Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Livro Texto - Analise Do Discurso - UFSC PDF
Livro Texto - Analise Do Discurso - UFSC PDF
Livro Texto - Analise Do Discurso - UFSC PDF
11º
Pedro de Souza
Período
Florianópolis - 2014
Governo Federal
Presidência da República
Ministério de Educação
Secretaria de Ensino a Distância
Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil
Universidade Federal de Santa Catarina
Reitora: Roselane Neckel
Vice-reitora: Lúcia Helena Martins Pacheco
Secretário de Educação a Distância: Cícero Barbosa
Pró-reitora de Ensino de Graduação: Roselane Fátima Campos
Pró-reitora de Pós-Graduação: Joana Maria Pedro
Pró-reitor de Pesquisa: Jamil Assreuy
Pró-reitor de Extensão: Edison da Rosa
Pró-reitora de Planejamento e Orçamento: Beatriz Augusto de Paiva
Pró-reitor de Administração: Antônio Carlos Montezuma Brito
Pró-reitor de Assuntos Estudantis: Lauro Francisco Mattei
Diretor do Centro de Comunicação e Expressão: Felício Wessling Margotti
Diretor do Centro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt
Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância
Diretor da Unidade de Ensino: Felício Wessling Margutti
Chefe do Departamento: Rosana Cássia Kamita
Coordenadora de Curso: Sandra Quarezemin
Coordenador de Tutoria: Josias Hack
Coordenação Pedagógica: Cristiane Lazzarotto Volcão
Comissão Editorial
Tânia Regina Oliveira Ramos
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos
Cristiane Lazzarotto Volcão
Equipe de Desenvolvimento de Materiais
Ficha Catalográfica
S728a Sousa, Pedro de
Análise do discurso / Pedro de Souza, — Florianópolis :
LLV/CCE/UFSC, 2011.
114p. : il
Inclui bibliografia
UFSC. Licenciatura em Letras Português na modalidade a Distância
ISBN 978-85-61482-42-8
CDU 801
Referências....................................................................................... 121
A
Análise de Discurso, no currículo do Curso de Letras, da Universidade
Federal de Santa Catarina, segue a sequência do grupo de disciplinas
colocadas no elenco da Linguística. Mais precisamente é uma matéria
que deveria ter como pré-requisito a Semântica e a Teoria da Enunciação. Por isso,
é uma disciplina oferecida no presencial no penúltimo semestre do curso.
Pedro de Souza
Figura 4 – Eni Orlandi.
Unidade A
No princípio, há a fala, a língua e o
falante
11
Análise do Discurso
pudesse ser apresentado e definido por algo que expõe sua sistemati-
cidade, mas também algo de que a linguagem pode prescindir para se
definir por si mesma. Isso porque a linguagem pode se estruturar por
outras modalidades formais que não remetem necessariamente ao sig-
no verbal. Levando isso em conta, Saussure não hesitou em eleger, em
Figura 6 - Ceci n’est pas une pipe. René gesto excludente e exclusivo, a língua enquanto objeto que diz respeito
Magritte. 1928.
à faculdade humana da linguagem. Excludente porque, como veremos
adiante, exclui o sujeito que fala e exclusivo porque propõe a língua
como objeto de saber que só cabe à Linguística estudar.
12
Linguagem, língua, fala Capítulo 01
Daí a seguinte equação:
13
Análise do Discurso
14
A fala, o indivíduo falante Capítulo 02
2 A fala, o indivíduo falante
Vamos tomar uma narrativa cinematográfica como recurso para
representar o que estamos desenvolvendo até aqui sobre a consideração
do sujeito e da língua na fala. Nell é o título do filme produzido pela
FoxVideo, em 1995. Ele foi dirigido por Michael Apted e produzido por
Missel e Jodie Foster. Os atores que protagonizam a história são Jodie
Foster, Liam Neeson e Natasha Richardson.
Nell narra a história de uma moça criada isolada junto com sua
mãe em uma floresta distante, sem contato com a cidade. Depois que
morre a mãe, a personagem Nell fica sozinha. É quando ela é encontrada
pelo médico e pela psicóloga, que tentam levá-la para a civilização. Mas
antes de saber se ela quer sair do isolamento, eles precisam investigar
que língua é aquela que ela fala e se é capaz de se comunicar.
No início do filme, a partir do procedimento científico da Figura 13 – Capa do DVD do filme Nell, dirigido
por Michael Apted.
psicóloga, os comportamentos de Nell, por exemplo, sua reação
diante de um espelho, levam a interpretar formas previsíveis de percep-
ção de si: “Ela tem um ego objetivo e um ego subjetivo. Nunca vi uma
projeção tão perfeita!”, exclama conclusivamente a psicóloga, interpre-
tando os gestos exibidos a partir de alguma abordagem preconcebida.
15
Análise do Discurso
16
A fala, o indivíduo falante Capítulo 02
A posição do médico representa a atitude de quem se deixa in-
terpelar pela fala tal como aparece, considerando a língua como o ele-
mento que atravessa o ato concreto de falar e só significa nas condições
históricas em que a fala acontece. A história de Nell é marcada pelas
vicissitudes entre entregar-se ao bem-estar que lhe oferece o seu hábitat
na floresta e precaver-se do perigo presente na intromissão de pessoas
e eventos estranhos em seu cotidiano. É no horizonte desse esquema
pré-construído que o médico chega ao que pode ser a língua, ou a lin-
guagem, que assenta a fala de Nell.
17
Análise do Discurso
18
A fala entre o descontrole e o controle Capítulo 03
3 A fala entre o descontrole e o
controle
Retomemos o estatuto da fala e do indivíduo falante. Nessa parte,
vamos nos deter no indivíduo falante para, a partir da fala que ele co-
mete, observar a ordem discursiva que o interpela e o sujeito em que se
converte ao tomar a palavra.
19
Análise do Discurso
20
A fala entre o descontrole e o controle Capítulo 03
posição do sujeito cuja missão tinha início na sua fala. O problema é
que ele não podia falar por limitações próprias de quem não conta com
a própria voz para deixar passar a voz da ordem do discurso que ali o
convocava. George VI, de fato, até não ser preparado, não falava porque
estava impedido pela gagueira.
