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Revista Ciencia & Inovação - FAM - V.2, N.

1 - DEZ - 2015

Ensaio sobre Saúde Mental:


um “Bicho de Sete Cabeças”

Fábio Henrique Ramos


Psicólogo, Mestre em Educação e professor do curso
de Psicologia da Faculdade de Americana - FAM.

Resumo Abstract
Procurando resistir às práticas desumanas em Looking for resist to inhuman practices in Mental Health
Saúde Mental reflete-se no presente ensaio1 sobre reflected in the article on subjective mechanisms and
mecanismos subjetivos e sócio-institucionais que socio-institucional that act in the production of mental
atuam na produção de estados mentais patológicos, states pathological, experienced as a phenomenon of
experimentados como fenômeno de natureza individual, individual nature, emphasizing, however, the action of
enfatizando, contudo, a ação das práticas discursivas discursive practices in the process of “production of
no processo de “produção da loucura”, em seu caráter madness”, in its character bind (social), through of the
vincular (social), através da análise de fragmentos do analysis of fragments of the Brazilian film “Bicho de
filme brasileiro “Bicho de Sete Cabeças”. Sete Cabeças”.

Palavras chave: saúde mental, práticas discursiva, Keywords: Mental health, discursive practice, madness
produção da “loucura”. production

Há diferentes maneiras de se abordar o suas faces e problemáticas, independente da área de


campo que se convencionou chamar “Saúde Mental”. atuação. Quer na prática clínica, quer no ensino de
Devido a sua complexa e sobredeterminada natureza Psicologia, ou na área da Saúde do Trabalhador ou na da
fenomênica poder-se-ia discuti-lo sob vários pontos Educação, frequentemente, és-se chamado a manejar
de vista, tais como: de suas variadas, e nem sempre e compreender a parte mais “oficial” do campo, aquela
concordantes, concepções e teorias etiológicas; de que visa à categorização e classificação do fenômeno
suas vicissitudes no dinâmico campo das Políticas do adoecimento psíquico, propondo uma ordem no
Públicas, principalmente das mobilizadas pela aparente estado de caos que o caracteriza. Trata-se da
Reforma Psiquiátrica; ou, ainda, da assustadora lide com os amplamente divulgados CID-Fs2 , os quais
utilização dos psicofármacos como único e principal veem, há tempos, apoiando as hipóteses diagnósticas
recurso terapêutico, alimento à milionária indústria dos mais variados quadros que se convencionou
farmacêutica; ou, quem sabe, de sua íntima relação denominar “distúrbios mentais”. Reconhece-se que,
com as dimensões do tempo histórico, da cultura e da enquanto profissional da psicologia, operário do humano,
sociedade geneticamente interconstituídas; ou, enfim, é importante conhecer, compreender e dominar as
de temas especiais a ele relacionados como, por descrições e conceitos subjacentes às classificações
exemplo, a saúde/doença do trabalhador. das chamadas, síndromes psicopatológicas, para
evidenciar a sua racionalidade, seja para aplicá-la,
A abordagem que se propõe nesse ensaio
seja para criticá-la. Essa competência, porém, não
se vale, principalmente, do encontro profissional e
é sufuciente, pois, ao receber um analisando, ou a
não necessariamente da expertise teórico e prática
advindas da academia. Nesta lógica, não ramente,
o fazer psicológico é confrontado com algumas de
2 - Manual diagnóstico publlicado pela Organização Mundial da
Saúde (OMS), também conhecido com CID-10, que visa padronizar
1 - O presente texto foi inspirado na participação do autor junto à a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde,
Mesa Redonda promovida pelo curso de Psicologia da Faculdade de fornecendo códigos relativos à classificação de doenças e de uma
Americana – FAM, em comemoração ao dia da Luta Antimanicomial, grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais e queixas,
realizada em 20 de maio de 2014, intitulada: “A construção da loucura organizado por Letras. A Letra “F”, diz respeito aos “Transtornos
sob a óptica da Psicologia”. Mentais e Comportamentais”.
