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JULIANNA ROSA DE SOUZA

A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS:


REFLEXÕES SOBRE ARTE E RELIGIÃO NA PRÁTICA
ARTÍSTICA DE AUGUSTO OMOLÚ

Dissertação de Mestrado apresentada


ao Programa de Pós-Graduação em
Teatro da Universidade do Estado de
Santa Catarina - UDESC, Linha de
Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e
Subjetividade, como pré-requisito para a
obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Brígida


de Miranda

FLORIANÓPOLIS - SC
2014
S729d Souza, Julianna Rosa de
A dramaturgia da dança dos orixás: reflexões sobre
arte e religião na prática artística de Augusto Omolú.
/ Julianna Rosa de Souza. – 2014.
194 p. : il. color. ; 21 cm.

Orientadora: Maria Brígida de Miranda


Bibliografia: p. 147-155
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de
Santa Catarina, Centro de Artes, Pós-graduação em
Teatro, Florianópolis, 2014.

1. Dramaturgia. 2. Dança dos Orixás. 3. Augusto


Omolú. I. Miranda, Maria Brígida de. II. Universidade
do Estado de Santa Catarina. Pós-graduação em Teatro.
III. Título.
CDD: 306.484 – 20.ed.

Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC


JULIANNA ROSA DE SOUZA

A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS:


REFLEXÕES SOBRE ARTE E RELIGIÃO NA PRÁTICA
ARTÍSTICA DE AUGUSTO OMOLÚ

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa
Catarina - UDESC, Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas,
Corpo e Subjetividade, como pré-requisito para a obtenção do
título de Mestre.

Banca Examinadora:

Orientadora: ___________________________________
Profa. Dra Maria Brígida de Miranda
Universidade do Estado de Santa Catarina

Membros:
___________________________________
Profa. Dra Tereza Franzoni
Universidade do Estado de Santa Catarina

___________________________________
Prof. Dr. Julio Tavares
Universidade Federal Fluminense

Florianópolis, 26 de março de 2014.


A Augusto Omolú, in
memória, por me mostrar o
infinito da criação artística a
partir da energia dos orixás.

Ao meu companheiro Lau


Santos, que com seu amor e
generosidade compartilhou
cada instante desta escrita.
AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da


Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGT /
UDESC) e a CAPES, meus agradecimentos sinceros a
estas duas instituições, pelo suporte, apoio e incentivo à
pesquisa; a Francini, secretaria do PPGT/UDESC, por
sua paciência, disponibilidade e atenção; a Sandra
Lima, in memoria, por sua presença radiante no início
desta pesquisa; a orientadora, professora doutora Maria
Brígida de Miranda, por acompanhar o processo desta
dissertação.
À minha mãe, Marlene Rosa, por me acolher
sempre em seus braços, por ser amiga, companheira,
guerreira e por demonstrar em cada gesto o seu amor
incondicional. Ao meu pai, Tulio César de Souza, por
estar presente em minha vida. Aos meus irmãos,
Lucinéia Ávila, Ricardo Ávila, Luciana Ávila e Júlia Rosa
de Souza, por estarem ao meu lado de uma maneira tão
simples, generosa e sincera. Agradeço a vocês por me
ensinarem ao longo desses anos a preciosidade da
palavra família.
À Andreia Rosa, por compartilhar comigo as
diferentes etapas desta pesquisa, por ficar acordada nas
noites de finalização deste estudo, por sua atenção e
carinho, por seu amor que ultrapassa os laços fraternos.
À Neuza Maria Vieira, por abrir as portas de seu
lar, estender seus braços, vibrar comigo nos momentos
de conquista, não me deixar desanimar frente aos
desafios, enfim, obrigada por me presentear com sua
amizade.
Às minhas amigas, Paula Regina Corrêa, Elaine
Arnold e Pâmela Jung, pelas conversas rápidas, pelos
debates longos, pelos risos e choros, pela alegria de
cada encontro e diálogo.
À Natalia Xavier, pelas aulas divertidas de inglês
e por me auxiliar na tradução do abstract desta
dissertação.
Ao professor doutor, Edélcio Mostaço, por sua
participação na banca de qualificação. A professora
doutora, Tereza Franzoni, por sua atenção e dedicação
nas aulas de metodologia, pelas sugestões de leitura,
pela participação na banca de qualificação e defesa
desta dissertação. Ao professor doutor, Júlio Tavares,
que além dos diálogos cheios de ginga, aceitou o convite
para a banca de qualificação e defesa desta dissertação.
Ao Mestre Garrincha, pelo jogo da capoeira no Rio
de Janeiro e pelas conversas sobre esta luta, arte e
dança.
Aos amigos artistas de Salvador, Adriana Oliveira,
Silvio Almeida, Denise Pitagoras, Firmino Pitanga e
Giovanni Luquini que gentilmente abriram suas portas e
compartilharam comigo seus saberes.
Aos amigos de Florianópolis, Milena Abreu,
Camilla Prats, Gabriela Bresola, Fábio Brüggemann, por
me incentivarem, cada um de uma maneira especial,
durante este percurso de pesquisa.
Aos amigos escritores de Porto Alegre, Ronald
Augusto e Denise Freitas, pelas conversas sobre poesia,
identidade e a arte. A Marcelle Coelho por fazer parte do
momento inicial desta pesquisa e por sua recepção em
Porto Alegre.
A Benjamin Abras e Lorena Rocha, pelos
encontros e conversas sobre candomblé, umbanda,
ritual, dança, arte visuais, teatro e performance.
A Andrea Duarte, atriz e produtora, que pude
conhecer em Salvador durante o Seminário de Augusto
Omolú. Obrigada por compartilhar comigo suas
experiências sobre a cultura indígena.
Aos participantes do Seminário - Sarah, Julia,
Pria, Camilo, Marina, Regina, Mayane, Ubirajara, Mestre
King e todos que estiveram presentes durante um mês
em Salvador, trocando conversas e experiências sobre a
dança, o canto e o batuque.
Aos colegas da turma de mestrado e doutorado,
especialmente a Juarez Nunes, Michele Louise
Schiocchet (Mika), Valquíria Vasconcelos e Zeca Nosé
pelas reflexões durantes as aulas enas jornadas teatrais.
A Cássia Miranda, que tive a felicidade de
conhecer nestes dois anos do mestrado em teatro, onde
compartilhamos as mudanças da pesquisa, a expectativa
da qualificação e da defesa.
Por fim, os meus sinceros agradecimentos, a
todos/as que de alguma maneira torceram e contribuíram
para a realização deste trabalho.
“O que os livros escondem,
as palavras libertam,
e não há quem ponha
um ponto final na história.”
(Conceição Evaristo)
RESUMO

O objetivo do presente escrito é apresentar a


Dramaturgia da Dança dos Orixás de Augusto Omolú,
ator/dançarino brasileiro que foi integrante do grupo
dinamarquês Odin Teatret, dirigido por Eugenio Barba.
Por quase duas décadas, o artista buscou codificar os
movimentos da dança dos orixás, prática presente no
ritual do candomblé. Este trabalho disserta sobre a
energia do orixá como impulso para a criação cênica a
partir do discurso do artista. Assim, a dramaturgia era
construída entre o movimento, que traz em si a mitologia
e a relação do orixá com os elementos da natureza, e o
texto dramático. Para tanto, além dos referencias
teóricos e bibliográficos, serão utilizados os seguintes
materiais: a entrevista feita com o artista, a experiência
de observação participante no Seminário da Dramaturgia
da Dança dos Orixás em Salvador e o material
videográfico do espetáculo Orô de Otelo (1994).

Palavras-chave: Dança dos Orixás. Candomblé.


Dramaturgia. Augusto Omolú. Antropologia Teatral.
ABSTRACT

The objective of this writing is to present The Dramaturgy


of the Orisha Dance by Augusto Omolú, Brazilian
actor/dancer who was a member of the Danish group
Odin Teatret, directed by Eugenio Barba. For nearly two
decades, the artist sought to codify the orisha dance
moves, a practice present in the Candomble ritual. This
dissertation discusses, from the discourse of the artist,
about the energy of the orishas as an impulse for the
scenic creation. In this way, the dramaturgy was built
between the movement, that brings in itself the mythology
and the relationship of the orishas with the elements of
nature, and the dramatic text. Therefore, beyond the
theoretical and bibliographical references, the following
materials will be used: the interview with the artist, the
experience of participant observation in the Dramaturgy
Dance of the Orishas Seminar in Salvador and the
videographic material from the spectacle Orô de Otelo
(1994).

Keywords: Dance of the Orishas. Candomble.


Dramaturgy. Augusto Omolú. Theatre Anthropology.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................... 19

1 OS SUJEITOS DA PESQUISA: RELATOS,


EXPERIÊNCIAS E TRAJETÓRIAS .............................. 27
1.1 SOBRE OS CAMINHOS DA PESQUISA: A
ENTREVISTA EM PORTO ALEGRE E A EXPERIÊNCIA
NO SEMINÁRIO EM SALVADOR .................................. 29
1.1.1 De chapéu e bengala: o primeiro encontro com
o artista pesquisado .................................................... 33
1.1.2 O corpo fala, a fala do corpo: apresentação do
aporte teórico para contextualizar a experiência no
Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em
Salvador ....................................................................... 40
1.1.3 A experiência: um relato da pesquisadora
sobre a observação participante em Salvador.......... 50
1.2 NO BATUQUE DO TERREIRO NASCE A DANÇA
DE OMOLÚ: O SUJEITO PESQUISADO E SUA
TRAJETÓRIA ARTÍSTICA ............................................ 63
1.2.1 Ao som dos tambores a dança encontra
Omolú: o contato com o candomblé e a descoberta
da dança dos orixás .................................................... 64
1.2.2 “Uma dança em outra forma”: a participação
de Augusto Omolú na ISTA em Londrina .................. 69

2 A ENERGIA DO ORIXÁ COMO IMPULSO PARA


A CRIAÇÃO ARTÍSTICA E AS TENSÕES NO
ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA TEATRAL ..... 79
2.1 A DANÇA DO RITUAL: O FESTEJO E O
RELIGIOSO NO CRUZAMENTO DA DANÇA, DO
TOQUE E DO CANTO .................................................. 81
2.2 OBSERVAÇÕES SOBRE A ANTROPOLOGIA
TEATRAL: O MOVIMENTO, O GESTO E A AÇÃO
CÊNICA ........................................................................ 91
2.2.1 Uma passagem sobre a pré-expressividade no
trabalho do ator ........................................................... 92
2.2.2 O espetáculo da tradição ou uma tradição
espetacular? ................................................................ 96
2.2.3 O axé de Augusto Omolú e o sats de Eugenio
Barba: diálogos sobre a noção de energia no
trabalho do ator ......................................................... 107

3 A CERIMÔNIA DE OTELO: A DRAMATURGIA


DA DANÇA DOS ORIXÁS E O TEXTO DRAMÁTICO DE
WILLIAM SHAKESPEARE ........................................ 115
3.1 SOBRE O REGISTRO VÍDEOGRAFICO E A
MONTAGEM DO ESPETÁCULO ................................ 117
3.2 O MOURO DE VENEZA DE WILLIAM
SHAKESPEARE NA DANÇA DOS ORIXÁS DE
AUGUSTO OMOLÚ .................................................... 125
3.2.1 Dramaturgia: texto e(m) movimento ............. 127
3.2.2 Três personagens shakesperianos na dança
dos orixás de Augusto Omolú ................................. 129

PÁGINAS FINAIS ............................................ 141


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................ 147
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...................... 153
ANEXOS .......................................................... 157
19

INTRODUÇÃO

Abro uma página do programa de palavras que


está em meu computador. Abro com esta folha um novo
espaço, uma possibilidade outra de percepção sobre a
pesquisa vivida até aqui. Abro, no sentido metafórico, um
espaço de comunicação diferente daquele registrado em
folhas anteriores, pois ao abrir este documento faço dois
movimentos intencionais, um de estar distante da
pesquisa e consequentemente descrevê-la enquanto
experiência e o segundo de ser sujeito e ao mesmo
tempo objeto de minha própria pesquisa.
Nesse movimento paradoxal, meu corpo é
memória das experiências vividas e para traduzir em
palavras aquilo que é invisível, a experiência em si,
torna-se necessário de tempo em tempo abrir “páginas”
e com elas espaços de silêncio. A morte de Augusto
Omolú, artista cujo trabalho é foco desta pesquisa,
denuncia as brechas do binômio presença/ausência; traz
á tona a tarefa desafiante de (re)contar sua prática
artística e consequentemente um pouco de sua
trajetória.
Antes de apresentar o objetivo da pesquisa e o
foco de cada capítulo desta dissertação, peço ao leitor
licença para contar um pouco sobre minha trajetória
como atriz e pesquisadora e como isto me levou à
conhecer a prática artística de Augusto Omolú e
consequentemente o interesse em pesquisar o seu
trabalho sobre Dramaturgia da Dança dos Orixás.
Aos 17 anos ingressei na Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC), após prestar
vestibular para o curso de Pedagogia. Na mesma época
iniciei um curso livre de improvisação e interpretação
teatral em uma companhia de teatro de Florianópolis.
20

Estas duas áreas, o teatro e a educação, fizeram parte


do meu processo de descoberta como uma jovem negra
do sul do país, já que neste mesmo percurso recebi o
convite do professor doutor Paulino de Jesus Cardoso
para trabalhar como bolsista no Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros (NEAB).
A partir de então mais uma área aguçou meu
olhar: os estudos étnicorraciais e as discussões sobre
identidade cultural, vindas principalmente dos escritos do
intelectual jamaicano Stuart Hall que chegavam em
minhas mãos através dos debates do NEAB e das aulas
da professora doutora Claúdua Mortari sobre a História
das Populações Africanas em Santa Catarina, título e
tema da disciplina oferecida no curso de História da
UDESC.
As pesquisas sobre cultura e história africana e
afro-brasileira, os debates sobre multiculturalismo,
educação étnicorracial, racismo, estudos culturais
aconteciam por meio de congressos, seminários,
reuniões e viagens de estudos do Núcleo que permitiam
que os professores pesquisadores de outras instituições
dialogassem conosco.
Cito, por exemplo, alguns momentos marcantes,
como a conferência de abertura, em julho de 2010, no
VI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as
Negros/as – sediado na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), que teve como ministrantes os
pesquisadores Kabengele Munanga e Boaventura Sousa
Santos; as experiências como bolsista de extensão nas
oficinas do Baú de Histórias Africanas; a participação
como bolsista voluntária na pesquisa sobre a
implementação da Lei 10.639/20031 nas escolas da rede