George VI tendo a seu lado o amigo Lionel a lhe dar apoio para
vencer a gagueira. Vale a pena aqui contrapor essas duas perfomances, que
beiram o fracasso do sujeito no momento de falar, a outra cuja tomada da
fala acontece de modo muito bem sucedido. Barack Obama, em sua visita
ao Brasil, em 19 e 20 de março de 2011, começou o seu discurso, pronun-
ciado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, de forma muito coloquial.
Cumprimentou os brasileiros, em português, agradecendo pela calorosa
acolhida a toda sua família, foi simpático ao lembrar da importante parti-
da de futebol que haveria naquela tarde e lembrou também a primeira vez
que viu imagens do Brasil em um filme: Orfeu negro.
Uma das primeiras impressões que tive do Brasil veio de um filme que vi
com minha mãe quando eu era muito pequeno. Um filme chamado Orfeu
21
Análise do Discurso
negro, que se passava nas favelas durante o carnaval. E minha mãe adorava
aquele filme, tinha música e dança e, como pano de fundo, os lindos mor-
ros verdes. Esse filme estreou primeiramente como uma peça bem aqui, no
Theatro Municipal.
22
O discurso como procedimento de controle Capítulo 04
4 O discurso como
procedimento de controle
É preciso lembrar que Foucault não está considerando a fala que se
exerce no âmbito político. Lendo os primeiros parágrafos de A ordem do
discurso, entendemos que o filósofo dramatiza o que supostamente acon-
tece quando alguém resiste a falar mesmo sendo convocado a fazê-lo.
Nesse sentido, observem que o tema da aula inaugural não é o indivíduo
falante destituído da vontade ou da impossibilidade de falar. O tema desse
texto é o próprio discurso enquanto ordem, diante da qual, alegoricamen-
te, Foucault põe em cena o falante situado na soleira da porta da ordem
discursiva que o habilita a falar já sendo o sujeito do discurso.
Esse ritual alegórico com que Foucault inicia sua conferência ser-
ve para compreender o que ele concebe como discurso já desde o que
propôs em A arqueologia do saber (1986). O discurso pode então ser
definido de duas maneiras:
23
Análise do Discurso
Mas cabe aqui enfatizar que, pensando nos termos de Michel Fou-
cault, o importante é guardar que a fala e o indivíduo falante são os
ingredientes essenciais que o discurso – formalmente concebido como
ordem – investe para constituir o indivíduo como sujeito e dotar de sen-
tido os enunciados que produz. O investimento da ordem discursiva so-
bre a fala ou a enunciação é tomado como as condições de possibilidade
do discurso e do sujeito que nele se produz.
24
O discurso como procedimento de controle Capítulo 04
eu que, ao encadear aleatoriamente uma sequência de palavras, gostaria
de se não se arriscar a entrar na discursividade na qual ele é institucio-
nalmente convocado a proferir sua aula. Trata-se do momento hipoté-
tico em que o falante e sua fala expõem-se destituídos de discurso em
uma dada situação;
25
Unidade B
Elementos da noção arqueológica
de discurso
29
Análise do Discurso
Você deve estar perguntando: por que então não começamos por
este livro, A arqueologia do saber? De fato, seria o caminho normal, se
quiséssemos adotar um procedimento cronológico de levantamento
dessa noção nos textos de Foucault. Mas existe explicação para esta es-
tratégia didática de expor a concepção foucaultiana de discurso come-
çando pela escrita de sua aula inaugural: tem a ver com o enfoque que
estamos empregando nesta disciplina. Você já deve estar percebendo
que queremos colar a noção de sujeito à noção de discurso mostrando
que a discursividade se constitui ao mesmo tempo que o sujeito. Lem-
bre-se da primeira frase citando Orlandi (2003, p. 15), que abriu a uni-
dade anterior: “A Análise de Discurso se interessa por homens falando”.
A essa se liga o postulado de Michel Pêcheux: “Não há discurso sem
sujeito” (PÊCHEUX, 1990). Também Foucault disse repetidas vezes que
o discurso interessava a ele pelo fato de que alguém disse alguma coisa.
30
O correlato do enunciado Capítulo 06
6 O correlato do enunciado
Só que para chegar ao conceito de discurso do qual deve derivar a
noção de formação discursiva, em A arqueologia do saber, Foucault inicia
pondo em questão a forma da unidade elementar do discurso, ou seja,
do enunciado. Embora tendo sempre como pressuposto o fato de que há
sempre alguém sustentando materialmente a possibilidade do dizer, o
pensador problematiza a abordagem do dizer pela forma com que apare-
ce, seja no plano escrito ou oral. Essa abordagem não pode ser a mesma
que adota em Lógica, Semântica Formal ou Pragmática na Linguística.
31
Análise do Discurso
32
O correlato do enunciado Capítulo 06
Vejamos como fica essa tentativa de usar a experiência de se expor
à estranheza de um filme para vivenciar e compreender o que Foucault
diz a respeito de a relação entre o enunciado e aquilo que ele enuncia
estar em seu correlato, alguma coisa outra que nada tem a ver com o
que se possa a ele associar de modo imediato. A pretensão é mostrar
que o correlato do enunciado, conforme Foucault, não está na busca
do referente daquelas frases, sejam elas percebidas na forma escrita em
português ou na forma falada em inglês pela voz over.
A voz over (voice over, em inglês) acontece no cinema toda vez que
o narrador conta ou descreve uma situação em que ele não está em
cena. Diferentemente da voz off (voice off, em inglês), em que não
se vê a personagem que está em cena, mas se escuta sua voz vindo
fora do campo de visão do espectador. Imaginemos uma cena em
que vemos uma mulher acabando de se arrumar para sair e escu-
tamos apenas a voz do marido gritando, lá de fora da casa, que já
estão atrasados.
33
Análise do Discurso
Este renomado artista é famoso por seu azul IKB (International Klein Blue)
e suas obras monocromáticas, mas seu trabalho ainda está por ser desco-
berto: Performances com a arte conceitual, projetos arquitetônicos, obras
sonoras, coreografia, sets de filmagem, as principais obras escritas [...] Yves
Klein pensa e age sem limites, expressando sua contemplação eferves-
cente sobre o papel do artista, cuja razão de ser não pode ser reduzida
ao simples ato de “produzir”, mas abrange todos os campos de expressão.
