja necessidade de
medidas protetivas para eles, o que não é o caso. Souza (2010) compreende que adultos e
adolescentes estão colocados em patamares muito distantes na sociedade e mantêm “relações
assimétricas e inevitáveis” (p. 95); a autora defende que o paradigma da proteção é
imprescindível, mas precisa ser revisado e atualizado.
Podemos perceber o compromisso de produzir meios para que esse adolescente possa
desenvolver as características esperadas. Ainda no PPI, é introduzido o conceito de
protagonismo juvenil, que é assim definido: “Consiste em ver o adolescente como fonte de
iniciativa, compromisso e liberdade, atuando como parte da solução e não como parte do
problema, no enfrentamento de problemas reais na unidade educativa, na comunidade e na
vida social mais ampla.” (2012, p. 380). Esse termo vem sendo amplamente explorado, não
somente na socioeducação, mas também nos setores privados, e não existe apenas um sentido
para ele:
10
Relatório "Educação, um Tesouro a descobrir", que leva o nome do autor, para a Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI, da UNESCO.
30
entende que o adolescente até o momento da medida não sabe nada, ou que o seu aprendizado
até o momento é inválido, que é preciso apagar o que ele já sabia, para receber conteúdo
novo. Presenciamos uma cena emblemática durante a pesquisa, quando uma organização não-
governamental que atuava na mesma unidade em que estávamos, propôs uma representação
teatral baseada no filme Escritores da Liberdade (2007):
A peça, ou esquete, pois era pequena, consistia numa sala de aula em que os meninos
brigavam entre si divididos entre dois grupos rivais. Não havia fala, era só gestual. A
única fala seria a minha ao final: “Não podemos voltar atrás e fazer um novo começo,
mas podemos começar agora e fazer um novo final”. Marcadamente havia dois
momentos. No primeiro os meninos brigavam entre si e ao fundo tocava a música “A
vida é desafio” dos Racionais MCs (...). No segundo momento os meninos faziam as
pazes e a música que tocava parecia ser uma música evangélica. Obviamente foi
colocado o rap do lado “mal” e a música evangélica do lado “bom”. Quem era o
personagem que promovia a mudança de um momento para o outro? A professora! A
professora passava pelos meninos fazendo-os abaixar as armas, se colocando na frente
das balas e fazendo-os baixar também a cabeça para depois ajudá-los a sorrir
novamente. Por fim, a professora estimulava todos a ler, e entre os livros havia a
Bíblia. Nada mais contraditório do que eu assumir aquela posição, aos meus olhos e
aos olhos da outra pesquisadora. “Você vai fazer um papel que é tudo o que você
critica” – ela disse. A velha política de duplo foco. A professora salvando o aluno. A
mulher salvando o homem. A branca salvando o negro (Trecho de diário de campo,
2018).
A educação não deve comparecer como algo externo que (como representado nos
livros na esquete) transforma a vida dos jovens; assim também a figura da professora. A
emancipação, tal como o aprendizado, não é nem de fora para dentro, nem de si pra si mesmo,
de maneira individualizada. Paulo Freire (2018) diz que ensinar é criar possibilidades para a
construção do conhecimento, o que significa que não podemos emancipar ninguém, mas
podemos construir juntos, de maneira coletiva, esse processo. Essa pista não descaracteriza o
papel do profissional, e sim oferece outras ferramentas para que este possa atuar com, ao
invés de atuar sobre.
o adolescente (Castro, 1998), todos tendo algo a dizer sobre e por eles. Essas áreas em muito
contribuem para a discussão. Mas, considerando que estamos tratando de um público há muito
reprimido e invisibilizado; que, apesar da vasta produção acadêmica sobre juventude,
pobreza, relações raciais, crime, violência etc., pouco nos deparamos com esses sujeitos
falando por si mesmos; e que inclusive, podem ou não estar familiarizados com as discussões
que os concernem, existe o risco desses saberes trabalharem juntos na manutenção do status
quo.
Foi nesse movimento que tentei falar com eles que estávamos ali pra falar de igual pra
igual, e que a gente reconhecia a necessidade deles falarem por eles, e citei que existe
um tanto de produção acadêmica sobre socioeducação (não com essas palavras), eles
perguntaram se era falando bem ou mal deles, [A pesquisadora] disse que tinha gente
criticando e gente defendendo. “É, tem muita gente que fala mal do que nós faz”, um
deles disse. [A pesquisadora] percebeu o termo que eu não estava conseguindo
traduzir e perguntou se eles sabiam o que era adolescente em conflito com a lei, o L.
[um adolescente] disse que já tinha visto no facebook, mas não sabia o que era. V.
[outro adolescente] disse que era quando um adolescente era contra a lei, ou fora da lei
(Trecho de diário de campo, 2018).
