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Educação Patrimonial na Casa de José de Alencar/CJA: relato de uma experiência teórica-

prática

FREDERICO ANDRADE PONTES1

MÁRCIA PEREIRA DE OLIVEIRA2

Grande é a força da memória que reside no interior dos locais


Cícero

“-Não disse Tia! Que aqui era um cemitério!”. Assim, um aluno da 1a. série do ensino
fundamental que pela primeira vez visitava o local, se referiu a Casa de José de Alencar/CJA. Não
sabia ele que aquelas placas de metal enterradas em frente as árvores não eram lápides e sim
homenagens e informações científicas sobre as plantas. O caso, que não é inédito, já que outras
crianças também tiveram a mesma impressão, nos parece apropriado para construção de uma analogia
sobre uma das formas de percepção do patrimônio histórico, que se refere a visão “monumentalista”
que marcou, durante décadas, as políticas de patrimônio no Brasil.

As ações voltadas para monumentos e visando a conservação de sua integridade física, as


políticas de patrimônio centradas no instituto do tombamento certamente contribuíram para
preservar edificações e obras de arte, cuja a perda seria irreparável. Contudo, esse
entendimento da prática de preservação terminou por associá-la às ideias de conservação e
de imutabilidade, contrapondo-a, portanto, à noção de mudança ou transformação, e
centrando a atenção mais no objeto e menos nos sentidos que lhes são atribuídos ao longo
do tempo. (FONSECA, 2009, p. 66)

Na realidade, a Casa de José de Alencar foi tombada pelo Departamento do Patrimônio


Histórico Nacional/DPHAN, em 1964. Naquele período ainda prevalecia, apesar de alguns avanços
conceituais, a perspectiva do patrimônio “pedra e cal”, enfatizando assim o aspecto da materialidade
como condição fundamental para o tombamento dos considerados bens culturais.

1
Historiador graduado pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestre em História pela mesma instituição
em 2014. É servidor da Universidade Federal do Ceará (UFC) desde 2004 e dirige a Casa de José de Alencar desde
2013.

2
Museóloga formada pela UNIRIO em 2002. Mestre em Museologia e Patrimônio pela mesma instituição em 2014.
Desde 2004 é servidora técnica administrativa da Universidade Federal do Ceará e está lotada na Casa de José de
Alencar.
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Em relação à Casa, essa característica é claramente obvia, já que não bastando preservar a
pequena casa que nasceu no início do século XIX, foi construída uma nova e grande edificação
seguindo linhas arquitetônicas do período colonial, sendo inaugurada em 1966, com a abertura do
espaço para a visitação pública.
Esse processo inicial de monumentalização ocorrido no local reforça as percepções
relacionadas a política de “pedra e cal”, acima destacadas, como a imutabilidade, o foco no objeto, a
limitação dos sentidos vinculados à experiência cultural. Interessante perceber que essa percepção
corrobora a ideia de bem tombado como monumento sacralizado para a contemplação e veneração
de um passado, geralmente relacionado a fatos e personagens memoráveis de nossa história.
Nesse sentido, as ações educativas patrimoniais são elementos importantes para fomentar
mudanças de perspectiva em relação ao patrimônio “sacralizado”, porém antes de avançarmos na
questão educativa patrimonial, é necessário realizar uma análise retrospectiva do percurso histórico
da Casa, sendo importante destacar alguns elementos fundamentais na construção desse caminho. A
historicidade da Casa e o processo de implantação do projeto de educação patrimonial na Casa José
de Alencar.
A historicidade desse espaço nos traz a possibilidade de perceber as intencionalidades
relacionadas as políticas e ações promovidas ao longo de sua existência enquanto patrimônio histórico
tombado e equipamento cultural pertencente à Universidade Federal do Ceará.

