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RESENHA

SODRÉ, Muniz A. C. Pensar nagô. Rio de Janeiro: Vozes, 2017, 238 p.

Pensar-vivendo:
Filosofia a toque de atabaques em Pensar nagô
Think-living:
philosophy to the rythm of drums in Pensar nagô

RENATO PASTI*

Muniz Sodré é professor titular da dos terreiros, cujos caminhos nos


Universidade Federal do Rio de Janeiro direcionam à interpretação dos
– UFRJ, pesquisador da pelo CNPq, significados existenciais do pensamento
possui dezenas de livros publicados na nagô, percebendo-os como continuidade
área de mídia, comunicação, cultura da Arkhé africana. Os ritmos, sons,
nacional e de textos jornalísticos, além timbres, compassos, são signos das
de ser professor visitante e conferencista latências das memórias, assentadas sobre
internacional. os corpos em movimento, que celebram
Em sua obra Pensar nagô, publicada o mítico, fortalecendo o sentido de
pertencimento a um princípio fundador.
pela Editora Vozes em 2017, busca, com
sutileza, desvelar o envoltório religioso Assim, o autor expõe a pertinência do
de cultos afros, os quais são imantados passado comum como forma de
por filosofia existencial vivida. Muniz resistência para os sujeitos da diáspora.
Sodré destaca que a filosofia não é uma Para Sodré (2017), a filosofia da
exclusividade do pensamento ocidental linguagem rege os signos, possui os
europeu, mas de maneira restritiva corpos e dá significados à temporalidade,
confinou as concepções filosóficas aos situando o ser em um todo contínuo,
intramuros acadêmicos, através da indivisível de seu destino. Ao fiar o
sistematização teórica do pensamento. espaço da diáspora com sons, danças,
Sodré desloca “a voz ativa dos sujeitos objetos, memórias, orixás e eguns, Sodré
de pensamento para a voz média dos (2017) se propõe a ver nesses espaços “o
sujeitos-objetos do ato de pensar- que todo mundo viu”, Contudo pensando
vivendo (e não viver pensando)” (p. 94). “o que ninguém pensou”, ou seja, uma
Dessa forma, amplia a possibilidade de filosofia genuinamente africana
compreender o pensamento filosófico no experienciada pelos sujeitos nos espaços
campo das vivências litúrgicas. litúrgicos.
Ao lançar o olhar sobre a diáspora Com notável erudição, o autor encampa
africana, Muniz Sodré trilha sobre o chão reflexões, que cruzam análises e

*
RENATO PASTI é mestrando em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER) pela
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

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perspectivas entre o saber sistematizado material se encontra separado da
filosófico do mundo ocidental com a “forma”, quando muito é representada
filosofia do pensamento Nagô. Os como uma imagem distorcida do
rompimentos causados pela diáspora “mundo das ideias”.
sobre os povos africanos são Se na tradição filosófica ocidental o ser é
contrastados como as estratégias de atomizado, na concepção Nagô, por
manutenção de um sentido original de outro lado, o ser só ganha existência à
mundo. Nesse sentido, o universo medida que faz parte da comunidade, ou
religioso se torna um espaço privilegiado seja, passa a existir, porque é integrado
para compreender as estratégias de ao grupo e, reciprocamente, o grupo é
manutenção das identidades culturais. O integrado a existência daquele. O
autor se apropria do conceito de Arkhé, coletivo expressa a existência do ser por
pertencente à filosofia grega pré- mediações simbólicas, ao passo que o ser
socrática, para representar o pensamento se torna um microcosmo do coletivo.
africano mítico como orientador e Sutilmente, Sodré (2017) percorre, com
amalgama social. o texto, a influência do pensamento de
No percurso da tessitura do texto, o autor Maurice Halbwachs1, mesmo que nem
alinhava símbolos e os significados sempre de forma objetiva, fica implícito
litúrgicos nagô à estrutura suprafísica do como a memória coletiva se enraíza no
pensamento, interpenetrando o tempo território religioso, em que se entende
corrente do presente ao tempo que o tradicional é reinventado mediante
descontínuo do litúrgico. Muniz Sodré a necessidades presentes. “O terreiro de
intercruza o pensamento nagô com o candomblé é a organização responsável
pensamento platônico, no sentido de por um tipo de visibilidade, portanto,
entender a dicotomia entre a aquilo que transforma em existente o
materialidade, àiyé ou physis, submetida suposto inexistente [...]” (SODRÉ, 2017,
às vicissitudes do tempo, em intercessão p. 100). O terreiro de candomblé é,
com as representações perenes do mundo portanto, o espaço de realização
imaterial, no pensamento socrático existencial grupo, território
representado como mundo das formas, reterritorializado quanto ancestralidade e
no Nagô compreendido como orum. espiritualidade.
Ao aproximar o pensamento filosófico Em referência ao pensamento Nagô, o
ocidental do pensamento nagô, enfatiza corpo é concebido no mundo sensível,
que, ao contrário do pensamento pelos sentidos, “pelo sentir do corpo, o
epistêmico ocidental, o intelectual homem não está somente no mundo, mas
africano não deriva de uma escola este está nele” (SODRÉ, 2017, p. 106),
doutrinária, nem remete o pensamento a assim, “no interior da configuração
um caminho individual, mas sim à simbólica dos nagôs o corpo humano é
coletividade, ao vínculo intergeracional. permeável a mundo histórico e cosmo
Ainda afirma que a experiência do mítico, exibindo ritualisticamente esta
pensar Nagô se estrutura na sua singularidade” (SODRÉ, 2017, p.
indivisibilidade do fazer e do 121). Enquanto parte, o sujeito se
pensamento, em contraste com a “soma” ao grupo, o que segundo Sodré
perspectiva grega, em que o fazer caracteriza-se como corporeidade.