1
Esta é uma Lei Federal implementada no ano de 2003 que
estabelece o ensino de História Africana e Afro-Brasileira como
21

estadual e municipal; além do convívio e das conversas


diárias no espaço do NEAB entre graduandos,
mestrandos e doutorandos das áreas de história,
geografia, biblioteconomia e pedagogia.
Como disse anteriormente, em paralelo a esta
experiência acadêmica, fiz o curso de interpretação,
improvisação e montagem teatral, sendo que entre 2009
e 2010 fui contratada para integrar o elenco de uma
companhia teatral de Florianópolis. Estar no palco me
trouxe outras reflexões, o que eu representava em cena?
Como e o que representar? De um lado, a poeira do
palco, de outro a rotina acadêmica como
bolsista/pesquisadora.
No segundo semestre de 2010 conheci a
professora Fátima Lima e o diretor e artista Lau Santos.
Nessa época o coordenador do NEAB propôs à
professora do Centro de Artes (CEART) uma parceria e
colocou-me como mediadora desse processo. O projeto
tinha como objetivo a criação e formação de um grupo
teatral, onde pudéssemos estabelecer discussões sobre
a representação racial por meio de uma prática artística
e política. O público seria qualquer jovem, artista,
professor, educador, interessado em uma prática artística
política engajada, que possibilitasse discutir e refletir
sobre as representações raciais na sociedade.
Com o grupo, participei de algumas
manifestações artísticas, mas em 2011, com o intuito de
escrever meu trabalho final de curso, disvinculei-me do
NEAB e logo da parceria com o CEART. Foi um ano de
intensas descobertas para mim, marcado principalmente

obrigatoriedade no sistema de ensino brasileiro, desde a educação


básica até o ensino universitário. Sobre isso pode-se pesquisar em
http://www.portaldaigualdade.gov.br/.arquivos/leiafrica.pdf acesso
em 20 de maio de 2014 ou ainda na página oficial do Ministério da
Educação (MEC): http://portal.mec.gov.br/
22

pela ida à Salvador e as experiências cênicas na cidade


de São José (SC).
Em Salvador fiquei por um mês e tive contato
com alguns artistas locais, como Denise Pitágoras, uma
artista visual que com muita sensibilidade expõe em suas
obras as fronteiras dos arquétipos baianos, ao mesmo
tempo que explicita as marcas de uma violência sofrida
no período da ditadura.
Conheci também os artistas e produtores
audiovisuais Silvio Almeida e Adriana Oliveira, que com
suas câmeras e lentes mostraram-me as cores da
fotografia e o projeto Mulheres D’Agua, um documentário
sobre mulheres lavadeiras e catadoras de mariscos com
cantos sobre os orixás d’água, Oxum e Iemanjá. Além do
coreógrafo e um dos primeiros negros formados na
Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia
(UFBA) Firmino Pitanga, conhecido como Mestre
Pitanga, que gentilmente abriu as portas de sua casa na
Ilha de Itaparica e me alojou durante a estadia em
Salvador.
Em São José, à convite de um grupo pequeno de
atores, surgiu o NAN – Núcleo de Atores Negros de São
José, com direção de Lau Santos o grupo tinha o
objetivo de realizar intervenções artísticas pelo Centro
Histórico da cidade. Diferente daquela primeira
experiência com o NEAB e o CEART, o NAN visava uma
estética teatral que trouxesse elementos culturais da
tradição afrocaterinense e até mesmo afrojosefense
muitas vezes “esquecidos” pela comunidade local.
Através da estrutura da própria cidade, como o
espaço do Museu, o Teatro Adolpho Mello e a Igreja do
Bonfim, o NAN recontava as histórias de São José sobre
outro prisma, colocando como protagonistas os poetas e
artistas negros locais. Alzímiro Lídio Vieira, Pedro Leite,
Capitão Amaro e o seu Cacumbi tornaram-se nossos
23

“personagens” principais e apareceram nas diversas


intervenções do NAN. Estas intervenções aconteciam
numa espécie de cortejo, percorrendo vários pontos do
Centro Histórico e concentrando-se por fim na Bica da
Carioca - um espaço que fora habitado pelas lavadeiras
de São José e que nas intervenções do NAN tornava-se
palco para as mais diferentes histórias.
As experiências artísticas com o NAN e a viagem
à Salvador tinham me instigado, por muito tempo fiquei
pensando sobre a noção de identidade cultural analisada
por Stuart Hall (2009) em seu texto que já traz no título a
intrigante questão: Que “negro” é esse na cultura negra?
Depois de voltar de Salvador era difícil não
pensar no cheiro da comida baiana, do aroma do dendê
e da tradição do acarajé, da força que tem a palavra axé,
do som dos tambores na Praça da Cruz Caída, da roda
de capoeira, do candomblé, das Festas de Largo, do
carnaval ou simplesmente do modo de caminhar, meio
gingado, de quem subia e descia as ladeiras da Cidade
Baixa e da Cidade Alta. Essas imagens ficaram em mim
e foi no final de 2011 que comecei a sentir a necessidade
de uma pesquisa teatral que se concentrasse sobre os
cruzamentos entre o teatro e o estudos culturais.
Decidi, então, dar continuidade aos estudos
acadêmicos e fazer uma disciplina como aluna especial
no Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) no
CEART. Nos corredores, eu sempre ouvia
artistas/pesquisadores comentando sobre seus trabalhos
e objetivos de pesquisa, poucos falavam sobre o
cruzamento entre o teatro e os estudos culturais, mas
muitos citavam o grupo dinamarquês Odin Teatret,
dirigido por Eugenio Barba, além dos espetáculos de
Peter Brook. Parecia-me que o Odin Teatret tinha certa
notoriedade, ao menos para alguns colegas deste
circuito artístico de Florianópolis.
24

Um dia, após uma longa conversa com Lau


Santos sobre minha intenção em pesquisar a
representação na cena teatral por uma perspectiva
crítica e amparada pelos estudos culturais, ele me conta
que há um brasileiro no Odin Teatret, cuja pesquisa
concentrava-se entre arte e religião, dança e
dramaturgia. Na mesma hora fiquei atônita: “como assim
um brasileiro no Odin Teatret?” Eu já havia assistido
vídeos de demonstração do trabalho do Odin, lido artigos
e livros de Eugenio Barba, e ainda havia conversado
com muitos colegas sobre o trabalho do grupo
dinamarquês, mas o nome de Augusto Omolú nunca fora
citado nessas conversas.
Fiquei impressionada por saber que havia um
integrante no Odin que era brasileiro, negro, nascido em
Salvador e que já estava lá por mais de uma década e
que ainda assim, embora o grupo dinamarquês tivesse
um reconhecimento considerável neste ambiente que eu
frequentava, pouco se sabia sobre o trabalho deste
artista brasileiro. Comecei a falar de Augusto Omolú nas
rodas de conversa com meus colegas/artistas e minha
surpresa foi maior, pois descobri que assim como eu,
eles também ficavam surpresos em saber que havia um
integrante brasileiro no Odin Teatret.
Augusto Omolú, brasileiro, negro, ator/dançarino
e integrante de um dos grupos teatrais de certa
repercussão internacional - era a minha deixa, como
dizemos nas coxias do teatro; era preciso pesquisar e
escrever sobre o trabalho deste artista, falar sobre a sua
relação com a arte e a religião e sua experiência no
grupo Odin. Nessa época, muitas perguntas começaram
a me interessar, por exemplo, como as identidades
culturais eram negociadas dentro do grupo Odin e
representadas em seus espetáculos?
Porém, alguns estudiosos como Rustom
25

Bharucha e Patrice Pavis haviam escrito materiais sob


uma perspectiva crítica de uma estética teatral
intercultural, questionando os limites entre o colonialismo
e o pós-colonialismo em alguns grupos teatrais, como o
próprio Odin Teatret. Meu olhar, precisaria ser mais
específico, então, voltei-me para a prática artística de
Augusto Omolú, especificamente a Dramaturgia da
Dança dos Orixás.
Depois da perda do artista, é claro que a
pesquisa passou por um longo processo de adaptação e
mudança, o foco permaneceu - a Dramaturgia da Dança
dos Orixás continua sendo o objeto desta dissertação.
Entretanto, foi necessário abrir um espaço para
apresentar a trajetória e história do artista. Assim, o
primeiro capítulo apresentará a história e trajetória do
artista, desde sua formação em ballet, dança moderna e
a dança dos orixás até a entrada ao grupo Odin Teatret.
No segundo capítulo a reflexão será sobre a
dança dos orixás enquanto prática presente no
candomblé e os conceitos da Antropologia Teatral, como
a noção de pré-expressividade, ação física e sats. Ainda
neste capítulo, discutirei a relação entre o canto, a dança
e o batuque – tripé apresentado pelo filósofo congolês
Fu-Kiau citado por Zeca Ligiéro (2011).
No terceiro capítulo apresentarei sequências de
imagem dos movimentos da dança dos orixás feitas por
Augusto Omolú em seu espetáculo Orô de Otelo (1994).
Neste capítulo a intenção será apresentar uma reflexão
entre a dramaturgia do movimento e o texto dramático,
no caso, Otelo de William Shakespeare. É necessário
dizer que durante este trabalho, considerarei a
Dramaturgia da Dança dos Orixás como uma pesquisa
artística em aberto, já que fora interrompida por uma
morte brutal do artista, assassinado em sua casa em
Salvador, dia 02 de junho de 2013.
26

Por se tratar de uma pesquisa cuja metodologia


está baseada na entografia e na auto entografia, ao
longo do texto utilizarei como fonte a minha própria
experiência de observação participante no Seminário da
Dramaturgia da Dança dos Orixás realizado em Salvador
entre janeiro e fevereiro de 2013. Além disso, serão
utilizados como materiais de pesquisa: a entrevista feita
com Augusto Omolú em maio de 2012 e a experiência
como espectadora ao assistir As grandes cidades sob a
lua – espetáculo do grupo Odin teatret apresentado no
VII Festival Palco Girátorio SESC, em maio de 2012.
Com o intuito de trazer o discurso do próprio
artista acrescentarei nesta reflexão como materiais
importantes, duas entrevistas publicadas de Augusto
Omolú (2010; 2012b) e a carta da integrante do Odin,
Julia Varley (2014), escrita após a morte do artista
brasileiro.
Nas próximas páginas falarei de energia, orixá,
dança, ritmo, atabaque, criação cênica e ritual.
Dissertarei sobre os movimentos da dança que junto a
mitologia dos orixás transformam-se em dramaturgia. A
seguir, apresentarei um artista baiano, negro, que ainda
menino viu no terreiro uma dança, ouviu o batuque e
viveu em sua trajetória as tensões entre a religiosidade e
a arte.
Portanto, quero reinterar a dedicatória feita no
início deste trabalho e dedicar as próximas páginas a
memória de Augusto Omolú.
27

CAPÍTULO UM

OS SUJEITOS DA PESQUISA: RELATOS,


EXPERIÊNCIAS E TRAJETÓRIAS

“Quando eu era pequeno, seis


ou sete anos, tinha mania de
imitar os orixás. Os orixás
chegavam se manifestavam,
ficavam dançando, mas eu
também ficava dançando
atrás, muito mais como um
divertimento, não tinha noção,
não tinha ideia do que estava
fazendo, mas para mim aquilo
tudo era meu mundo, era
minha vida ali dentro da roça”.

Augusto Omolú
28

Neste capítulo o objetivo é apresentar a


metodologia, os materiais da pesquisa e a trajetória
artística de Augusto Omolú. Em um primeiro momento,
descrevo dois eventos que considero importantes: a
entrevista em Porto Alegre com o artista pesquisado e a
participação no Seminário da Dramaturgia da Dança dos
Orixás em Salvador.
Acredito que antes de entrar numa reflexão
sobre o objeto deste trabalho é preciso escrever sobre a
pesquisa em si e sua metodologia. Aqui, opto por uma
estrutura dissertativa que procura valorizar este
processo, portanto, dedico logo no primeiro capítulo um
tópico que narra o encontro entre a pesquisadora e o
sujeito pesquisado; para posteriormente, contextualizar a
trajetória e formação artística de Augusto Omolú.
29

1.1 SOBRE OS CAMINHOS DA PESQUISA: A


ENTREVISTA EM PORTO ALEGRE E A EXPERIÊNCIA
NO SEMINÁRIO EM SALVADOR

“pôr-se de ‘fora’ é ainda


uma maneira de viver o fato
inelutável de que se está
dentro”
(Simone de Beauvoir)

A metodologia desta pesquisa em teatro


aproxima-se da concepção de etnografia e auto
etnogafria na forma como as define Sylvie Fortin (2009).
Sobre as contribuições da pesquisa etnográfica para a
prática artística, Fortin (2009) - professora do
Departamento de Dança da Universidade de Quebéc em
Montreal - explica que a etnografia distingui-se por
considerar a dimensão cultural, e principalmente a
inserção, ou participação, do/a pesquisador/a in loco; e
a auto etnografia “se caracteriza por uma escrita do ‘eu’
que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as
dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a
parte interior e mais sensível de si” (Fortin, 2009, p. 83).
Ao escolher a entografia e auto entografia como
metodologia acredito que é possível olhar para a prática
artística de Augusto Omolú e suas tensões culturais.
Assim, a entografia possibilita descrever, analisar e
refletir sobre as brechas existentes entre a dança dos
orixás, proveninente de uma prática religiosa, e o
processo de criação do artista; enquanto que a auto
etnografia acrescenta ao material um relato da minha
própria experiência em contato com o artista, marcada
principalmente por dois momentos: antes e depois de
30

sua morte.
Sobre os materiais de pesquisa ou dados
etnográficos a autora supracitada explica que estes
podem ser compreendidos por tudo aquilo à que
pesquisa se apóia. Forin cita alguns destes materiais,
como: “a seleção de documentos, a entrevista e a
observação participante” (2009, p. 80). Destaco que no
caso da presente pesquisa, situada na área teatral, os
dados etnográficos são utilizados a fim de contextualizar
a prática artística de Augusto Omolú, não se trata,
portanto, de uma pesquisa completamente etnográfica,
mas que apresenta características próximas a esta
metodologia.
Dessa maneira os materiais utilizados aqui são:
a pesquisa de campo e a observação participante feitas
no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em
Salvador, no período de 10 janeiro a 05 de fevereiro de
2013; a entrevista realizada em 06 de maio de 2012 em
Porto Alegre; a experiência como espectadora ao assistir
as As grandes cidades sob a lua, um dia antes de
realizar a entrevista; e as conversas informais com
artistas e/ou participantes do Seminário que tiveram
contato com Augusto Omolú.
Para além destes materiais, busco também uma
metodologia que valoriza a própria corporeidade do/a
pesquisador/a. Sobre isso, Forin destaca:
Seleção de documentos, entrevistas e
observação participante constituem os
tipos de dados etnográficos admitidos nos
escritos de metodologia, mas eu destaco
aqui uma nova tendência, ao menos
aparente no meio da dança: a de
considerar as reações somáticas do
pesquisador como um tipo de dado
etnográfico. A corporeidade do
pesquisador, suas sensações e suas
31

emoções sobre o campo, são


reconhecidas como fontes de informação
ao mesmo título que o pode ser uma
fotografia de uma obra em curso (Fortin,
2009, p. 80-81).

