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Anexo 1
UM SENTIDO PARA A VIDA
Palestra realizada em 20 de novembro de 1997 na Federa-
ção do Comércio do Estado de São Paulo, onde Frei Betto, um dos
maiores teólogos e intelectuais brasileiros, fala do papel da ciên-
cia, da educação e da religiosidade no mundo moderno.
Minha intenção é falar sobre o momento que estamos viven-
do, momento confuso em termos de perspectiva do futuro. A pri-
meira evocação que faço é da pintura de Michelangelo na Capela
Sistina, “A criação de Adão”, em que a figura de Deus, recoberto de
mantos e com a barba longa, estende o dedo para Adão. Ao mes-
mo tempo em que Adão, como símbolo da humanidade, é atraído
em direção à Terra, ele estende o dedo na direção do Criador, es-
pécie de premonição nostálgica de que é preciso não perder o con-
tato com a fonte, com a raiz, que é Deus. Michelangelo foi genial,
porque é muito difícil compreender o momento em que se vive.
É fácil analisar os momentos depois que eles passaram. O artista,
com sua intuição, com seu talento, tem o dom de captar o momen-
to, que depois a epistemologia e a filosofia tentam explicar.
O que acontecia naquele momento da “descoberta” da Amé-
rica, da “descoberta” do Brasil? A passagem. Diria que não estamos
vivendo uma época de mudanças. Estamos vivendo, hoje, uma
mudança de época. A última mudança de época foi justamente na
“descoberta” da América, quando o Ocidente passou do período
medieval para o moderno. A pintura de Michelangelo expressa,
com genialidade, essa chegada de um tempo em que o conheci-
mento, a epistemologia, se desloca de uma perspectiva teocên-
trica para uma perspectiva antropocêntrica. A rainha das ciências,
durante mil anos, no período medieval, foi a teologia. A rainha das
ciências, da modernidade é a física. O período medieval se base-
ava na fé; o moderno, na razão. O período medieval se baseava
Descartes e Newton
A modernidade aparece, primeiro, com o grande movimento
da globalização que foram as navegações ibéricas. Falamos hoje em
globalização como se fosse novidade. Mas, na Escola de Sagres, já
se falava em globalização, com outras palavras. E tanto globaliza-
ram que conseguiram abarcar outras regiões do planeta, embora
Colombo tenha morrido sem saber que havia chegado à América.
Morreu convencido de que tinha alcançado Cipango, nome que
se dava ao Japão. As descobertas marítimas, a criação das univer-
sidades, principalmente da Sorbonne, que é do século 12, e da
Universidade de Bolonha, e as corporações marítimas, que são as
matrizes dos sindicatos, foram três fatores que, de certa forma,
prepararam o advento da modernidade. Todos nós somos filhos
da modernidade. Nossa estrutura de pensamento é moderna, mas
nem sempre foi assim, e nem em toda parte do mundo é assim.
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Massa disforme
A escola está em crise, porque nada é mais cartesiano e
newtoniano do que a escola. Se os paradigmas da modernidade
entram em crise, a escola também entra em crise. E por que a es-
cola entra em crise? São Tomás de Aquino tem uma frase de que
gosto muito: “A razão é a imperfeição da inteligência”. Ou seja, a
inteligência vem de intus leggere (ser capaz de ler dentro). Há pes-
Educação televisiva
Falávamos em bem comum. Essa expressão está sumindo até
dos documentos da Igreja. Hoje, falamos em tecnologia de ponta.
Falávamos em nação, hoje falamos em globalização. Falávamos em
cultura. Hoje, de tal maneira os veículos de cultura estão atrelados
à publicidade que estamos tendo menos cultura e mais entrete-
nimento. A sensação que tenho, depois de passar uma semana
vendo a televisão brasileira, é de ter ficado mais pobre espiritual-
mente, sobretudo no domingo, que é o dia nacional da imbeciliza-
ção geral. Na segunda-feira, a gente tem ressaca moral, precisa de
um tempo para se refazer, depois de ver o ser humano sendo tão
degradado, ridicularizado e ainda com um toque de humor.
Vivemos uma esquizofrenia social. De um lado, queremos
defender os nossos valores religiosos, morais etc., e, de outro, te-
mos, dentro de casa, uma pessoa da família, eletrônica – a telinha
–, que não foi convidada, não pede licença, não dialoga e nos im-
põe valores que nem sempre conferem com os nossos. É a história
da minha cunhada, que me disse: “Betto, fui aluna de colégio de
freira, por isso paguei muitos anos de análise para me livrar da
idéia de que tudo é pecado. Espero que meus filhos, quando adul-
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tos, escolham se querem ou não ter uma religião, mas não preten-
do ensinar-lhes nenhuma religião”. Eu lhe disse: “Você, como mãe,
tem todo o direito de fazer essa opção. Mas, como pessoa, não
tem o direito de ser ingênua. Ou você educa ou a Xuxa educa. Não
pense que existe neutralidade. Se você não educar, a televisão vai
ensinar a seus filhos o que é bem, o que é mal, o que é certo, o que
é errado, o que é justo, o que é injusto”. É uma questão de opção.
Falávamos em valores, hoje falamos de sucesso. E introduzi-
mos cada vez mais na linguagem e na prática a idéia da competiti-
vidade. Às vezes, faço treinamento de recursos humanos em em-
presas, e os treinamentos são interessantes porque não se trata de
fazer palestras, trata-se de captar o pano de fundo da cultura da
empresa. Um dos detalhes mais interessantes é o seguinte: os fun-
cionários de uma mesma empresa praticam entre si a competitivi-
dade. A idéia da competição com outras empresas é internalizada
de tal maneira, que a coisa emperra porque a competitividade está
lá dentro, onde deveria haver cooperação. A competitividade vai
entrando de tal forma que as pessoas já não sabem estabelecer
um nível mínimo de cooperação.
Falávamos de realidade, hoje falamos de virtualidade. A re-
alidade virtual é positiva, do ponto de vista da interação no pla-
neta, que se transforma numa pequena aldeia, mas perigosa do
ponto de vista da abstração dos valores. Em outras palavras, do
meu quarto no convento no bairro das Perdizes, em São Paulo,
posso ter um amigo íntimo em Tóquio, mas não quero nem sa-
ber o nome do vizinho de porta. Então sou um amigo virtual. Há
até o sexo virtual, por computador, que está trazendo um proble-
ma para a teologia moral: o adultério virtual. Sofremos o risco de
entrar numa concepção de virtualidade que nos leva a falar em
cidadania e continuar jogando lata de refrigerante e cerveja pela
janela do carro, invadindo a faixa de pedestre etc. Vamos criando
toda uma linguagem que é virtual e não tem incidência no real. Na
vida real, ficamos cada vez mais agressivos, mais violentos, mais
competitivos.
ANEXO 2
EU ETIQUETA