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um trabalhador adoecido, ou mesmo a um aluno que história de internação involuntária de um adolescente,


carrega tais marcas classificatórias, a situação é outra: num hospital psiquiátrico em função da descoberta de
está-se diante do desafio de envolver-se e aproximar- que utilizava substancias psicoativas (neste exemplo,
se do sujeito que subjaz ao quadro imediato, o qual a maconha). Enganado pelo pai e irmã, sem ser
advém em sua batalha ontológica de humanização. ouvido, o adolescente é lançado em uma realidade
Entram em cena aqui, movimentos não tão evidentes de de privação de liberdade, passando a conviver com
oposição e luta que não são apreendidos pelos códigos todas as práticas de violência, violação e indignidades
classificatórios, movimentos de luta que expressam um humanas que caracterizavam as ações de “cuidado” e
embate que, frequentemente, expõe a busca do sujeito, “tratamento”, ofertadas pela instituição na época. Sua
ainda que de forma lampejante, por elaboração de seu inserção nesse contexto sócio-institucional marcou, em
sofrimento psíquico, das dores e feridas anímicas pelas definitivo, sua vida presente, a imagem que fazia de si
quais passa. Por trás, portanto, de qualquer hipótese mesmo e seu futuro.
diagnóstica – do código classificatório – há um sujeito
Por que analisar à este filme? Em função do
em mobilidade.
fato de parecer uma fotografia muito apropriada para
Importante destacar, preliminarmente, que uma se debater de que maneiras as práticas discursivas
das forças que inspira este posicionamento remete-nos interpessoais e sócio-institucionais produzem estados
ao princípio da ética do humano, na medida em que se mentais patológicos, à medida que atravessam e
defende o direito inalienável do homem de humanizar- estruturam as relações vinculares. Percebe-se, nessa
se. Pondera-se tal questão procurando provocar em nós produção, aquela possibilidade de se aproximar de um
o mesmo estado de indignação e inconformismo que, fenômeno histórico como “mônoda”, tal como indicou o
antes, outros sentiram, e que lhes serviu de impulso filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940): estrutura
à luta para a derrubada dos muros dos hospitais a partir da qual se pode confrontar um objeto histórico
psiquiátricos e manicômios, visando, simbólica e com seu núcleo saturado de contradições. Examinados
objetivamente, a libertação da alma encarcerada, de como “mônada”, os objetos históricos são enfocados
pessoas que, sofrendo suas dores e feridas anímicas, como um segmento espaço/temporal (Jetztzeit:
foram excluídas da sociedade e maltratadas com “tempo de agora”) que imobiliza o fenômeno, pára-o,
indignidades. A provocação intenta criar em nós um tal qual um relâmpago, permitindo, contudo, percebê-
estado de espírito que alimente uma atitude definitiva, lo em movimento, como uma configuração saturada
de não mais permitir que isso tudo se repita: práticas de tensões que se converte, simultaneamente, em
de abandono, torturas, agressões e violência, dirigidas “tempo de desilusão” e “momento de despertar”.
aos pacientes psiquiátricos. Práticas, aliás, que evocam Essa imobilização dialética comunica um choque e
com assustadora semelhança aquelas conduzidas em movimento, pois retém a história dos retrocessos
Auschwitz, maior e mais horroroso complexo de campo e horrores do fenômeno investigado. Justamente
de concentração, criado pelo Regime Nazista, durante por apresentar os motivos e as histórias de horror
a Segunda Guerra Mundial. Analisando este horror constitutivas do fenômeno, torna-se uma configuração
Theodor Adorno (1903-1969) adverte-nos discutindo com potência à libertação da desumanidade, por
os processs educativos: “a exigência de que Auschwitz conter, precisamente, elementos contraditórios que
não se repita [...]” (Adorno, 1995:119). Embora justificam sua crítica (BENJAMIN, 1987). O filme,
originalmente dirigindo à Educação – como a “primeira assim, corresponde a essa possibilidade de, ao ser
de todas” exigências, que precede a quaisquer outras, tomado como um objeto histórico, revelar, de maneira
sem necessidade de justificação, tendo em vista toda condensada, as forças constitutivas do fenômeno,
a mostruosidade ocorrida – analogamente aplica-se, abrangendo passado, presente e futuro, bem como
também aqui, nesse campo particular, a recomendação o conjunto de condicionantes que atuam em sua
do filósofo: que as indignas práticas psiquiátricas não constituição. Eis as razões de escolhê-lo: cumpre
se repitam. a função de “mônoda” em relação à Saúde Mental,
revelando os processos de produção da “loucura”.
