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Platão, O banquete, 189c – 193d. São Paulo : Nova Cultural, 1991 (Os pensadores).
SAFO DE LESBOS
(Poesia Lírica)
(Para Átis)
Contemplo como igual aos próprios fazendo-o tremer dentro do meu peito!
deuses pois basta que, por um instante, eu te
esse homem que sentado à tua frente veja
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura, para que, como por magia, minha voz
emudeça;
e ris cheia de graça. Mal te vejo sim, basta isso, para que minha língua
o coração se agita no meu peito, se paralise,
do fundo da garganta já não sai e eu sinta sob a carne impalpável fogo
a minha voz, a incendiar-me as entranhas. Meus
olhos cegam
a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele, e um fragor de ondas soa-me aos
os olhos deixam de enxergar, os meus ouvidos;
ouvidos zumbem, o suor desce-me em rios pelo corpo
em tremor,
e banho-me de suor, e tremo toda, sou pálida grama pisada: e morte não
e logo fico verde como as ervas, parece
e pouco falta para que eu não morra distante de mim raptada
ou enlouqueça. na alma.
(Para Anactória)
GREGÓRIO DE MATOS
Marinícola Avistando este nosso hemisfério,
Calou pela barra em um bergantim,
Marinícola todos os dias
Pôs em terra os maiores joanetes
O vejo na sege passar por aqui,
Que viram meus olhos desde que
Cavalheiro de tão lindas partes,
nasci.
Como, verbi gratia, Londres e Paris.
[...]
Marinícola é finalmente
Sujeito de prendas de tanto matiz,
Que está hoje batendo moeda
Exercendo-os em jogos de mãos Sendo ainda ontem um vilão ruim.
Tão lestos os tinha o destro arlequim,
Que se não lhes tirara a peçonha
Ganhara com eles dois mil potosis.
O CORTIÇO
(Aluísio de Azevedo)
Capítulo 11
Destaque-se o amparo prestado por Pombinha à filha de Jerônimo, tal como Léonie havia
feito com ela no passado. Desse modo, segundo o narrador:
(Millôr Fernandes)
[...] Eu, porém, ao contrário dos erúditos, não tenho hipótese. Capitu
deu pra Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado, só não coloca até
o DNA de seu (do Escobar, claro) filho porque ainda não havia DNA, que
atualmente está acabando com o romance “policial” e a novela passional.
Mas Bentinho/Machado fica humilhado, desesperado mesmo, à
proporção em que o filho vai crescendo e mostrando olhos, mãos, gestos e
tudo o mais do amigo, agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de
comborço (parceiro na cama conjugal).
Essa é a intriga principal do livro. Mas, curiosamente, pela nossa eterna
pruderie intelectual, ainda ridiculamente forte com relação a outro tipo de
relação, a homo, nunca vi ninguém falar nada das intimidades entre Bentinho e
Escobar. É verdade que, na época, Oscar Wilde estava em cana por causa do
pecado “que não ousa dizer seu nome”.
Mas, olhe, não estou afirmando nada. Leiam estes destaques (da edição
da Editora Nova Aguilar), que colhi no original, e julguem. Quem fala é
Bentinho/Machado.
(pág. 868)
Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um
pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo.
(mesma página)
Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal.
A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os lados,
muita luz e ar puro... Não sei o que era a minha. Mas como as portas não
tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e
entrou. Cá o achei dentro, cá ficou...
(pág. 876)
Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes
também e Escobar mais que os rapazes e os padres.
(pág. 883)
Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele alva e
lisa. A testa é que era um pouco baixa... mas tinha sempre a altura necessária
para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas. Realmente era
interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino e delgado.
(mesma página)
Fui levá-lo à porta... Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus,
ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe,
ainda olharia para trás, mas não olhou.
(mesma página)
Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e
quis saber quem era que me merecia tanto.
- É o Escobar, disse eu.
(pág. 887)
- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário
você é a pessoa que mais me tem entrado no coração...
- Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça... Mas
a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro, e
creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.
(pág. 899)
Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como
se não me visse desde longos meses.
- Você janta comigo, Escobar?
- Vim para isto mesmo.
(pág. 900)
Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí,
mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio;
lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria
acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza
parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.
(pág. 901)
Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude
deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão:
um padre que estava com eles não gostou...
(pág.902)
Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os
dedos.
(pág. 913)
Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se
tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.
(pág. 914)
A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar ao
ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas
vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força.
(pág. 925/26 – Depois da morte de Escobar)
Era uma bela fotografia tirada um ano antes. (Escobar) estava de pé,
sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita
metida no peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo
e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória,
escrita embaixo, não nas costas do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu
querido Escobar 20-4-70”.
Mas, pros que ainda tenham qualquer dúvida, reservei para o fim a
moral da história de Bentinho/Machado, a cena e a frase conclusivas. Está na
página 845 do fúlgido romance.
Bentinho, ele próprio, ficou pasmo com seu feito de bravura, quando
conseguiu dar um beijo (na verdade apenas uma bicota) em Capitu. É ele
próprio quem fala, cheio de entusiasmo, na página 845:
“De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de
orgulho: - Sou Homem!”