A Casa José de Alencar – memórias de um patrimônio

A aura que confere ao local de memória seu caráter consagrado não é traduzível em
monumentos quaisquer, ainda que moldados por mãos hábeis. Eles são conformados por
mãos humanas e pela consciência das pessoas; suas mensagens são cartas de pedra que
destinam à posteridade um conteúdo memorativo determinado(ASSMANN, 2011, p.347)

Às margens da Avenida Washington Soares (via acesso às praias do litoral leste do estado),
número 6055, no bairro de Messejana, cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, localiza-se a Casa de
José de Alencar (CJA). Também conhecida como Sítio Alagadiço Novo, foi o berço de José de
Alencar, local onde o escritor viveu até os nove anos de idade quando seu pai, o então presidente da
província do Ceará, José Martiniano de Alencar, foi nomeado Senador do Império. A propriedade da
família ficou com a irmã caçula do escritor que lá residiu até seu falecimento.
Casada pela segunda vez e sem deixar filhos, D. Joaquina Carolina, deixou a propriedade de
herança para seu segundo marido que, em 1936, vendeu o prédio, chamado carinhosamente de

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“casinha”, para a prefeitura de Fortaleza para ser um espaço dedicado à memória do autor de Iracema
e o Guarani. Por alguns anos ficou sob a tutela do Instituto Histórico do Ceará. Durante algum tempo
algumas autoridades públicas e intelectuais de Fortaleza tentaram promover ações educativas e
culturais para o local. Um exemplo foi a implantação de uma escola de Ensino Fundamental na década
de 1930. Projeto que encontrou obstáculos como o acesso difícil ao, então, distante bairro de
Messejana.
Sobre o período de 1929 a 1964, as poucas informações disponíveis apontam para as tentativas
de implantação da escola no prédio tombado, muitas denúncias de abandono do imóvel e a ameaça
de loteamento da área no entorno do já patrimônio municipal.

A pequena casa formava conjunto com a casa grande, hoje inexistente, e com a casa de
engenho, em ruínas. Sua construção é simples, com piso em tijolaria, paredes em tijolo e cal,
madeiramento em carnaúba tipo caibro junto e cobertura telha vá. Apresenta um só nível e
telhado em quatro águas, com acabamento em beira-seveira. As fachadas não possuem
qualquer elemento decorativo. Independente do seu valor histórico, a edificação apresenta
“alto significado arquitetônico”. Documenta-nos o “estágio evolutivo do emprego da
carnaúba como material de cobrimento nos primeiros anos do século passado, período
provável de sua construção.(Guia dos Bens Tombados do Ceará, 1995, p. 67)

Na descrição do Guia de Bens Tombados do Ceará percebe-se a importância dos aspectos


arquitetônicos referentes à construção da Casa, que “independente do seu valor histórico” revelam-
se fundamentais. Na realidade, não encontramos no Ceará bens tombados com essas características,
pois a simplicidade da construção por si só não chamaria a atenção, pelo menos naquele período, do
Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Se José de Alencar não houvesse nascido
nesta casa, ela teria sido tombada? Se o presidente Castelo Branco não tivesse solicitado ao DPHAN
o tombamento da casa, ela ainda estaria de pé? Para a Educação Patrimonial estas questões são de
suma relevância para se compreender a historicidade do patrimônio histórico. E essa historicidade
percorre diversos caminhos que são revelados em diferentes fontes históricas.
Reportagens de diversos jornais de Fortaleza, cartazes, regulamentos e um pequeno, porém,
significativo, acervo de fotos do equipamento ilustram e fornecem dados acerca das atividades e das
características da CJA nos últimos quarenta anos. Segundo o material levantado, o equipamento foi,
por algum tempo, um espaço de fomento à literatura e às manifestações culturais: competições
literárias, encontros, palestras, seminários e reuniões cujo tema mais frequente foi a literatura,
especialmente, a literatura alencariana.
Não obstante, gostaria de destacar no presente artigo as memórias dos servidores da ativa com
mais de 30 anos de serviço na Casa, que foram entrevistados em 2009. Vale, a priori, lembrar que
segundo Meihy(MEIHY, 2012 ,p. 412) “o trabalho em história oral demanda a consideração de
pessoas comuns e de um imaginário coletivo que carrega, muitas vezes, enredos fantásticos, fiados