É com esse espírito de resistência às práticas
desumanas em Saúde Mental que se reflete sobre Advertindo contra quaisquer expectativas de
alguns mecanismos, não propriamente individuais, que considerações conclusivas, procuremos compreender
atuam sobre a constituição daquilo que se convencionou alguns aspectos que jogam no processo de produção
chamar de “loucura” – grafada entre muitas aspas. da “loucura”, mediante a análise de alguns fragmentos
Busca-se discutir em que medida algumas práticas do filme. Uso o termo “produção”, pois é, exatamente,
discursivas interpessoais e institucionais, através um processamento como esse, que percebo atuar
das relações vinculares, corroboram com a produção sobre o estado de coisas no campo da saúde mental:
de estados mentais tornados patológicos. Para isso, um fenômeno produzido, por uma complexa rede de
recorre-se ao filme “Bicho de Sete Cabeças”: produção relações intra e intersubjetivas, intra e interpessoais e
cinematográfica nacional, dirigida pela cineastra Laís sócio-institucionais.
Bodanzky, com roteiro de Luiz Bolognesi, baseado no
Um aspecto que irrompe de início, já nos
livro autobiográfico de Austregésilo Carrano, intitulado
aproximando de elementos que concorrem para o
“Canto dos Malditos”. No conjunto, o filme retrata a
processo de “produção da loucura”, é o lugar que esse
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tipo de produção cinematográfica ocupa em nossa fundamental e estruturante3. Aprendemos com ele
sociedade. Objetivamente, encontram-se dificuldades que a formação do eu passa pela identificação com a
de acesso ao filme. Por que não encontramos o filme imagem captada e refletida pelo outro, isto é, como um
com tanta facilidade, como se encontra a qualquer fenômeno especular/reflexo. Destaca, assim, o quão
filme ganhador de Oscar? E, junto com isso: qual lugar importante é à formação da imagem de si a imagem
tem ocupado, nessa mesma sociedade, aqueles que refletida, fornecida pela Outro, que o sujeito vê, seja no
padecem, patologicamente, de sofrimento psíquico? espelho seja no olhar do Outro. Nesse sentido, postula
Onde estão os sujeitos que sofrem de agudo e que a representação que construímos de nós mesmos,
extremo sofrimento mental? Aí, fora do campo de inicial e originalmente, aparece sempre envolvida num
acesso fácil, certo?! Reflitamos sobre isso: que lugar jogo vincular especular, associada à imagem “refletida”
a “loucura” ocupa em nossa sociedade? Hoje, se não advinda do Outro, tal como aquela imagem que se
mais encarcerada, no mínimo, fora dos circuitos da reflete, quando nos colocamos diante do espelho.
sociedade de massa, à beira e à margem do rumo É a imagem refletida (ofertada pelo Outro ou pelo
considerado reto, certo?! E isso, por si só, não é uma espelho) que nos dá o primeiro subsídio à construção
nova forma encarceramento? de nossa própria imagem. Daí que as letras invertidas
dos créditos afiguram-se como representativas desse
Um segundo elemento atuante no processo de
complexo jogo especular que sedimenta a imagem que
“produção da loucura” se revela no “cartão de visita” do
intrassubjetivamente e interpessoalmente se configura:
filme: a problemática da imagem invertida e especular.
o especular e suas múltiplas vias de inversão.
