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RESUMO
A tese “Apurando os sentidos: sonoridades, performance e imagens nos rituais de
Umbanda em Corumbá”, defendida em 2013, buscou investigar o campo das religiões
afro-brasileiras, em especial a Umbanda, em locus ainda pouco presente na literatura
sobre o assunto. Trata-se do município de Corumbá, situado no coração do Pantanal, no
Estado de Mato Grosso do Sul. Observou-se que, no âmbito das religiões e, mais
especificamente, no universo do Candomblé e da Umbanda, o corpo constitui poderoso
instrumento que tanto viabiliza como intensifica a comunicação entre o mundo
espiritual e o mundo físico. Nos processos de incorporações espirituais, os corpos
reúnem um extenso rol de possibilidades que expressam faces peculiares do universo
pesquisado. A linguagem corporal, juntamente com o som dos tambores e os pontos
cantados, constitui um dos principais pilares dos rituais abordados. Ademais, a profusão
de orações, toadas e mitologias conferem à religiosidade afro-brasileira inestimável
riqueza no que diz respeito à cultura oral por meio de sua tradição. As letras dos pontos
cantados revelam seu manancial simbólico e beleza estética somando-se às sonoridades,
vestimentas, códigos gestuais e coreografias.
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Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
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Mestre e Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).
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Introdução3
Primus always maintained that she danced not to entertain but rather to help people
better understand each other4.
Uma das grandes contribuições de Marcel Mauss à Antropologia foi lançar luz
ao corpo como um objeto de estudo relevante para a disciplina. Partiu de um incômodo,
pois esse assunto costumava estar inserido nos discursos antropológicos de sua época
em uma gama de “diversos” aspectos, cujas aspas são do próprio autor.
Sabia muito bem que o caminhar, a natação, por exemplo, todas as espécies
de coisas desse tipo, são específicas de sociedades determinadas; que os
polinésios não nadam como nós, e que minha geração não nadou como nada
a geração atual. Mas que fenômenos sociais eram esses? Eram fenômenos
sociais “diversos”, e, como essa rubrica é um horror, pensei várias vezes
nesse “diversos”, ao menos toda vez que fui obrigado a falar disso, de tempos
em tempos (MAUSS, 2003, p. 402).
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Esse artigo é um dos desdobramentos da tese “Apurando os sentidos sonoridades, performance e
imagens nos rituais de Umbanda em Corumbá” defendida em agosto de 2013 como conclusão de
doutoramento realizado no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPCIS/UERJ). “A Tenda Nossa Senhora da Guia constitui o principal terreiro estudado e, por sua vez,
está inserida em um contexto mais amplo, a ACTHEO, definida, principalmente, por relações de
parentesco e território, em que nem todos os indivíduos compartilham a mesma religião. Ao contrário,
englobam evangélicos e católicos nesse universo, constituindo, assim, uma diversidade religiosa.
Portanto, o território, a ascendência de escravos negros, a condição de quilombolas e os laços familiares
são os elementos em comum. Somente os integrantes da Tenda, incorporam a religiosidade de matriz
africana aos elementos anteriores, corroborando a hipótese de íntima inter-relação entre a afirmação da
identidade negra, a prática religiosa de matriz africana, os laços familiares e a relação com o território.
Nesse sentido, podemos dizer que esse último constitui um importante elemento de materialização desse
processo, pois os atores sociais inseridos nesse contexto cultivam e aprofundam suas relações
identitárias, também, a partir dele” (ROCHA, 2013, p. 56/57).
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Primus sempre defendeu que ela dançou não para entreter, mas sim para ajudar as pessoas a entender
melhor umas as outras.
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Compreendemos não somente as coreografias ou gestos, cumprimentos ou
movimentações no contexto ritual como linguagem corporal. Na verdade, ela é
constituída por inúmeros elementos conscientes ou não, frutos de complexos processos
de sociabilização e constituição das identidades individuais e coletivas. Sobre os
movimentos corporais, Le Breton (2009) afirma:
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corporeal intelligence, translating then into the often imperfect medium of
language5 (ROYCE, 1977, p. xxi).