Isso não se restringe aos adolescentes. Um dos agentes, ao falar conosco sobre uma
possível reforma do sistema, dadas as diversas e constantes críticas que sofrem, disse:
Então acho que são questões que precisam ser revistas, mas só que as pessoas, elas só
fazem estudos acadêmicos, elas não fazem estudos de campo, então a realidade da
academia é uma, a realidade do campo é outra. E o que vejo sempre são estudos
baseados nessas teorias, trazendo exemplos de outros lugares, é o que acontece em
todos os ramos, mas eu acho que quando se fala de segurança pública deveria ser
diferente, deveria ver a realidade (Transcrição de entrevista, 2018).
Faz-se necessário o constante exame sobre nossas práticas profissionais pois, não custa
salientar novamente, esses adolescentes - pobres, negros e principalmente que cometem
algum ato infracional - já carregam uma série de estigmas, por vezes durante a pesquisa se
referiram a eles mesmos e seus pares como “retardado”, “burro”, “sem futuro”, “marginal”,
entre outros. O educador que tenha como público alvo essa população, especialmente no que
tange à pobreza, que é julgada como sinônimo de ignorância ou incultura, e que não tenha a
sensibilidade, o respeito e a consideração pelo saber de seus alunos, por exemplo, corrigindo
sistematicamente todo e qualquer desvio do português padrão, não ensina, mas distancia e
constrange. Se assumimos uma postura autoritária em relação a eles, estamos corroborando
práticas opressoras. Nesse sentido, deve-se também questionar sempre os interesses para os
quais se atua, de que forma o saber está sendo aplicado e com que finalidade.
2012, pp. 374-376). São três páginas dizendo tudo o que se deve aprender, partindo portanto
da premissa de que o sujeito seria tábula rasa, pronto para ser socializado, ou como um disco
rígido que precisa ser formatado para receber novos dados – em resumo, “ressocializado”.
emancipação humana” (Lima, 2009, p. 481). O que não se pode perder de vista é a dinâmica
dessas relações de poder e como elas produzem a sociedade e os sujeitos, e isso ocorre por
uma série de mecanismos:
A sociedade disciplinar demanda ainda, para completar o quadro, certos tipos de saber,
o do técnico, o do especialista na área, que é veiculado por certo tipo de discurso, o da
eficiência, da norma, sempre respaldado pelo fator “científico”, isto é, o lugar
institucional de onde ele pode falar é o lugar que nossa sociedade tem reservado à
ciência, como autoridade máxima e como modelo e padrão pelo qual as demais
atividades e práticas devem se guiar (Araújo, 2002, p. 5).
O trecho que versa sobre discriminação é tanto cruel quanto ideológico. Ao fazer com
que o adolescente seja individualmente responsabilizado pelo ato, exime-se de culpa a
sociedade e a relevância dos fatores classe e perfilamento racial 11 para as abordagens
policiais, o que engrossa a massa das detenções. Com isso, ignora-se o contexto histórico-
político-econômico em que está inserido. Insistir nesse discurso meritocrático que prega que
cada um é o único e suficiente responsável pelo seu sucesso ou seu fracasso, é insistir em
11
Perfilamento racial é a utilização da raça como determinante para eleger quem será o foco das abordagens
policiais.
35
fechar os olhos não só para os milhares de exemplos do cotidiano 12, mas também para a vasta
produção acadêmica que mostra o público específico sobre o qual se investem as práticas de
controle:
O fato é que, dos capoeiras aos funkeiros, uma parcela massiva da nossa força jovem
deve ser controlada minuciosamente, da teoria à prática: do correcionalismo ao
ressocialismo, do cerco aos quilombos, às blitzen e incursões policiais. O inimigo é
sempre o mesmo, construído via histórica do medo nas cidades (Batista, 2008, p. 198).
Considerando o que foi apresentado ao longo de todo o texto até aqui, não podemos
olhar com inocência para as práticas pedagógicas que são oferecidas a esses jovens, é
necessária uma análise das intencionalidades a serviço das quais funciona este sistema e das
práticas que são demandadas de seus profissionais: o saber do especialista, respaldado pelo
seu valor científico, e com isso de seus efeitos.
O que queremos com esse texto não é ressaltar a contradição entre o sancionatório e o
educativo da medida e sim demonstrar que, na verdade, o próprio caráter pedagógico é tão
parte da estrutura de controle quanto o aspecto punitivo da medida. A socioeducação
12
Noticia de 2017 revela que maior parte dos assassinatos são de pretos ou pardos, e que isso se dá
majoritariamente nas áreas mais pobres da cidade. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2017/07/26/rj-9-em-cada-10-mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos.htm
36
comparece aqui como mais uma ferramenta de docilização, dada uma tentativa constante das
classes dominantes de “salvar os pobres”, e nesse processo preservar o projeto de país dentro
das estruturas pré-estabelecidas que atendem aos interesses das mesmas.