É digno de nota que os créditos iniciais e finais da
produção, aparecem de forma invertida, com letras No todo, o filme permite entrever outro
espelhadas, como se diz na área pedagógica. E, o que importante mecanismo atuante no processo de
isso quer dizer? Foi um erro de edição – tal como sugere “produção da loucura”, o qual é possível identificar
uma explicação encontrada em um dos fóruns de através do raciocínio analítico que se deriva do
discussão do filme? Absolutamente, não. Essa maneira conjunto da obra do filósofo francês, Michel Foulcaut
de apresentar os créditos nos remete, propriamente, (1926-1984), seja em sua arqueologia do saber, seja
ao complexo e intrincado jogo especular-relacional em sua genealogia do poder: fases distintas, porém,
formador da função do eu, o qual, para os sujeitos entremeadas de investigação, que foram agrupadas
que vivem o agudo e extremo sofrimento mental, se na categoria analítica “saber-poder”. Especialmente na
converte num intenso movimento de inversão: invertem arqueologia do saber Foulcaut (1996) toma para análise
a lógica social, afetam o rumo considerado reto da o poder, chamando a atenção para sua relação com
sociedade, lutando consigo mesmo e com o outro, em um processo ordenado de produção de discursos em
relação às dores e delícias de carregar uma imagem nossa sociedade. Isso significa que enfoca o discurso
invertida que possuem e compartilham sobre si. Vale como prática social forjada, analisando-o enquanto
lembrar aqui o psicanalista francês Jacques Lacan um “acontecimento” que se dá mediante condições de
(1901-1981) e sua teoria do Estádio do Espelho possibilidades e regras pré-estabelecidas, supondo
(1998), na qual defende a hipótese de que no processo que, em toda sociedade, a produção do discurso é ao
de constituição do eu o Outro desempenha papel mesmo tempo “[...] controlada, selecionada, organizada

3 - Essa questão remete à polêmica e conhecida problemática da constitutivas. Não se trata de negar a individualidade, mas sim de
relação “eu-outro”. Tanto o “eu” quanto o “outro” vem sendo tratados, afirmá-la pela “Alteridade”: noção a partir da qual se defende a ideia
pelos pensadores, no geral, e pela Psicologia, em particular, de que é apenas através do “outro”, do seu olhar, do relacionamento
como duas realidades distintas, separadas e divorciadas, sendo estabelecido com ele que o “eu” se constitui. A experiência da
dimensionadas com um fenômeno de “oposição”. O “eu” é entendido alteridade à estruturação do “eu” leva-o a ver aquilo que não teria
como: morada segura, dimensão interna, conhecido e dominado conseguido visualizar. Eis o “eu” não como “eu-individual”, mas
pela pessoa, aquilo que é familiar, próximo, que se sente no mais sim como “eu-social”. A rejeição da prioridade do “eu-individual” e
fundo de si mesmo, compreensível e impenetrável. Por outro lado, a inauguração da concepção do “eu-social” representam esforços
o “outro” como: estranho, experiência não familiar, exterior, distante, que procuraram definir a personalidade como um processo integrado
diferente, exposto. Assim entendidos, o “eu” ganha prioridade à vida social, ou à natureza social da personalidade humana. Tais
sobre o “outro”, transformando a dimensão pessoal num fenômeno esforços procuram, ainda, compreender a personalidade como
introspectivo (voltado para si), auto-suficiente e completo, que não uma “entidade reflexa”: é através da identificação com o “outro”
necessita do outro, que se basta por si mesmo. Nessa visão, as que o indivíduo (“eu”) torna-se, também, capaz de identificar-se a si
relações entre o “eu” e o “outro” são superficiais, artificiais e ilusórias. mesmo, adquirindo uma subjetividade coerente. O que está em jogo
Porém, a concepção do “eu-individual” como “senhor de si mesmo”, é a formação de uma “entidade reflexa”: as atitudes tomadas pelo
auto-suficiente e completo foi tensionada por algumas linhas do “outro” em relação ao indivíduo (“eu), tornam-se, para este, atitudes
pensamento psicanalítico, como, por exemplo, a desenvolvida que irá tomar em relação ao outro e a si mesmo. Por isso, o indivíduo
por Jacques Lacan (1901-1981) e Donald Winnicott (1896-1971) (“eu”) torna-se o que é para si, em função de “ter sido” pela a ação do
e recusada, fundamentalmente, por pensadores das Ciências outro. Evidentemente esse processo não é mecânico nem unilateral,
Humanas como: Karl Marx (1818-1883), P. Janet (1859-1947), L. S. mas dinâmico e dialético entre “ser identificado pelo outro” e “auto-
Vigotski (1896-1934), H. Wallon (1879-1962). Para estes e outros, identificar-se”.
