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Lições de Fernando Pessoa para um Elogio da Civilização Brasileira

José Eisenberg (IUPERJ)

Não conheço na história da língua portuguesa, ainda que equivalentes em outros

vernáculos não faltem, pensador da política mais inusitado do que Fernando Pessoa.

Pensar a política nunca foi sua vocação principal, mas seu pensamento expressa a

complexidade dos grandes pensadores políticos de seu tempo e uma supreendente

capacidade de combinar idéias advindas de um conservadorismo aristocrático e um crítica

à modernidade política das mais astutas e provocantes. Mas que lições pode um poeta

português no dar para compreender a civilização brasileira, e em particular as suas

virtudes?

A contribuição de Fernando Pessoa a esta discussão, entretanto, resulta de uma

característica muito particular do seu pensamento político. Ele pensa e reflete sobre o

Portugal enquanto civilização, e seu ceticismo e pessimismo quanto ao futuro dela são

evidentes, seja nos momentos em que enxerga um futuro político mais imediato para o

país, como durante o curto governo de Sidônio Pais, seja quando teme por aquele futuro,

como durante a ascensão de Salazar ao poder. Ao construir um discurso da negatividade

da experiência civilizatória portuguesa no período moderno, Fernando Pessoa

curiosamente constrói uma imagem de uma outra civilização, para ele desejável,

enunciada na forma de uma utopia enrustida, que para nós talvez sirva como um ponto de

partida inovador para entender a civilização brasileira, um contraponto marcante da

experiência lusitana.

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O Brasil é surpreendentemente ausente das reflexões políticas de Pessoa, bem

como os pensadores brasileiros, até mesmo aqueles que circulavam pela Europa do

começo do século vinte. Ricardo Reis o árcade parnasiano bucólico. Mas há naquelas

reflexões algo de profundamente instigante para pensar a nossa civilização. É isto, ao

menos, que eu gostaria de explorar neste texto.

O conceito de civilização – Elias

Uso alemão da palavra Kultur em vez de civilização (termo caro a franceses e

ingleses) – nossa tradição é meio germânica neste sentido (Elias).

Colingwood

Foram muitos os pensadores sociais brasileiros que refletiram sobre esta temática,

sempre em busca das especificidades de nossa experiência histórica e como ela nos

permitiu uma outro tipo de inserção no curso da modernidade, mas poucos foram aqueles

que se debruçaram sobre o tema utilizando como veículo o conceito de civilização. Uma

das raras (e gratas) exceções é Affonso Arinos, cujo capítulo inicial de Conceito de

Civilisação Brasileira, entitulado “Cultura e Civilisação” procura balizar sua interpretação

do problema nacional naquele conceito.

1. “ A transformação deste depositio de materias primas em uma estrutura logica,


concentrada, que seja ao mesmo tempo uma explicação do passado e uma
indicação do futuro, eis a passagem da Historia do Brasil para o que chamaremos
Historia da Civilisação Brasileira” (p. 19)
2. Encarar o conceito de civilização sob o seu aspecto cientifico, isto é, historico:
“diremos que as civilisações são as super-estructuras apparentes, que resultam da
elaboração invisível, profunda e causal das culturas.” (23) (Explicita que super-
estrutura é terminologia marxista).
3. Cultura precede civilização e é a causa de seu aparecimento.

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4. “A caracteristica differencial que separao processo cultural do processo civilisador
é que o primeiro tende para aquillo a que creio podermos chamar a ‘naturalisação
do homem’, emquanto o segundo realisa precisamente o inverso, isto é: a
‘humanisação da natureza’” (29) Na cultura, homem submete o mundo por meio
da “revelação e do conhecimento do mundo” (filosofia, ciênciam religião, arte,
literatura) enquanto que na civilização esta submissão se dá pelo “aproveitamento
do mundo” (técnica, expressa nas organizações políticas, economicas, sociais, no
direito, ciências aplicadas, e geografia humana).
5. Cultura – realização dos valores vitais. Civilização – realização dos valores culturais,
que contém uma teoria da vida social (36-7)
6. Características da civilização brasileira: “a salvação pelo acaso” (157ff.)

Em suas esparsas notas de pensamento político (coletadas em dois volumes por

Antônio Quadros, pela Ed. Europa-América, na coleção Livros de Bolso), o poeta Fernando

Pessoa apresenta-nos uma proto-sociologia da estratificação social com base na filosofia

política adotada por cada estrato. Segundo Pessoa, são em número de três os grupos

sociais: os indiferentes, os equilibrados e os desequilibrados. Os indiferentes não contam

politicamente. Individualistas, filhos de um liberalismo pouco complexo e sem raízes nas

culturas particulares em que esta doutrina floresceu, os indiferentes representam a perda

do sentimento social.

Os equilibrados se dividem entres os conservadores e os liberais. Os conservadores

pretendem o progresso político através de alterações sociais dentro dos moldes políticos

vigentes. Burkeanos, defendem a sabedoria dos costumes e das instituições vigentes e a

prudência nas adaptações a elas introduzidas. Já os liberais aceitam uma progressiva

alteração dos moldes políticos vigentes. Racionalistas, calculistas, sabem o mundo que

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querem e de que precisam, mas herdeiros que são da tradição da liberdade, impõem

limites definitivos ao empreendimento de reforma que buscam.