Considero importante esta inclusão de Forin


(2009) sobre as reações somáticos como materiais de
pesquisa, já que no campo artístico parece-me um
desafio descrever uma experiência sem citar os
estímulos e reações sensórias causados no corpo
daquele que participa e observa.
Para acrescentar, cito abaixo a compreensão de
Júlio Tavares sobre a importância da etnografia como
metodologia para a pesquisa. Tavares é professor doutor
e coordenador do Laboratório de Etnografia e Estudos
da Comunicação, Cultura e Cognição (LECCC) da
Universidade Federal Fluminense (UFF), seus estudos
serão utilizados nesta dissertação como referência tanto
para o entendimento da etnografia como para as
reflexões posteriores sobre o corpo e(m) movimento.
Segundo Tavares (2000, p. 80):
O etnógrafo e/ou pesquisador, na lida do
campo, trabalha, consciente
ou inconscientemente, com a intuição e
com a emoção, tópicos que
se explorados podem resultar no
desenvolvimento da consciência da
dimensão orgânica do ato intelectual.

Posso dizer, a partir de minhas interpretações,


que tanto Tavares (2000) quanto Forin (2009) indicam
caminhos para uma pesquisa que supere descrições
isoladas, a etnografia como metodologia pressupõe
elaboração, reflexão, análise e descrição de maneira
concomitante, assim é possível afirmar que a partir do
32

momento que repenso e descrevo a partir de minhas


experiências com Augusto Omolú analiso não só o
sujeito pesquisado como também o meu próprio papel
de pesquisadora. Consequentemente, minhas memórias
e percepções tornam-se materiais desta pesquisa.
Nestes dois anos de pesquisa, palavras como
energia, orixá, dança, corpo e movimento estiveram
presentes nas conversas com Augusto Omolú. Então,
como falar de tudo isso sem descrever as reações
sensoriais do meu próprio corpo no momento da
pesquisa? Pois bem, a partir dessa compreensão
metógologica, de uma pesquisa que considere a
corporeidade do/a pesquisador/a, apresento a seguir as
duas experiências mais marcantes desta pesquisa: a
entrevista e o seminário.
33

1.1.1 De chapéu e bengala: o primeiro encontro com


o artista pesquisado

Título: The Great Cities Under The Moon. Fonte: Odin Teatret &
CTLS ARCHIVES. Na foto Augusto Omolú e os integrantes do Odin
Teatret. Espetáculo: As grandes cidades sob a lua. Direção de
Eugenio Barba, com estréia no ano de 2003. Fotografia de Tony
D’Urso. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/current-
performances/the-great-cities.aspx acesso dia 10 de janeiro de
2014.

Era início de maio de 2012, o grupo Odin Teatret


viria participar da sétima edição do Festival Palco
Giratório SESC em Porto Alegre e na programação
estavam dois espetáculos: As grandes cidades sob a lua
(2003) e Ode to Progress (1997), ambos com Augusto
Omolú no elenco.
Ansiosa para o primeiro encontro com o artista,
34

preparei uma mala pequena com poucas roupas, fiz


contato com uma amiga de Porto Alegre para reservar o
ingresso e calculei o tempo e os quilômetros entre Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Tudo pronto, peguei meu
uno mille vermelho e fiz quatro horas e meia de viagem,
sem paradas. Em Porto Alegre, fui recebida por um casal
de escritores, o poeta Ronald Augusto e sua esposa,
escritora e historiadora, Denise Freitas. Foi através do
poeta negro, Ronald Augusto que pude perceber os
poemas de Cruz e Sousa2 sobre outro ponto de vista,
aguçando meu olhar para as complexas fronteiras
identitárias de ser negro e ser escritor no sul do país.
Depois de muita conversa sobre prosa e poesia,
chega, então, o dia do espetáculo. Era um sábado a
noite, dia 05 de maio de 2012, o ingresso estava na mão

2
João da Cruz e Sousa foi poeta negro catarinense, filho de
escravos e nasceu em 24 de novembro de 1861 em Desterro (atual
Florianópolis) e faleceu em 19 de março de 1898. Sobre sua vida e
obra é possível encontrar muitas informações, cito aqui a página
oficial da Fundação de Cultura Catarinense, especificamente, do
Museu Cruz e Sousa, cujo nome é em homenagem ao poeta. Sobre
isso consultar: http://www.fcc.sc.gov.br/cruzesousa/ acesso em 03
de maio de 2014. Cruz e Sousa é um dos referencias na literatura
brasileira quando se trata de simbolismo, sua poesia possui grande
complexidade. Peço licença ao leitor para trazer a voz do poeta e
escritor Ronald Augusto, que traz em seu texto Apontamentos
marginais: a poesia e a vida de Cruz e Sousa a seguinte afirmação:
“Dir-se-ia que a arte de Cruz e Sousa se desenha a partir da
interdição do seu corpo negro. Pode ser. E o poema tem algo do
estado de coisas do seu espírito. O poeta negro conspira no limite
entre vida e arte. Há som, sombra, luz e fúria (húbris) na poesia
deste homem da ilha do Desterro. Assim, malgrado a condição
emparedada em que o mundo insistia em confiná-lo – ou mesmo,
graças a ela -, Cruz e Sousa produziu sua poesia dissoluta,
provocante, cuja pulsão libertária sugere-nos que é “escrita em
sonho” e escrava da “embriaguez do ritmo, da sonoridade, da
música das palavras”” (Augusto, 2011, s/p).
35

para assistir As grandes cidades sob a lua3 no Teatro


SESC, no Centro Histórico da cidade, com início previsto
para as 20h. Cheguei uma hora antes com muita
tranquilidade e decidi subir as escadas em busca de uma
cafetaria ou um lugar onde pudesse aguardar até o início
do espetáculo.
Nesse percurso, notei que a casa estava cheia –
como se costuma dizer nas coxias do teatro. Enquanto
eu subia as escadas, descia uma mulher com cabelos
grisalhos soltos, sandálias de tiras e um sorriso leve no
rosto. De repente aquele silêncio, todos os olhos
voltavam-se a ela, era Julia Varley, atriz por quase trinta
anos no Odin e uma das fundadoras do grupo4 ao lado
de Eugenio Barba. Ela estava à procura de rosas
vermelhas, material que seria usado na cena do
espetáculo.
Depois disso, continuei meu trajeto até a
cafeteria. Sentei, li e reli o programa do espetáculo e
depois o cronograma do Festival. Observei a quantidade
de pessoas, que assim como eu, aguardavam o início do
espetáculo do Odin. Finalmente abriram as portas. E lá
estava um homem de cabelos brancos nos recebendo,
seria ele um personagem? Vestia roupas em um tom de
cinza claro, com um jaleco marrom e uma sandália de
couro. Fazia gestos simples para indicar as poltronas
disponíveis e não dizia uma palavra. Ali, a minha frente,
estava Eugenio Barba – diretor do grupo Odin Teatret.
No palco com as cortinas abertas estavam os integrantes
do Odin, numa espécie de segunda recepção. Busquei
imediatamente Augusto Omolú, mas não o encontrei no
palco. Procurei a melhor posição para sentar e apreciar
3
Nos anexos deste trabalho encontra-se o material de divulgação
deste espetáculo.
4
Esta informação foi retirada do site oficial do grupo Odin Teatret:
www.odinteatret.dk
36

as cenas deste encontro de 60 minutos.


A dramaturgia do espetáculo em questão era,
aos meus olhos, uma composição de várias esquetes ou
trabalhos individuais dos integrantes do grupo. A cada
momento um dos integrantes tomava o proscênio e
tornava-se por alguns instantes protogonista. Aos fundos
do palco, sentados em cadeiras, o restante do grupo
permanecia dando suporte ao “novo” protagonista da
cena, formando uma espécie de coro para aquele/a que
estava a frente. Esta base dramática aconteceu durante
todo o espetáculo, dando a impressão de uma colagem
teatral, com muitas músicas, cantos e textos em diversas
línguas, além das partituras corporais individuais (base
do trabalho físico do grupo).
No programa do Festival estava a sinopse que
divulgava o espetáculo da seguinte maneira:
Um espetáculo-concerto criado pelo Odin
Teatret no espírito de Bertold Brecht. A lua
observa e paira nas cidades que ardem
abaixo, das metrópoles da Europa até as
da Ásia Menor, de Hiroshima a Halle, da
China Imperial ao Alabama, de Saralevo a
Bagdá. Sua voz é irônica ou apavorada,
indiferente ou misericordiosa, fria ou
incandescente. Sua compaixão ignora a
melancolia e o consolo (Trecho Retirado
do Programa do 7º Festival Palco Girátorio
SESC, maio de 2012, disponível nos
anexos deste trabalho).

A descrição poética traz como protoganista do


espetáculo a “lua” e acrescenta o aspecto político ao
citar Brecht como inspiração para a criação dramática.
Entretanto, como observadora e espectadora tive a
sensação de estar vendo um espetáculo com sequências
dramáticas fundamentadas no trabalho corporal
37

individual de cada integrante, onde a cada minuto um


ator/dançarino tomava o palco e com cantos, danças e
ações físicas demonstravam ao público a fluidez e o
ritmo do trabalho corporal desempenhado no Odin.
Nesse sentido, Augusto Omolú teve uma
aparição muito rápida se comparada aos outros
integrantes que estiveram presentes no palco desde a
abertura do espetáculo. Nos próximos parágrafos,
descrevo a sucessão de sensações que tive ao assistir
As grandes cidades sob a lua e, principalmente, a
expectativa em ver o artista brasileiro contracendo com
os outros integrantes do grupo dinamarquês.
O espetáculo inicia-se. Dez minutos e as
partituras corporais são apresentadas. Naquele momento
senti um estranhamento, pois eu havia assistido alguns
vídeos de demonstração de trabalho5 dos atores do
Odin, como Traços na Neve (1988) de Roberta Carreri.
Neste vídeo, o corpo de Carreri apresentava grande
flexibilidade com movimentos quase acrobáticos,
diferente do que eu via no palco. A voz desta atriz era
algo encantador, em muitos momentos do espetáculo
5
Demontração de trabalho, de acordo com a página oficial do grupo,
é uma prática que constite em uma sistematização do treinamento
corporal e vocal feito pelo/a ator/atriz. Algumas demonstrações de
trabalho, Work Demonstrations, são registradas em vídeos e são
comercializadas pelo Odin (sobre isso consultar:
http://www.odinteatret.dk/ ). No caso de Roberta Carreri, sua
demonstração é Traces in Snow, traduzida por Traços na Neve. A
primeira vez em que assisti a demonstração de Carreri - material
videográfico disponível no acervo do Programa de Pós-Graduação
em Teatro (PPGT/UDESC) - foi no segundo semestre de 2011, após
fazer a disciplina: Abordagens do Corpo na Arte, Filosofia e Ciência,
ministrada pela Prof. Dr. Sandra Meyer Nunes. Entretanto, em
janeiro de 2013, no Rio de Janeiro, no Teatro do SESC em Ipanema,
pude assistir ao vivo esta mesma demonstração e mais uma vez
percebi as diferenças entre os movimentos corporais registrados em
vídeo.
38

sua voz se destacava. Vinte minutos e uma sucessão de


textos ditos em vários idiomas: dinamarquês, italiano,
inglês e espanhol. Até aquele momento nem “sombra” do
brasileiro, talvez ele apareça em um próximo ato. Trinta
minutos e fiquei pensando sobre o virtuosismo dos
corpos, algo entre a elasticidade do tempo e a
elasticidade do corpo, a essa altura do espetáculo os
textos ditos em diferentes idiomas já havia se tornado
uníssono para mim. Quarenta minutos e fico aflita, será
que aconteceu algo com Augusto Omolú? Será que
houve algum imprevisto?
Aos cinquenta minutos entra um homem de
terno, chapéu coco e nas mãos uma bengala. Passa
pelo corredor, um andar lento, sem pressa. Ele sobe os
degraus pelo lado direito do palco, desloca-se de
maneira cadência saindo do lado direito para o esquerdo
e percorre todo o proscênio. Depois disso faz alguns
movimentos corporais que chegam aos meus olhos
como passos de jazz. Ao final do espetáculo o brasileiro
entra e sai do palco sem dizer uma palavra.
Na hora em que terminou o espetáculo muitas
perguntas vieram à tona. Vi Augusto Omolú no palco e
fui ao encontro dele. Ele ainda estava com uma parte do
figurino, me apresentei, falei dos amigos em comum e
por fim da minha pesquisa. Aquele era o primeiro
contato, ao vivo, pois já tinha conversado com ele via
internet. Perguntei sobre sua disponibilidade para uma
entrevista, ele se colocou a disposição e marcamos para
o dia seguinte no hall do hotel em que ele estava
hospedado.
Naquela noite não fiz nenhum questionamento a
Augusto Omolú sobre sua participação no espetáculo As
grandes cidades sob a lua, mas hoje as coloco aqui: por
que todos/as os integrantes do Odin Teatret estavam no
palco desde o início do espetáculo em uma espécie de
39

recepção e Augusto Omolú não? Por que todos os


integrantes do Odin Teatret demonstraram seu trabalho
com extensas partituras corporais e vocais e Augusto
Omolú fez uma breve participação coreográfica? Por que
todos os integrantes do Odin Teatret falaram textos em
três línguas diferentes e Augusto Omolú não mencionou
uma palavra?
Na manhã do dia seguinte, fui até o Hotel Plaza,
onde ele estava hospedado. Falei sobre a minha
pesquisa em teatro e do meu interesse em pesquisar o
trabalho artístico dele sobre a Dramaturgia da Dança dos
Orixás. Ele me ouviu e logo em seguida começou a falar
sobre o início de sua trajetória e do encontro com o
diretor Eugenio Barba, depois de quase trinta minutos,
ele me perguntou: – Você está gravando tudo, não está?
Naquele instante, fui surpreendida; com o gravador na
mão percebi que a entrevista já havia começado e a
parte inicial da conversa não tinha sido registrada. Em
um tom tímido retruquei: – Você pode falar novamente
sobre o seu encontro com Barba? Lembro que ele sorriu
e voltou a contar: “ – Foi muito engraçado, para mim foi
uma grande surpresa, foi meu primeiro encontro com o
teatro”. Esta foi a primeira frase, gravada, da entrevista.
Nós conversamos por quase duas horas e este
material foi transcrito e segue nos anexos deste trabalho.
Antes de sair do hotel, Augusto Omolú convidou-me para
o Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás.
Assim, no verão de 2013 cheguei a Salvador e lá fiquei
por quase um mês acompanhando o trabalho dele.
A seguir apresento dois tópicos, o primeiro tem o
objetivo de apresentar o aporte teórico em que me apoio
para falar desta experiência do Seminário; e o segundo é
o próprio o relato da experiência, destacando
principalmente a dinâmica corporal e a relação com
espaço, seja no momento de confraternização no Bar do
40

Cravinho, como será visto adiante, ou a prática da dança


dos orixás na Escola de Dança da Fundação Cultural do
Estado da Bahia (FUNCEB).

1.1.2 O corpo fala, a fala do corpo: apresentação do


aporte teórico para contextualizar a experiência no
Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em
Salvador

Por que falar dos gestos, movimentos e posturas


corporais? Pois bem, quando escrevo meu corpo se
encontra em movimento constante, criando intervalos
e/ou acentuando os espaços entre uma palavra e outra.
Entretanto, devo buscar a fala do(s) corpo(s) ou sobre os
corpos? Parece-me que a palavra ‘sobre’ distancia-se da
sinuosidade presente na linguagem e define a
comunicação de maneira vertical, isto é, da fala para o
corpo, e logo do pensamento para a fala. Para Júlio
Tavares (2012, p. 50):
A fala do corpo resulta do ato da fala do
próprio corpo e a ele de novo se conecta,
de maneira tal que o objeto da reflexão, o
corpo em questão, se reverta no próprio
sujeito da ação e conquiste o espaço no
próprio texto.