34
O correlato do enunciado Capítulo 06
Veja então que a análise da função enunciativa aqui é proposta a
partir de quatro perguntas básicas:
Por isso, como vimos, não é o caso de deduzir que no filme se fala
o tempo todo do vírus do HIV, nem que o sujeito que enuncia o tempo
todo é um doente de AIDS. Em resumo, para que as formulações do fil-
me façam sentido, é preciso analisá-las em um nível diferente da análise
linguística ou semântica. Elas podem ser associadas quer ao domínio
de um indivíduo acometido pela cegueira, quer ao domínio em que se
pode referir a alguém que faz poesia jogando com a palavra blue.
35
Análise do Discurso
36
O correlato do enunciado Capítulo 06
Deduzimos então que o sujeito do enunciado não é o indivíduo
que usou sua voz ou suas mãos para produzir uma sentença ou um
texto, mesmo se a formulação está composta em primeira pessoa.
Mesmo porque, diz Foucault (1996, p. 105), “[...] não há signos sem
alguém para proferi-los ou, de qualquer forma, sem alguma coisa
como elemento emissor.” Essa dissociação entre o emissor de signos
e o que Foucault propõe como sujeito de enunciado é do mesmo tipo
da diferença entre o cantor e a personagem que interpreta ao can-
tar. Chico Buarque, ao compor e interpretar canções no feminino,
é o exemplo entre o indivíduo que emite os versos e a melodia com
sua própria voz e o sujeito do enunciado da canção. Foi esse mesmo
compositor que, na sua canção intitulada Olhos nos olhos, colocou
sua voz no enunciado “Quantos homens me amaram/Bem mais e
melhor que você”; no entanto, o “eu” dessa formulação linguística
não coincide com o indivíduo que profere a frase. Exemplos como
esses cabem na afirmação de que: “[...] ainda que o autor seja o mes-
mo [...] não implicam a mesma relação entre o sujeito e o que ele está
enunciando.” (FOUCAULT, 1996, p. 106).
37
Análise do Discurso
O que se observa no corpo de cada uma dessas duas frases são dife-
rentes operações de produção de lugar ou posição de sujeito. Em ambas
as formulações, o sujeito enunciante é o resultado da operação que o
define como diferentes lugares ou posições de sujeito. Contudo, a dife-
rença entre as duas conduz ao traço definidor da operação que gera o
sujeito do enunciado como lugar.
38
O correlato do enunciado Capítulo 06
Podemos perguntar se o indivíduo que realiza operações de mar-
cação de sujeito desse tipo tem consciência do que opera. A resposta é
não. Ela decorre do que a análise foucaultiana atenta sobre “a posição
específica do sujeito enunciante”: “[...] a posição do sujeito está ligada
à existência de uma operação ao mesmo tempo determinada e atual.”
(FOUCAULT, 1986, p. 108). Isso quer dizer que, mesmo se dando conta,
as operações que ele deve efetuar em seu dizer não têm origem no sujei-
to enunciante: o sujeito que enuncia apenas inclina-se às leis do dizer, já
dadas antes dele, como condição para o sujeito do que diz. Isso significa
para Foucault (1996, p.108) que “[...] enquanto sujeito falante ele aceita
o enunciado como sua própria lei.”
39
Unidade C
Do discurso como objeto de
análise ao modo da escola francesa
43
Análise do Discurso
francês nos conduz a concluir que a fala e o indivíduo falante são con-
trapostos ao discurso. O discurso é aludido como a voz que fala antes que
fale o falante. Mas quem se refere ou faz apelo a essa voz que está por trás
da palavra é o próprio indivíduo falante no momento em que é convocado
pela voz a tomar a palavra.
44
Da fala ao discurso: realções de força e sentido Capítulo 07
do discurso, porque justamente não se aventura a elaborar outra noção
de língua e linguagem que se contraponha ao objeto formal e fechado,
tanto da linguística chomskyana quanto da linguística saussuriana:
45
Análise do Discurso
47
Análise do Discurso
48
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
mas resultado da relação com outros enunciados que a eles se ligam,
formando um domínio correlato ou campo associado. Mas a remissão
a Foucault para aqui, nessa ideia de que sentido e enunciado são efeitos
de relação. Resta agora saber como a escola francesa de Análise de Dis-
curso descreve tais relações, demonstrando como elas se dão a partir de
dispositivos ou artefatos conceituais e práticos.
49
Análise do Discurso
50
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
Decorre daí que, se retomarmos o que vimos há pouco sobre a con-
juntura intelectual que deflagra um novo modo de conceber a leitura,
concluímos que ler é interpretar. Então, o mais importante do disposi-
tivo analítico é levantar questão. Dito de outro modo, sem questão não
há análise, isto é, o ato de compreender como determinado sentido se
constrói só ocorre a partir da colocação de uma pergunta.
51
Análise do Discurso
Isso explica porque o gesto de leitura deve ser, nesse caso e em ou-
tros, um prolongamento do gesto de escritura: o ato de ler, ao produ-
zir sentidos para um texto como o que exemplificamos aqui, recria o
mesmo texto, fazendo com que ele seja remetido, ou não, às mesmas
condições de produção com que foi escrito. Nesse ponto, mais um con-
ceito vem compor o que Orlandi (2003, p. 30) chama de condições de
produção: “[...] elas compreendem fundamentalmente os sujeitos e as
situações.” Trata-se, obviamente, da produção da leitura ou da interpre-
tação como o equivalente à produção do discurso.
52
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
ӲӲ Os agentes mentores da Bombril como sujeitos assinantes da
propaganda.
53
Análise do Discurso
intervenção de uma memória que fala antes e fora do sujeito que cria
a propaganda e dos leitores e espectadores a quem se destina. Seja para
rir da ironia ali implícita, seja para tomá-la a sério, os sujeitos já se en-
contram tomados por esses mesmos sentidos que, no caso da referida
campanha publicitária da Bombril, podem ser ambiguamente negados
e afirmados. Esse é o papel da memória que dá conta da produção do
discurso que ecoa na base linguística da formulação e da leitura de
qualquer objeto de linguagem.
54
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
tido do feminismo que torna possível a história do confronto ou das
relações homem/mulher e suas consequências tanto no domínio dos
saberes quanto no das relações sociais e políticas.
55
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
9 O esquecimento no jogo da
memória ou do interdiscurso
A grande questão que se levanta é como se pode desvincular a pro-
dução do discurso da intenção do sujeito, já que não há discurso sem
sujeito e não há sujeito sem ideologia. A resposta reside justamente nes-
1 Em 1965, foi mostra-
sa relação sujeito/ideologia. Essa é a razão porque propomos agora exa- da pela primeira vez por
minar um fenômeno e um conceito que é ao mesmo tempo inerente ao Marcos Valle no espetáculo
A bossa no Paramount, rea-
processo discursivo e ideológico, ou, em outros termos, do modo com lizado no Teatro Paramount
que se produz simultaneamente o sujeito e o sentido. Trata-se do fenô- (SP)
meno do esquecimento.