as relações entre o “eu” e o “outro” são profundas, essenciais e
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e redistribuída por certo número de procedimentos processos mentais normais e/ou patológicos, intra e
[...]” com a função de “[...] conjurar seus poderes e intersubjetivos. Apresenta-nos um interjogo relacional
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar caracterizado por, de um lado, um pai autoritário
sua pesada e temível materialidade” (FOULCAUT, e agressivo, representante daquela “verdade”
1996: 8-9). Com esse raciocíno analítico oferece- forjada pelos dispositivos discursivos, produtores
nos a possibilidade de pensarmos os discursos e/ou de normalidade; de outro, por uma mãe submissa,
as práticas discursivas como fenômenos produtores apagada e silenciada, cuja voz só se fez ouvir pelo
de verdade, que concorrem para o estabelecimento adoecimento; e, por fim, por uma irmã onipotente,
de critérios de normalidade. Isso significa que, nas sustentada pela posição do rumo-reto. Há, é claro, a
teias sociais, há dispositivos normativos formados posição de Neto, o qual está imerso nas vicissitudes da
por práticas discursivas, que operam às margens adolescência em tudo aquilo que, tensamente, traz de
da lei, mas que, surpreendentemente, adquirem um conflitiva identitária e de expansão existencial. É nesse
status de poder, muitas vezes mais forte e intenso campo relacional que se estabelecem os vínculos
do que o próprio poder legal, à medida que adquirem familiares, os quais, marcadamente, se caracterizam
uma posição de verdade. Revela-se, assim, o quanto pelo distanciamento afetivo da condição subjetiva de
as práticas discursivas são capazes de gerenciar um em relação ao outro, e de cada um em relação si
questões cotidianas, valores morais, noções de certo- mesmo. Aí, todos se mostram distantes e silenciados
errado, bem-mal, com a função estratégica de servir em relação ao outro e a si.
à manutenção e reprodução da ordem estabelecida.
E qual condição subjetiva, basicamente, foi
Demonstra-nos que a partir de arranjos discursivos,
trazida como pano de fundo no filme? Parece que,
fabricam-se verdades, e forja-se a normalidade. De
justamente as vicissitudes da adolescência, dentre as
tal modo que, o “normal”, é aquilo que corresponde
quais uma se destaca: o difícil desafio psicoafetivo de
à verdade fabricada pela prática discursiva, e aquilo
delimitação e consolidação identitária como existência
que caminha nos rumos que se considera reto; já o
pessoal e própria, processo simbólico que implica,
patológico, por sua vez, é tudo aquilo que desvia desse
dentre outros movimentos, um desapego subjetivo em
rumo.
relação aos pais, a reedição e elaboração de fantasias e
Diferentes práticas discursivas, detentoras conflitos edípicos, a experiência de uma escolha objetal,
da verdade e produtoras da normalidade, podem o confrontar-se com a perspectiva de inserção formativo-
ser reconhecidas no filme: a imagem da irmã do profissional, enfim, uma série de tarefas psicoafetivas
personagem central (Neto) é apresentada como a figura objetivas e subjetivas que, subjacentemente, acionam
bem sucedida pessoal e profissionalmente, detentora angústias e geram sentimentos de grande instabilidade,
da racionalidade lógica, que goza de bom-senso e ambivalência e solidão. Na tensão desse movimento
tranquilidade esperadas do adulto, correspondente típico e esperado, tão importante é o fato de que o
às expectativas do pai e, aparentemente, preocupada sujeito encontre um espaço seguro, o suficiente, para
com Neto – mais tarde, porém, se revela distante do ser acolhido, e no qual possa anunciar a identidade
irmão, não o ouve, não o conhece, não é capaz de se que está estabilizando. É aí que joga o papel da
aproximar no vínculo, além de ser cúmplice da rede família como espaço de ambiência ao desenvolvimento
das indignidades a ele desferidas. Há outra importante: psíquico saudável ou patológico, o qual foi abordado