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com outros critérios de razão, sempre emocionais, apaixonados e instalados na intimidade de vidas
comuns.”
Dentre os depoimentos gravados está o do jardineiro José Maria Silvestre Farias. Mais velho
entre os entrevistados, “Seu Zé Maria”, assim como os demais servidores, mora no bairro de
Messejana. Ele nasceu no interior do Estado e chegou à Fortaleza em 1952, com oito anos de
idade. Vizinho da “casinha” e do que viria a ser equipamento cultural da universidade, ele descreve
o entorno do imóvel e afirma que, quando chegou, a área era ocupada por famílias que mantinham
suas plantações e animais até a desapropriação na década de 1960. Antes de ser jardineiro, ele
trabalhou como servente de obra e foi como servente que teve seu primeiro contato com o
equipamento. Antes de ser servidor, foi contratado para trabalhar na construção do prédio que hoje
abriga a sede administrativa.
Segundo “Seu Zé Maria”, as obras foram ininterruptas, os operários trabalhavam dia e noite.
O exército providenciava e preparava a comida dos “peões”. Iluminados pela luz de geradores que
levavam a energia elétrica do centro de Fortaleza para o bairro rural de Messejana, os serventes e
mestres de obras trabalhavam noite adentro. Também é deste servidor a descrição da flora e fauna
existentes na CJA. Em um trecho da entrevista Seu Zé Maria diz que: A natureza é boa. Dá coisa aqui
dentro, (...). Dá camaleão, dá preá, dá teju (...). Também passarim. Aqui era cheio de passarim.
Também sabiá. A negrada começou a pegar as bichinhas, foram embora tudim (OLIVEIRA, 2009, p.
9).
Continua sua narrativa dizendo que “tem ali aquela árvore, tem a jurema preta. A jurema que
é bem ali assim” (aponta para uma árvore que fica nos fundos da “casinha”). Também informa as
plantações de milho, mandioca, feijão batata e macaxeira, mantidas por funcionários. Mostra
cajueiros, mangueiras, jambo, romã, ata, acerola, goiaba, limão, laranja, romã, jucá, algaroba, jatobá.
Durante a entrevista fizemos um passeio pelo sítio, ocasião em que o jardineiro nos mostrou pitanga,
timbaúba, coqueiro, ingazeira, pitomba, jamelão, xixá, jasmim.
José do Carmo Rodrigues, servidor desde 1977, conta que foi contratado por firma terceirizada
para trabalhar no restaurante de comidas típicas que funciona logo na entrada da CJA. Em seu
depoimento “Zé do Carmo” fala dos seminários promovidos pela UFC e pela Universidade Estadual
do Ceará (UECE), também de encontros e palestras das secretarias de saúde e educação entre outros
eventos.
Ele destaca que na época em que chegou o diretor era um servidor técnico administrativo
chamado Francisco Paiva. Na direção de Paiva aconteciam, dentro do equipamento, as danças de São
Gonçalo, “que tinha as dança do facão, da caninha verde, aquelas coisa né?”.
A direção de Romeu Cisne Prado foi marcada por uma série de encontros culturais. São
encontros lembrados não apenas por servidores da casa, mas de toda a UFC. Além das memórias
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daqueles que assistiram tais eventos, contamos com as notícias dos jornais da época. Para esses
encontros o diretor levava artistas como Patativa do Assaré e a Banda Cabaçal. Alguns artistas eram
hospedados na CJA. Havia dois quartos com banheiro, onde hoje funciona a Biblioteca Braga
Montenegro. Além dos artistas ficavam hospedados professores, reitores e intelectuais convidados
para eventos da Universidade Federal do Ceará.
Tereza Lúcia Maia de Oliveira, servidora desde 1982, atualmente trabalha no atendimento ao