57
Análise do Discurso
58
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
Vamos ficar ainda especificamente no exemplo da canção de
Gilberto Gil. No trecho em que o sujeito canta enunciando a dife-
rença entre escutar “a ser só” e ouvir “a só ser” indica que em sua
enunciação a escolha de uma entre duas maneiras de dizer, o que re-
troativamente aponta como todos os versos anteriores de sua canção
formam o que Orlandi (2003, p. 35) chama de “família parafrástica”.
Isso significa que o texto de sua composição em relação interdis-
cursiva com o texto da canção dos irmãos Valle assinala o quanto o
dizer da solidão sempre pode trazer o mesmo em outras maneiras de
formular. O efeito de sentido que aqui aparece leva a compreender
que, ao proferir “Preciso aprender a ser só”, pode-se também proferir
“Preciso aprender a só ser”.
59
Análise do Discurso
60
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
de do sentido, colocando-se em uma posição em detrimento de outra,
deve ser feito junto e da mesma matéria que os efeitos de sentido que o
interpelam ao enunciar. Essa matéria é a ideologia, uma espécie de tec-
nologia inacessível de discurso e de sujeito. A eficácia dessa tecnologia
ideológica consiste no funcionamento do esquecimento em nível 1, isto
é, o sentido e sua fonte no sujeito devem ser absoluta e inquestionavel-
mente evidentes. Cabe ao sujeito apenas pôr em questão o que ele diz na
diferença com que o outro diz, mas nunca questionar a evidência de si
como lugar da autoria e da responsabilidade do que diz. Tal é a forma da
subjetividade que passou a imperar no trânsito entre a época clássica e a
modernidade, conforme veremos mais tarde.
61
Análise do Discurso
62
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
que o esquecimento tenha a ver com o que se oculta. Em verdade, o es-
quecimento ideológico tem a ver com a presença inevitável de algo que
só pode aparecer sob a dimensão do não sentido para dar passagem ao
evidente, ao que não pode ser de outra maneira. Vale aqui repetir o que
Orlandi (2008, p. 59) afirma sobre o interdiscurso em outro texto: “[...]
o interdiscurso é o conjunto dos dizeres já ditos e esquecidos que deter-
minam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer.”
Por exemplo, no contexto do filme, a ausência da palavra judeu em toda
a narrativa mostra como a palavra não pode ser pronunciada em um
quadro de constituição de memória sem que mobilize sentidos vindos
de outras palavras.
Daí que, no ato de dizer, o sujeito e o sentido do que diz já estão de-
terminados no cruzamento entre a língua e a história. O fenômeno que se
pode descrever na maneira com que as palavras significam de sujeito para
sujeito é o da identificação involuntária ou inconsciente, justamente por-
que o fundamental do esquecimento estruturante acontece em tempo an-
terior ao dizer e fora do falante. A natureza ideológica desse fenômeno de
esquecimento advém do fato de que, no momento em que são proferidas,
as palavras já acontecem como se seus sentidos fossem pontualmente ori-
ginados no sujeito no instante em que as profere. Isso é que se chama uma
ilusão necessária: é preciso que o sujeito se tome como fonte do sentido
para que esse aconteça mediante uma retomada do que antes fora dito.
63
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
10 Os limites entre o mesmo e o
diferente
Quando Eni Orlandi (2003, p. 36-39) desenvolve os conceitos de pa-
ráfrase e polissemia, entendemos logo a especificidade do interdiscurso
em relação à formação discursiva. Fica claro que a palavra não é sim-
plesmente formulações linguísticas diferentes para dizer o mesmo e que,
por sua vez, a polissemia não é o emprego de formulações idênticas para
designar sentidos diferentes. Paráfrase e polissemia definem respectiva-
mente em todo dizer o sentido que se mantém e o que se desestabiliza. De
modo que, voltando ao exemplo do título das canções que analisamos an-
teriormente, a manutenção ou o deslocamento do sentido não vêm sim-
plesmente da mudança de posição de um termo na frase. A despeito da
mudança na estrutura de uma frase dada, seu sentido pode se conservar
ou tender a se modificar conforme a memória, o dizível em que se pro-
duz. Se duas formulações linguisticamente diferentes retomam a mesma
memória discursiva, então elas mantêm entre si uma relação parafrástica.
Por outro lado, tendo ou não a mesma estrutura sintática, há formulações
que remetem a uma diversidade de significação. Esse é o jogo da polisse-
mia: o dizer pode ser formulado de modo idêntico, mas se expõe de modo
a produzir uma ruptura com lugares já estabelecidos de sentido. Foi o
que vimos na diferença entre dizer “Preciso aprender a ser só” e “Preciso
aprender a só ser”. O que se faz aqui é tanto uma relação de paráfrase,
quanto de polissemia. Isso quer dizer que a comutação da expressão “a ser
só” por “a só ser” só põe em crise o sentido sedimentado pela memória da
primeira. Mas, ao mesmo tempo em que se estabelece uma nova memó-
ria, o procedimento desloca o dizer da primeira para novo lugar, fazendo
com que as duas formulações, nessa outra região do dizível, passem a re-
cobrir entre si uma relação parafrástica.
65
Análise do Discurso
66
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
esquema behaviorista de comunicação. Em vez disso, trata-se de um
processo a que Michel Pêcheux denomina de formações imaginárias.
67
Análise do Discurso
Posição e força são termos que mostram que os sentidos têm luga-
res e validade histórica e política, fazendo com que um mesmo indiví-
duo proferindo uma mesma palavra se signifique como sujeito de modo
completamente excludente. É o que exemplifica Orlandi (2003) quando
ressalta: “[...] se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras
significam de modo diferente do que se falasse do lugar do aluno.” Dito
desse modo, parece apenas uma questão óbvia de troca de papéis. Mas é
muito mais que isso. Veja com esta outra explicação de Pêcheux:
68
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
presidente – Luiz Inácio Lula da Silva – interpretado e criticado como
alguém que falando na posição de sindicalista era um e na posição de
presidente da República era outro sujeito. O que fica posto em questão é
a literalidade e autenticidade do sujeito e do sentido, já que, pela língua
e pela história, são produtos passíveis de se tornarem outro de acordo
com a posição e força com que se realizam.
