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Prólogo

Estava trabalhando em outros dois textos quando uma amiga de muitos anos inicia este
diálogo comigo:

Ela diz: “nossa... como ser sub é complicado”.

E eu: “Por que?”

Ela: porque vivo em conflito... pensamento baunilha num corpo submisso... estranho isso”

Durante a conversa, fui lembrando de inúmeras histórias, umas que assisti de várias distâncias
e outras que vi de dentro. Estas histórias foram as que me inspiraram a escrever o Post
"Dimensões" (um dos meus preferidos) e a ele voltei... para refletir.

E o resultado disso foi uma conclusão no mínimo assustadora. Existe uma espécie de limbo
paralelo à camada dos fetiches. Mas isso não é o que assusta... o que assusta é que este limbo
é extremamente populoso.

Uma das coisas que percebi logo de princípio foi que existem várias formas de se relacionar
afetivamente e que estas relações ocorrem em dimensões diferentes. Também vi que
conforme as pessoas vão evoluindo, crescendo, subindo alguns degraus, começam a ver mais
longe e a descoberta desse território novo acaba por instigar nossa curiosidade. E nesse exato
momento, percebemos que aquilo que temos e nos cerca... não basta.

A primeira realidade afetiva que experimentamos, onde nascemos e crescemos, é chamada


pelos que já conhecem outros Universos de relações afetivas de Mundo Baunilha. Uma grande
sopa primordial, onde tudo começa, onde tudo acontece. A origem.

Este texto complementa diretamente o “Dimensões” e talvez traga um pouco de luz para
alguns dos perdidos nesse limbo.
A Origem do Mundo Baunilha

Na Pré-história, vivíamos da coleta, da caça e da pesca. Para nos defender das intempéries
morávamos em cavernas, pois este estilo de prover os recursos nos obrigava a uma vida
nômade. As relações eram mais simples, mais naturais e mais reais.

Éramos o que existia de mais evoluído na natureza, e em toda a nossa evolução, até bem
pouco tempo, algo entre 1000 e 5000 anos, funcionamos em termos de relações humanas da
mesma forma que a maioria dos mamíferos, ou seja, em grupos familiares. Digo pouco tempo,
pois relaciono este período com os cerca de 3 milhões de anos desde que começamos a nos
tornar humanos, até os primeiros registros do “homo sapiens”, que datam de mais de 100 mil
anos atrás.

Dessa forma, funcionávamos como grupos sociais familiares ou clãs, comandados por um
macho alfa e às vezes, por uma fêmea alfa. No começo, era o instinto que se sobrepunha a
todo o resto. Instinto de sobrevivência e preservação da espécie.

Porém, fomos nos tornando cada vez mais “espertinhos” e através desta “inteligência”
adquirida tomamos uma direção que nos levava pouco a pouco a uma condição de conforto e
melhor qualidade de vida. Nesse processo, foi vital a conclusão sobre a necessidade de se
cultivar os alimentos e domesticar os animais, pois paramos de andar por aí atrás da comida. E
com o advento da escrita, pudemos começar a acumular e transmitir o conhecimento.

E quando, afinal de contas, surgiu o mundo baunilha? Informação acumulada entre pesquisas
e muitas, muitas horas assistindo a canais ciência e tecnologia na TV a cabo, não foram
capazes de me dar uma data precisa. Não sei bem o motivo, mas em algum momento ficamos
civilizados demais.

Já ouvi várias opiniões a respeito. E de tudo, só concluí que quando começamos a viver em
centros densamente populosos, o formato de clã se tornou inviável. Pois toda essa inteligência
e cultura exigiam que coexistíssemos em uma sociedade equilibrada, coesa e pacífica.

O fato é que, de alguma forma, o ser humano precisava se adaptar a uma compressão social
para a qual não havia evoluído. Isto é, a nossa natureza teve que ser reprimida para que este
novo modo de existência funcionasse. E tal como animais comprimidos em um curral, a
maioria das nossas ferramentas evolutivas foram simplesmente deixadas de lado.

Portanto, a maior parte de tudo que evoluímos foi confinado e passamos a viver em um
pequeno casulo e usando do fingimento como artifício para equilibrar essa realidade caótica.
Fingimento, hipocrisia, mentira e conformismo são os comportamentos que forçam essa
massa crítica a um estado de calmaria aparente. E é nas aparências que os habitantes desta
nova realidade se especializaram. Nela, o que conta é o que se vê e não que se sente.

Escolhas

Vão assim, levando o dia-a-dia, numa busca pela manutenção das aparências, que são tudo no
mundo baunilha. E o vício de fingir é tanto, que se finge estar bem até quando se está bem
mesmo. E, citando o texto "Dimensões", de repente, tudo fica meio morno, meio igual. Aquela
rotina das “preliminares + sexo + nada” não satisfaz mais e as meias sensações só aumentam o
vazio.

E tal qual o mundo de Matrix, a maciça maioria não escolhe a vida real... deixando de viver a
dor e o prazer proporcionados pela intensidade e profundidade de se colocar a verdadeira
natureza para fora, preferindo existir numa virtualidade de perfeição aparente.

