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O BANQUETE

(Platão - Discurso de Aristófanes)

Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é de outro modo que tenho a


intenção de falar (sobre o amor) […]. Tentarei eu, portanto, iniciar-vos em seu
poder. Mas é preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas
vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de
agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade,
não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um
terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a
coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome,
comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que
um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com
o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o
mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes
em tudo; mas a cabeça era uma só sobre a qual havia dois rostos opostos um
ao outro, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se
poderia supor. […] Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição;
porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o
que tinha ambos os sexos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram
assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção.
Eram por conseguinte de uma força e de um vigor incríveis, e uma
grande presunção eles tinham; pois voltaram-se contra os deuses. E o que diz
Homero é a eles que se refere: a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para
investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a
deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam
nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a
raça — pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens
desapareceriam; nem poderiam também permitir-lhes que continuassem na
impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio
de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança,
tornados mais fracos. Agora com efeito – continuou – eu os cortarei a cada um
em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para
nós, pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre
duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se,
de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles
andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois […].
Portanto, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, cada um
ansiava por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos
e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de inércia
em geral, por nada quererem fazer longe um do outro.
Sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava
procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do
todo que era mulher — o que agora chamamos mulher — quer com a de um
homem; e assim iam-se destruindo […].
É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está
implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua
tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. Cada um de
nós, portanto, é uma téssera complementar de um humano, porque cortado
como os linguados, fomos de um só a dois. Cada um procura então o seu
próprio complemento.
Por conseguinte, todos os homens que são um corte do tipo comum, o
que então se chamava andrógino, gostam de mulheres, assim como também
todas as mulheres que gostam de homens é deste tipo que provêm. Todas as
mulheres que são o corte de uma mulher não dirigem muito sua atenção aos
homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm
deste tipo. E todos os que são corte de um homem perseguem o homem
[…]. Assim é que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante,
porque está sempre acolhendo o que lhe é aparentado.
Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria
metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias
são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não
quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno
momento. E os que continuam um com o outro pela vida afora são estes, os
quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha da parte de um ao
outro.
Se diante deles, deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto e com seus
instrumentos lhes perguntasse: “Que é que quereis, ó homens, ter um do
outro? Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o maior tempo
possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separeis
um do outro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa
mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e, enquanto viverdes,
como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que
morrerdes, lá no Hades, em vez de ser dois, sereis um apenas, mortos os dois
numa morte comum”. Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só
ser humano diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas
simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando: sim, unir-
se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só.
O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um
todo; é, portanto, ao desejo e à procura do todo que se dá o nome de amor.

Platão, O banquete, 189c – 193d. São Paulo : Nova Cultural, 1991 (Os pensadores).
SAFO DE LESBOS
(Poesia Lírica)

(Para Átis)
Contemplo como igual aos próprios fazendo-o tremer dentro do meu peito!
deuses pois basta que, por um instante, eu te
esse homem que sentado à tua frente veja
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura, para que, como por magia, minha voz
emudeça;
e ris cheia de graça. Mal te vejo sim, basta isso, para que minha língua
o coração se agita no meu peito, se paralise,
do fundo da garganta já não sai e eu sinta sob a carne impalpável fogo
a minha voz, a incendiar-me as entranhas. Meus
olhos cegam
a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele, e um fragor de ondas soa-me aos
os olhos deixam de enxergar, os meus ouvidos;
ouvidos zumbem, o suor desce-me em rios pelo corpo
em tremor,
e banho-me de suor, e tremo toda, sou pálida grama pisada: e morte não
e logo fico verde como as ervas, parece
e pouco falta para que eu não morra distante de mim raptada
ou enlouqueça. na alma.

Semelhante aos deuses parece-me que


há de ser
o feliz mancebo que, sentado à tua
frente, ou ao teu lado, te contemple e,
em silêncio,
te ouça a argêntea voz

e o riso abafado do amor. Oh, isso –


isso só
é bastante para ferir-me o perturbado
coração,

(Para Anactória)

Quando eu te vejo, penso que jamais


Hermíone foi tua semelhante;
que justo é comparar-te à loura Helena,
não a qualquer mortal;

oh eu farei à tua formosura


o sacrifício dos meus pensamentos,
todos eles, eu digo, e adorar-te
com tudo quanto eu sinto.