1
Refere-se aos alinhavos da memória coletiva,
reflexão presente na obra “A memória coletiva”,
do autor supracitado.

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Assim o corpo físico e o corpo social são do corpo como seu território, o autor
enlaçados em uma mesma simbologia, intercruza o pensamento nietzschiano e
que constitui a ossatura da existência do freudiano em direções, que buscam
indivíduo. Para compor o tecido de evidenciar como o espaço e o corpo se
significados do pensamento Nagô, Sodré interpenetram simbolicamente. O ritual
(2017) salienta que o corpo físico é exerce função de mediação entre o
marcado pelo pensamento social, assim incorpóreo e o corpóreo, vinculando essa
como sua trajetória biográfica compõem bidimensionalidade. O simbólico ganha
um todo maior, que é o destino. Ao potência de existência, representado no
abordar o destino como o indicador das corpo multidimensional, pois “para além
ações no presente, compreende que os de carne, o corpo e suas representações
destinos individuais são derivativos da podem ser concebidos como território
capitalização de energias do corpo onde se intercruzam elementos físicos e
social, pela transmissão do axé no grupo, míticos, coletivos e individuais,
dando continuidade a arkhé. Essa erigindo-se, então, fronteiras e defesas”
dimensão implica em conceber a (SODRÉ, 2017, p. 130).
importância dos aspectos divinatórios, A pertinência da obra Pensar nagô se
ou seja, de seguir as potencialidades de expressa na dissolução das assimetrias
um caminho através de Ifá. Em outras entre a filosofia ocidental e o
palavras, o indivíduo se realiza enquanto
pensamento nagô, uma vez que o autor
ser nos significados de continuidade, se apoia nas analogias entre as correstes
quando o que traz sentido ao mundo, filosóficas de pensadores ocidentais e a
orienta suas ações e cria o sentido de liturgia do candomblé. A sutileza das
pertencimento. O caminho divinatório dá análises nem sempre traz de forma
sequência aos mitos fundadores,
objetiva o curso das analogias,
realocando os destinos pessoais na delegando a quem lê, a capacidade e a
grandeza da narrativa do grupo. A sensibilidade de aproximar, diferenciar e
existência dos indivíduos no pensamento perceber as mensagens implícitas
Nagô compõe uma “liturgia corporal”, sugestionadas no texto. A erudição do
em que os corpos dos antepassados autor se apresenta como um desafio ao(à)
conduzem a narrativa sobre os corpos leitor(a), exigindo tanto a atenção como
dos vivos. Significa dizer que a memória familiaridade com as liturgias do
coletiva transcende a inscrição nos candomblé, além de um conhecimento
corpos vivos e conecta-se ao todo razoável das correntes filosóficas e dos
pretérito, ao existencial e ao devir. autores do cânone ocidental.
O autor compreende que na percepção Outro aspecto que torna o texto
Nagô, as dualidades corpo/espírito, instigante, e potencialmente inovador, é
ara/emi, orum/àiyé correspondem aos a dimensão em que Sodré (2017) coloca
alinhavos cosmológicos, que unem o o pensamento filosófico. A
corpo à diversidade das representações, democratização do conceito rompe com
de modo que o sujeito interage com o elitismo e a hierarquização
várias dimensões existenciais, eurocêntrica, passando do pensamento
interconectadas pela lógica dos ritos, descartiano “cogito, ergo sum”, ou
razão em que se faz existente o divino e “penso, logo existo”, para a dimensão
o mundano, unindo sentidos de existencialista materialista, “Sum, ergo
existência e compondo a narrativa da cogito”, abrindo espaço para novas
comunidade litúrgica, egbé, no tempo. possibilidades e formas do pensar
Ao examinar o espaço ritual e a função

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filosófico. A filosofia a toque de histórico com o pensar vivendo,
atabaques caminha na mesma lógica, ganhando a dimensão do pensamento
que a poesia d’O operário em e/ou “a dimensão da poesia”.
construção, de Vinícius de Morais, ou da
poesia Ai se sêsse, do poeta popular Zé
da Luz, onde o ser poeta ou o ser filósofo Recebido em 2018-05-28
Publicado em 2018-08-07
se corporifica na(no) “soma” do ser

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