Nosso lado animal, natural, instintivo, foi completamente suprimido e só em alguns momentos
conseguimos trazer um pouco dele para fora, por exemplo, quando praticamos algum esporte,
participamos de alguma competição ou quando somos acometidos por momentâneos ataques
de fúria por motivos diversos.

Seres humanos são basicamente competitivos e beligerantes. Isso aparece de forma bem
visível em nossa atração por esportes de competição ou pelo volume de conflitos regionais
mundo a fora. Até mesmo à nossa volta, a primeira reação que observamos em momentos de
fúria são, no mínimo, ataques verbais a fim de exteriorizá-los.

Mas não fica por aí, para alguns a natureza fala mais alto, ainda mais quando vem represada
de muito tempo. Os homens (falo daqueles Dominantes que receberam toda a carga de
testosterona da mamãe no útero) vão ter a sua natureza de macho alfa exteriorizada na forma
de múltiplos relacionamentos, independente de se ter um fixo ou não. Candidatos a
candidatos ao Universo BDSM se sentem bem quando exercem atividades onde exista
liderança ou subserviência, dependendo de sua natureza dominante ou submissa.

Sendo assim, as relações existentes no mundo baunilha precisam normalmente se equilibrar


de maneira artificial com base nas aparências, um material não muito bom para a construção
seja lá do que for.
Para alguns poucos iluminados, a Matrix do Mundo Baunilha não consegue mais suprir as
necessidades naturais e estes começam a ver mais longe... e descobrem que existe muito mais.

A Metamorfose e o Choque de Valores

Quando percebi as "Dimensões" entendi como esses universos funcionavam e interagiam. Mas
e depois? O que acontece com as pessoas que resolvem transcender?

O que acontece de mais comum é o choque de valores. Apesar de você não se sentir mais
completo no mundo baunilha, ele é um lugar conhecido, sendo assim, uma zona de conforto. E
começa sempre com um passeio pelas redondezas, visitando as camadas mais evoluídas do
Mundo baunilha, que são as regiões do swing, a do casamento aberto e até mesmo a camada
dos fetiches que faz fronteira a elas.

Agora, quando vamos para longe de casa, a tendência é a de carregar conosco coisas que nos
façam sentir em casa nesse novo território. Coisas que nos sejam familiares e que de alguma
forma nos tragam o conforto anestésico de estar no ninho. Por exemplo, se você se muda para
um país distante, vai ter que se adaptar a realidade da região se adequando aos hábitos locais.
Fazendo com que sua casa se pareça com a que tinha anteriormente, incluindo fotos e
decorações, para que a dor desta mudança seja amenizada.

A transição para o BDSM é uma viagem sem volta. Uma mudança completa na maneira de se
abordar e viver relações afetivas. Essa é a parte mais difícil de absorver. O Universo BDSM não
é um lugar físico, pelo contrário, é uma dimensão que ocorre no âmbito da interação de duas
ou mais pessoas.

É difícil a adaptação para se viver dentro deste novo formato e como numa mudança física de
país, alguns trazem os valores do Mundo Baunilha para ter dentro do BDSM uma espécie de
zona de conforto.

A criação da tal zona de conforto é necessária, pois a maioria dos valores do Mundo Baunilha é
conflitante com os do Universo BDSM. Enquanto um se estabiliza nas aparências o outro se
estabiliza na dor e prazer da verdade.

E enquanto os que estão em transição não se acostumarem com a plenitude das suas
naturezas afloradas, vão vivendo em meio a colisões dos valores das duas dimensões e se
apoiando no que lhes é familiar.
A Dor da Transformação

E dói. Apenas uns poucos conseguem essa transição de imediato. A grande maioria fica
transitando numa espécie de limbo entre o Universo BDSM e o Mundo Baunilha. Chamo de
limbo, pois é um lugar sem nome, um tipo de "em cima do muro".

Esse limbo é um lugar povoado então por pessoas insatisfeitas de vários tipos que ficam
oscilando entre incursões no Universo BDSM e regressões ao Mundo baunilha.

As pessoas que rompem o casulo passam a habitar este limbo e a maioria termina o habitando
de forma definitiva. Estes habitantes são pessoas que oscilam de proximidade entre o Universo
BDSM e o Mundo Baunilha.

Quando no Universo BDSM, sistematicamente tentam se fixar, tanto em relações de domínio


quanto de posse. A tentativa invariavelmente é infrutífera, pois relações BDSM não se
sustentam quando moldadas com valores do Mundo Baunilha.

Ao fazer o caminho inverso voltando ao mundo baunilha buscam sufocar sua natureza, a
reprimindo de forma completa e varrendo tudo para debaixo do tapete das aparências. Isso
até funciona bem... mas por pouco tempo. Esse ato de repressão da própria natureza é
exatamente o que a música "Quase Sem Querer" do Legião Urbana diz quando fala no verso
"que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira".

Depois de tocada pelo Universo BDSM, a pessoa nunca mais será a mesma. E essa sujeira
acumulada debaixo do tapete formará um calombo impossível de esconder. Em algum
momento, esse falso equilíbrio colapsa e a pessoa é arremessada de volta para o limbo.