GREGÓRIO DE MATOS
Marinícola Avistando este nosso hemisfério,
Calou pela barra em um bergantim,
Marinícola todos os dias
Pôs em terra os maiores joanetes
O vejo na sege passar por aqui,
Que viram meus olhos desde que
Cavalheiro de tão lindas partes,
nasci.
Como, verbi gratia, Londres e Paris.

Mais fidalgo que as mesmas estrelas,


Que as doze do dia viu sempre luzir,
Que por machos é sangue tudesco,
Porém pelas fêmeas humor meretriz. A uma Dama que
Marinícolas era muchacho Macheava outras
Tão grã rabaceiro de escumas de rins, Mulheres
Que jamais para as toucas olhava,
Por achar nas calças melhor flaldelim. "Namorei-me sem saber
esse vício, a que te vás,
Sendo já sumilher de cortina que a homem nenhum te dás,
De um sastre de barbas saiu d' e tomas toda a mulher.
aprendiz
Dado só ás lições de canudo, [...]
Rapante de espécie de pica viril. a vista nunca repara,
no que dentro d'alma jaz,
Lá me dizem que fez carambola e pois tão louca te traz
Com certo cupido, que fora daqui que só por Damas suspiras,
Empurrado por uma sodoma, eu não te amara, que tu viras,
No ano de tantos em cima de mil. Esse vício, a que te vás.

Por sinal que no sítio nefando [...]


Lhe pôs a ramela do olho servil mas como serei contente,
Um travesso, porque de cadeira se por mulheres se sente,
A seus cus servisse aquele âmbar gris. Que a homem nenhum te dás?
Que rendidos homens queres, Era pois o baeta travesso:
que por amores te tomem? Se um pouco de antes aportara ali,
se és mulher, não para homem, Como sabe latim o beata,
e és homem para mulheres? Pudieva cogerlos en un mal latim.

Qual homem, ó Nise, inferes, Lhe valeu no sagrado da igreja


que possa, senão eu, ter O nó indissolpuvel de um rico mongil.
valor para te querer? Empossado da simples consorte
se por amor nem por arte Cresceu de maneira naqueles chapins.
de nenhum deixas tomar-te
E tomas toda a mulher!" Que linda hoje dá graças infindas
Aos falsos informes de quis, quid e
qui.
Se regala á ufa do sogro,
Comendo e bebendo como
mochachim.

[...]
Marinícola é finalmente
Sujeito de prendas de tanto matiz,
Que está hoje batendo moeda
Exercendo-os em jogos de mãos Sendo ainda ontem um vilão ruim.
Tão lestos os tinha o destro arlequim,
Que se não lhes tirara a peçonha
Ganhara com eles dois mil potosis.

A tendeiro se pôs de punhetas


E na taboleta mandou esculpir
Dois cachopos, e a letra dizia:
"os ordenhadores se alquilam aqui”.

Tem por mestre do terço fanchono


Um pajem de lança, que marcos se
diz,
Que se em casa anda ao rabo dele.
O traz pela rua ao rabo de si.

Uma tarde em que o perro celeste


Do sol acossado se pôs a latir,
Marinícola estava com marcos
Limpando-lhe os moncos de certo
nariz.

Mas sentindo ruído na porta,


Aonde batia um gorra civil,
Um e outro se pôs em fugida,
Temiendo los dientes de algun javali.
● Giambatista Marini = poeta
italiano de estilo afetado e
preciosista
• Maricas = gíria portuguesa
para efeminado
● Nicolau de Tal= Provedor da
Casa da Moeda em Lisboa

O CORTIÇO
(Aluísio de Azevedo)

Capítulo 11

Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!


– Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair
sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a
menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a
pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.
A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.
– Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a para a
alcova.
Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda
perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem ânimo de protestar, por
acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco
antes, à mesa, em presença de Dona Isabel. Léonie fingia prestar-lhe atenção e
nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como
que distraidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
– Não! Para quê!... Não quero despir-me...
– Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
– Estou bem assim. Não quero!
– Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens
medo?... Olha! Vou dar exemplo!
E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.
A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio,
vermelha de pudor.
– Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila
trêmula.E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz,
arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o
corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.
– Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se
em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que
enlouqueciam a prostituta.
– Que mal faz?... Estamos brincando...
– Não! Não! balbuciou a vítima, repelindo-a.
– Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas
colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas
pomasirrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o rogar
vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da
sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-
lhe a razão ao rebate dos sentidos.
Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne
em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria,
irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando.
E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os
olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos
ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo
aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de
todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal
desabou para o lado, exânime, inerte, os membros atirados num abandono de
bêbedo, soltando de instante a instante um soluço estrangulado.