o médico, representante do discurso científico (saber- por diferentes autores e, consistentemente, discutido
poder), considerado absoluto nas verdades que pelo psicanalista inglês Donald Winnicott (1896-1971),
professa, acima de qualquer suspeita – mas que, para para o qual o “suprimento ambiental ou fornece uma
transitar pela realidade da instituição, se entorpece, oportunidade para que ocorra o processo interno
tal como faz com seus pacientes. Tais imagens são de crescimento, ou então impede que tal aconteça”
exemplos de práticas discursivas que tornam pessoas, (WINNICOTT, 1999: 148). A ambiência familiar
instituições e situações como fieis representantes da funcional (saudável) ou disfuncional (patológica)
verdade e produtores de normalidade, a serviço da não se associa, propriamente, ao modelo de família
manutenção da ordem instituída. adotado – se é, ou não, o da configuração moderno-
burguês ou o das novas e múltiplas configurações
Ao se observar a estrutura e as relações
contemporâneas –, mas se configura a partir da noção
familiares do ponto de vista dos vínculos relacionais
de “contato”: um espaço vincular que cria o ambiente
deparamo-nos, no filme, com mais um elemento que
acolhedor e seguro, através da presença do outro,
se constitui como aspecto que participa, de maneira
como alguém que, renunciando e esquecendo de sua
significativa, do processo de “produção da loucura”, tal
própria posição num limite suficiente que não se perca
como o vimos discutindo. Embora, em aparência, no
de si mesmo, oferece ao indivíduo uma abertura tal,
geral, a família de Neto reproduza o modelo moderno-
que lhe permite o direito de ter um lugar simbólico em
burguês de família – tal como discutido, dentre outros,
sua vida psicoafetiva. O indivíduo que não encontra
por Reis (1994) –, sua configuração estrutural e
espaço subjetivo na vida do outro, não encontra espaço
relações estabelecidas deixam marcas evidentes de
em si mesmo, e não desenvolve a capacidade de
como a qualidade dos vínculos e do campo relacional
reconhecer sua singularidade, vivendo a experiência
daí decorrente são determinantes à construção de
de invisibilidade.
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O espaço vincular do “contato” é uma expropriar, roubar do outro, seu valor mais caro: seu ser,
sustentação para o indivíduo. Em nossa sociedade sua existência. O campo relacional experimentado nos
capitalista, criou-se a expectativa de a família ser o vínculos familiares retratados no filme representa isso:
espaço do qual mais se solicita/espera essa função o microcosmo institucional no qual nossa civilização faz
de sustentação, pois, originalmente, é ela quem operar e acontecer, para manutenção e reprodução de
funda o fórum da vida íntimo-privada. Como indica seus interesses de autopreservação, seu mecanismo
o psicanalista inglês (WINNICOTT, 1993), ao ser primeiro de expropriação, do qual todos os outros são
ofertada, tal função ajuda o indivíduo a encontrar um resultantes: o roubo da alma, a subtração do ser.
ambiente favorável ao seu desenvolvimento quando,
Se a família é apresentada como instituição
incialmente, se adapta ativamente às necessidades
da qual o processo civilizatório se serve para operar
subjetivas criadoras e espontâneas do indivíduo e,
a subtração do ser, é apresentada outra instituição
posterior e progressivamente, vai desiludindo-o na
que se presta ao mesmo fim: o hospital psiquiátrico.
transição à externalidade. Isso não se assemelha,
Fica nítido que sua estrutura, seus interesses e sua
em nada, à atitude de permissividade paterno-filial,
mentalidade são regidos pelo princípio da conservação
mas a delimitações que vão marcando as fronteiras
da ordem estabelecida, da manutenção do status
e os espaços do indivíduo, dando-lhe bordas, não
quo e, principalmente, da preservação das relações
permitindo-lhe que fique esparramado, disperso. É o
econômicas, e não pelo princípio da ética do humano.