público e lembra que os eventos duravam dois dias (inicialmente eram três). Neles, além das
apresentações dos artistas, ocorriam feiras de artesanato e venda de comida regional. Naquela época
a CJA fazia parte do roteiro turístico das agências de viagem. Destaca Tereza Lúcia que os ônibus das
agências de turismo passavam por lá quando iam para os passeios nas praias de Morro Branco, Iguape
e Canoa Quebrada: E como na época não havia (...) não era duplicada o acesso (da Perimetral) era
mais fácil. Eles podiam parar do outro lado da rua. Descia todo mundo a pé, dava uma carreirinha
passava por aqui rapidinho, né? (...) Eles paravam aqui e visitavam. Quando não era na ida, era na
volta, (...). Era assim mesmo, em torno de quinze ônibus por dia de turista de fora do Estado daqui do
Ceará, (OLIVEIRA, 2009, p. 12).
Tereza, que também foi responsável pela manutenção do complexo, destaca que a distância
da Reitoria e de outros campi dificultava o acesso a materiais e serviços necessários ao funcionamento
do equipamento. O fechamento do restaurante, o fim dos eventos culturais e a proibição de cobrança
de ingresso associados a uma época de extrema dificuldade financeira das Instituições Federais de
Ensino Superior (IFES), não apenas no Ceará, mas em todo o Brasil, dificultaram a manutenção das
áreas construídas e de seu entorno.
Outro problema enfrentado pela Casa de José de Alencar, foi a queda do número de visitantes.
Uma das razões apontadas para essa queda, na década de 1980 foi a construção, na cidade Aquiraz,
do famoso parque aquático, Beach Park. Segundo Tereza Lúcia, inicialmente, para chegar ao
complexo turístico, os ônibus ainda passavam em frente a CJA. Na década de 1990, as estradas
melhoraram e os ônibus passaram a contar com um novo acesso ao Beach Park. Atualmente há uma
saída dois quilômetros antes da CJA, para quem sai de Fortaleza para o parque aquático. O fim da
referida década de 1990 e início dos anos 2000 foram marcados por dificuldades financeiras e
estruturais que só começaram a ser revertidas a partir do ano de 2004.
Dentro da casa também funcionou a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Iracema
ou, como é carinhosamente chamada, “Escolinha Iracema”. Fundada na década de 1960 a Escola
Iracema, funcionou em uma pequena sala dentro da casa do Senhor Francisco Costa, também
conhecido como “Seu Chico”.
O aumento da procura de vagas tornou inviável a permanência da escola dentro da casa de
“Seu Chico”. Sendo assim, a diretora e fundadora da instituição de ensino, a Sra. Francisca Vieira de
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Oliveira, ou “Tanisa” para os mais próximos, conseguiu junto à universidade a cessão do porão da
Casa de José de Alencar. No local onde hoje funcionam a secretaria e a direção da CJA, a Escola
Iracema esteve por dois anos. Segundo funcionários, a Escola “Iracema” e a CJA dividiram o mesmo
espaço até 1979/1980. Época em que um hectare do Alagadiço Novo foi cedido por empréstimo ao
estado para a construção do prédio que hoje abriga a Escola Estadual.
O equipamento atualmente funciona em sete hectares arborizados; um oásis verde dentro da
malha urbana da capital cearense. O texto de seu estatuto mostra que, a CJA foi criada para ser um
centro de memória dedicado ao romancista José de Alencar e um local de fomento a literatura
cearense. Nele estavam previstos a criação e manutenção de uma biblioteca com obras do e sobre o
escritor, uma pinacoteca com obras criadas a partir dos romances alencarianos, além de um museu
composto por móveis e utensílios de Alencar e sua família. Apenas a pinacoteca saiu do papel.