69
Análise do Discurso
Imagem do lugar de B para o sujeito co- “Quem sou eu para que ele me fale as-
B Ib(B)
locado em B sim?”
(PÊCHEUX, 1969)
Pelo esquema, dizemos que o presidente Obama (A) faz uma ima-
gem da posição que ocupa como presidente da República (Ia(A)). Ao
mesmo tempo, dizemos que Obama (A), colocado na posição A, faz
uma imagem do lugar do povo americano (Ia(B)) assim como projeta
uma imagem do povo americano (B) sobre posição em que está co-
locado como presidente (Ib(A)).
70
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
O que importa é como se constitui o sujeito presidente como po-
sição discursiva e, anexada a esse, como se constitui para o presidente a
imagem que seus eleitores têm da posição que ocupa quando se dirige
aos cidadãos norte-americanos. A antecipação diz respeito a essa dinâ-
mica das formações imaginárias em que o sentido dado em uma posi-
ção já está previsto pelo modo com que é constituído na posição do ou-
tro. Obama, ao aceitar comprovar sua condição de cidadão americano
mostrando sua certidão de nascimento, o faz mediante a imagem pre-
visível que o povo americano faz da posição em que ele toma a palavra.
Explicita-se o modo discursivo com que o problema da governabilidade
e da formação política historiciza-se. É por essa via que a questão su-
cessória presidencial aparece como acontecimento discursivo em dadas
circunstâncias para o povo dos Estados Unidos.
71
Do jogo de posições à formação discursiva Capítulo 11
11 Do jogo de posições à
formação discursiva
Chegamos aqui a um ponto em que os mecanismos discursivos
de antecipação dados pela distribuição do dizer segundo as posições
definem a maneira como as relações de sentido e de força desenham
regularidades ou formações discursivas. Tudo se resume na força com
que a posição determina sentido e sujeito. Certamente para conceber
formação discursiva Michel Pêcheux liga às relações de força uma de-
terminação ideológica. Ou, dito de outro modo, a posição pela qual
se faz o sujeito e aquilo que ele diz é constituída pela ideologia, isto é,
pelo modo de produzir sentido marcado por circuitos de forças cuja
permanência como formação discursiva depende da anulação de uma
para colocação de outra força em evidência. Vemos aqui uma espécie
de radiografia da formação discursiva pela qual Pêcheux identifica o
funcionamento do que chama de formação ideológica, ou seja, a po-
sição dada em certa conjuntura sócio-histórica a partir da qual fica
determinado o que pode e não pode ser dito, o que deve e não deve
ser dito. Daí que as palavras têm que ser necessariamente parte de
uma formação discursiva para significarem. Isso equivale a dizer que,
conforme a posição ideológica em que são faladas, as mesmas pala-
vras acontecem com diferentes sentidos, tornando evidente que são
proferidas a partir de uma formação discursiva ou outra. Portanto, o
que define uma formação discursiva não é um conjunto particular de
vocabulário, mas é o modo ou a posição ideológica com a qual certo
vocabulário indica o processo de formação de discurso de que faz par-
te, ou precisamente o mecanismo de efeitos de sentido que funciona
nele. Em síntese, nos termos de Michel Pêcheux, sempre que se fala
em formação discursiva, remete-se a algo como formação ideológica,
caracterizando-a enquanto tal, isto é, enquanto processo histórico de
efeitos de sentidos.
73
A definição discursiva de ideologia Capítulo 12
12 A definição discursiva de
ideologia
Tocamos algumas vezes, em trechos anteriores, no termo ideologia.
Mas vamos agora verificar como essa noção tem uma especificidade na
Análise de Discurso. Entendam que nos refirimos a um modo de conce-
ber a ideologia que não se encontra em versões variadas do marxismo,
em filosofia ou sociologia.
75
Análise do Discurso
Foi isso que fez com que Michel Foucault evitasse em toda sua obra
empregar, de modo teórico e analítico, o conceito de ideologia. É que, do
modo com que esse termo estabelece-se no campo das ciências humanas,
o intelectual que o utiliza está comprometido com uma perspectiva que
acredita na separação entre o que é desinteressadamente mais científico
e verdadeiro e o que é apenas estratégia de manipulação e falsificação da
realidade. Em últimos termos, fica aí implícito o compromisso com uma
crença nos fatos como um dado natural sempre sujeito a ser falseado por
esse ou aquele sistema de pensamento. Eis aí a razão porque o autor de
A arqueologia do saber simplesmente evitou trabalhar com o conceito de
ideologia. Vejamos como ele justifica a recusa do uso dessa noção:
76
A definição discursiva de ideologia Capítulo 12
Em certa concepção que o meio universitário faz do marxismo ou em
certa concepção do marxismo que se impôs à universidade, há sem-
pre no fundamento da análise a idéia de que as relações de força, as
condições econômicas, as relações sociais são dadas previamente aos
indivíduos, mas, ao mesmo tempo, se impõem a um sujeito de co-
nhecimento que permanece idêntico salvo em relação às ideologias
tomadas como erros.
77
Análise do Discurso
Bem, não vamos pensar que Orlandi quer justificar o uso do con-
ceito se referindo ao conceito que Foucault rejeitou e Pêcheux acolheu.
Nada disso. A ideia é radicalmente outra, isto é, criar uma definição dis-
cursiva de ideologia, ou seja, uma definição que a mostre como um fun-
cionamento no discurso. Fica fácil notar porque Orlandi (2003, p.45),
logo de início, introduz o polêmico conceito dizendo que “[...] um dos
pontos da Análise de Discurso é re-significar a noção de ideologia a
partir da consideração da linguagem.”
78
A definição discursiva de ideologia Capítulo 12
Pensemos em como ficou mais do que evidente que o verso do
samba Amélia, de Mário Lago e Ataulfo Alves, “Amélia é que era mu-
lher de verdade” só pode literalmente ter um sentido machista, apesar
de o compositor ter se defendido e argumentado que só quis mostrar
como a mulher pode dominar o homem. Mas o deslocamento não
se dá porque em sua historicidade o sentido produzido pelas inúme-
ras vezes em que se repetiu o mesmo verso ficou tão evidente que se
apagou nele a possibilidade de vir a ser outro. Nesse mecanismo é
que está a definição discursiva de ideologia: a ideologia em Análise de
Discurso é modo de produzir sentido. Figura 33 – O pintinho. 25 de agosto
de 2011.