Esse trecho consiste em uma análise da instituição escolar, porém, dentro dessa lógica
de controle, é possível traçar paralelos entre a escola, a prisão, o hospital, etc. (Brighente &
Mesquida, 2011, p.2397). Refletindo sobre a educação sob essa ótica, percebe-se que é
impossível a promoção da autonomia e da emancipação, tendo em vista que “a docilização
dos corpos pela disciplina visa tornar as pessoas ‘boazinhas’ [sic.], sem lhes dar um espaço de
reflexão acerca de sua posição na sociedade ou no mundo.” (Idem, p. 2395).
A educação tem, pelo menos, dois sentidos possíveis: o primeiro, uma educação para a
docilidade, conforme citado acima; o segundo, uma educação libertadora. Para Freire (2016),
a educação libertadora consiste em reconhecer as estruturas de opressão para que se possa
então subvertê-las. A seguir, iremos analisar as possibilidades e dificuldades que se
encadeiam na aplicação da educação no sentido proposto por Freire, enquanto prática
libertadora.
37
4. Proposições
Freire (1967, p. 11) diz que “conscientizar não significa, de nenhum modo, ideologizar
ou propor palavras de ordem. Se a conscientização abre caminho à expressão das insatisfações
sociais é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”, ou seja, a
indignação frente à opressão só aparece porque ela já existe, a conscientização provoca o
entendimento do que já imobilizava antes, só não era visível.
O certo é que, a partir dos 1970, a criminologia crítica constitui-se como saber que
deslegitima o sistema penal como solução à conflitividade social. A partir daquelas
leituras, já não se podia crer nas ilusões "re": reeducação, ressocialização,
reintegração. Pelo contrário, a clientela do sistema penal foi sempre a dos
dessocializados, desintegrados, desclassificados. A prisão surge como grande fracasso
nos objetivos explícitos, mas sempre como sucesso, para diferenciar, arrumar e
controlar as ilegalidades. A justiça penal é construída para o controle diferencial das
ilegalidades populares (Batista, 2008, p. 195).
A segunda pista consiste no resgate das vivências do grupo, e partindo disto analisar
teoricamente, para que haja total apropriação por parte dos sujeitos da sua própria experiência.
Colocando isto em análise é possível conjugar a realidade dos sujeitos com o saber, que se
coloca a serviço da população com que se pretende trabalhar (Idem, 2014). Essa proposta cria
uma ruptura com a postura do especialista, colocando a relação entre profissional e sujeito
como uma troca.
13
Martín-Baró realizou suas pesquisas em El Salvador, em um contexto de guerra que compõe o teor de seu
trabalho, pensando em uma psicologia poderia servir àquela população dado o momento que o país enfrentava.
41
Desta forma, se preserva o saber do sujeito, conforme a proposição de Freire de que “ensinar
exige respeito aos saberes dos educandos”.
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o
dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes
populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária -
mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a
razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos (…) Por
que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina
cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a
convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não
estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares fundamentais
aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir
as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas
pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador
reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é
partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes
operam por si mesmos (Freire, 2018, p. 16).
É importante ressaltar que, para Paulo Freire, o saber popular significa o conjunto de
conhecimentos, práticas e experiências de um povo sobre seu contexto de vida e que de
maneira alguma se confunde com opiniões, como no caso do senso comum, que é comumente
embasado em preconceitos e não são propriamente um saber. Segundo o Dicionário Priberam
(2018), saber, enquanto substantivo, é: “Conjunto de conhecimentos adquiridos = Ciência,
Ilustração, Sabedoria; Experiência de vida; [Figurado] Prudência; sensatez. Malícia.” 14. É
nesse sentido que Paulo Freire reitera a valorização do saber popular, por entender que
aqueles que estão distantes da academia não são ignorantes por isto, e por entender que
ninguém mais apropriado para discorrer sobre certa realidade do que aqueles que nela estão
inseridos.
Com isso, vemos que o profissional não deve se colocar em uma relação hierarquizada
com o adolescente, mas isso não significa desconsiderar o próprio papel. Freire (2016) propõe
o seguinte título para um dos subtópicos de seu livro: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se
liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (p.95). Com isso, entendemos como a
ideia de coletivo se coloca. É possível um trabalho conjunto, numa via de mão dupla onde se
dá e recebe, para a produção de novas possibilidades de existência, relações e de fato escrever
14
"Saber", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, disponível em:
<https://dicionario.priberam.org/saber>, consultado em Jan, 2019.
42
Freire escreve suas pistas para uma pedagogia libertadora, Martín-Baró escreve para
uma psicologia da libertação, porém elas se aproximam, pois Martín-Baró desenvolve seu
trabalho sobre conscientização partindo do trabalho de Freire sobre o tema. Os dois autores
têm muito a contribuir para todos aqueles que se propõem a trabalhar com todos os públicos
em situação de opressão estrutural, inclusive com os adolescentes em vulnerabilidade social.