Destaque-se o amparo prestado por Pombinha à filha de Jerônimo, tal como Léonie havia
feito com ela no passado. Desse modo, segundo o narrador:

”A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava


preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se
fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria”.
O "OUTRO LADO"
DE DOM CASMURRO
“O DESCONFIADO AINDA É VIVO” DO POPULÁRIO

(Millôr Fernandes)

[...] Eu, porém, ao contrário dos erúditos, não tenho hipótese. Capitu
deu pra Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado, só não coloca até
o DNA de seu (do Escobar, claro) filho porque ainda não havia DNA, que
atualmente está acabando com o romance “policial” e a novela passional.
Mas Bentinho/Machado fica humilhado, desesperado mesmo, à
proporção em que o filho vai crescendo e mostrando olhos, mãos, gestos e
tudo o mais do amigo, agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de
comborço (parceiro na cama conjugal).
Essa é a intriga principal do livro. Mas, curiosamente, pela nossa eterna
pruderie intelectual, ainda ridiculamente forte com relação a outro tipo de
relação, a homo, nunca vi ninguém falar nada das intimidades entre Bentinho e
Escobar. É verdade que, na época, Oscar Wilde estava em cana por causa do
pecado “que não ousa dizer seu nome”.
Mas, olhe, não estou afirmando nada. Leiam estes destaques (da edição
da Editora Nova Aguilar), que colhi no original, e julguem. Quem fala é
Bentinho/Machado.

(pág. 868)
Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um
pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo.
(mesma página)
Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal.
A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os lados,
muita luz e ar puro... Não sei o que era a minha. Mas como as portas não
tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e
entrou. Cá o achei dentro, cá ficou...
(pág. 876)
Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes
também e Escobar mais que os rapazes e os padres.
(pág. 883)
Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele alva e
lisa. A testa é que era um pouco baixa... mas tinha sempre a altura necessária
para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas. Realmente era
interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino e delgado.
(mesma página)
Fui levá-lo à porta... Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus,
ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe,
ainda olharia para trás, mas não olhou.
(mesma página)
Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e
quis saber quem era que me merecia tanto.
- É o Escobar, disse eu.
(pág. 887)
- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário
você é a pessoa que mais me tem entrado no coração...
- Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça... Mas
a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro, e
creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.
(pág. 899)
Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como
se não me visse desde longos meses.
- Você janta comigo, Escobar?
- Vim para isto mesmo.
(pág. 900)
Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí,
mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio;
lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria
acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza
parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.
(pág. 901)
Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude
deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão:
um padre que estava com eles não gostou...
(pág.902)
Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os
dedos.
(pág. 913)
Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se
tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.
(pág. 914)
A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar ao
ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas
vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força.
(pág. 925/26 – Depois da morte de Escobar)
Era uma bela fotografia tirada um ano antes. (Escobar) estava de pé,
sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita
metida no peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo
e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória,
escrita embaixo, não nas costas do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu
querido Escobar 20-4-70”.

Mas, pros que ainda tenham qualquer dúvida, reservei para o fim a
moral da história de Bentinho/Machado, a cena e a frase conclusivas. Está na
página 845 do fúlgido romance.

Bentinho, ele próprio, ficou pasmo com seu feito de bravura, quando
conseguiu dar um beijo (na verdade apenas uma bicota) em Capitu. É ele
próprio quem fala, cheio de entusiasmo, na página 845:

“De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de
orgulho: - Sou Homem!”