Finalmente, os desequilibrados se dividem entres os reacionários e os radicais. Os

reacionários pretendem estupidamente conservar tudo e manter a vida social sem

progresso e inalterada, e aceitam o uso da força e da violência para estes fins. Sua miopia

consiste em não enxergar “ser coerente é uma doença” e que a lógica social requer, antes

e acima de mais nada, a disposição adaptativa para a mudança. À miopia dos reacionários

corresponde o estrabismo dos radicais, que querem transformar tudo in toto, até mesmo

com o uso da força e da violência. Desequilibrados desprezam o progresso e a evolução.

Eles não entendem, em suma, o que é uma civilização.

Escrevendo antes do drama da deposição de Sidônio Pais, de quem era partidário,

Fernando Pessoa anuncia que tem “uma saudade imensa de um futuro melhor”.

Interpreta o Portugal da transição para a República como uma nação atrasada,

particularmente porque nela vingava um tipo de nacionalismo prejudicial ao

desenvolvimento de uma civilização que já houve, pelo menos nos tempos de Bandarra e

do Rei Encoberto. Portugal havia abandonado a sua trajetória gloriosa, e perdido portanto

uma nacionalidade tradicionalista, cuja substância consiste em qualquer ponto do

passado; onde a vitalidade nacional reside na continuidade histórica com aquele ponto. O

nacionalismo português dos que depuseram Sidônio Pais também não era integral, pois

não estava definido por certos atributos psíquicos e pela sua imanência e permanência.

Portugal, para Pessoa, era um país sem conflitos culturais, onde apropriava-se

esquizofrenicamente valores advindos da França ou da Inglaterra, e o que produz

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civilização, para ele, são precisamente estes conflitos culturais, que permitem a formação

de um nacionalismo sintético, que combina de maneira singular as influências do jogo

civilizacional. Uma civilização precisa, em outras palavras, de seus indiferentes, de seus

equilibrados e até mesmo de seus desequilibrados.

Parece-me que a “saudade imensa de um futuro melhor” de Pessoa talvez tenha

encontrado expressão em um Brasil que ele não pôde testemunhar, pois encontrava-se

tempos à frente. Em nosso país, o jogo civilizacional e os conflitos culturais que o definem,

são uma constante, e não é à toa somos que singulares por isto. Fosse Pessoa leitor de

nosso pensamento social, teria encontrado dicas neste sentido em Nabuco, por exemplo.

Leu Comte, no entanto, e irritou-se com o conceito de ordem por ele elaborado. Para

Pessoa, a preocupação com a ordem é por definição, uma preocupação de sociedades em

desordem. Era natural que tivesse surgido na França, sociedade tomada de uma doença

social alemã, o romantismo.

No Brasil, no entanto, a recusa da ordem faz parte integral do nosso jogo

civilizacional. Aqui, recusamos conferir à politica, à religião e até mesmo a vida social o

estatuto de locus privilegiado para o desenvolvimento deste jogo. Isto seria conferir a

nossa nacionalidade o seu primeiro traço de ordenação imperativa. Aqui, sabemos, como

sabia Pessoa, que estas esferas são apenas lugares que competem pelo privilégio de inibir

os nossos instintos. “Quando é que despertaremos para a justa noção de que a política,

religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética – a estética dos que

ainda a não podem ter?”, pergunta o poeta. A guerra é o lugar onde florescem os instintos;

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a civilização é onde eles devem ser inibidos. Mas sua reclusão a uma esfera particular os

domesticaria da forma errada. Como nos lembra Pessoa,

toda vida social, no que política, se resume primariamente, na espontânea cisão


funcional (e como vai ver-se, é necessariamente estrutural) dos indivíduos em
governantes e governados; e, por isso, o único aspecto sociológico do poder
político cifra-se na consideração de como em qualquer sociedade os governantes
se formam, se diferenciam, e se relacionam com os governados.

E assim é também a religião; portanto, nem a política, nem a religião, e nem a vida social

(como um todo orgânico) são capazes de comportar este jogo civilizacional. Neles não

pode florescer a estética “dos que ainda a não podem ter”; neles frui a estética dos que já

a tem.