Não existe ampla literatura que verse especificamente sobre a linguagem corporal nos
rituais de Umbanda. Em uma bela passagem, Bastide (1983) descreve o processo de
possessão em um ritual de Candomblé:
Agora não são mais os negros, os mulatos, e muitas vezes também os brancos
– são os deuses da África que dançam Os movimentos adquirem uma beleza
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Barbara Browning faz a seguinte observação na conclusão de Samba: Resistance in Motion: "Muitas
coisas que eu aprendi no Brasil eu aprendi com o meu corpo, e foi só muito tempo depois que eu
comecei a ser capaz de articular, por escrito, o que eu tinha vindo para compreender a dança
"(1995:167). Como o título indica, ela está interessada na resistência cultural das culturas das diásporas
afro-brasileiras e Africanas. Sua tese é de que a dança, especialmente o samba, mas também danças de
carnaval, as danças religiosas de candomblé, e os movimentos da capoeira, uma tradição da arte marcial,
oferece uma indicação da resistência que não pode ser expresso em palavras. Browning defende uma
inteligência corporal e danças que escrevem seus próprios significados (ibid.: xi). Ela mesma, como a
maioria dos estudiosos que trabalham nesta área especializada, funciona a partir de uma inteligência
corporal, em seguida, a tradução para o meio, muitas vezes imperfeita da linguagem.
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rítmica que tambores, dobram-se, viravolteiam harmoniosamente, os
músculos são oferendas líricas, os braços sinuosidades sensuais (BASTIDE,
1983, p. 300).
Corumbá, 23/04/12.
Fonte: A autora, 2013.
1 O corpo em transe
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Bairrão (2008) parte do “método Laban” denominado “análise do movimento” para
descrever e discriminar “movimentações corporais típicas” de dez categorias de
espíritos ao “possuírem” médiuns em transe. São eles, de acordo com a classificação e
ordem apresentada pelos autores: Exus; Pomba-giras; Marinheiros; Baianos; Baianas;
Boiadeiros; Pretos-velhos; Crianças; Caboclos e Caboclas.
Corumbá, 23/04/12.
Fonte: A autora, 2013.
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sensualidades, enfim, um ambiente repleto de manifestações diversas, toda a
exuberância presente na religiosidade afro-brasileira6.
Para o pai de santo responsável pela Tenda Nossa Senhora da Guia, o chão de
terra batida e os pés descalços durante todos os trabalhos e Festas são importantes para
estabelecer a conexão energética ideal com as entidades espirituais. Os movimentos e as
danças ocorrem de acordo com a linha que está atuando no momento. Por exemplo, se
for referente à Ibejada, isto é, a linha das crianças, elas pedem e ganham doces e
brinquedos, chupam pirulitos, pulam, correm, sentam no chão para brincar
individualmente ou em grupo, riem e gritam. Os médiuns incorporados de entidades
infantis brincam com as crianças presentes na Festa de Cosme e Damião. Os Caboclos
ajoelham uma das pernas fazem os gestos de atirar flechas para cima enquanto dão
gritos de saudação: “Iô, Iô, Iô”! Os Pretos-Velhos andam curvados segurando rústicas
bengalas tortas de madeira.
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Sobre o tema, Martins (2011) discorre: Oxalá: São sons místicos e muito suaves, predispondo a paz e a
elevação espiritual. Para esse Orixá a dança é dispensada, pois em respeito e louvação todos os médiuns
ficam ajoelhados; Nanã: Devem ser cantados pontos em tom baixo, trazendo paz e harmonia. A dança
deve ser realizada de forma lenta, com uma mão nas costas e a outra estendida para baixo, como se
estivesse tocando as águas paradas dessa divindade; Xangô: Sons graves e cantados com muita vibração.
Durante a dança, os médiuns mantêm o corpo levemente curvado e fecham as mãos como se trouxessem
as ferramentas desse Orixá; Yemanjá e Oxum: Sons suaves e emotivos, com danças que lembram o
movimento das águas. As mãos durante a dança devem realizar movimentos circulares, como quem
agita a água. Para Yemanjá a palma das mãos deve permanecer virada para baixo, e para Oxum virada
para cima, como se fossem espelhos; Inhansã e Ogum: Para Inhansã a dança deve ser executada
mantendo-se um braço para trás e outro estendido para cima, com movimentos circulares, obedecendo
ao ritmo dos atabaques; Na gira de Ogum os atabaques devem manter a vibração intensa, e a dança
segue com passos firmes e mãos dispostas para frente entrelaçando-se como se estivessem cruzando
espadas; Oxóssi (Caboclos): Os sons lembram ritmos indígenas, porém, devem ser mais acelerados. A
dança segue o som dos atabaques mantendo os passos rápidos e os braços indicando o atirar de flechas.