A experiência que tive de aproximadamente um


mês em Salvador junto a Augusto Omolú faz parte de
meu corpo e para falar desta corporeidade me apoio na
reflexão de Tavares apresentada em seu livro Dança de
Guerra: arquivo e arma (2012).
Na capital baiana, pude ver o artista brasileiro
em sua cidade natal, ou como se costuma dizer: em
casa. Lá, vi Augusto Omolú concentrado no espaço da
41

Escola de Dança da FUNCEB6, um corpo observador,


com a coluna reta e um andar firme; este andar firme
também apareceu na tradicional caminhada do Bonfim7,

6
A Escola de Dança localiza-se na Rua da Oração, nº 1, Terreiro de
Jesus no Pelourinho. A Escola vincula-se a FUNCEB, Fundação
Cultural do Estado da Bahia. Esta por sua vez “é uma entidade
vinculada à Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia” –
informação retirada da pagina oficial da Fundação. De acordo com
esta fonte, a Escola de Dança “coordena as políticas, programas e
projetos que promovam, incentivem e desenvolvam a formação, a
criação, a produção, a pesquisa, a difusão e a memória da Dança da
Bahia, em suas diferentes configurações artísticas e atuação na
contemporaneidade, bem como possíveis interfaces com outras
áreas e com as novas tecnologias”. Portanto, este é um espaço
institucional, mantido pelo governo do Estado. Estas informações
foram retiradas de http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/ com
acesso em 21 de fevereiro de 2014.
7
A caminhada do Bonfim acontece, religiosamente, todo ano, na
segunda quinta-feira de janeiro. É conhecida também por “Festa do
Bonfim” ou “Lavagem do Bonfim” e é uma das “Festas de Largo” de
Salvador. Segundo Sabino e Lody (2011, p. 36-37): “a festa do
Bonfim [...] une o sentimento religioso do culto a Oxalá – orixá que
mora no monte Okê – à imagem da Igreja que fica localizada no
monte chamado de Colina Sagrada”. A festa é marcada a todo
instante pelo sincretismo e ainda pelas estreitas fronteiras entre o
profano e o sagrado. Nas ruas saem blocos em cortejos que se
organizam para fazer a caminhada de 8km até a Igreja do Nosso
Senhor do Bonfim; devotos amarram as tradicionais fitinhas no
muro da Igreja e fazem seus pedidos; as baianas lavam os degraus
da Igreja e com um jarro de água nas mãos dão as bênçãos aos
devotos. Há também uma celebração que acontece no período da
manhã. Depois, a tarde e a noite, torna-se uma grande festa com
muitas músicas ao longo das estradas. Quando fui a Salvador para o
Seminário de Omolú, participei deste momento e foi uma
experiência incrível. No meio da caminhada, encontrei Augusto
Omolú e um grupo de participantes do Seminário. Este momento
também integrava, de certa maneira, a programação do Seminário.
Dias antes da caminhada do Bonfim, foi passada uma lista para ver
quem gostaria de fazer este trajeto até a Igreja. Da mesma maneira,
aconteceu no dia 02 de fevereiro, dia de Iemanjá no Rio Vermelho,
42

mas ali possuía uma leveza e certa descontração; uma


descontração que também poderia ser vista, de outra
maneira, nos momentos de confraternização com os
participantes do Seminário no Bar do Cravinho8.
Em cada lugar eu descobria um Augusto Omolú,
e hoje na medida em que escrevo e falo sobre ele, é
difícil não citar alguns destes espaços. O Bar do
Cravinho era um espaço que ele frequentava quase que
de maneira religiosa. Na maioria das vezes,
terminávamos as aulas do Seminário e lá íamos,
ficávamos em entorno de uma mesa ou em pé formando
uma roda em frente ao Cravinho. Para aprofundar sobre
esta relação entre o espaço e o corpo, proponho uma
apresentação de Augusto Omulú como um corpo em
relação com o espaco em que habita.
Para tanto, apoio-me na reflexão feita por Sandra
Meyer Nunes (2009) em seu livro Metáforas do Corpo
em Cena. De acordo com a pesquisadora:

[...] o corpo não é produto, mas está


sempre em processo, assim o é o
ambiente em seu entorno. Considerando

onde Augusto Omolú convidou os participantes para entregar, em


um barco, as oferendas a Iemanjá.
8
O Bar do Cravinho está localizado no Centro Histórico de Salvador,
no Pelourinho. A decoração do bar é feita com madeira,
especialmente barril e tonéis. As mesas e cadeiras no fundo do Bar
são os próprios barris. Logo na entrada há também uma grande
estante com uma variedade de cachaças – especialidade do Bar.
Era comum ver pessoas na frente do bar, sentadas em cadeiras na
própria calçada. Muitas vezes ficávamos em roda neste ambiente,
ou nos deslocávamos para os fundos do Bar, onde havia música ao
vivo, como por exemplo, samba. Esta parte dos fundos era chamada
de “senzala”. Esta informação se ouvia tanto dos atendentes como
também é possível ver no próprio site do Cravinho:
http://ocravinho.com.br/principal/
43

que o ambiente não é só um espaço


geográfico ou um lugar, mas uma rede viva
de informações (Nunes, 2010, p. 113).

É através da noção de corpo dinâmico que


apresento a experiência do Seminário e destaco o
espaço de confraternização do Cravinho. Este espaço,
para além de geográfico, era simbólico, pois funcionava
como expõe Nunes (2009) na citação acima, como um
ambiente vivo, repleto de informações, criando redes de
comunicação entre o meu corpo e o espaço; meu corpo
e os outros corpos; nossos corpos e o ambiente, enfim,
uma rede que se auto-organizava e gerava modificações
em nossas posturas corporais.
Nestes momentos de confraternização, as
conversas eram sobre a experiência artística de cada
um, sobre os lugares, as culturas e as línguas
completamente distintas. Nossos corpos falavam e
gesticulavam, e naquele momento a dança era outra,
não era mais os movimentos dançados horas atrás, era
uma dança com outros movimentos corporais. As roupas,
os cabelos, as vozes, tudo isso parecia um mosaico de
corpos, de singularidades que poderiam ser vistos e
observados sem pressa, diferente da organização das
aulas do Seminário que exigia uma concentração
direcionada aos exercícios, ao toque e ao movimento
impulsionado pelo ritmo da dança.
Naqueles momentos de confraternização existia
um som particular. Na realidade nossos corpos eram
invadidos por diferentes vibrações rítmicas, ao mesmo
tempo em que produziam sonoridades particulares. Os
risos espontâneos, as vozes simultâneas sobressaindo
algumas em tons graves outras em tons agudos, o
incessante deslocamento dos corpos, lembrava de certa
maneira a intensidade da roda de capoeira, onde o corpo
44

é afetado e ao mesmo tempo gerador de movimentos


físicos e energéticos. Alguns sentados, outros em pé.
Estas posições variavam constantemente. Havia também
uma música da cidade, uma música emanada pelas
ladeiras do Pelourinho, que se misturava ao burburinho
dos sotaques.
Nestas horas era possível notar expressões
particulares de cada um, expressões às vezes
escondidas pela intensidade das aulas, mas que ao
mesmo tempo também eram potencializadas pelo
aprendizado e experiência das mesmas aulas. Lembro-
me também que nestes momentos, alguns participantes
dançavam e refaziam os movimentos corporais
aprendidos nas aulas. Ás vezes, parecia um coro,
cantando e dançando pelas ladeiras de Salvador.
Na confraternização existia uma conversa
corporal intensa, onde o espectador oscilava a cada
momento, isto é, ora observador ora observado. O que
busco refletir até o momento é justamente as trocas
sensoriais, energéticas e, inclusive física e cognitiva,
entre os corpos e consequentemente, entre estes corpos
e o espaço/situação específica. Além disso, os
momentos de confraternização no Bar do Cravinho
podem ser compreendidos – assim entendo – como um
espaço de troca, produção e criação artística.
Este espaço permitia, por exemplo, uma
aproximação entre os artistas/participantes e gerava,
inclusive, possibilidades para outros projetos e criações
artísticas desvinculadas ao Seminário, mas que nasciam
deste espaço de confraternização do Seminário. Assim,
quero frisar que o espaço do Cravinho não era somente
um ponto de encontro, era mais uma parte daquela
experiência do Seminário, da mesma forma, a
caminhada do Bonfim, a ida ao candomblé e a Festa de
Iemanjá.
45

Entretanto, retomando a noção de trocas


sensoriais, acredito, por mais que as dinâmicas
existentes nos espaços de sociabilidade e no
espaço/palco sejam distintas, diversos estudos teatrais9,
e/ou os estudos da performance, têm apontado para a
interação, ou melhor, a comunicação entre os corpos de
quem está no palco e de quem assiste. Uma dinâmica
que, em outras palavras, desestabiliza a posição passiva
do espectador, colocando-o como parte e/ou autor do
espetáculo.
De acordo com Nunes (2009) é possível
perceber uma dinâmica de alteração física e cognitiva:
Enquanto o ator age, outras informações,
em tempo presente, atravessam o corpo
proveniente dele mesmo, das relações
com o eu partner, o ambiente, e das
conexões que o agente (ou ator) busca
estabelecer a partir de dados e objetivos
traçados a priori. Das relações entre estas
variáveis emerge a percepção e a ação
(entendidas como operações cognitivas do
homem em relação com o meio), que
passam a ser entendidas como processos
vivos em constante elaboração e não o
resultado causal final destes acordos
(Nunes, 2009, p. 154).

9
Quando digo “diversos” estudos, quero me referir as leituras
bibliográficas pesquisadas nesta dissertação. Um exemplo disto é a
pesquisa de Sandra Meyer Nunes (2009) que traz um extenso
debate sobre o corpo em cena e a relação sobre as emoções do
ator, percorrendo desde o entendimento inicial de ação física de
Stanislásvki, passando por uma problematização do corpo mecânico
de Descartes. Com um rigor teórico e apurado, Nunes (2009)
apresenta as trocas incessantes produzidas e sofridas pelo corpo,
buscando nas teorias cognitivas de Antonio Damásio e nos estudos
sobre o corpomídia de Cristine Greiner, percepções que contribuiem
para um olhar complexo e não dicotomizado do corpomente.
46

No espaço de representação, ou melhor, no


fenômeno cênico, há uma rede de informações que
atravessam o corpo do ator. Os objetos expostos em
cena (ou a ausência destes objetos), os figurinos, a
sequência de ações cênicas, o corpo do espectador, os
corpos que contracenam, enfim, todo este espaço gera
uma auto-organização da percepção do próprio ator.
O que Nunes (2009) destaca é a importância de
se considerar a fala do corpo do ator, em específico, a
partir das teorias cognitivas; e consequentemente,
romper com uma visão dicotômica do pensamento, isto
é, de uma razão que opera a emoção, ou de uma mente
que manipula o corpo. Nesta perspectiva de Nunes:
[...] o corpomente não é veículo ou meio
que transporta informações
mecanicamente, sem sofrer perdas e
transformações no processo de
comunicação, mas é mídia de si mesmo,
com parâmetros próprios de auto-
organização (2009, p. 111, grifos da
autora).

Compreendo que este sistema de comunicação,


com base nas teorias cognitivas, permite direcionar meu
olhar para o trabalho de Augusto Omolú com uma
percepção mais atenta aos processos de auto-
organização exercidos e/ou sofridos pelo meu próprio
corpo no momento da experiência. Ainda que tenha sido
uma experiência de observação participante, as
informações presentes naquele ambiente atuaram em
meu corpo, tornando possível uma reflexão sobre a fala
dos corpos e a produção de gestos e movimentos
presentes na dança dos orixás.
Ao trazer os estudos de Nunes (2009) para este
47

tópico da dissertação, busco uma compreensão não


mecânica do corpo, ou seja, uma reflexão onde a
expressão: “o corpo fala”, não apresente uma dimensão
abstrata, mas caminhos, inclusive, cognitivos. A
pesquisadora Cristine Greiner (2005), juntamente com
Helena Katz, tornou-se referência nos estudos das
teorias congitivas, agregando as áreas de filosofia e
comunicação com pesquisas voltadas para a dança e o
teatro. Segundo Greiner (2005, p. 17): “torna-se cada
vez mais evidente que o próprio exercício de teorizar
também é uma experiência corpórea, uma vez que
conceituamos com o sistema sensóriomotor e não
apenas com o cérebro [...]”.
Da mesma forma, Tavares (2012) parece
concordar com esta reflexão de Greiner (2005) sobre o
corpo daquele/a que escreve, ao dizer que:
Um exercício teórico sobre o corpo, é,
assim entendo, um trabalho de reflexão
que implica, antes de tudo, realizar uma
tomada de atitude e consciência diante do
próprio corpo daquele que fala; caso
contrário, o discurso a seu respeito torna-
se vazio (Tavares, 2012, p. 49).

Na medida em que escrevo, busco em alguns


momentos perceber10 as posturas corporais, os

10
Esta percepção pode ser compreendida, não enquanto uma
consciência corporal, pois isto se aproxima de uma concepção
“sobre” o corpo, onde a mente (consciente) desenvolve papel
fundamental e vertical em relação ao corpo. Quando digo
“perceber”, refiro-me aos movimentos e gestos corporais – que
mesmo na tentativa de uma descrição – emergem antes mesmo do
discurso verbal ou da enunciação destes. Portanto, concordo com
Tavares (2012, p. 54) ao comentar que “é meu corpo que fala antes
mesmo de me utilizar do aparelho fonador pelo qual vou emitindo
as imagens acústicas que pronuncio, antes de me tornar consciente
48

movimentos e gestos que faço. Concordo com Tavares


(2012) e Greiner (2005) no que diz respetio à noção de
corpo. Às vezes, neste texto escrito, aparecem
expressões como “penso que”; “observo que”, ou
“compreendo que”. Meu desafio é ultrapassar os limites
de uma escrita pressa a lógica da mente, pois acredito
que sou corpo e consequentemente este escrito também
o é.
Nesse processo de escrita da dissertação, digo
deste tópico em específico, muitas vezes dancei,
caminhei, me expressei de inúmeras maneiras e cada
ação desta produziu em mim reflexões e sentidos que de
certa maneira reverberaram neste texto. Assim, quando
utilizo expressões como as citadas anteriormente, não
tenho o objetivo de reduzir ou centralizar a presença da
mente como algo mecânico e vertical direcionado ao
corpo. Na verdade quando “compreendo que”,
compreendo com meu corpo/mente, quando “observo
que”, observo com meu corpo/mente e assim penso com
meu corpo/mente.
Continuo, então, com os conceitos de Greiner
(2005). Em seu livro, O corpo: pistas para estudos
interdisciplinares, a autora traz nas primeiras páginas
uma localização histórica sobre as teorias filosóficas do
corpo. Nas palavras de Greiner (2005, p. 17), “o
substantivo corpo vem do latim corpus e corporis, que
são da mesma família de corpulência e incorporar”.
Outras nomeações como soma (palavra de origem grega
para definir o corpo morto) e demas (palavra de origem
grega para definir o corpo vivo) são citadas por Greiner
(2005) a fim de mostrar a construção de uma divisão que

do próprio corpo. [...] enuncio minhas intenções, em geral, de forma


inconsciente, através de meus gestos e movimentos com todo o
corpo [...].”
49

segundo a autora, “atravessou séculos e culturas


separando o material e o mental, o corpo morto e o corpo
vivo” (Greiner, 2005, p. 17).
Para romper com a proposta de um corpo
instrumento ou corpo recipiente, Greiner apresenta uma
noção de corpomídia, e afirma que “o corpo muda de
estado cada vez que percebe o mundo” (2005, p. 122).
Além disso, a autora afirma que
O corpo não é um lugar onde as
informações que vêm do mundo são
processadas para serem depois devolvidas
ao mundo. O corpo não é um meio por
onde a informação simplesmente passa,
pois toda informação que chega entra em
negociação com as que já estão (Greiner,
2005, p. 130-131).