O certo, tanto na mudança para o BDSM quanto para algum outro país, é pesquisar e procurar
absorver de verdade a nova realidade que pretende viver, o que quase ninguém faz.

No Universo BDSM, os perdidos fazem uma sequência interminável de lambanças pela mistura
de valores e despreparo. No Mundo Baunilha, assumem uma postura de tentar treinar
baunilhas para atividades BDSM, coisa que é no mínimo perigosa, tal qual alguém se metendo
a ensinar sobre coisas que não aprendeu. E uma vez no limbo, o máximo que irão conseguir é
trazê-lo para o mesmo lugar que se encontram.

Não dá certo tentar "fabricar o parceiro". Funciona melhor apresentar este novo mundo e
deixar que faça suas próprias pesquisas e descobertas.
E terminei a conversa assim...

“Não se sinta só... nesse limbo... muitos não conseguem isso rápido... saem da casquinha
baunilha... estendem as asas... mas não têm coragem para voar... Aí ficam nesse meio termo...
nesse limbo... Por um lado você não cabe mais na casquinha baunilha... por outro, as asas
pesam se não forem usadas... e você fica assim... arrastando suas asas... perdida.”

Infelizmente, não existe uma cura para a dor ou um atalho seguro que torne essa transição
menos traumática. E dói... dói muito. Mais para uns do que para outros... mas dói.

A única coisa certa é que é uma viagem interior. Uma viagem única, na qual cada indivíduo vai
encontrar as suas próprias respostas. E a dica que dou é a seguinte:

Aos candidatos a dominadores digo que estão se metendo em algo muito maior que supõem
inicialmente. Não é porque colocaram um Dom, Mestre ou Lord em seus nomes, que estão
preparados para atuar. Ou que basta uma submissa utilizar as suas iniciais no apelido
(nickname) ou no pescoço, para serem considerados dominadores de verdade e respeitados
pelos poucos que levam isso tudo muito a sério.

Meninos com cara de mau e pegada forte sobram por aí e para chegar a ser um Dominador
Sênior respeitado pelos outros Dominadores verdadeiros é uma estrada longa e cheia de
obstáculos. Um aprendizado que não tem fim.

Enfim dominar é fácil, possuir é muito difícil.

Aos candidatos a submissos tudo é relativamente mais fácil, pois enquanto que para ser um
dominador o indivíduo tem que aprender a ser um bom professor e como um bom professor
precisa ter uma boa formação familiar, uma boa escola com bons professores e mesmo assim,
nada garante que este venha a ser um bom professor depois de formado. Um dominador
assim como um professor precisa da experiência de vida atuando para se aperfeiçoar e evoluir.

Já os submissos são como alunos e para ser um bom aluno, basta ter uma boa criação restando
apenas que tenha o bom senso e a capacidade de escolher o professor.

Uma coisa é importante para ter em mente e o foco nela pode evitar muitas dores. O Universo
BDSM ocorre quando existe HIERARQUIA na relação entre as partes, sejam lá quantas forem.
Alguém que se completa exercendo poder sobre alguém que se completa se submetendo
diante desse poder

Relações BDSM ocorrem de duas maneiras basicamente. Dominador/dominado e


Possuidor/posse. Sendo a primeira algo como as relações casuais e o namoro se comparadas
ao Mundo Baunilha. A segunda forma é algo mais complexo, pois envolve um nível de conexão
muito mais forte e é comparado ao casamento do mundo baunilha, só que mais profundo, pois
envolve a responsabilidade sobre a integridade tanto física quanto psicológica do parceiro.

Sendo assim, não existe a necessidade e nem é algo saudável que uma relação BDSM comece
já no formato de possuidor/posse. Isso só funcionaria com alguma chance em relações que
começam entre pessoas já casadas.

O melhor caminho é o de encontrar de encontrar bons parceiros, que podem ser desde um
amigo, até alguém com quem não se possua uma relação direta. Desde que confie no parceiro,
poderá entregar a este a condução de sua trajetória de transição, lembrando também que em
qualquer relação o poder dado também pode ser retirado a qualquer momento.

Conclusão

O exemplo que dei a minha amiga é o que me veio à cabeça instantaneamente.

"Depois que saímos da casca e estendemos as asas, a transformação foi completa. Quem foi
tocado pelo universo BDSM nunca mais será o mesmo. Não se consegue voltar para a
casquinha baunilha... a dor é maior... e sempre alguma parte termina ficando para fora."

Uma solução inteligente é que se encerra na expressão popular “queime os navios”. Um


movimento estratégico usado mais de uma vez na história, sendo o de Cortês em sua aventura
de incursão no Continente Americano um dos mais conhecidos. Ele simboliza o fato de que ao
aportar no Novo Mundo do BDSM você se obriga a encarar o desafio de ir em frente e crescer.

Só que... existia uma Espanha para Cortês e seus soldados voltarem.

Quem inicia esta viagem ou aporta no novo Mundo do BDSM... ou está condenado a vagar
perdido pelos oceanos do limbo.
A decisão de ficar no limbo ou bater as asas e voar depende de cada um. É uma viagem sem
volta e a resposta está dentro de você.

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