equilíbrio dinâmico desse campo psíquico, a qualidade
Há várias cenas que evidenciam que sua força motriz
desse “contato”, dessa sustentação, que passa a ser
é a manutenção e conservação do estabelecido. Como
tomado como critério para se analisar os impactos que
não perceber essa tendência, e não se indignar, com
a família exerce sobre o desenvolvimento emocional
a estratégia médica, disfarçada sob a égide científica
de seus membros. São os contornos desse espaço
do tratamento, de entorpecimento dos usuários, a fim
vincular e de sua dinâmica intersubjetiva que devemos
de que, cada dia mais, estes percam sua autonomia
converter em referências para se compreender o
e ali permaneçam, para se garantir a continuidade
quanto uma família é, ou não é, capaz de ser saudável
da alocação de recursos financeiros subsidiários
aos seus membros. De modo que, quanto mais as
do Governo, os quais, aliás, não são investidos na
relações familiares conseguem criar esse campo
instituição? Como não perceber, e não se indignar, com
psíquico acolhedor, seguro, confiável, tanto mais são
a mesma estratégia na cena da conversa da família de
regidas por tendências saudáveis, independente de
Neto com o médico? Em especial, noutra passagem,
elas estarem circunscritas à configuração de família
a mesma estratégia de conservação da ordem
moderno-burguesa ou à de outras configurações. É
estabelecida e preservação das relações econômicas se
desse raciocínio que se deriva a compreensão de que o
faz presente: quando há uma associação entre relógio-
critério de análise das relações familiares deve basear-
ponto dos funcionários e a ingestão dos medicamentos
se na avaliação do quanto os vínculos aí estabelecidos
por parte dos usuários, como que revelando a face
são capazes de criar esse campo relacional, no qual
mais perversa do mecanismo de “produção da loucura”,
seus membros podem enfrentar seus conflitos e
sua naturalização, ao transformá-la em algo cotidiano,
superá-los.
de modo a se enlouquecer em definitivo, garantindo e
A incapacidade de viver o espaço vincular conservando a razão de ser da instituição. Assim, o filme
nessa perspectiva é, contemporaneamente, bastante retrata a realidade institucional de, para garantir sua
comum, e foi ela que se revelou no filme, traduzindo- função conservadora, e consequentemente sua razão
se como fracasso de acolhimento, adaptação e de ser, fazer uso de qualquer prática/recurso mesmo que
sustentação da condição subjetiva de todos e de cada desumanos, afinal, seu principal interesse é conservar-
um, transformando o vínculo, numa verdadeira prisão se e manter-se, não cuidar, tratar e libertar o homem.
mental que sufocava, silenciava e agredia a todos seus Nessa perspectiva, a produção cinematográfica não
membros; ali todos sofriam. Inclusive o pai, apresentado poupa esforços, talvez cometendo até certos exageros,
como algoz do filho, a vítima. E quais as razões desse ao mostrar um conjunto de práticas desumanas que
fracasso? Certamente, intra e intersubjetivas, bem vão desde a falta de higiene com os pacientes, até o
como sócio-institucionais. Tentemos compreender o pai tratamento por eletrochoque ou eletroconvulsoterapia.
para além de suas violações e exigências aparentes, e De qualquer forma, o princípio conservacionista que
sim, como representante de uma atitude institucional- rege a instituição, a fim de assegurar as relações
civilizatória que leva ao encarceramento da alma: a econômicas, sociais e culturais de poder subjacentes
intolerância frente à liberdade do existir na diferença, e sustentadoras da vigência de um estilo civilizatório,
no não idêntico; a não aceitação do necessário espaço participa do processo de “produção da loucura”, à
de existência pessoal/própria; o desrespeito ao desejo medida que não trabalha em favor do humano, mas,
do sujeito de tornar-se desejante. É a atitude de possuir pelo contrário, o forja, o faz ser aquela imagem de
o outro, como coisa e propriedade sua, negando-lhe o “louco” que corresponde e justifica seus interesses de
direito de existir por si mesmo, que emana da figura conversação e sua razão de ser.