Enquanto Nunes (2009) propõe um corpomente,


Greiner (2005) um corpomídia, Tavares (2012) fala de
um corpo signo. Segundo o autor:
[...] dizer que o corpo é um signo é
entendê-lo como um momento liminar
entre o significante (corpo como matéria
viva e física), o significado (memória de
equivalência corpórea que se manifesta na
resistência, na acomodação, na
participação), o sentido (aquilo que
oferece significação ao objeto do
significante) e o referente (a situação-
contexto que é singular a representação)
(Tavares, 2012, p. 51, destaque do autor).

Mesmo considerando as particularidades


presentes em cada discurso teórico e reflexivo
apresentados anteriormente, destaco o ponto-chave
entre eles: é a busca de uma compreensão do corpo que
50

não se limite a dicotomias entre o “dentro” e “fora”, ou


ainda, o corpo e o espaço. Para esta pesquisa, este é o
ponto crucial, pois ao realizar esta pesquisa durante dois
anos meu corpo alimentou-se destas redes, passando
por territórios distintos, como a ida a Porto Alegre e
depois a experiência em Salvador. Meu corpo, minha
percepção sobre o espaço, a arte, a religiosidade, o
movimento da dança, minhas identidades, minha postura
como atriz, mulher e negra, enfim, tudo isso, durante
este período da pesquisa esteve em negociação com
outras informações, em espaços completamente
diferentes.
Trazer estas noções de corpo é destacar, mais
uma vez, o que a metodologia desta pesquisa
apresentou no início do capítulo, ou seja, uma pesquisa
que se fez/faz em contato com outros corpos. Após ter
introduzido esta reflexão sobre corpo, passo então ao
relato da experiência no Seminário da Dramaturgia da
Dança dos Orixás em Salvador para posteriormente,
apresentar a trajetória artística de Augusto Omolú.

1.1.3 A experiência: um relato da pesquisadora sobre


a observação participante em Salvador

Em janeiro de 2013, em pleno verão com o sol a


pino e com quase quarenta graus de temperatura,
cheguei a Salvador com o objetivo de acompanhar
durante um mês o Seminário Dramaturgia da Dança dos
Orixás11. As aulas aconteceram na Escola de Dança da

11
Ressalto que esta experiência aconteceu de 10 janeiro a 05 de
fevereiro de 2013. Nos anexos deste trabalho apresento o material
de divulgação. Neste material há poucas informações, não há uma
programação do Seminário, apenas uma apresentação do artista e
uma breve eplicação dos objetivos deste Seminário, isto é feito em
51

FUNCEB no Pelourinho. Lembro-me que quando


cheguei neste espaço o primeiro aspecto que despertou
minha atenção foi o som dos atabaques. Logo depois, fui
até a recepção e perguntei sobre a aula de Augusto
Omolú, a recepcionista me indicou que subisse as
escadas e fosse até a sala “céu”12 .
As aulas do Seminário aconteciam com a
presença dos atabaques e músicos convidados por
Augusto Omolú. Parecia-me que estes músicos já o
acompanhavam em outros seminários. O atabaque era
um instrumento musical importante no Seminário. No
candomblé os atabaques também possuem grande
importância e são confeccionados “com couro de animal
esticado sobre aro de madeira ou caixa oca de madeira,
tem como parte principal justamente o couro, ponto em
que é realizado a percussão” (Sabino; Lody, 2011, p.
93).
No ritual do candomblé há três tipos básicos de
atabaques: “Rum, Rumpi e Lé ou Runlé, respectivamente
grande, médio e pequeno” (Sabino, Lody, p. 95),
variando o som do grave ao agudo13. A importância

dois idiomas: português e inglês. Além disso, neste material o


Seminário é chamado de “Workshop”. Optei nesta dissertação pela
nomeclatura Seminário, já que era assim que Augusto Omolú e os
participantes se referiam ao evento.
12
Este era o nome da sala, que eu só entendi o porquê depois de
subir os intermináveis degraus. Era uma sala que ficava na parte
mais alta do prédio, daí o nome “céu”.
13
Aqui não aprofudarei a complexidade do preparo do atabaque. Há
uma série de exigências e preceitos que envolvem a construção e
preparação para utilização deste instrumento nos rituais de
candomblé. De acordo com Sabino e Lody (2011, p. 98): “Além dos
tamanhos dos atabaques e os diferentes toques, outros fatores
contribuem para uma melhor compreensão etnográfica do
instrumento, como por exemplo as diferentes formas de percutir os
couros, tal qual acontece nos canomblés kêtu e jeje, cuja execução
se dá com baquetas [...]”.
52

deste instrumento no ritual destaca-se no cuidado e


tratamento que lhe é dado, desde seu preparo,
montagem e escolha do material, como o couro do
animal, até a escolha de quem pode ou não manuseia-lo.
Sobre isso o bailarino e pesquisador Jorge Sabino,
juntamente com o antropólogo Raul Lody, apontam em
seu livro Danças de Matriz Africana: Antropologia do
Movimento, especificamente no capítulo A identidade do
som: instrumentos musicais afrodescentes, o aspecto
divino do atabaque:
O atabaque não será apenas um
instrumento musical; ele ocupará o papel
de uma divinidade e, por isso, será
sacralizado, alimentado, vestido; possuirá
nome próprio e apenas sacerdotes e
pessoas de importância para a
comunidade poderão tocá-lo e usá-lo nos
rituais. O instrumento fora de seu âmbito
sagrado passará a valer pelos resultados
sonoros, marcando, na maioria dos casos
a base rítmica de conjuntos, acrescidos de
pandeiro, agogô, berimbau, entre outros
(Sabino; Lody, 2011, p. 95).

Mesmo sendo fora do contexto do ritual, ouso


dizer, pela experiência que tive no Seminário, que este
instrumento era imprescindível nas aulas, sem os
atabaques e seus músicos as aulas não começavam. É
claro que o instrumento não apresentava o aspecto
divino específico do ritual, como aponta os autores na
citação acima. O toque do atabaque, além de dar o ritmo
dos movimentos, criava um ambiente sonoro próprio. O
som dos atabaques tinha uma vibração precisa, com
marcações rítmicas que variavam de acordo com o toque
e com a dança dos orixás. Os atabaques ficavam no
canto da sala, geralmente em uma posição, onde os
53

músicos pudessem visualizar os movimentos dançados


pelos participantes.
Além da importância do instrumento há também
um destaque para quem o toca. Nesse sentido, Sabino
e Lody (2011, p. 98) afirmam que: “o músico-
instrumentista, na hierarquia do candomblé, é da maior
importância. Ele estabelece, pela música, contatos com
os deuses africanos e participa de quase todos os rituais
secretos e públicos”. Há ainda uma identificação para
quem toca e pode variar dependendo de cada casa ou
terreiro de candomblé. De acordo com estes autores:
Nos candomblés que seguem os modelos
dos rituais kêtu-nagô (sistema etnocultural
de prodomínio yourbá), os músicos dos
atabaques são chamados de ogãs alabês;
entre os seguidores dos rituais jeje (fon)
são chamados de runtós; e entre os
seguidores dos rituais angola-congo
(banto) são chamados de xicaringomes
(Sabino; Lody, 2011, p. 98).

É interessante destacar que Augusto Omolú era


ogã. Em entrevista ele contou-me que fora escolhido
para tocar atabaque ainda quando criança. Nas palavras
do entrevistado:

[...] eu era o único ogã da casa pequeno,


tinha outros ogãs também, mas o
confirmado era eu. Então eu tocava e não
aguentava muito, porque eu tinha os
braços pequeninos, mas eu adorava aquilo
ali, para mim era meu mundo. Tocava
muito bem para todos os orixás na maior
satisfação, com muita alegria (Omolú,
2012b).

Este conhecimento diferenciava as aulas do


54

artista, muitas vezes ele mesmo solicitava o toque


específico e exigia dos músicos precisão. Dessa
maneira, ele estava atento não só os movimentos
dançados como também o ritmo e toque do atabaque.
Por tudo isso, é que afirmo que durante as aulas,
os corpos dançantes e o som dos atabaques criavam
uma conversa, eu como observadora, muitas vezes notei
que além dos participantes, os músicos também
suavam, se entregavam e suas mãos eram tão rápidas
quanto os movimentos dançados. Minha percepção e
observação me levam a crer que existia um diálogo
intenso entre o corpo do músico, a vibração do som e o
corpo daquele que dança. Esta conexão entre a dança, o
canto e o batuque é fundamental para contextualizar não
só o Seminário como também o próprio trabalho artístico
de Augusto Omolú – no próximo capítulo me
concentrarei nestes aspectos do cantar, dançar e
batucar.
Em alguns momentos da aula, quando o toque
era acelerado14 e o participante estava em sintonia,
executando uma sequência rápida de movimentos
alternados dentro do ritmo, era comum ouvir gritos dos
outros participantes que estavam em pé, no canto da
sala, aguardando com entusiasmo para desenvolver a
mesma sequência de movimentos.
Além disso, este som preenchia o espaço da

14
Haviam vários toques e estes variavam conforme o movimento do
orixá que se estava trabalhando. Cito aqui alguns toques, seguindo
as definições dos pesquisadores Jorge Sabino Raul Lody (2011, p.
99-100): “entre os principais toques que formam o elenco da música
sagrada temos os sguintes nomes de acordo com as nações: Kêtu
(yorubá): Ramonha; ijicá ou jicá; agueré ou aguerê; opanijé; daró ou
illu; alujá (toque que é composto pelo “roli” e pani-pani); ibi. Jeje
(fon): Bravum; Sato; avamunha; adarrum. Angola-congo (banto):
congo; cabula; barravento”.
55

FUNCEB, dava para ouvir o toque dos atabaques antes


mesmo de entrar na sala. Às vezes eu via alguns
participantes correndo pelas escadas, pois se sabia que
pela batida, a aula começara. Outro aspecto que
observei, além desta importância do instrumento e os
músicos, foi a rotina intensa com exercícios e repetições
de sequências de movimentos da dança dos orixás,
executadas em filas ou em diagonais na sala. Uma rotina
que se organizava, resumidamente da seguinte maneira:
repetição, repetição e repetição dos movimentos; pausa,
explicação; repetição e repetição dos movimentos; fila
em diagonal, de ponta a ponta da sala e execução de
sequência de movimentos.
Relatando assim, talvez se aproxime de uma
descrição tradicional das aulas de dança, onde a
preocupação é voltada para o corpo e a execução dos
movimentos no tempo/ritmo. A intensificação dos
músculos do corpo, a flexibilidade, a agilidade, os corpos
suados. Mais diagonais e mais repetição. A aula, como
prometia o artista brasileiro, era intensa. Exigia como ele
mesmo falava, disciplina, atenção e agilidade.
Recordo de imagens frequentes como
participantes cansados e/ou em êxtase. Em sua
dissertação de mestrado sobre a dança dos orixás de
Augusto Omolú, Antonio Ferreira Junior (2011) narra
parte de sua experiência no seminário realizado em
2010, e descreve da seguinte maneira:

São momentos longos, e não sou só eu,


todos “morrem”! as pessoas quase não
terminam, falta oxigênio, falta força, é um
desgaste total e absoluto temos a
sensação de que enfiaram uma agulha
para sugar energia, mas na realidade essa
energia vai se transformar. Isso me toca de
maneira muito forte e intrínseca, porque
56

chego a sentir que eu vou desfalecer.


Totalmente descompensado penso em que
momento, do processo, vou realmente
passar por essa fase com menos desgaste
(Ferreira, 2011, p. 53).

Por quase um mês esta rotina de esgotamento


do corpo e dos exercícios se manteve. E isto me levou a
seguinte questão: seria possível pensar o conceito de
disciplina15 nas aulas de Augusto Omolú, dada a
exigência física e a correspondência dos movimentos
dentros dos ritmos? Em outras palavras, ao relembrar
das aulas do Seminário, até que ponto o saber das
dancas dos orixás estaria passando também por um
processo de normatização e disciplina?
Ao problematizar as práticas mais conhecidas de
treinamento de atores surgidas no século XX, a partir de
conceitos foucaltianos de treinamento e disciplina, a
pesquisadora Maria Brígida de Miranda (2003) explica
que: “a noção de "disciplina" de Foucault refere-se aos
"métodos" que transformam corpos a um estado de
"docilidade-utilidade"”16. Mesmo sabendo que aulas do
Seminário eram experiências sobre a dança dos orixás,
diferentes de técnicas para o treinamento para o ator,
busco neste instante uma breve reflexão sobre este
conceito foucaultiano.
De modo geral, a organização do Seminário era

15
Conceito teórico exposto por Michel Foucault, principalmente em
seu livro Vigiar e Punir: historia da violência nas prisões (2005), o
qual consta nas referências deste trabalho. Também acrescentarei a
esta breve reflexão o estudo da pesquisadora e professora doutora
Maria Brígida de Miranda (2003), que traz esta noção de Foucault
para pensar o treinamento do ator.
16
Tradução livre do original em inglês: “Foucault’s notion of
“discipline” refers to those “methods” which transform bodies to a
state of “docility-utility”” (Miranda, 2003, p. 63).
57

de certa maneira flexível, digo isto, pois havia um espaço


de demonstração de trabalho, às vezes dos próprios
participantes e outras vezes de artistas locais
convidados. Os participantes tiveram, além das aulas de
dança dos orixás, outras experiências com arstista das
áreas de dança, teatro e canto iorubá17. Esta
programação por um lado possibilitava uma experiência
com outros artistas, mas reduzia de certa forma o tempo
das aulas com Augusto Omolú. Nesse sentido, diferente
dos procedimentos normativos escolares, o Seminário
possuía uma organização particular e aberta,
consequentemente, a programação era modificada
constantemente, sendo alterada conforme a necessidade
diária.
Em relação aos participantes18, posso dizer que
o público em geral era formado por dançarinos e atores,
um público misto entre homens e mulheres e que, em
sua maioria, vinham de diferentes países, como
Argentina, Canadá, Estados Unidos, Polônia, Itália,
Inglaterra e Holanda. Do Brasil os principais estados
eram: São Paulo, Minas Gerais e poucos da Bahia. Esta
era uma questão que Augusto Omolú destacava com
frequência. Na entrevista que fiz, antes de ir ao
Seminário, ele já havia dito que o número de
participantes era alto, mas raramente era um público
local.