O projeto de Educação Patrimonial da Casa de José de Alencar

No início de 2009, ao iniciarmos um programa de ações para promover a Casa de José de


Alencar, percebemos um ambiente com enorme potencial educativo, recreativo e turístico, porém
extremamente subutilizado em seus diversos aspectos. Nesse momento, a Casa não abria aos fins de
semana, seu restaurante estava desativado, não eram realizadas exposições temporárias, a visitação
média anual não passava de 10.000 visitantes, apenas duas escolas em média visitavam a Casa
semanalmente, não eram desenvolvidos projetos que envolvessem a comunidade do seu entorno, não
existiam projetos culturais e educativos permanentes, a Biblioteca possuía poucas publicações
relacionadas a obra alencariana e os espaços expositivos estavam subaproveitados.
Além disso, a Casa possuía diversos problemas estruturais potencializados na década de 1990,
por ocasião da grande diminuição de recursos das Instituições de Ensino Superior Federais, que
advinham do Ministério da Educação. Somente em 2008, iniciou-se um efetivo processo de ação
preventiva na área de manutenção da Casa de José de Alencar, com a instalação de uma prefeitura da
UFC no espaço, que ficou responsável pelo serviço de manutenção da área interna e externa do
equipamento. Em consonância com estas mudanças, a gestão da Casa também sofreu transformações.
Não deixando de lado a missão institucional da Casa, que é a de preservar e divulgar a obra e
a vida do escritor José de Alencar, a Casa começa a desenvolver uma política de potencialização das
possibilidades de uso do espaço, inclusive apoiando projetos que envolvessem as comunidades do
seu entorno. Não obstante, a Casa diversificou suas ações para captação de recursos e parceiros,
elaborando projetos culturais, participando de editais de financiamento cultural, captando patrocínios
através de parcerias e principalmente desenvolvendo ações de comunicação que promovessem e
divulgassem o espaço, já que era quase desconhecido até mesmo para a comunidade universitária.
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Em relação à educação patrimonial, não se observa na história da Casa nenhuma ação que
pode ser concebida como educativa patrimonial, apesar de ser um patrimônio histórico tombado e
possuir um enorme potencial para a realização dessas atividades. Na realidade, por motivos que nos
foge o conhecimento, a Casa, nos últimos quarenta anos, apesar de desenvolver uma ação educativa
voltada para a disseminação e valorização da obra e vida do escritor José de Alencar, não fomentou
ações educativas focadas no patrimônio Histórico existente. Em relação a ideia de ações educativa
patrimonial, concordamos que

Toda vez que as pessoas e reúnem para construir e dividir novos conhecimentos, investigam
para conhecer melhor, entender e transformar a realidade que nos cerca, estamos falando de
ação educativa. Quando fazemos tudo isso levando em conta alguma coisa que tenha relação
com o nosso patrimônio cultural, então estamos falando de educação patrimonial(CABRAL
, 2012, p.40)