79
Análise do Discurso
80
A história das formas-sujeito Capítulo 13
13 A história das formas-sujeito
Eni Orlandi apresenta duas maneiras de o sujeito se referir a si
mesmo enquanto fala. Na primeira, ele aparece sob a forma da contra-
dição, ou seja, ele se mostra como livre e responsável por suas ações.
No entanto, não se dá conta de que para responder livremente por seus
atos, antes tem que se submeter a certa ordem de discurso. (ORLAN-
DI, 1996, p. 50).
Imediatamente Nana retruca: Figura 34 – Cena do filme Viver a vida, de Jean-Luc Godard.
- Acho que somos sempre responsáveis pelo que fazemos. Somos livres.
Eu levanto a mão, eu sou responsável. Eu viro a cabeça, eu sou respon-
sável. Eu sou infeliz, eu sou responsável. Eu fumo, eu sou responsável.
Eu fecho os olhos, eu sou responsável. Eu esqueço que sou responsável,
mas eu o sou.
81
Análise do Discurso
As formas-sujeito na histórica
82
A história das formas-sujeito Capítulo 13
vos institucionais que geram formas de ser sujeitos. Primeiro, da Idade
Média até o Renascimento, era a religião que ditava a maneira pela qual
os indivíduos deveriam ser convertidos em sujeitos. É o tempo em que
para ser sujeito o indivíduo deveria crer na letra da sagrada escritura e
se submeter inteiramente à vontade e aos desígnios de Deus. Tem-se a
forma do sujeito religioso em plena vigência na Idade Média.
83
Análise do Discurso
ӲӲ independência do contexto;
ӲӲ contradição;
84
A história das formas-sujeito Capítulo 13
Esses traços devem ser estruturados na forma de um discurso que
seja instrumento límpido do pensamento e reflexo da realidade. A gra-
mática aqui entra como função primordial. Sujeito na gramática, ele deve
fornecer ao sujeito ferramentas para que este ao falar torne-se mestre de
suas palavras, sempre tendo presente a seguinte questão: quem garante
que sou “eu”, o sujeito que diz “eu penso”, que pensa? A regra é que o pen-
samento seja produzido como efeito de um sujeito. É pela gramática que
se chega ao ideal de completude, o que se opera por elementos gramaticais
sintaticamente categorizados: sujeito, predicado, agente, paciente, causa,
efeito. À medida que essas categorias estruturam uma sentença, obede-
cem a pressupostos conceituais a partir dos quais o mundo enunciado na
sentença deve aparecer como logicamente estável.
Assim, de que maneira o indivíduo que fala pode ter acesso aos
modos através dos quais ele está sendo levado a se tornar o sujeito do
discurso? Em verdade, essa experiência é inacessível ao falante. Quan-
do ele se pega sendo levado a falar, já se encontra à beira de se con-
verter em sujeito de uma ordem discursiva que o interpela mediante
o inconsciente.
85
Análise do Discurso
É estranho. De repente, não sei o que dizer. Isso sempre me ocorre. Sei
o que quero dizer. Estou pensando sobre o tempo. É isso que quero
dizer. Eu penso antes de dizer para saber se é bem isto que é preciso
dizer. Mas no momento de falar, eu não sou mais capaz de dizer. [...]
Por que é necessário sempre falar? Acho que muitas vezes não de-
veria falar, e sim ficar em silêncio. Por mais que alguém fale menos
as palavras significam.
86
A história das formas-sujeito Capítulo 13
Nana aqui está às voltas com a impossibilidade de não falar e “Entre o jogo e a re-
com o fato de que as palavras quando caem em sua boca estão su- gra, a necessidade e
jeitas a falhas e expostas ao movimento de incompletude que é pró- o acaso, no confron-
prio do processo discursivo em incessante confronto e embate com to do mundo e da
descolamentos e rupturas. Vale a pena examinar o que diz Orlandi linguagem, entre o
(2003, p. 52-54) sobre esse trajeto do discurso em pontos de desli- sedimentado e o a se
zamento. Aí, a luta do sentido para ser ideologicamente um tem que sedimentar na expe-
ver com o jogo, com a falha, com o acaso e também com a necessida- riência e na história,
de. Em suas ocorrências escorregadias, as palavras tendem ao equí- na relação tensa do
voco significando de um jeito quando são proferidas para significar simbólico com o real
de outro. Da necessidade de encontrar a palavra certa, o sujeito se e o imaginário, o su-
desestabiliza com o desencontro dos sentidos a que se vê exposto, daí jeito e o sentido se re-
a inquietação de Nana: “Como alguém pode ter certeza de ter encon- pelem e se deslocam.”
trado a palavra certa?” Mas o que é certo mesmo é que o movimento (ORLANDI, 1996, p.
do discurso não se fecha, e isso é a propriedade que vem daquilo 50-51).
de que o discurso se serve para se fazer, ou seja, a materialidade da
língua sempre transitando na história. Nunca é demais repetir: em
Análise de Discurso, a língua não existe fora da história. E como
o próprio da história é descontinuidade e ruptura, as produções de
efeitos de sentido não se historicizam sem falha, sem equívoco. Tudo
isso define também a condição com que o indivíduo é interpelado
em sujeito. O falante se segura na língua e na história para se garantir
como sujeito, mas tanto uma – a língua – quanto a outra – a história
– são como corda ruindo em andaime sem apoio seguro.
87
Análise do Discurso
88
Unidade D
Construindo a análise
91
Análise do Discurso
92
Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo Capítulo 14
Para restituir o processo que levou à fabricação do discurso, ou o
que chamamos processo discursivo, é imprescindível adotar critérios.
O primeiro é de ordem conceitual e pressupõe todo o estudo que rea-
lizamos até aqui. O que significa partir dos conceitos e não dos dados
empíricos, isto é, da forma e do conteúdo do texto? Pensemos na for-
mulação de promessas de campanha eleitoral. Na forma como o can-
didato se dirige a seus eleitores e promete um conjunto de melhoria
para a cidade, não importa o lugar empírico a que remete o nome da
cidade, interessa sim observar a cidade se produzindo como discurso
ou como efeito de sentido.