17
Os participantes tiveram aulas com artistas convidados, com
cantos em iorubá e aulas de teatro para trabalhar improvisação,
composição e redução dos movimentos da dança dos orixás. Dentre
os professores convidados, cito os coreógrafos Giovanni Luquini,
Mestre King, Flechão e o diretor Lau Santos.
18
O número de participantes era de aproximadamente quarenta
pessoas e em algumas aulas chegava a quase sessenta, pois
Augusto Omolú convidava os alunos do Projeto Axé, que deveriam
ter entre dez a dezessete anos.
58

Quanto ao objetivo do Seminário, não estava


escrito e formalizado em na programação, mas pela
experiência que tive, pude observar que o objetivo do
artista brasileiro era repassar o maior número de
movimentos possíveis e consequentemente fazer
daquele espaço um momento de experiência para os
participantes, vindos de diversos lugares do mundo, com
estruturas físicas, corporais, línguas e culturas
diferentes.
Até agora descrevi de maneira geral o
Seminário, levando em consideração as minahs
observações e anotações, já que não havia uma
programação escrita com uma apresentação
metodológica e normativa, aproximando-se mais de uma
experiência coletiva. Assim, apresento a concepção
foucaltiana de disciplina a fim de perceber se esta
aprendizagem da dança estaria embuída de processos
disciplinares no corpo dos participantes.
Na definição de Michel Foucault (2005, p. 119):
A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos “docéis”.
A disciplina aumenta as forças do corpo
(em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência). Em uma palavra:
ela dissocia o poder do corpo; faz dele por
um lado uma “aptidão”, uma “capacidade”
que ela procura aumentar; e inverte por
outro lado a energia, a potência que
poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita.

A partir desta definição foucaltiana, talvez, seja


mais pertinente, perguntar que tipo de corpo era
fabricados no espaço do Seminário? Acredito que as
59

aulas possuíam um ritmo e movimentos ligados ao toque


do atabaque, produzindo um corpo atento, porém com o
objetivo de conectar: movimento, ação e ritmo. Além
disso, é possível pensar em um corpo que se deslocava
– principalmente - em dois espaços distintos: o primeiro,
da confraternização (Bar do Cravinho, Festas de Largo,
Convívio diário entre artistas locais e os outros
participantes) que permitia outros processos de
aprendizagem, criação e produção artística; e o
segundo, o espaço convencional da sala de dança,
momento de aprendizagem direta com o artista Augusto
Omolú.
Neste segundo espaço, a sala de dança
convecional com espelhos e pouca mobília, apresentava
certos aspectos que embora se aproxime das
normatizações escolares, como: carga horária,
certificado e programação de aulas durante um período
específico; observei que o próprio artista desestabilizava
estas ordens disciplinares. Frequentemente Augusto
Omolú modificava a programação do Seminário,
convidava outros artistas, trazia a turma de jovens do
Projeto Axé para fazer uma manhã de aula com os
outros participantes, buscava acrescentar outras
experiências como a caminhada do Bonfim e a Festa de
Iemanjá.
Estes aspectos, de certa maneira, quebravam
com a ideia de normatização da aprendizagem. Por
exemplo, nas últimas aulas do Seminário, Augusto
Omolú decidiu que seria feita uma apresentação final,
um ensaio aberto ao público na Praça Sete de Setembro
no centro histórico de Salvador. Esta era uma
característica do artista, de considerar o acaso, o
instante presente e a partir disso modificar a
programação, transformando o aprendizado da dança
em experiência.
60

Além disso, no Seminário percebi que o corpo


era um importante canal de troca sensorial entre o canto,
a dança e batuque; funcionando, inclusive, como
descoberta de linguagens não-verbais entre os próprios
participantes. O objetivo geral do Seminário, a meu ver,
era o de construir um coro, onde cada corpo com sua
particularidade e especificidade, compartilhasse naquele
momento uma experiência com base na dança dos
orixás. Para tanto, o impulso para criação do movimento
estava no que Augusto Omolú chamava de “energia do
orixá” (2012a), a partir disso o diálogo se ressignificava
constantemente, pois embora o impulso fosse o mesmo
(no caso o mesmo movimento do orixá), buscava-se a
todo instante a descoberta pessoal de cada um, em
outras palavras, uma comunicação entre o axé19 e o
próprio corpo. Ressalto que sobre estes aspectos da
energia do orixá e a criação do movimento irei abordar
no próximo capítulo.
Diante disso, percebo o trabalho do artista
brasileiro como um campo amplo para pesquisas sobre a
representação, os processos de criação artísticas e a
própria linguagem do corpo. Acredito também que,
futuramente, serão necessários outros escritos e
pesquisas que possam contribuir para ir além das
fronteiras já estabelecidas por Augusto Omolú. Seu
trabalho sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás é um
start, um impulso para que se possa no campo teatral
perceber o sujeito da cena de maneira plena,
atravessado de história, memória e corporeidades, assim
como, agente e gerador destes elementos.
A partir dos referenciais teóricos abordados até o

19
Sobre isso aprofundo no capítulo dois, no tópico: “O axé de
Augusto Omolú e o sats de Eugenio Barba: diálogos sobre a noção
de energia no trabalho do ator”.
61

momento, concluo que o ator é seu corpo, como é


história e memória, assim, cabe a cada instante ou a
cada processo criativo a liberdade de transitar sem
amarras e reinventar, na medida em que se é
reinventado, as memórias e histórias que o atravessam.
Minha intenção nesta dissertação é buscar pistas sobre
os movimentos corporais da dança dos orixás e sua
transformação em ação cênica. Infelizmente, a
fatalidade, morte do artista brasileiro em junho de 2013,
interrompe a pesquisa sobre a dança dos orixás, e
muitas destas reflexões sobre o corpo e os movimentos
não foram registradas e/ou não chegaram a ser
experimentadas pelo próprio artista.
Dessa maneira, tenho algumas pistas que junto
às minhas leituras e experiências durante esta pesquisa
no mestrado em teatro, ganham outros sentidos e
significados. Destaco ainda que esta reflexão, portanto, é
parte do meu olhar como atriz/pesquisadora, não sendo
possível hoje compartilhar com Augusto Omolú ou ainda
saber quais as modificações seu trabalho teria
alcançado20. Após relatar a experiência do Seminário,
passo para o proximo tópico deste capítulo, a trajetória
do artista. Considero importante apresentar a trajetória
para que se possa perceber a relação que o artista tinha
com o candomblé e como a dança dos orixás, foco de
sua pesquisa e criação artística.

20
Principalmente nestes últimos anos, pois seu objetivo era ficar
mais tempo no Brasil e continuar a desenvolver seminários,
agregando os trabalhos de outros artistas do teatro e da dança, com
o intuito de fomentar e aprofundar a noção de Dramaturgia da
Dança dos Orixás. Estas eram suas perspectivas, comentários feitos
em vários momentos informais no Seminário em Salvador.
62
63

1.2 NO BATUQUE DO TERREIRO NASCE A DANÇA


DE OMOLÚ: O SUJEITO PESQUISADO E SUA
TRAJETÓRIA ARTÍSTICA

Meu foco neste tópico é apresentar o artista


pesquisado, seu contato com o candomblé e o encontro
com o grupo de teatro Odin. Como se verá adiante, além
da dança dos orixás, a trajetória de Augusto Omolú é
marcada por sua formação no ballet e na dança
moderna.
No período em que estive em Salvador,
acompanhando o Seminário da Dramaturgia da Dança
dos Orixás, observei sua representatividade como artista
local, especialmente como coreógrafo e dançarino; isto
porque antes do grupo Odin, ele já havia passado por
uma das companhias mais importantes da Bahia: o Balé
Teatro Castro Alves (Balé do TCA), criado em 1981. Além
disso, durante anos, o artista possuiu vínculo institucional
com a FUNCEB, Fundação Cultural do Estado da Bahia,
onde lecionou como professor na Escola de Dança.
Dada a importância destas instituições, pesquisei
nos respectivos sites, declarações sobre a participação e
presença do artista nestes grupos, este material serviu
como fonte, complementando as informações sobre a
vida e trajetória de Augusto Omolú, já indicadas na
entrevista realizada em maio de 2012 em Porto Alegre.
Utilizo também outras duas entrevistas: concedida para
Antonio Marcos Ferreira Junior em janeiro de 2010,
porém publicada em sua dissertação de mestrado em
2011; e concedida para Valmir Santos em agosto de
2012, publicada em junho de 2013 no periódico
eletrônico, Teatro Jornal: leituras de cena.
A seguir, apresento então, a trajetória do artista,
a começar por seu contato com o universo religioso do
candomblé.
64

1.2.1 Ao som dos tambores a dança encontra Omolú:


o contato com o candomblé e a descoberta da dança
dos orixás

Quando penso em falar sobre o candomblé na


trajetória de Augusto Omolú a imagem que me invade é
o olhar vibrante e o sorriso discreto que vi em seu rosto
no dia da entrevista. Foi assim que ele narrou sobre sua
infância. Uma infância que aconteceu no espaço do
terreiro, vendo os preceitos e os preparativos em dia de
festa, vendo a dança e o movimento dos orixás
manifestados nos corpos dos iniciados.
Pois bem, quando li outras duas entrevistas de
Augusto Omolú (2010; 2012b) percebi que em vários
momentos ele afirmou que nasceu e cresceu
praticamente dentro do terreiro21, – sobre isso ele diz:
“quando não estava com minha família normal, estava
com a minha família do candomblé” (Omolú, 2012b). Por
volta dos treze anos de idade ele começou a participar
de grupos de dança, mas ainda em uma linha folclórica
da dança dos orixás. Ele conta que “nos anos cinquenta
[1950] foram criados, por exemplo, muitos grupos
folclóricos que faziam os orixás no palco” (Omolú, 2012a)
e que havia uma imitação do orixá, com vestimentas,
expressões faciais e movimentos dançados tal qual nos
terreiros no momento da incorporação.
Em contrapartida, ele acreditava numa diferença
entre imitar o orixá de maneira folclorizada e trabalhar
artisticamente o movimento dançado pelo orixá, esta

21
Terreiro, roça ou barracão são maneiras de se referir ao espaço
em que o ritual acontece, isto é, a casa de candomblé. Estas
expressões são muito usadas na região de Salvador. Nos encontros
com artistas e os próprios participantes do Seminário, era comum
ouvir, principalmente, a expressão roça.
65

última perspectiva era a base de seu discurso, em suas


palavras: “o movimento é também de uma linguagem
universal. Ele pertence a uma religião, mas também é
uma arte enquanto movimento” (Omolú, 2012a).
Este discurso faz parte de uma fase mais
madura, após as pesquisas e experiências sobre a
dança dos orixás e os conceitos da Antropologia Teatral,
como a noção de dramaturgia que surgiu no contato com
Eugenio Barba. Entretanto, quero retornar àquele artista
ainda menino, que começou a fazer aulas de dança com
Mestre King, a participar do grupo folclórico Viva Bahia
de Emília Biancardi e logo depois integra o corpo de
bailarinos do Balé do Teatro Castro Alves.
Aos treze anos de idade, ele fez sua primeira
viagem internacional, destino: Alemanha, para um
festival brasileiro (Omolú, 2012b). Lá, aos moldes do
grupo folclórico dançou o orixá Omolu. Nessa época, o
adolescente que tinha saído de casa simplesmente para
acompanhar a irmã em um curso preparatório de estética
no SESC, começa a fazer capoeira e dentro deste
espaço conhece o Mestre King, uma figura emblemática
em Salvador, conhecido por ser um dos precursores da
dança afrobrasileira22.

22
Raimundo Bispo dos Santos, conhecido artisticamente como
Mestre King, é um dos pioneiros da dança aforbrasileira, foi mestre
de muitos professores de dança, como : Flecha, Pequeno, Gilberto
Bahia, Rosângela Silvestre, Tânia Bispo e também Augusto Omolú.
Durante o Seminário em Salvador, pude assistir as aulas de King e
ainda fazer uma entrevista. Nesta entrevista não publicada, ele
conta sobre sua trajetória e sua formação, os dançarinos que
passaram por ele e ainda seu reconhecimento na área da dança,
além de ser um dos primeiros a se graduar em dança pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Com setenta anos de idade,
King é um dos coreógrafos baianos de maior notabilidade no cenário
da dança afro-brasileira, pude observar isto tanto em Salvador, na
entrevista, quanto em leituras, como a dissertação de Ferreira
66

Na entrevista publicada pelo Teatro Jornal,


Augusto Omolú conta sobre este início de sua trajetória
artística:
O mestre King, o professor, começou a me
ver também como dançarino de orixá,
porque eu já trazia isso desde pequeno.
Quando vi que estava dentro desse grupo,
o Grupo Balú, fazendo capoeira, no qual
também tinha dança de orixás, comecei a
dançar candomblé, maculelê e samba de
roda (Omolú, 2012b).

Ao participar do Grupo Balú coordenado pelo


Mestre King a dança dos orixás aparece no corpo de
Augusto Omolú de uma maneira diferente, agora não é
mais o menino de oito anos que imitava os orixás, aqui
os movimentos começam a ser trabalhados de maneira
mais artística, embora mantivesse ainda um traço
folclórico, como o próprio artista anuncia. Em entrevista
(Omolú, 2010), ele conta também que esta
representação do orixá, ou imitação como fala o artista,
mais tarde começou a incomodá-lo, pois segundo ele:
“utilizavam e utilizam muito a figura dos orixás ou às
vezes muita coisa de fundamento religioso” (Omolú,
2010).
Embora o próprio artista admita o aspecto
folclórico, posso concluir a partir das entrevistas
pesquisadas que sua formação como dançarino inicia-se
neste período entre as aulas com a professora Emília
Biancardi no grupo Viva Bahia e a participação no Grupo
Balú de Mestre King. O próprio nome artístico aparece
neste momento, pois aquele menino agora precisava de

(2011), e mais especificamente, o escrito de Oliveira (2008) sobre a


história e importância de Mestre King – ambas referências estão
listadas no final desta dissertação.
67

um registro, algo que indicasse este sujeito do palco, e


por dançar muito bem o orixá Omolú, agrega ao seu
nome, tornando-se: Augusto Omolú. Esta história o
artista conta na entrevista publicada pelo Teatro Jornal.
Trago nas próximas linhas a voz do artista para narrar
este momento de sua trajetória:
Quando voltei, comecei a trabalhar mais, a
correr a Bahia, e aí tinha que ter um
registro de artista, precisava ter um apelido
artístico. Então, como ela [Emilia
Biancardi] já me chamava o tempo todo
de “Omolú, Omoluzinho”, ficou Augusto
Omolú. Por outra coincidência muito
grande, quando nasci, em casa, a
madrinha que me batizou, a Maria de
Lurdes, recebeu a entidade Omolú
justamente na hora do meu parto que
estava ajudando a fazer (Omolú, 2012b).