Não obstante, vale salientar que somente em meados da década de 1980 o termo educação
patrimonial começa efetivamente a ser utilizado no Brasil. Apenas em 1996, o IPHAN lança uma
publicação focada na Educação patrimonial, o “Guia Básico de Educação Patrimonial” apresenta
experiência práticas e conceituações teóricas sobre a ação educativa patrimonial, assim como,
corrobora uma proposta metodológica de educação patrimonial.
Nesse sentido, não nos causa tanto espanto o fato da Casa José de Alencar, patrimônio
histórico com tombamento realizado em 1964, não possuir projetos, ações ou práticas educativas
patrimoniais. Como percebemos nos relatos dos antigos funcionários, as alternativas de gestão
colocadas em prática nos últimos 40 anos, foram voltadas para uma ação educativa restrita à
construção do conhecimento em torno da obra e vida do escritor José de Alencar.
Em outra perspectiva de uso do equipamento, a Casa como local de realização de eventos
sociais e culturais. Sucintamente, esses dois aspectos foram o foco de atuação da Casa nas últimas
décadas, as outras potencialidades foram colocadas de lado.
A CJA conta, atualmente, com duas pinacotecas, a Sala Floriano Teixeira com pinturas e
desenhos do artista maranhense retratando as obras de Alencar e a Sala Iracema com nanquins do
cearense Descartes Gadelha. Estes artistas formam a Coleção de Artes Visuais. As obras do artista
maranhense radicado no Ceará, Floriano Teixeira, foram criadas sob encomenda, para a inauguração
da pinacoteca que leva o nome do artista e retratam em imagens trechos dos romances, contos e peças
de Alencar, em trinta e duas telas pintadas à óleo.
O cearense, Descartes Gadelha, executou também sob encomenda, em 2006, uma série de
desenhos inspirados em Iracema, o personagem mais conhecido de José de Alencar. A coleção é
formada por trinta e três desenhos à nanquim e óleos sobre tela.
Vale ressaltar a diversidade de outros bens culturais que pertencem a Casa José de Alencar,
mas não dialogam diretamente com as práticas educativas voltadas para louvação da memória das
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obras e vida de José de Alencar. O Museu Arthur Ramos com peças adquiridas para o Instituto de
Antropologia (IAUC) criado em 1960, como equipamento voltado para o estudo e solução dos
problemas do semiárido a partir dos pressupostos da antropologia aplicada.
Para o instituto foi adquirido um acervo eclético para a formação de um museu. Com a
extinção do IAUC em 1969 e a criação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, o acervo passou
por várias sedes, chegando a ficar fechado entre os anos de 1974 e 1979. Em 1981 foi transferido para
a Casa de José de Alencar onde se encontra até hoje.
As principais coleções são as formadas pelas peças coletadas e estudadas pelo antropólogo e
médico alagoano Arthur Ramos e por sua esposa Luíza. São objetos de rituais religiosos de umbanda
e candomblé, instrumentos de tortura, rendas, bilros, almofadas e piques utilizados como fontes
materiais para as pesquisas antropológicas de Arthur Ramos acerca do negro e o estudo pioneiro do
casal sobre a produção de renda de bilros. O levantamento pioneiro da produção deste tipo de
artesanato no país deu origem a importantes publicações e estudos de cunho sócio-histórico e cultural.
Considerando as especificidades da história deste patrimônio histórico, as práticas educativas
existentes atualmente e as potencialidades deste equipamento enquanto espaço cultural e educativo,
percebemos a necessidade da implantação de um projeto de Educação Patrimonial para a CJA,
considerando a casa como um espaço com enorme potencial cultural e educativo. Ressaltando que “o
espaço não é educativo por natureza, mas ele pode tornar-se educativo a partir da apropriação que as
pessoas fazem dele, ou seja, o espaço é potencialmente educativo. E o arranjo destes espaços não
deve se limitar a especialistas(arquitetos, engenheiros...) mas sim, deve ser prática cotidiana de toda
a comunidade de toda a comunidade”(FARIA, 2010, p.25)
Em 2014, iniciamos o projeto, que é cadastrado na Secretaria de Cultura Artística da UFC,
unidade administrativa que a Casa está vinculada. Inicialmente com a participação de 04 pessoas: o
diretor e a museóloga da CJA e dois bolsistas da UFC, um do curso de História e outra do curso de
Pedagogia. Tendo como principal objetivo formalizar e sistematizar as ações educativas-patrimoniais
no âmbito da Casa de José de Alencar.
Pretendemos com o projeto, utilizar a Educação Patrimonial como elemento catalisador de
práticas educativas nos espaços da CJA, servindo como elo entre as diversas possibilidades educativas
que podem ser oportunizadas nos espaços da Casa. Acreditamos que o adequado uso desses espaços
históricos e artísticos podem enriquecer o processo de ensino-aprendizagem de disciplinas como
História, Literatura e Arte-Educação.
Vale salientar que a Educação patrimonial pode também contribuir para a sistematização e
sustentabilidade das atividades educativas patrimoniais, através da futura formação do núcleo
educativo que orientará as atividades de guiamento de visitantes, pesquisas, aulas e produção de
material didático.
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Acreditamos que um dos motivos que ocasionam o baixo crescimento do número de escolas
que visitam a Casa de José de Alencar diz respeito à falta de um sistema formal de práticas educativas
patrimoniais que contribuam para a potencialização do uso dos acervos museológicos da Casa para
melhoria do processo ensino-aprendizagem entre alunos, professores e educadores patrimoniais.
Iniciamos os trabalhos desse projeto com reuniões, onde foi realizado a leitura de textos que
abordam os conceitos de Educação Patrimonial, ações de Educação Patrimonial, História e Memória
da Casa de José de Alencar e linha pedagógica que seria mais adequada. Após a leitura dos textos,
realizamos discussões acerca da teoria da Educação Patrimonial e o contexto da Casa de José de
Alencar. Nesse sentido, percebendo a complexidade do espaço e as diversas nuances envolvidas na
área patrimonial.
Na atualidade, a área do patrimônio engloba um conjunto significativo de questões de ordem
política, de relações de poder, de campos de força e âmbitos do social. Anteriormente alheio
a essa prática, hoje o patrimônio toma em consideração questões relativas a propriedade
intelectual, ao meio ambiente, aos direitos culturais, aos direitos difusos, ao direito autoral,
ao impacto cultural causados pelos grandes empreendimentos, além dos temas já tradicionais.
Como aqueles que envolvem questões de urbanismo e uso do solo, expansões urbanas sobre
áreas históricas decadentes, questões habitacionais em áreas históricas e, principalmente, os
limites que o tombamento impõe à propriedade privada.(CHUVA, 2014, p. 152)