ENTREVISTA DE MILLÔR FERNANDES CONCEDIDA À PLAYBOY


SOB DIREÇÃO DO JORNALISTA PAULO FRANCIS (2011)

PLAYBOY: Você tem uma certa implicância com o Machado de Assis…


Millôr: Não!
PLAYBOY: Como não? Tem sim!
Millôr: Não é implicância porque parece que eu
estou com raiva, né? Não é isso. Você pode dizer
implicância, mas o que eu tenho é um certo desdém.
Essa discussão se a Capitu deu ou não deu é como
discutir o sexo dos anjos. Eu fiz um artigo sobre Dom Casmurro. Algumas
pessoas me apoiam, outras não. Acho Dom Casmurro um livro fraco. Mas é
como se eu estivesse falando mal do Machado de Assis e não é isso. É que eu
publiquei dez ou 12 frases do romance provando que ele, dom Casmurro, é
homossexual. Eu não digo “bicha”, que é pejorativo. É um homossexual,
entende? E naquela época, ele tinha que ser enrustido porque, infelizmente pra
ele, ainda não havia o movimento gay [risos]. [...]

O ATENEU
(Raul Pompéia)
"Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes
tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da
fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo.
Quando, em segredo dos pais, pensam que o colégio é a melhor das vidas, com
o acolhimento dos mais velhos, entre brejeiro e afetuoso, estão perdidos...
Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores" (Conselho de
Rabelo; p. 31).

Se não houvesse olvidado as práticas, como a assistência pessoal do Rabelo, eu


notaria talvez que pouco a pouco me ia invadindo, como ele observara, a
efeminação mórbida das escolas. [...]. A letargia moral pesava-me no declive.
E, como se a alma das crianças, à maneira do físico, esperasse realmente pelos
dias para caracterizar em definitivo a conformação sexual do indivíduo, sentia-
me possuído de certa necessidade preguiçosa de amparo, volúpia de fraqueza
em rigor imprópria do caráter masculino (Sérgio em relação a si; p. 39).

A franqueza da convivência aumentou dia a dia, em progresso imperceptível.


Tomávamos lugar no mesmo banco. Sanches foi-se aproximando. Encostava-
se, depois, muito a mim. Fechava o livro dele e lia no meu, bafejando-me o
rosto com uma respiração de cansaço. [...] Sanches, como os mal-
intencionados, fugia dos lugares concorridos. Gostava de vaguear comigo, à
noite antes da ceia, cruzando cem vezes o pátio de pouca luz, cingindo-me
nervosamente, estreitamente até levantar-me do chão. Eu aturava, imaginando
em resignado silêncio o sexo artificial da fraqueza que definira Rabelo. Só a
voz, o simples som covarde da voz, rastejante, colante, como se fosse cada
sílaba uma lesma, horripilou-me, feito o contato de um suplício imundo. Fingi
não ter ouvido; mas houve intimamente a explosão de todo o meu asco por
semelhante indivíduo, e, muito calmo desviando apenas a vista, pretextei a
falta de um lenço, que me endefluxara a friagem e... fui buscá-lo. [...] Ao
primeiro encontro depois do rompimento, o homem viu que estava tudo
acabado. Andou a rondar-me temperando o olhar com um brilho de facadas
(Sérgio, em relação a Sanches; p. 44, 47, 48).

A amizade do Bento Alves por mim, e a que nutri por ele, me faz pensar que,
mesmo sem o caráter de abatimento que tanto indignava ao Rabelo, certa
efeminação pode existir como um período de constituição moral. Estimei-o
femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque me podia valer. [...]
eu, que desde muito assumira entre os colegas um belo ar de impávida altania,
modificava-me com o amigo, e me sentia bem na submissão voluntária, como
se fosse artificial a bravura, à maneira da conhecida petulância feminina. [...]
Às vezes na biblioteca, enquanto eu lia, Alves olhava-me do outro lado da mesa
central de pano verde, com a mão à fronte e os dedos mergulhados nos
cabelos. Às vezes vinha-lhe à pálpebra uma lágrima sem origem. [...] que devia
fazer uma namorada? Acariciei as flores, muito agradecido, e escondi-as antes
que vissem (Sérgio, em relação a Bento Alves; p. 90, 91, 103).

“Tenho a alma triste. Senhores! A imoralidade entrou nesta casa! [...] Está em
meu poder um papel, monstruoso corpo de delito! assinado por um nome de
mulher! Há mulheres no Ateneu, meus senhores. Esta mulher, esta cortesã
fala-nos da segurança do lugar, do sossego do bosque, da solidão a dois... um
poema de pouca-vergonha! É muito grave o que tenho a fazer ... [...]
Esquecem pais e irmãos, o futuro que os espera, e a vigilância inelutável de
Deus!... Na face estanhada não lhes pegou o beijo santo das mães... caiu-lhes
a vergonha como um esmalte postiço... Deformada a fisionomia, abatida a
dignidade, agravam ainda a natureza; esquecem as leis sagradas do respeito à
individualidade humana... E encontram colegas assaz perversos, que os
favorecem, calando a reprovação, furtando-se a encaminhar a vingança da
moralidade e a obra restauradora da justiça!...” (Aristarco, em relação às práticas
homossexuais no Ateneu p.133, 137).