A partir de sua fala percebo, mais uma vez, a


importante ocupação do candomblé em sua vida.
Augusto Omolú conta dois episódios distintos, um sobre
o seu nome artístico, vinculando a habilidade em dançar
o orixá Omolú e consequentemente o apelido
“omoluzinho”, e o outro episódio sobre a presença,
incorporada, do orixá Omolu em seu nascimento. Nesta
entrevista, ele explica ainda que o orixá Omolu “é um
guardião do cemitério, dos mortos. Ele representa
também a medicina. A saúde e a doença, a vida e a
morte” (Omolú, 2012b).
Entretanto, no caminho da dança, Augusto
Omolú se lança para além da dança dos orixás, digo, em
sua formação aparece o ballet e a dança moderna. É
neste momento que surge o Balé do Teatro Castro Alves,
uma companhia de dança com forte representação no
estado da Bahia. No site do Balé do TCA, o grupo se
68

define como “a primeira companhia de dança oficial do


norte-nordeste” (Teatro Castro Alves, 2013).
Na citação que faço a seguir, retirada do site
oficial do TCA, é possível notar o peso institucional desta
companhia e sua representatividade no estado da Bahia:
O Balé Teatro Castro Alves é a companhia
de dança oficial da Bahia, criada em 1º de
abril de 1981, pelo Governo do Estado e
mantida pela Fundação Cultural - unidade
da Secretaria de Cultura. [...] com um
corpo artístico formado por 36 bailarinos, o
BTCA conta com mais de 50 montagens
em seu repertório, sendo uma presença
destacada no cenário da dança nacional e
internacional. (Teatro Castro Alves, 2013).

O Balé do TCA, com seus trinta anos de história,


é apresentado na citação acima como um grupo do
estado da Bahia, mantido pela FUNCEB, Fundação
Cultural do Estado da Bahia. Além disso, possui um
grande repertório, um número expressivo de bailarinos e
ainda seus espetáculos tem circulação no cenário
nacional e internacional. Quando entrevistei Augusto
Omolú, ele falou da responsabilidade e do compromisso
que tinha quando era integrante do Balé do TCA. Em
contrapartida a própria história da companhia é marcada
pela presença emblemática do artista. Isto se evidencia
na seguinte manifestação da equipe do TCA após a
notícia de falecimento do artista:
A trajetória de Omolú se confunde com a
própria criação do Balé Teatro Castro
Alves, já que o artista se juntou ao grupo
ainda em 1981, ano de fundação deste
que é um dos atuais corpos artísticos do
TCA. Augusto Omolú integrou o elenco de
diversas produções da companhia e,
69

muitas vezes, atuou como solista destes


espetáculos. Parceiro constante do grupo
nesses mais de 30 anos de história, o
baiano se preparava para assumir o cargo
de assessor artístico do BTCA (Teatro
Castro Alves, 2013).

Ao trazer esta citação, vejo uma trajetória


profissional na área da dança de Augusto Omolú antes
da entrada ao grupo dinamarquês dirigido por Eugenio
Barba. Sua experiência direcionada para os movimentos
da dança dos orixás indica que o artista não chega ao
Odin Teatret como um dançarino iniciante. Isto é
fundamental para compreender a relação que o artista
estabeleceu com o grupo dinamarquês.
É claro que não refuto as contribuições do Odin
na trajetória de Augusto Omolú. O próprio artista em
entrevista (2012a) conta sobre esse primeiro contato
com o teatro, a partir do encontro com Eugenio Barba.
Este contato com o diretor italiano permitiu, segundo ele,
uma pesquisa mais direcionada para codificação dos
movimentos da dança dos orixás. A seguir, escrevo
sobre este encontro entre Omolú e Barba, outra fase da
trajetória do artista baiano.

1.2.2 “Uma dança em outra forma”: a participação de


Augusto Omolú na ISTA em Londrina

Em agosto de 1994, a Escola Internacional de


Antropologia Teatral, conhecida pela sigla em inglês
ISTA23, fez um encontro no Brasil, especificamente na
cidade de Londrina no Paraná. Um ano antes em
23
Segundo Barba, a ISTA foi fundada em 1979 e “sua primeira
sessão foi realizada em Bonn em 1980 e durou um mês inteiro.
Participaram como professores artistas de Bali, Taiwan, Japão e
Índia” (Barba, 1994, p. 21).
70

Salvador, Augusto Omolú conheceu Eugenio Barba e


Julia Varley.
Após o falecimento do artista brasileiro, Varley
escreveu uma carta publicada online na Revista
Performatus, e lá ela conta sobre este encontro da
seguinte maneira:
Nós te conhecemos no dia 13 de janeiro
de 1993. Eugenio Barba e eu estávamos
viajando pelo Brasil para preparar a sessão
da ISTA (International School of Theatre
Anthropology) que aconteceria em agosto
de 1994. Nitis Jacon, a diretora do FILO
(Festival Internacional de Londrina), queria
que uma tradição brasileira estivesse
presente de qualquer maneira ao lado das
tradições que vinham do Japão, da Índia,
de Bali e da Europa (Varley, 2013).

Foi a partir desta necessidade em ter um


representante brasileiro na ISTA em Londrina, que Barba
e Varley começaram a buscar um artista que trabalhasse
com a tradição, assim como, os outros integrantes
vindos do Japão, Índia e da Europa, os quais já tinham
conhecimento sobre a Antropologia Teatral e, portanto,
haviam codificado suas “tradições” para uma
apresentação do teatro-mundi24. Na carta, Varley segue
dizendo que tanto ela quanto Barba eram céticos nesta
busca. A atriz e integrante do Odin Teatret continua
assim:
Tínhamos dúvidas que conseguiríamos

24
De acordo com o site oficial do grupo, Theatrum Mundi Ensemble:
são espetáculos interculturais com a direção de Eugenio Barba.
Sobre isso pode-se consultar: http://www.odinteatret.dk/about-
us/about-odin-teatret/odin-teatret---en-espa%C3%B1ol.aspx –
acesso em 30 de janeiro de 2014.
71

encontrar, entre as manifestações


populares de espetáculos do Brasil, uma
forma estruturada e repetível que pudesse
ser comparada às formas codificadas
asiáticas. Éramos céticos sobre a
possibilidade de encontrar um
representante de uma tradição desse tipo,
capaz de explicar com palavras e de
demonstrar tecnicamente, a frio, os vários
níveis de seu saber incorporado – que, na
prática artística, é uma unidade –,
separando a forma do seu contexto ritual
ou festivo (Varley, 2013).

A partir deste trecho, a pergunta que me surge,


como brasileira e atriz, é: seria possível reunir uma forma
repetível, codificada, isto é, uma estrutura universal
imersa em uma tradição especifica? Parece que Barba
(1994) em seu tratado da Antropologia Teatral responde
a esta questão trazendo o conceito de pré-
expressividade. Entretanto, não aprofundarei neste
instante as problemáticas deste conceito, esta é uma
reflexão para o próximo capítulo, por enquanto,
direciono-me para a trajetória artística de Augusto Omolú
e seu encontro com o diretor italiano.
Nesta busca por um representante brasileiro,
Varley e Barba que já tinham passado pelo Bumba Meu
Boi de São Luís do Maranhão, Brasília e Fortaleza,
chegam a Salvador e a partir de Paulo Dourado25 se
deslocam para assistir uma aula de dança dos orixás de
Augusto Omolú. Após a aula, sentados em uma mesa de
bar, próximo ao Teatro Castro Alves, inicia-se a conversa,
que a atriz do Odin descreve assim:

25
Diretor baiano e professor da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
72

Em Salvador, acompanhados pelo diretor e


amigo Paulo Dourado, assistimos a
ensaios e cursos de vários dançarinos de
técnica afro-brasileira e a muitas
cerimônias de candomblé e caboclo. Até
que um dia, pela manhã, o Paulo nos levou
a uma grande sala onde uns setenta
dançarinos suavam ao ritmo frenético dos
tambores. Você estava começando a
ensinar as danças dos vários orixás.
Mostrou Oxossi, o caçador, com um passo
duplo saltitante, a chicotada do cavaleiro, o
dedo médio como a flecha que mira, a
corda apertada em torno da caça, o corpo
forte e o rosto com expressão vitoriosa.
Depois passou para Oxum, a deusa da
água doce, da vaidade, do amor e da
beleza, que se olha no espelho, que
penteia os longos cabelos e se enfeita de
joias. E de repente, a sua expressão, que
antes era decidida, masculina e vigorosa,
torna-se doce, feminina e sedutora. Você
não era nem afeminado nem artificial.
Estava tomado por uma inexplicável
energia que tinha te transformado
totalmente diante dos nossos olhos.
Eugenio e eu nos olhamos. Sabíamos o
que estávamos pensando: só tínhamos
visto uma transformação desse tipo vendo
dançar Sanjukta Panigrahi, a inesquecível
dançarina indiana de Odissi e outra
fundadora da ISTA. Foi paixão à primeira
vista. Algo parecido que também faz com
que vários dos seus alunos se apaixonem
por você (Varley, 2013).

Augusto Omolú havia apresentado a dança dos


orixás, mas não somente isso, a energia e as
características distintas entre o orixá Oxum eo orixá
Oxóssi, mostravam a Barba e Varley a possibilidade de
uma dramaturgia, pois cada movimento daquele tinha
73

uma história, cada orixá representava um elemento da


natureza, e tudo isto poderia servir como material para
uma possível partitura, ou seja, para uma sequência de
ações físicas, eles haviam encontrado o representante
brasileiro que poderia codificar esta manifestação
popular e transformá-la em espetáculo junto aos outros
integrantes do Odin na ISTA em Londrina.
Porém, era preciso fazer um teste com esta
“paixão a primeira vista”. Paulo Dourado acompanhado
de Barba e Varley convence Augusto Omolú a leva-los
ao terreiro de candomblé. Logo depois, houve um jogo
de improvisação entre Varley e Omolú, que ela narra da
seguinte maneira:
Eu ainda não tinha nenhuma ideia sobre o
significado dos seus movimentos e você
ainda não sabia interpretar minhas ações,
mas, mesmo assim, tínhamos uma língua
em comum. Nossa energia modelava
formas precisas, e quando elas se
alternavam, fundiam-se e repeliam-se
ritmicamente. [...] Naquela tarde, o
Eugenio decidiu que você participaria da
ISTA. Você não entendia muito bem o que
era ISTA, o que era a antropologia teatral.
Mas aceitou, e foi o início de um longo
processo de aprendizagem recíproca
(Varley, 2013).

Augusto Omolú diz que nos primeiros momentos,


aquela linguagem sobre o movimento e a presença
cênica, trazia muitas informações para ele, diferentes de
sua rotina de bailarino. Na entrevista, ele diz que muitas
vezes via Barba com um coreógrafo, ao mesmo tempo
em que o diretor italiano enxergava um “grande leque de
possibilidades” para a composição e a criação de cena
(Omolú, 2012a).
74

O artista brasileiro conta ainda, que para cada


orixá há mais de vinte ou trinta movimentos corporais. Os
orixás quando incorporados comunicam-se através da
dança, assim cada movimento dançado possui um
significado e está atrelado a mitologia deste orixá e suas
característica em relação a natureza. Por exemplo, se eu
me direcionar ao orixá Iansã, a mitologia conta que Iansã
significa a mãe dos nove filhos, ou ainda, “mãe nove
vezes” (Prandi, 2012, p. 294); Iansã é apresentada como
mãe dos ventos e das tempestades, logo seus
movimentos de dança possuem estas representações.
Geralmente, com as palmas das mãos para cima
fazendo movimentos de dentro para fora, ou movimentos
circulares com as mãos, simbolizando uma ventania, um
vendaval.
Todo esse conhecimento Augusto Omolú havia
experenciado dentro do candomblé, e também nos anos
de dança dos orixás, imitando os movimentos e
representando-os em cena. Este material para Barba,
como afirmava o artista brasileiro em vários momentos
da entrevista, era uma possibilidade infinita, onde cada
movimento poderia ser codificado e transportado para
cena construindo outras significações. Na carta escrita
por Julia Varley, ela conta que Augusto Omolú ainda não
havia pensado nos orixás em relação a uma
dramaturgia, ou seja, nos “orixás como personagens que
pudessem instaurar um diálogo entre si” (Varley, 2013).
De qualquer forma, quando o artista brasileiro
compreendeu isto, seus olhos enxergaram outras
maneiras de sistematizar e criar tudo aquilo que ele já
tinha experenciado com a dança e com o candomblé.
Deste processo, surge a montagem do Orô de Otelo
(1994), um espetáculo que tinha como objetivo inicial ser
apenas uma demonstração na ISTA em Londrina, mas
que ganhou destaque em sua trajetória, principalmente
75

em sua pesquisa sobre a Dramaturgia da Dança dos


Orixás – no capítulo três me concentrarei neste
espetáculo, nos movimentos dos orixás e sua relação
com os personagens de William Shakespeare.
Nesta fase com o Odin, o artista brasileiro tinha
uma posição de colaborador, isto é, participava das
sessões da ISTA, e foi assim até 2002, onde passou a
integrar o elenco do grupo. A versão de Varley para este
momento da trajetória de Augusto Omolú, é narrada
assim:

Muitas vezes você me perguntou como é


que se entrava no Odin Teatret. O Eugenio
tentou te desencorajar de todas as
maneiras, mas você tinha certeza: queria
crescer artisticamente e ficar em um
ambiente que permitiria que isso
acontecesse [...]“Como você vai sobreviver
ao frio dinamarquês?”, perguntava o
Eugenio, “sem conhecer a língua, sem os
amigos, sem a família?”. Aquela diferente
disciplina de um ator, as pessoas que eram
tão reservadas, o isolamento em uma
pequena cidade nórdica… Na ISTA, você
era tratado com todas as atenções dadas
aos mestres, mas entrando no Odin Teatret
teria que começar do zero, se tornaria um
principiante com deveres e
responsabilidades. Mas você insistia
(Varley, 2013).

Durante as entrevistas, o artista brasileiro não


faz menção a este episódio, porém, sempre elucida os
desafios constantes para estar junto ao grupo
dinamarquês. Comenta sobre a distância, a família e os
amigos, e ainda quando indagado sobre sua
participação, diz assim:
76

Como também um contribuidor. Entrei aqui


como um colaborador e agora me sinto
justamente como um colaborador.
Contribui assim como todos os integrantes
contribuem comigo também. Aumentei
minha visão das artes cênicas, assim
como trouxe para eles um leque de
possibilidades. É como se houvesse as
células de cada um. Cada um dos atores
tem uma história aqui dentro. Essas
diferenças fazem uma diferença. E o
Eugenio trabalha muito com as
indiferenças. Ele gosta de coisas assim.
Isso me interessa: sinto-me como mais
uma das pessoas portadora dessas
células, corresponsável pelas linguagens
que partilhamos em vários lugares do
universo (Omolú, 2012b).