do pai, como representante de todo um conjunto
E, por fim, vale destacar a beleza e o significado
de instituições, e por consequência, de toda uma
da excelente trilha sonora que embala ao filme, a qual,
civilização, que educa o indivíduo contemporâneo para
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por sua riqueza, mereceria um tratamento especial, o Referências Bibliográficas


qual não será empreendido aqui. Todas as canções, em
ADORNO, T. Educação e emancipação. São Paulo:
sua maioria compostas por Arnaldo Antunes e André
Paz e Terra, 1995
Abujamra, ambos músícos e compositores brasileiro,
nos remete ao universo da alma, seus conflitos e suas BENJAMIN, W. (1940). Sobre o Conceito de História in:
mazelas. Dentre elas destaca-se uma, em especial, ______ Obras Escolhidas I: magia e técnica, arte e
que representa muito bem os mecanismos intra e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
intersubjetivo, e intra e interpessoal presentes no
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo. Ed.
processo de “produção da loucura”, com letra e música
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de Arnaldo Antunes, intitulada: “O buraco do espelho”.
Tentemos considerar o termo “buraco” como sinônimo IONESCU, M., GULLANE, F., BODANZKY, L. Bicho
da palavra alma/psique. de Sete Cabeças. [Filme-vídeo]. Produção e direção
de Lais Bodanzky, com roteiro de Luiz Bolognesi.
“O buraco do espelho está fechado/ Agora eu tenho
Rio de Janeiro, produtoras brasileiras Buriti Filmes,
que ficar aqui/ Com um olho aberto, outro acordado/
Dezenove Som e Imagens Produções Ltda. e Gullane
No lado de lá onde eu cai/ Pro lado de cá não tem
Filmes, com a participação da brasileira RioFilme e da
acesso/ Mesmo que me chamem pelo nome/ Mesmo
italiana Fabrica Cinema e a distribuição da Columbia
que admitam meu regresso/ Toda vez que eu vou
TriStar, 2000. Acesso: https://www.youtube.com/
a porta some/ A janela some na parede/ A palavra
watch?v=u24WcelAjww. 74min. Color.
de água se dissolve/ Na palavra sede, a boca cede/
Ante de falar, e não se ouve/ Já tentei dormir a noite LACAN, J. (1998). O estádio do espelho como formador
inteira/ Quatro, cinco, seis da madrugada/Vou ficar da função do eu. In: J. Lacan, Escritos. (V. Ribeiro,
ali nessa cadeira/ Uma orelha alerta, outra ligada/ O trad.; pp. 96-103). Rio de Janeiro: Zahar. (Original
buraco do espelho está fechado/ Agora eu tenho que publicado em 1966).
ficar agora/ Fui pelo abandono abandonado/ Aqui
REIS, José Roberto T. Família, emoção e ideologia In
dentro do lado de fora”. (IONESCU, M., GULLANE,
LANE, Silvia T. M. Psicologia Social – o homem em
F., BODANZKY, L., 2000).
movimento. São Paulo: Brasiliense, 1994.
WINNICOTT, D.W. A Família e o Desenvolvimento
Embora a significância justifique, não se fará
Individual. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
uma análise pormenorizada da letra dessa canção.
Apenas como ilustração, demarca-se, contudo, a ________________. Conversando com os pais. São
presença dos mecanismos que se discutiu como Paulo: Martins Fontes, 1999.
aspectos que atuam na “produção da loucura”: o
lugar à margem que a “loucura” ocupa na sociedade
contemporânea; o complexo jogo vincular especular e
suas múltiplas vias de inversão; as práticas discursivas
detentoras da verdade e produtoras da normalidade;
o campo relacional vincular em seus sucessos e
fracassos enquanto ambiência acolhedora; o princípio
conservacionista das instituições, sustentador de um
estilo civilizatório; e a subtração do ser, o roubo da
alma. Tudo isso, trazido na letra da canção, revela o
quanto o campo da saúde mental configura-se como
um “bicho de sete cabeças”4.

4 - “Expressão popular que significa que se está diante de alguma


dificuldade que pode não ter uma resolução simples. É algo que é
quase impossível de se solucionar. Ao surgir alguma situação que
se torna num grande problema e não se vislumbra uma resolução
rápida, diz-se que a situação é um bicho de sete cabeças”. Conforme
http://www.significados.com.br/bicho-de-sete-cabecas/. Acesso:
29/03/2015.
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