93
Análise do Discurso
94
Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo Capítulo 14
Bem, quando se trata da matéria bruta de uma formulação dis-
cursiva, é preciso efetuar a passagem da superfície material – o texto
tal qual se apresenta – para a dessuperficialização – o discurso como
efeito de sentido que se procura. É uma questão de método, diz Or-
landi (2003). A travessia do ponto de partida ao de chegada na análise
compõe-se de duas etapas. Nos termos de Orlandi, a primeira descre-
ve a passagem da superfície linguística ao objeto discursivo. Trata-se
de dessuperficializar o discurso examinando na materialidade da lin-
guagem o como se diz, quem diz, em que circunstâncias se diz. Isso se
aplica ao processo de enunciação em que se sinalizam pistas do modo
pelo qual certo discurso – no caso do exemplo anterior a eleição em
uma cidade – se textualiza no material levantado.
95
Análise do Discurso
96
Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo Capítulo 14
textual dá, de unidade e coerência, de atribuição segura de autoria,
percebemos que o que se diz ou escreve de uma maneira bem pode ser
de outra. Chega-se assim ao objeto discursivo. É quando ainda, sem
nos contentar com o ponto a que se chega na interpretação, aceitamos
o risco de cair em abismo, renunciar ao imaginário de que nem tudo
está completo e nos deparar com o vazio do real. O analista toca o
processo discursivo e o movimento múltiplo e incessante dos sentidos
no âmbito do interdiscurso.
97
Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices Capítulo 15
15 Textualidade e discurso:
vivem Marias e Clarices
O procedimento analítico que acabamos de expor e exercitar nos
serve para deixar claro que a textualidade não passa de plataforma a
partir da qual o discurso se superficializa. Os conceitos que aplicamos
a esse processo analítico indicam os pontos a partir dos quais se verifi-
cam jogos de superfície que constituem o discurso com seus efeitos de
autoria e de sentido. Isso equivale a dizer que a dessuperficialização do
discurso nos leva à textualidade e à função-autor como produto do pro-
cesso discursivo que atua por baixo da superfície textual.
- Se você tivesse que recomeçar sua vida do início, que destino escolhe-
ria, se é que se escolhe destino?
100
Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices Capítulo 15
-se aí um dispositivo analítico, quer dizer, um conjunto de conceitos
próprios do espaço discursivo a que se remete o texto da conversa. Den-
tre eles, destacam-se os conceitos de eterno retorno e de gaia ciência.
Tais conceitos remetem aqui a precisas relações de sentido. Mas o que
importa é que os conceitos ou os sentidos não seriam os mesmos se
o texto em questão fosse levado a interpretar a partir de outro lugar
discursivo. É isso que Orlandi (2003) propõe como sendo da ordem da
especificidade do dispositivo analítico, isto é, o campo de questões em
que se efetua a análise – no caso o cruzamento entre uma teoria literária
e uma perspectiva filosófica.
101
Análise do Discurso
103
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
16 Da dispersão do sujeito à
unidade do autor
Já vimos que tornar-se sujeito é ocupar posição no discurso, ou seja,
enunciarno lugar de cruzamentos de dizeres em que o dizer que se realiza
faz sentido em uma direção e não em outra. Vimos também que isso impli-
ca que em um mesmo falante pode haver diferentes possibilidades de ser
sujeito. Tudo depende da posição em que ele vai jogar com as palavras. No
entanto, a partir do momento em que o falante enuncia em certa posição
de discurso, ele define para sua fala certa orientação de sentido atingindo a
coerência. Nesse ponto é que o sujeito passa da dispersão para unidade. É
quando, ao se relacionar com o texto, ele não pode mais se expor à deriva
do sentido, sem assumir a responsabilidade do lugar do efeito de sentido
de suas palavras. Essa é a condição para que ele se torne enfim autor. Por
isso, Orlandi pondera que, ao contrário da relação do sujeito com o texto,
relação que é caracterizada pela dispersão, a autoria distingue-se pela dis-
ciplina, organização e unidade. Observemos os textos a seguir, um escrito
por uma escritora e outro escrito por um jornalista, e analisemos de que
maneira eles podem e não podem ser remetidos à mesma autoria.
As caridades odiosas
105
Análise do Discurso
Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas
da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete,
entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar:
um doce para o menino.
– Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta
há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas
ninguém quis dar.
106
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
timento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer,
o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de... E para
isso fora necessário um menino magro e escuro... E para isso fora necessá-
rio que outros não lhe tivessem dado um doce.
Mendicância chique
107
Análise do Discurso
Outrora, uma das cenas favoritas, nos desenhos ou nas gravuras que ex-
ploravam a estética do grotesco, era o festim dos mendigos. Em torno
de uma mesa farta, reuniam-se os maltrapilhos, os sujos, os desdentados.
Considerava-se muito divertida a inversão dos papéis. Na mesa dos ricos,
por vezes até provida de finas toalhas e cristais, os pobres se esbaldavam.
No caso da mendicância dos calouros, observa-se a mesma inversão de
papéis, mas em sentido contrário: são os ricos que imitam os pobres. É
a velha história do príncipe e do mendigo, na faceta não do mendigo
reinando no palácio, mas do príncipe esmolando pela rua.
108
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
mendigo de verdade, a reação é de medo, de asco ou, mesmo quando
há simpatia, de distância e instintivo alerta. Os sentidos põem-se em
guarda. Todo cuidado é pouco. Com o falso mendigo representado pelo
calouro, relax, ele é um dos nossos. São os nossos meninos. As nossas
meninas. Ah, essas nossas crianças e suas travessuras! Não são como
aquelas outras, assustadores seres de um mundo que não conhecemos
senão por raros vislumbres através da janela do automóvel. Pode-se até
não dar esmola alguma, mas sai-se com a alma leve. Foi como encon-
trar um amigo, como rever-se na juventude. No caso do mendigo de
verdade, pode-se até dar a esmola, mas a alma sai pesada de temores. O
contraste entre as duas situações magnífica, nas esquinas, o sulco que,
além de dividir no plano objetivo a sociedade brasileira, se prolonga in-
sidiosamente para dentro de cada um de nós.
109
Análise do Discurso
110
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
Eis a primeira razão porque colocamos em confronto os dois tex-
tos citados anteriormente: As caridades odiosas e Mendicância chi-
que. Se examinarmos em detalhes as características textuais de cada
um, logo observamos que, em relação à discursividade de que são par-
te, o primeiro desliza na confluência dos sentidos. Ali a função-autor
opera na contramão da textualidade porque os sentidos, embora se in-
sinuem nas palavras e construções sintáticas, não chegam a se fechar.