A convivência do Sanches fora apenas como o afeiçoamento aglutinante de um


sinapismo, intolerável e colado, espécie de escravidão preguiçosa da
inexperiência e do temor; a amizade de Bento Alves fora verdadeira, mas do
meu lado havia apenas gratidão, preito à força, comodidade da sujeição
voluntária, vaidade feminina de dominar pela fraqueza todos os elementos de
uma forma passiva de afeto, em que o dispêndio de energia é nulo, e o
sentimento vive de descanso e de sono. Do Egbert, fui amigo. Sem mais
razões, que a simpatia não se argumenta. Entretanto, eu experimentava a
necessidade deleitosa da dedicação. Achava-me forte para querer bem e
mostrar. Queimava-me o ardor inexplicável do desinteresse. [...] Eu, deitado,
esperava que ele dormisse para vê-lo dormir e acordava mais cedo para vê-lo
acordar. Tudo que nos pertencia, era comum. Eu por mim positivamente
adorava-o e o julgava perfeito. Era elegante, destro, trabalhador, generoso. Eu
admirava-o, desde o coração, até a cor da pele e à correção das formas. No
recreio, éramos inseparáveis, complementares como duas condições recíprocas
de existência. [...] De volta ao Ateneu, senti-me grande. Crescia-me o peito
indefinivelmente, como se me estivesse
a fazer homem por dilatação. Sentia-me
elevado, vinte anos de estatura, um
milagre. Examinei então os sapatos, a
ver se haviam crescido os calcanhares.
Nenhum dos sintomas estranhos
constatei. Mas uma coisa apenas: olhava
agora para Egbert como para uma
recordação e para o dia de ontem. Daí
começou a esfriar o entusiasmo da nossa fraternidade (Sérgio, em relação a Egbert;
p. 141, 142).

Havia os entusiastas da profissão, conscientes, francos, impetuosos,


apregoando-se por gosto, que não perdoavam à natureza o erro original da
conformação: ah! não ser eu mulher para melhor o ser! Estes faziam grupo à
parte, conhecidos publicamente e satisfeitos com isto, protegidos por um favor
de simpatia geral, inconfessado mas evidente, beneplácito perverso e amável
de tolerância que favoneia sempre a corrupção como um aplauso. Eles, os
belos efebos! exemplos da graça juvenil e da nobreza da linha. Às vezes
traziam pulseiras; ao banho triunfavam, nus, demorando atitudes de ninfa, à
beira d’água, em meio da coleção mesquinha de esqueletos sem carnes nas
tangas de meia, e carnes sem forma (Sérgio, em relação ao grupo de homossexuais
“assumidos” no Ateneu; p. 156-157)

DE PROFUNDIS
(Oscar Wilde)
Jan. 1893, Alfred Douglas

Meu querido menino,

O seu soneto pareceu-me bastante agradável, e é maravilhoso que esses


lábios de rosa desabrochada possam ser tão bem talhados para a música
das palavras quanto para as loucuras de beijar. A sua alma de cintura
delgada passeia entre a paixão e a poesia. Sei que Jacinto, a quem Apolo
tanto amou, foi você naqueles dias da Grécia antiga.

Por que está sozinho em Londres, e quando irá para Salisbury? Vá até lá
e arrefeça as suas mãos no crepúsculo acinzentado das coisas góticas, e
venha para cá quando quiser. É um lugar adorável, mas falta você, vá a
Salisbury primeiro.

Sempre com amor imorredouro,

Teu Oscar

“Esse amor é a grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem,
como aquela que houve entre Davi e Jônatas, o amor que Platão tornou a base de sua
filosofia, o amor que se pode achar nos sonetos de Miguel Ângelo e Shakespeare. Tal
amor é tão mal compreendido neste século que se admite descrevê-lo como o ‘amor
que não ousa dizer seu nome’. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição.
Não há nada nele que seja antinatural. Ele é intelectual, e repetidamente tem existido
entre um homem mais velho e um homem mais novo, quando o mais velho tem o
intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, a esperança e o encanto da vida à sua
frente. O mundo não compreende que seja assim. Zomba dele e às vezes, por causa
dele, coloca alguém no pelourinho.”