No Brasil, outorgamos somente aos lugares onde pode crescer uma cultura política

popular o privilégio de gerarem a estética “dos que ainda a não podem ter”. A nossa

dialética negativa, nas palavras de Werneck Vianna, é a recusa permanente de dar

completude a nosso processo de modernização. Nem incompleta, nem atrasada, a nossa

modernidade é inconclusa, e o nosso jogo civilizacional está armado de maneira a garantir

que assim permaneça, como nos lembra Maria Alice Rezende de Carvalho. (elaborar)

Aqui, desde os tempos em que Pessoa pensava sua tipologia de grupos sociais,

temos os nossos indiferentes, equilibrados e desequilibrados. Há os nossos indiferentes,

um povo civil, na classificação dos três povos feita por José Murilo de Carvalho, “ignorante,

analfabeto, doente, um Jeca Tatu”, filho bastardo de um liberalismo caboclo e que jamais

foi devidamente incorporado ao jogo civilizatório. Temos também os nossos equilibrados,

conservadores ou liberais, constituindo o povo das eleições e das estatísticas, massa

passiva de manobra e sempre disposta a legitimar o jogo do qual participam

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marginalmente, sempre defendendo movimentos reformistas com maior ou menor vigor,

desde que permitam a nossa “modernização sem mudança”. O lado positivo da ação social

dos nossos desequilibrados, por sua vez, aqueles a quem José Murilo de Carvalho chama

de povo na rua, “fanático, ou obscurantista, ou desordeiro”, passou sempre desapercebido

pelos pensadores da nossa sociedade; afinal, em nosso país, a lógica do jogo civilizatório

sempre esteve nas mãos de gente equilibrada, mesmo em seus momentos mais violentes

e menos nobres, se comparados a momentos semelhantes em outros lugares. Alhures,

clientelismo, corporativismo e autoritarismo sempre estiveram vinculados a gente

desequilibrada e povo na rua. Aqui, no entanto, sempre estiveram ligados a momentos

cruciais da nossa modernização e mesmo à sua resistência. É verdade que as nossas

instituições democráticas não são consolidadas; mas isto não é porque somos

incompletos, atrasados ou deformados. Queremos e gostamos assim. Queremos que o

jogo da civlização brasileira tenha regras sempre abertas, passíveis de revisão, e não

permitiremos que a política, a religião, nem mesmo a vida social como um todo, colonize

este jogo. Segundo Pessoa, mais uma vez, “o grande mal dos modernos é ter perdido o

senso comum sem terem aprendido a raciocinar.” A razão que viria suplantar aquele senso

comum nunca se consumou, e ficaram os povos do Norte sem uma coisa nem outra. No

Brasil, peo contrário, não perdemos o senso comum nem abdicamos de aprender a

raciocinar. Aqui sabemos muito bem que, para reter o senso comum, precisamos nunca

nos deixar iludir pela idéia de que já aprendemos a raciocinar. Operamos com um

permanente redescobrimento da tradição como fonte de inspiração para transformar o

presente. Aqui, não esperamos pelo retorno do Encoberto, nem pelo novo profeta que

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dirá quando ele virá. Aqui, desencobrimos todos os reis e denunciamos todos os profetas,

e escrevemos assim, a nossa história do futuro. Nossa sabedoria maior é uma “saudade

imensa de um futuro melhor”.

Esperança - certeza incerta

Medo – incerteza certa

Esperança de um futuro melhor – coisa de desequilibrados (radicais e reacionários)

Medo de um futuro pior – coisa de equilibrados (conservadores e liberais)

Saudade – o que significa substituir uma esperança de futuro melhor por uma saudade de

futuro melhor?

Medo e esperança em relação ao futuro convertem a paixão em operação da razão –

Saudade opera no registro das paixões também, mas não é convertida em operação da

razão. A ação que dela segue é apaixonada strictu sensus.

Saudade: “solidão e salvação acompanhada de saúde”, “causa um mal que se gosta e um

bem que se sofre. Tristeza e alegria se encontram.” (Helena D´Elia)

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Solidão - repouso/recuo – interrupção do curso de ação e reconstrução de uma

diálogo interno com o tempo ou espaço distante antes de um novo ato (realizável ou não)

cujo principal atributo é ser apaixonado. Se não realizado (o ato), saudade ou gera

melancolia e tristeza se sobrepõe à alegria, ou saudade gera ‘salvação acompanhada de

saúde’ em repouso. Este repouso converte o ator em um indiferente. Se realizado, alegria

se sobrepõe a tristeza, e saudade gera salvação, mas nem sempre acompanhada de saúde.

Agora, se esta saudade não é de um tempo ou espaço distante que reside na

memória mas de um tempo ou espaço distante projetado em um futuro, residindo

portanto na imaginação, o momento de repouso/recuo ocasionado pela saudade constroi

um dialogo interno com algo que ainda não há mas que se deseja. Se não segue uma ação,

saudade ou gera melancolia e tristeza se sobrepõe à alegria, ou gera ‘salvação

acompanhada de saúde’ em repouso. Ator diferente novamente. Se realizado o ato, o

passado é reescrito como futuro possível e desejável, e a memória, através de uma

reconstrução da tradição, opera como moderadora das projeções para o futuro. A alegria

se sobrepõe à tristeza, e a saudade gera saúde mas não necessariamente salvação, pois

enquanto que no caso da saudade do passado, este reside prisoneiro de uma reconstrução

na memória do sujeito que o permite a salvação solitária, ainda que capaz de produzir dor,

a saudade do futuro alivia a dor do momento de repouso sem produzir necessariamente a

salvação que, neste caso, reside em um mundo em que a solidão não é capaz de produzir

o futuro melhor, fruto necessariamente da articulação das interações deste sujeito.

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