Dessas discussões concluímos que o método de ação educativa patrimonial na Casa de José
de Alencar deveria ser fundamentado nos Eixos Cognitivos e Competências definidas nos Planos
Curriculares Nacionais de três disciplinas: Artes, Português/Literatura e História. Vale lembrar, as
palavras do professor Regis Lopes em relação ao olhar crítico sobre os PCNs no que tange a produção
de memórias e identidades.
A produção de memórias e identidades faz parte da defesa da pluralidade cultural. Sobre isso
os PCNs trouxeram um avanço significativo não somente para o ensino de história, mas para
própria prática educativa em sentido mais amplo. Mas, a produção de memórias e identidades
múltiplas não é tarefa do ensino de história. O que o saber histórico almeja é perceber a
historicidade dessas produções, localizando-as em conflitos socialmente
constituídos.(RAMOS, 2014, p. 239)

Nessa perspectiva, tivemos reuniões para discutir e refletir sobre os Planos Curriculares
Nacionais dessas disciplinas. A partir daí identificamos quais Eixos Cognitivos, Habilidades e
Competências poderiam ser trabalhados, considerando as especificidades dos acervos e do patrimônio
histórico, artístico e cultural da Casa de José de Alencar.
Após a identificação dos eixos, habilidades e competência, direcionamos nossa atuação na
perspectiva da ação educativa patrimonial na Casa de José de Alencar. A partir desses elementos
norteadores, discutimos quais ações seriam planejadas e realizadas com o intuito de favorecer a
interação entre os acervos e patrimônios culturais da Casa e o processo de aprendizagem dessas
habilidades e competências promovidas pela Escola e o professor que visitam a Casa de José de
Alencar.
Não obstante, outra questão central no processo de construção do projeto diz respeito ao
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método pedagógico norteador das ações educativas patrimoniais, nesse sentido de identificar a
metodologia que melhor se adequaria as potencialidades educativas da Casa, realizamos leituras sobre
o pensamento pedagógico e suas relações com a atividade educativa patrimonial. Nessa perspectiva,
analisamos experiências práticas relatadas em publicações, assim como, a metodologia sugerida pela
IPHAN. Optamos por seguir uma abordagem freiriana do processo educativo, principalmente em uma
concepção dialógica da construção do conhecimento, com a participação ativa dos visitantes na
construção do saber histórico crítico e desmistificador.(OLIVEIRA, 2015)
Para definição dessas ações, realizamos reuniões para discutir especificamente as
possibilidades de cada acervo e patrimônio cultural existente na Casa. Para isto, visitamos cada
espaço cultural e estudamos detalhadamente a história, a importância e a relevância dos nossos
acervos. Nesse sentido, varias proposições foram sugeridas como ações prioritárias para serem
desenvolvidas no projeto de educação patrimonial, entre elas: exposição sobre a História da Casa e
sua transformação em patrimônio Histórico; teatro de fantoches com personagens alencarianos; Guia
de Educação Patrimonial da Casa para os professores; readequação das exposições permanentes;
realização de concursos e gincanas com as Escolas realizando atividades de educação patrimonial,
entre outras.
Considerando as possibilidades atuais da CJA e as demandas das Escolas, identificamos três
ações prioritárias: A Exposição permanente “Casa de José de Alencar, há 50 anos patrimônio
brasileiro”; Teatro de Fantoches da Casa José de Alencar; e o Manual de Educação Patrimonial da
CJA – Professor.
A Exposição apresenta a trajetória histórica da CJA. Através de antigas fotos, recortes de
jornais, pinturas e objetos encontrados no antigo engenho, foi construída a trajetória histórica da Casa
de José de Alencar, fazendo refletir sobre a importância da preservação e valorização do patrimônio
histórico Brasileiro. A curadoria da exposição foi feita em composição com o Memorial da UFC e
integrou as atividades comemorativas dos 60 anos da UFC.
Para a construção do espetáculo teatral, inicialmente foi feito um estudo sobre os PCNs das
disciplinas de Arte, Literatura e História, além de leituras de algumas obras do autor José de Alencar,