A psicologia surge como ciência buscando atender um suposto ser universal. Sendo
assim, desconsidera características determinantes como o contexto em que o sujeito está
inserido, sua cor de pele, sua condição financeira, e isso faz com que sua aplicabilidade à
população vulnerável seja nula, pois esse não é seu objetivo. Para a mudança deste paradigma,
Martín-Baró propõe que “o trabalho profissional do psicólogo deve ser definido em função
das circunstâncias concretas da população a que deve atender” (1996, p. 7). O autor, ao
pesquisar a psicologia no contexto da América Latina, aponta essas incongruências e nos traz
ferramentas para promoção de liberdade. Para isso, deve-se procurar entender a situação
social dos povos os quais se pretende acompanhar, pois:
Ainda que o psicólogo não seja chamado para resolver tais problemas, ele deve
contribuir, a partir de sua especificidade, para buscar uma resposta. Propõe-se como
horizonte do seu quefazer a conscientização, isto é, ele deve ajudar as pessoas a
superarem sua identidade alienada, pessoal e social, ao transformar as condições
opressivas do seu contexto. Aceitar a conscientização como horizonte não exige tanto
mudar o campo de trabalho, mas a perspectiva teórica e prática a partir da qual se
trabalha. (Martín-Baró, 1996, p. 7).
possibilidade de uma nova práxis que, por sua vez, possibilita novas formas de
consciência.
C) O novo saber da pessoa sobre sua realidade circundante a leva a um novo saber
sobre si mesma e sobre sua identidade social. A pessoa começa a se descobrir em seu
domínio sobre a natureza, em sua ação transformadora das coisas, em seu papel ativo
nas relações com os demais. Tudo isso lhe permite não só descobrir as raízes do que é,
mas também o horizonte do que pode chegar a ser. Assim, a recuperação de sua
memória histórica oferece a base para uma determinação mais autônoma do seu futuro
(Martín-Baró, 1996, p. 16).
45
Conclusão
É possível perceber isto na quantidade de jovens negros e pobres que são abordados e
apreendidos, e como isso se relaciona com ideais salvacionistas existentes no Plano Político
Institucional do DEGASE, bem representados pelos ditos pilares da educação: aprender a ser,
a conhecer, a fazer e conviver. Também se reproduz a lógica assistencialista nas práticas de
organizações não governamentais inseridas na unidade e daqueles que, com boas intenções,
defendem a falácia da ressocialização.
Considerando que não se trata de uma fórmula pronta, e sequer há garantias de uma
aplicabilidade que seja efetivamente libertária, é preciso questionar os usos que podem ser
feitos de toda e qualquer ferramenta e as possibilidades de deturpá-los. É preciso atenção
46
redobrada na prática do cotidiano, em não permitir a captura dos meios, mas também do
próprio exercício profissional. É por conta dessa possível captura, tendo em vista a
constituição do sistema socioeducativo e os seus fins, que se torna essencial que as práticas
educacionais libertárias se deem em um plano informal e não institucionalizado. Assim, a
prática pode ocorrer independente de mudanças estruturais, com a participação de todos os
atores interessados, funcionários, adolescentes e familiares e pesquisadores.
Para isto, deve-se sustentar que os protagonistas debatam, levantem suas questões e
reflitam, estimulando que o grupo possa discutir livremente sobre o que faz sentido pra eles,
de um modo que não preconize uma mudança, uma transformação que além de não acontecer,
ainda é pautada em princípios racistas e classistas. Isto tudo tem a ver com as questões
levantadas por Freire e Martín-Baró, sobre autonomia e construção coletiva, ao chamar para o
debate todos os atores no campo, não só se aproxima verdadeiramente das questões
pertinentes ao grupo, afastando opiniões e teorizações pré concebidas, mas também é um
exercício de visibilizar, ouvir a voz de quem não é ouvido costumeiramente.
Evidente que inúmeros são os obstáculos, não é tarefa fácil trabalhar com classes
subjugadas, tampouco fazer isto de dentro de estruturas rígidas e constituídas de relações tão
complexas. Porém, é um compromisso ético lutar contra as estruturas de dominação. É dessa
forma que nos posicionamos, se queremos estar ao lado de quem perpetua a estrutura de
dominação das classes vulneráveis, por ignorá-los, ou quem se compromete a descruzar os
braços e agir como forma de resistência a toda e qualquer opressão, especialmente com a
perspectiva de continuarem crescentes nesse novo ano e nos seguintes, porém é preciso mais
do que nunca assumir o caráter de resistência da educação libertadora, da potência
revolucionária que é viver e continuar existindo enquanto minorias.
47
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