Nossa malfadada e lamentável amizade acabou levando-me à ruína e ao


descrédito público e, no entanto, a lembrança da antiga afeição que nos unia está
sempre comigo e é bem triste para mim pensar que o ódio, o desprezo e o rancor
tomarão para sempre em meu coração o lugar antes ocupado pelo amor.
Começarei por dizer-lhe que me julgo terrivelmente culpado. Aqui na minha
cela escura, envergando este uniforme de prisioneiro, um homem desgraçado e
totalmente arruinado, eu me julgo culpado [...]. Culpo a mim mesmo por ter
permitido que uma amizade que nada tinha de intelectual, uma amizade cujo
objetivo principal jamais foi a criação ou a contemplação do belo, dominasse
inteiramente a minha vida
[...]
Fosse qual fosse sua conduta para comigo, eu sempre soube que no fundo
você me amava. Embora percebesse com clareza que minha posição no mundo da
Arte, o interesse que minha personalidade sempre despertou, meu dinheiro, o luxo
em que vivia, os mil e um detalhes que tornam a vida tão cheia de charme e tão
deliciosamente improvável, como acontecia comigo, todas essas coisas eram
elementos que exerciam sobre você um fascínio e o faziam ficar a meu lado; apesar
de tudo isso, sempre houve alguma coisa além, uma estranha atração: você me
amava mais do que a qualquer outra pessoa. Mas, assim como eu próprio, você
teve em sua vida uma terrível tragédia, embora de natureza inteiramente diversa
daquela que me atingiu. Quer saber o que foi? Foi o seguinte. Em você, o Ódio
sempre foi mais forte do que o Amor. O Ódio que sente por seu pai é de tal
estatura que ele venceu, ultrapassou, obscureceu seu amor por mim. Não havia
uma luta entre esses dois sentimentos ou, se havia, era mínima. Tamanha era a
dimensão do Ódio por seu pai e tão monstruoso era seu crescimento! Você não se
deu conta de que não há lugar para essas duas paixões numa só alma. Elas não
podem conviver no seio dessa casa tão bem esculpida. O Amor é alimentado pela
imaginação, através da qual nos tornamos mais sábios do que supomos, melhores
do que nos sentimos, mais nobres do que somos. Através da qual podemos ver a
Vida como um todo. Através da qual, exclusivamente, podemos compreender os
outros em sua realidade e em suas relações ideais.

[...]
É preciso que eu diga a mim mesmo que fui o único responsável pela minha
ruína e que ninguém, seja ele grande ou pequeno, pode ser arruinado exceto
pelas próprias mãos. Estou pronto a afirmá-lo. Tento fazê-lo, embora eles possam
não concordar comigo neste momento. Esta impiedosa acusação eu a faço sem
piedade contra mim mesmo. Terrível foi sem dúvida o que o mundo fez comigo,
mais terrível ainda foi o que eu fiz contra mim mesmo.
[...]
Além de todas essas coisas eu ainda tinha algo diferente. Mas me deixei
atrair por longos períodos de ócio sensual e insensato. Divertia-me ser um flâneur,
um dândi, um homem da moda. Cerquei-me de naturezas menores e de
inteligências medíocres. Dissipar o meu próprio gênio e desbaratar uma juventude
que me parecia eterna provocava em mim uma estranha alegria. Cansado das
alturas, desci voluntariamente às profundezas em busca de novas sensações. O que
o paradoxo significava para mim no âmbito do pensamento, a depravação passou a
significar no âmbito das paixões. No fim o desejo era como uma doença, uma
loucura, ou ambas.
Deixei de pensar nos outros, desfrutava o prazer onde quer que o
encontrasse e seguia adiante. Esqueci que cada pequena ação cotidiana pode fazer
ou desfazer um caráter e que tudo aquilo que fazemos no segredo da alcova
teremos que confessá-lo um dia, gritando do alto dos telhados. Deixei de ser
senhor de mim mesmo.
Já não era mais o comandante da minha alma e não sabia. Permiti que o
prazer me dominasse e acabei caindo em terrível desgraça. Agora só uma coisa me
resta: a mais absoluta humildade.

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