Ao contrário do segundo, que por deixar organizar-se e fechar-se em
dada região da formação discursiva de onde retira sua condição textu-
al, torna-se imaginariamente completo, coeso e coerente.
(Clarice Lispector)
111
Análise do Discurso
112
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
vergonha, tem-se a impressão de uma significação que entra na con-
tramão do que se diz no outro texto – não mais superioridade diante
do pedinte, mas constrangimento perante o escancaramento da dife-
rença. Só que logo em seguida a pergunta: “De vergonha mesmo?”.
Mais do que as palavras sintaticamente encadeadas, ponto de interro-
gação é também o ponto de inflexão do dizer, marcando nele a contin-
gência do deslize, do lapso da falha. Tem-se aí a marca da dificuldade
de o discurso se fechar em uma unidade textual e também o flagrante
do sujeito em dispersão, tomado entre uma e outra posição: ou ele se
diz tomado de vergonha, ou ele repete a palavra vergonha para, pela
interrogação, fazê-la escorregar para outro lugar de sentido. É quando
o deslize irrompe de modo quase incontrolável e onde se diz vergo-
nha, se pode também dizer amor, gratidão, revolta. Palavras que não
dizem nada por si mesmas a não ser pelos percursos não coinciden-
tes que fazem até que possam organizar uma discursividade em texto.
Assim que o nome de Clarice Lispector, fora do campo da literatura
brasileira, não chega a estabelecer uma remissão do texto a autoria, ou
vice-versa. O que se pode ter é a explícita mostração das vicissitudes
do sujeito capturado pelo movimento do discurso cujo destino é o de
sempre abrir para múltiplos sentidos.
Até aqui podemos então concluir que a autoria é uma das possibi-
lidades ou um dos lugares – previstos no processo discursivo – de o su-
jeito se constituir. Isso quer dizer que pode haver sujeito na passagem
entre uma posição e outra, isto é, no movimento equívoco dos senti-
dos ideologicamente monitorados: ao ser um em dado lugar, o sujeito
sempre pode resvalar-se para se constituir em outro. Já com a função-
-autor se passa bem ao contrário, pois é preciso que a ela corresponda
o sujeito imaginariamente fixado como o eu que é fonte e princípio de
completude de seu discurso. Por isso mesmo, reportando-se ao Michel
Foucault de A ordem do discurso, é que Orlandi (2003) assinala que a
autoria é uma função de sujeito, ou seja, um dos efeitos de subjetivação
discursiva mais social e historicamente controlada. Aí está o espectro
da exterioridade, condição material da efetivação do sujeito, aqui cir-
cunscrito na forma da autoria.
113
Análise do Discurso
Não basta falar para ser autor. A assunção da autoria implica uma
inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto histó-
rico-social. Aprender a se representar como autor é assumir, diante
das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a
linguagem, constituir-se e mostrar-se autor. (ORLANDI, 1988).
114
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
tiplicidade das representações possíveis da prática de dar esmola. Já o
segundo texto é mais eficaz em uma economia de posições excludentes,
que organiza sua dispersão garantindo coerência, dando lugar ao apa-
recimento do autor, assumindo-se naquilo que diz e ostentando a pers-
pectiva de onde seu dizer faz texto.
“[...], mas a alma sai pesada de temores.”“Fui embora, com o rosto corado
de vergonha.”
115
Análise do Discurso
que na relação entre dar e pedir esmola se põe em questão o que signi-
fica ser doador de esmola. Não importa se em cada formulação alude-se
a modos diferentes de focalizar o sujeito que dá esmola. As palavras da
língua aqui se inscrevem na cena induzindo a diferença entre quem diz
“alma pesada de temores” e aquele que diz “rosto corado de vergonha”.
O que importa é que uma mesma memória discursiva aloca as duas
maneiras de dizer, e é isso que as torna uma paráfrase da outra. A enun-
ciação se habilita a partir do que pode e deve ser dito no interior de uma
posição ideologicamente estabelecida para significar a relação entre o
doador e pedinte.
116
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
Orlandi refere-se ao deslize que é próprio de toda língua. Isso quer
dizer que nenhuma forma linguística está presa a um sentido permanente.
Por mais que se torne literal na história, o sentido das palavras entra em
deriva a cada vez que é empregado. Justamente nisso que consiste a cone-
xão entre língua e história. É que a cada vez que a língua é mobilizada em
dadas circunstâncias, uma vez que o significado que pode instaurar não é
evidente, é preciso interpretar. A interpretação é, portanto, o procedimento
inerente ao próprio modo de a língua funcionar em conexão com a história.
117
Análise do Discurso
dois textos organizados em estilo, em gêneros que lhe são próprios po-
derem ser capturados na mesma e na diferente formação discursiva.
118
Considerações Finais
Considerações Finais
Com esse exercício, ao mesmo tempo de desconstrução e de bus-
ca de lugar discursivo determinante do autor, chegamos ao final des-
te plano. O intuito foi propor uma maneira de apresentar a Análise de
Discurso dando conta do exercício da linguagem tanto no campo das
Letras como no das Ciências Humanas em geral. Começamos mos-
trando como a fala do indivíduo é a medida do sentido do que ele diz
e da possibilidade que ele tem de tornar-se sujeito; palavras que diz em
contextos bem determinados, seja de âmbito político, científico, ou no
mais amplo sentido social do exercício da linguagem.
119
Análise do Discurso
120
Referências
Referências
AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2000.
121
Análise do Discurso
NANCY, Jean-Luc. Le partage des voix. Paris: Ed. Galilée, 1982. p. 78.
Disponível em : http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=ideologi
a&stype=k&x=11&y=8.
123
Análise do Discurso
Figura 15 - Cena do filme em que o príncipe Albert, o rei Jorge VI, rea-
liza um de seus discursos.
Fonte: Disponível em <http://www.britannica.com/bps/media-
-view/56950/1/0/0 >. Acesso em: 10 out. 2011.
124
Referências
Figura 30 – Passagem.
Fonte: Disponível em <http://4.bp.blogspot.com/_4XFK93QZya8/R1L-
pyD6fo8I/AAAAAAAAAGk/i6hqJxBfkQQ/s1600-R/TGD-12051.jpg
>. Acesso em: 10 out. 2011.
126
Referências
127
Análise do Discurso
128