O ATENEU
(Raul Pompéia)
"Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes
tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da
fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo.
Quando, em segredo dos pais, pensam que o colégio é a melhor das vidas, com
o acolhimento dos mais velhos, entre brejeiro e afetuoso, estão perdidos...
Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores" (Conselho de
Rabelo; p. 31).
A amizade do Bento Alves por mim, e a que nutri por ele, me faz pensar que,
mesmo sem o caráter de abatimento que tanto indignava ao Rabelo, certa
efeminação pode existir como um período de constituição moral. Estimei-o
femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque me podia valer. [...]
eu, que desde muito assumira entre os colegas um belo ar de impávida altania,
modificava-me com o amigo, e me sentia bem na submissão voluntária, como
se fosse artificial a bravura, à maneira da conhecida petulância feminina. [...]
Às vezes na biblioteca, enquanto eu lia, Alves olhava-me do outro lado da mesa
central de pano verde, com a mão à fronte e os dedos mergulhados nos
cabelos. Às vezes vinha-lhe à pálpebra uma lágrima sem origem. [...] que devia
fazer uma namorada? Acariciei as flores, muito agradecido, e escondi-as antes
que vissem (Sérgio, em relação a Bento Alves; p. 90, 91, 103).
“Tenho a alma triste. Senhores! A imoralidade entrou nesta casa! [...] Está em
meu poder um papel, monstruoso corpo de delito! assinado por um nome de
mulher! Há mulheres no Ateneu, meus senhores. Esta mulher, esta cortesã
fala-nos da segurança do lugar, do sossego do bosque, da solidão a dois... um
poema de pouca-vergonha! É muito grave o que tenho a fazer ... [...]
Esquecem pais e irmãos, o futuro que os espera, e a vigilância inelutável de
Deus!... Na face estanhada não lhes pegou o beijo santo das mães... caiu-lhes
a vergonha como um esmalte postiço... Deformada a fisionomia, abatida a
dignidade, agravam ainda a natureza; esquecem as leis sagradas do respeito à
individualidade humana... E encontram colegas assaz perversos, que os
favorecem, calando a reprovação, furtando-se a encaminhar a vingança da
moralidade e a obra restauradora da justiça!...” (Aristarco, em relação às práticas
homossexuais no Ateneu p.133, 137).
DE PROFUNDIS
(Oscar Wilde)
Jan. 1893, Alfred Douglas
Por que está sozinho em Londres, e quando irá para Salisbury? Vá até lá
e arrefeça as suas mãos no crepúsculo acinzentado das coisas góticas, e
venha para cá quando quiser. É um lugar adorável, mas falta você, vá a
Salisbury primeiro.
Teu Oscar
“Esse amor é a grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem,
como aquela que houve entre Davi e Jônatas, o amor que Platão tornou a base de sua
filosofia, o amor que se pode achar nos sonetos de Miguel Ângelo e Shakespeare. Tal
amor é tão mal compreendido neste século que se admite descrevê-lo como o ‘amor
que não ousa dizer seu nome’. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição.
Não há nada nele que seja antinatural. Ele é intelectual, e repetidamente tem existido
entre um homem mais velho e um homem mais novo, quando o mais velho tem o
intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, a esperança e o encanto da vida à sua
frente. O mundo não compreende que seja assim. Zomba dele e às vezes, por causa
dele, coloca alguém no pelourinho.”
[...]
É preciso que eu diga a mim mesmo que fui o único responsável pela minha
ruína e que ninguém, seja ele grande ou pequeno, pode ser arruinado exceto
pelas próprias mãos. Estou pronto a afirmá-lo. Tento fazê-lo, embora eles possam
não concordar comigo neste momento. Esta impiedosa acusação eu a faço sem
piedade contra mim mesmo. Terrível foi sem dúvida o que o mundo fez comigo,
mais terrível ainda foi o que eu fiz contra mim mesmo.
[...]
Além de todas essas coisas eu ainda tinha algo diferente. Mas me deixei
atrair por longos períodos de ócio sensual e insensato. Divertia-me ser um flâneur,
um dândi, um homem da moda. Cerquei-me de naturezas menores e de
inteligências medíocres. Dissipar o meu próprio gênio e desbaratar uma juventude
que me parecia eterna provocava em mim uma estranha alegria. Cansado das
alturas, desci voluntariamente às profundezas em busca de novas sensações. O que
o paradoxo significava para mim no âmbito do pensamento, a depravação passou a
significar no âmbito das paixões. No fim o desejo era como uma doença, uma
loucura, ou ambas.
Deixei de pensar nos outros, desfrutava o prazer onde quer que o
encontrasse e seguia adiante. Esqueci que cada pequena ação cotidiana pode fazer
ou desfazer um caráter e que tudo aquilo que fazemos no segredo da alcova
teremos que confessá-lo um dia, gritando do alto dos telhados. Deixei de ser
senhor de mim mesmo.
Já não era mais o comandante da minha alma e não sabia. Permiti que o
prazer me dominasse e acabei caindo em terrível desgraça. Agora só uma coisa me
resta: a mais absoluta humildade.