que pudessem ser mais relevantes no sentido de possuir mais significado aos olhos das crianças. Dessa
forma, foram escolhidas as obras indianistas: Iracema e O Guarani, além da obra, O Demônio
Familiar, por também ter como personagem principal, a figura de uma criança.
No decorrer do processo, foram feitos resumos dos referidos PCNs, buscando fazer uma
relação com os estudos propostos pela Educação Patrimonial, bem como uma relação com o universo
infantil. Percebemos a ação teatral com os fantoches uma excelente estratégia lúdica-pedagógica por
podermos tratar, numa linguagem interessante e acessível para as crianças, de temas como: educação
patrimonial, memória, preservação, respeito e meio ambiente, entre outros.
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Dessa forma, a pesquisa se apoiou nas obras de José de Alencar, e se materializou na forma
de um teatro de bonecos, com uma temática voltada para a educação patrimonial, social e ambiental
e buscou com isso, atingir seus objetivos de forma plena, oferecendo às crianças uma ligação mais
significativa com os conceitos relacionados a valorização e preservação do patrimônio cultural e
histórico brasileiro.
Por fim, o manual é um conjunto de informações que favorecerão a atividade de ensino-
aprendizagem relacionada às visitações dos espaços culturais da Casa e a integração desse processo
à ação educativa patrimonial. Nele conterá: manual de utilização do espaço, mapa do campus,
histórico da Casa, histórico da família Alencar, sugestões de uso do espaço, sugestões de atividades
a serem realizadas antes da visita, suporte referencial.
A abordagem adotada visará a interdisciplinaridade, com as seguintes características: uso da
literatura, história e geografia, perspectivas do tema para o ENEM, valorização da História do Ceará,
valorização do patrimônio histórico e cultural, relações entre história e literatura, propostas de
trabalho conjunto entre as 3 disciplinas.
Atualmente, a Casa José de Alencar busca sistematizar as ações educativas patrimoniais
propostas, tentando superar os desafios de possuir um quadro reduzido de educadores e não dispor de
recursos específicos para o desenvolvimento de projetos educacionais. No entanto, percebemos que
a realização deste projeto está fomentando uma maior participação e envolvimento dos servidores da
CJA na elaboração de ações educativas patrimoniais, como por exemplo: “a contação de histórias da
vó Maria Conga”. Esta ação foi planejada e realizada pela servidora Marta Zelia, educadora da Casa
e pesquisadora da história das religiões afro-brasileiras.
Através da estória contada por uma velha escrava, Vovó Maria Conga, sobre a “menina que
se chamava algodão”, busca-se significar para a criança o conceito de discriminação racial e religiosa,
sensibilizando-a de que somos todos iguais e temos os mesmos direitos. Esta ação educativa
patrimonial que é realizada com a coleção Arthur Ramos, através da utilização de elementos lúdicos,
como fantoches, música e contação de histórias, no sentido de estabelecer um novo e intenso processo
de aprendizagem cultural entre as crianças e o acervo da coleção Arthur Ramos.
Em outra perspectiva, a abertura da exposição sobre a história da Casa, possibilitou uma maior
e constante interação dos educadores e visitantes com os temas relacionados à educação patrimonial,
como a valorização do patrimônio, o tombamento de bens históricos e culturais, a memória e história
do patrimônio. Esta exposição tornou-se uma espécie de espaço irradiador das reflexões acerca
patrimônio histórico e cultural existente na CJA.
Acreditamos que o projeto de educação patrimonial da Casa José de Alencar deve se manter
permanente, pois apesar de está na fase embrionária, possui grandes possibilidades de potencializar
as ações educativas realizadas no espaço, na perspectiva da construção de um processo educativo que
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nos leve a uma visão mais crítica em relação ao patrimônio histórico brasileiro e sua diversidade
cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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