Obaluaê: Os atabaques entoam ritmos fortes e a dança é realizada com as duas mãos fechadas e
sobrepostas, dando a impressão de “remadas”, tendo um pé sempre à frente do outro; Ibeji: Sons suaves
com danças ligeiras e alegres. As mãos, durante a dança, devem estar estendidas para cima, com os
dedos indicadores apontando para o alto como se estivessem tocando em balões suspensos; Pretos
Velhos: Sons suaves e cantados em tom baixo. A dança deve ser realizada com o corpo curvado, as
mãos apoiadas no joelho; Exu/Pombagira: sons vibrantes com danças ritmadas e a palma das mãos
viradas para baixo com os dedos apontando para o chão. (MARTINS, 2011, p. 99-101).
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Foto 03 – Ibejis e crianças brincam
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Foto 04 – Caboclos chegam
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Foto 05 – Pombajira gargalhaTrabalhos da Tenda.
Corumbá, 30/09/11.
Fonte: A autora, 2013.
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Barbosa; Bairrão (2008) comentam:
Foto 07 – Pombajira
Corumbá, 30/09/11.
Fonte: A autora, 2013.
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Muitos recorrem a ela a fim se solucionar problemas de ordem afetiva ou sexual.
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Em seu estudo “O caso da Pomba-gira: reflexões sobre crime, possessão e
imagem feminina”, Contins (2009) conclui:
O Exu Capa Preta, entidade incorporada por Joãozinho, pai de santo da Tenda
Nossa Senhora da Guia, tem postura ereta e seus movimentos são amplos e costuma
girar graciosamente abrindo os braços e dançando com sua capa preta reluzente.
Frequentemente dança com as Pombajiras no terreiro, bebe muita cerveja e fuma
charutos. Canta de forma desenvolta e em alto volume.
No entanto, muitas outras categorias de exus andam curvados, com movimentos
pesados e voltados para o chão. Sobre o exu, comentam Barbosa e Bairrão: “Muitas
vezes movimenta-se próximo ao chão, quase ajoelhado, com o tronco encurvado, os
braços para trás e as mãos retorcidas, por vezes tensas. Outras vezes, aparece andando,
mas geralmente com o tronco curvado” (BARBOSA; BAIRRÃO, 2008, p. 227).
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Foto 08 – Exu Capa Preta e Pombajira
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Foto 09 – Exu na Festa de Exus
É possível observar na fotografia que uma pessoa aproxima uma das mãos do
Exu incorporado. Barbara (2002) explica que as sete aberturas do corpo humano são
relacionadas a Exu. Referem-se aos cinco orifícios acrescidos do umbigo e a parte
central da cabeça, local destinada para a entrada do orixá. Pode-se perder ou ganhar
energia pelas palmas das mãos ou solas dos pés. Por esse motivo, os fiéis costumam
virar suas palmas das mãos na direção das entidades (BARBARA, 2002, p. 69).
É interessante notar que, nos rituais, os fiéis participam ativamente das
cerimônias. Obedecendo a certas normas e hierarquias, respeitadas por todos os
presentes, circulam pelo ambiente, interagem com as entidades, direcionam-se aos
médiuns a fim de receber passes, pedem conselhos, cantam e batem palmas, conversam
e riem com as entidades. Nas festas, tudo isso é intensificado, pois aliado a toda essa
movimentação, fiéis e visitantes, adultos e crianças bebem água, cerveja, refrigerantes,
comem o que é oferecido como frutas ou fartas refeições, geralmente após o
encerramento dos rituais.
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Notamos que o convívio constante dos adeptos com o mundo espiritual
constituída por seus orixás e variadas entidades, acabam por formar uma grande família
ampliada onde os hábitos, as preferências, os valores, as expressões corporais e sonoras
são compartilhadas e conhecidas por seus integrantes.
Considerações
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Encontra-se disponível um espaço virtual para o acesso ao acervo de fotos e vídeos da etnografia
realizada pela autora deste artigo. A quem interessar possa, o link é: http://carmem.smugmug.com.
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Referências
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. “Etnografia: saberes e práticas”.
In: PINTO, Céli Regina Jardim; GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. (Org.).
Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008, p.
9 a 24. (Série Graduação).
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MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
PEIXOTO, Clarice (Org). Antropologia & Imagem: narrativas diversas. Rio de Janeiro:
Garamond/FAPERJ, 2012, p.127-144.
SEEGER, A. Por que os índios Suyá cantam para suas irmãs? In: VELHO, G. (Org.).
Arte e sociedade. Tradução de Ilana Strozenberg. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
______. The Drums of Affliction: a Study of Religious Processes among the Ndembu of
Zambia. Ithaca, New York: Cornell University, 1981.
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