Em seu discurso aparece, sutilmente, as tensões


envolvidas na relação de grupo. Sua história com
Eugenio Barba se estendeu por quase duas décadas de
pesquisa e trabalho artístico profissional remunerado. O
artista brasileiro chega a afirma que a partir do contato
com o diretor italiano: “despertou uma nova vida, uma
nova condição de sobreviver dentro da minha arte”
(Omolú, 2012a). Sem dúvidas, a presença de Barba no
grupo é algo marcante.
Sobre o papel do diretor no grupo Odin, Lara T.
de Matos, atriz e mestre em teatro, escreve em sua
dissertação Intersecções entre prática teatral e vida
pessoal no trabalho das atrizes do odin teatret (2012, p.
21) que:
Apesar do grande número de pessoas
trabalhando na administração do grupo, é
Eugenio Barba quem toma as decisões
mais importantes, seja sobre determinada
necessidade econômica, ou necessidades
77

artísticas de um espetáculo. Eugenio


Barba é o único diretor do grupo, é quem
mais publica livros e artigos em diversas
línguas, ministra conferências, palestras,
seminários, além disso, a difusão de
técnicas e os impactos de seus projetos
artísticos e pedagógicos, o fazem ser
considerado um dos importantes diretores
do teatro de grupo contemporâneo que
segue a linha das revoluções do século XX
a partir de Stanislavski.

Dada a posição do diretor, não só na


organização de espetáculos, como também na parte
administrativa do grupo, torna-se compreensível, a partir
desta citação, o discurso do artista brasileiro,
evidenciando a presença de Barba em sua trajetória,
como também a notabilidade do grupo dinamarquês no
cenário teatral. Ressalto ainda que as citações feitas até
aqui foram retiradas das entrevistas encontradas de
Augusto Omolú e da carta escrita por Julia Varley, sendo
a última fonte um material escrito pela integrante do Odin
em um momento após a perda do artista brasileiro.
Assim longe de aproximar os dois discuros de Varley e
Omolú, o que busquei nesta seção foi compreender a
entrada de Augusto Omolú no Odin, partindo de duas
perspectivas distintas.
Para falar sobre esta última fase do artista com o
grupo dinamarquês, passo para o próximo capítulo, a fim
de discutir os conceitos da Antropologia Teatral de Barba,
que de certa maneira davam suporte a pesquisa de
Augusto Omolú sobre a Dramaturgia da Dança dos
Orixás. Os principais conceitos que destacarei são: pré-
expressividade, sats, energia, e ação física.
78
79

CAPÍTULO DOIS

A ENERGIA DO ORIXÁ COMO IMPULSO PARA A


CRIAÇÃO ARTÍSTICA E AS TENSÕES NO
ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA TEATRAL

“É como se o orixá fosse o


movimento de partida, e de
repente você elimina o orixá e
fica somente com a energia”.

Augusto Omolú
80

No capítulo anterior meu objetivo foi apresentar


a trajetória de Augusto Omolú e, ainda, sua ligação com
o candomblé. Neste capítulo localizo alguns conceitos da
Antropologia Teatral imersos na Dramaturgia da Dança
dos Orixás.
Ressalto que a Dramaturgia da Dança dos
Orixás era uma pesquisa artística de Augusto Omolú,
fruto de suas experiências como dançarino na Bahia e
sua participação durante quase vinte anos no grupo Odin
Teatret. Mesmo antes de o artista ter ingressado no
grupo dinamarquês - embora não tivesse esse nome ou
uma percepção da dança como dramaturgia - pode se
dizer que havia uma pesquisa prática voltada para os
movimentos dançados pelos orixás e a apresentação ou
a adaptação destes movimentos para o palco.
Portanto, vou me refir a Dramaturgia da Dança
dos Orixás como uma pesquisa e não como técnica ou
treinamento do artista, pois este processo ainda estava
acontecendo. O segundo capítulo dividi-se em duas
seções, a primeira visa localizar algumas noções sobre a
dança dos orixás como ritual no candomblé e a segunda
é uma reflexão sobre os conceitos da Antropologia
Teatral de Eugenio Barba, diretor do grupo dinamarquês.
81

2.1 A DANÇA DO RITUAL: O FESTEJO E O


RELIGIOSO NO CRUZAMENTO DA DANÇA, DO
TOQUE E DO CANTO

“Em muitos aspectos a arte é


semelhante à religião”
(Kandinsky)

A dança dos orixás é um dos momentos centrais


da cerimônia ou prática religiosa do candomblé. Em
outras palavras é o instante onde os orixás já
incoporados nos iniciados26 (iaôs) se comunicam através
de sua dança, cantos e toques. Nesta seção utilizarei
como referencial27 os estudos de Zeca Ligiéro,
pesquisador, diretor e professor doutor da UNIRIO. Este
autor concentra-se na área teatral, com pesquisas sobre
os estudos das performances brasileiras e afro-
ameríndias.
O candomblé é uma manifestação religiosa
africana, isto é, com origem a partir das práticas culturais
trazidas por negros escravizados vindos do continente
africano, principalmente, da região subsaariana (Ligiéro,
2011). Para compreender sobre este aspecto, continuo
com o escrito de Zeca Ligiéro, citando o seguinte trecho:

26
Iniciados podem ser chamados também de iâos, pessoas que
passam por um processo longo de preparação, este processo
chama-se bori, isto é, fazer bori, significa preparar sua cabeça (ori)
para receber o orixá. Sobre isso consultar Sabino; Lody ( 2011) e
também Zeca Ligiéro (2011) sobre a explicação da expressão “fazer
a cabeça”, que no caso é esta preparação do ori. Ambas estão
citadas nas referências bibliográficas deste trabalho.
27
Ressalto que minha escolha por Zeca Ligiéro é devido a reflexão
que este faz entre o ritual e as performances afro-brasileiras na área
teatral, porém indico estudos como: Roger Bastide (1985), Pierre
Verger (1987; 2000) e Edson Carneiro (1986) para um olhar mais
específico sobre as práticas religiosas afro-brasileiras.
82

O candomblé é de origem africana, isso já


não se discute mais. [...] normalmente ele
é hoje mais associado à cultura de origem
ioruba, pelo impacto do universo de seus
orixás. Entretanto, é notável, nele, ainda
forte presença da cultura Fon dos Geges,
do antigo Reino de Daomé (Ligiéro, 2011,
p. 115).

Ao falar de dança dos orixás e da religião do


candomblé, como coloca Ligiéro acima, muitas vezes se
identifica a forte presença iorubana. É comum diferenciar
o ritual do candomblé com o nome das nações de
origem, como “candomblé ketu”, “candomblé jeje (ou
gegê)”, “candomblé Angola” e ainda “candomblé
caboclo”, este último traz os elementos das práticas
indígenas.
Entretanto, o autor supracitado continua a
reflexão e ressalta que
[...] não é possível afirmar a existência de
uma matriz apenas, nem de um único
candomblé, pois trata-se de uma religião
com uma enorme variedade de rituais e de
“nações” [...] suas matrizes culturais são
de diversas procedências africanas e
reelaboradas no Brasil por diferentes
grupos étnicos e seus descendentes. De
terreiro para terreiro, não muda somente a
linguagem dos seus cantos; as próprias
divindades cultuadas também mudam
(2011, p. 115).

Acrescento que nesta dissertação a escolha pela


palavra orixá indica características do grupo étnico
iorubá, . Porém, concordo com o autor sobre as
dinâmicas culturais. Adiante aprofundarei esta
problemática sobre as matrizes culturais, trazendo a
83

partir de Ligiéro (2011) a expressão “motrizes” culturais.


Por enquanto, busco localizar estas variantes da religião
do candomblé para compreender de onde vinham os
movimentos da dança dos orixás de Augusto Omolú.
De acordo com o autor supracitado a palavra
candomblé possui em sua própria etmologia o significado
de saudação e/ou invocação. Em seu livro Iniciação ao
candomblé, ele explica que
a palavra candomblé é de origem
quicongo-angola, Ká-n-dón-ind-é ou Ká-n-
domb-ed-e, ou, mais frequentemente
usado: Ka-n-domb-el-e, que é a “ação de
orar”, um substantivo derivado da forma
verbal ku-dom-ba ou kulomba: orar, saudar
ou invocar. Candomblé significa adoração,
louvação e invocação. E, por extensão, o
lugar onde as cerimônias são realizadas
(Ligiéro, 2004, p. 20).

A dança presente no candomblé, traz aspectos


importantes como a comunicação entre os humanos
(fiéis) e seus ancestres, além de apresentar a história,
mitologia, destes ancestrais divinos. Sobre isso, mais
uma vez, Ligiéro destaca
No candomblé os orixás manifestados têm
sua razão de viver na própria dança, pois é
através dela, impulsionado pelo canto e
pela música e acompanhada pelos fiéis,
que os chamados deuses africanos
executam suas elaboradas coreografias,
que aludem ou mesmo dramatizam
passagens de sua vida mítica (2011, p.
117).

Apesar de algumas semelhanças com a


Umbanda, não se deve confundir tais práticas religiosas.
84

Esta última têm características do sincretismo católico,


kardecista e ainda a influência das tradições indígenas
(Ligiéro, 2011). No candomblé cada movimento dançado
possuí um significado particular e específico àquele orixá
que dança, assim como, as vestimentas, as cores, o
toque dos atabaques e a música cantada.
De acordo com o dançarino Jorge Sabino e o
antropólogo Raul Lody: “as danças cerimoniais dos
orixás assumem sua vocação teatral de contar histórias
por meio de coreografias apoiadas e complementadas
por roupas e objetos que integram o processo da própria
dança” (2011, p. 33). Este conjunto de detalhes é
complexo, digo isto pois em minhas experiências e
leituras durante esta pesquisa de mestrado pude
perceber que as práticas e rituais do candomblé
envolvem disciplina, atenção e disposição, ou seja,
aquele que passa pelo processo de iniciação no
candomblé se dispõe de maneira plena para o ritual;
além disso, é necessário uma intensa preparação do
corpo.
Retomo ao escrito de Ligiéro (2011), em seu livro
Corpo a Corpo: Estudos das Performances Brasileiras,
onde apresenta o conceito “motrizes culturais” e ainda o
tripé cantar-batucar-dançar do filósofo congolês Bunseki
Fu-Kiau para compreender os diversos elementos
culturais presentes nas danças de origem africana. O
primeiro conceito será desenvolvido com mais afinco no
segundo momento deste capítulo, por enquanto vou me
ater neste tripé cantar-batucar-dançar, que a meu ver
pode contribuir para o entendimento da dança dos
orixás.
Segundo Ligiéro (2011, p. 131), pode se
observar, de maneira geral, nas diversas danças da
região subssariana do continente africano ou mesmo nas
performances de origem africana que “[...] o corpo é o
85

centro de tudo. Ele se move em direções múltiplas,


ondula o torso e se deixa impregnar pelo ritmo
percussivo”. De acordo com o filósofo Fu-Kiau, citado por
Ligiéro (2011), a dança não deve ser estudada de
maneira separada do canto e do batuque. Estes três
elementos, canto, dança e batuque, ao se conectarem,
permitem uma comunicação dos devotos com seus
ancestres.
Neste momento, aparece uma ligação importante
entre festa e religião, ou o popular: sagrado e profano.
Sobre isso, Ligiéro afirma: “[...] são formas
complementares dentro do mesmo ritual” ( 2011, p. 135).
A dança dos orixás nos rituais do candomblé, apresenta
um conjunto de detalhes e rigor, destaco dois aspectos
para perceber esta complemetariedade indicada por
Ligiéro (2011): o primeiro é a preparação do corpo para
este momento “celebratório-ritualístico” (Ligiéro, 2011, p.
131) e o segundo é a conexão entre o canto, a dança e o
batuque.
No candomblé é possível dizer que “o corpo é
ritualmente preparado para, desse modo, estar pronto
para realizar os gestos, as posturas e demais
comportamentos que determinam o lugar da dança em
âmbito sagrado” (Sabino; Lody, 2011, p. 82). Assim, na
dança dos orixás, o corpo torna-se um dos canais de
comunicação entre o mundo material e o mundo
imaterial. Os movimentos dançados acompanham os
toques dos atabaques, com variações rítmicas nas
diferentes direções espaciais. Os pés em posição
paralela, a flexibilidade da cintura, a abertura das mãos e
dos braços, os joelhos semi-flexionados, dão
sustentação aos giros e rodopios, com distintas
variações rítmicas de acordo com o toque dos
atabaques.
Todo este conhecimento sobre os movimetnos e
86

posturas corporais, dentro do terreiro, são repassados


por longos processos de ensinamento, que acontecem
desde as pequenas atividades de organização dos rituais
até a preparação do corpo do iniciado (iaôs) para a
dança dos orixás. Dessa maneira:
Saber dançar e conhecer as danças neste
campo específico do amplo processo
ritual-religioso do candomblé está
relacionado com os saberes relativos às
folhas, à música vocal e instrumental, às
indumentárias, às comidas, aos
significados de formas, cores,
vocabulários, histórias e mitologias,
elementos que juntos fluem e refluem em
visão uníssona e, bembém, construttiva da
própria dança, especialmente do corpo
(Sabino; Lody, 2011, p. 116).

As atividades diárias do terreiro, portanto, são


compreendidos de maneira integrada, isto é, fazem parte
do processo de iniciação daquele que chega no terreiro.
A dança dos orixás, então, traz valores simbólicos do
ensinamento diário, um processo que requer dedicação
constante. No trecho abaixo, Ligiéro sublinha esta
relação do corpo do iniciado e o orixá, e destaca este
processo religioso de preparação e dedicação. Segundo
o autor:
Para receber o orixá e dançar por ele, o
corpo deve ser preparado como um templo
– purificado por rituais e banhos com ervas
e outras substâncias sagradas. O transe
coroa esse processo como o momento
máximo de comunhão entre ser e o seu
duplo, a divinidade que vem ao encontro
do fiel, conduzindo-o através de uma
dança sagrada (Ligiéro, 2011, p. 150).
87

No momento da dança, há um encontro entre o


orixá e o iniciado e a partir deste encontro/transe é que
os movimentos são realizados. Não aprofundarei este
ponto sobre a incorporação e/ou transe, pois estes
aspectos fazem parte de uma rotina de terreiro que está
fundamentada em preceitos religiosos. Por se tratar de
uma dissertação na área teatral com foco no trabalho
artístico de Augusto Omolú, continuarei apresentando a
dança do orixá a fim de destacar os aspectos
relacionados à pesquisa deste artista brasileiro,
especialmente, as conexões entre o corpo e o
movimento; a dança e a dramaturgia.
Destaco que a dança neste espaço do ritual,
deve ser compreendida, como coloca o congolês Fu-
Kiau citado por Ligiéro (2011), não enquanto uma área
separada, mas como um estudo conectado com o
“batucar-cantar-dançar”. Da mesma maneira que os
movimentos dançados pelos orixás estão conectados
aos elementos da natureza, ou como diz Augusto Omolú
em entrevista (2012b), “a natureza está no mundo, e os
orixás são energias, os orixás são a natureza”.
O autor Reginaldo Prandi, ao reunir em seu livro
A Mitologia dos Orixás (2012), explica esta relação entre
orixá e a natureza da seguinte maneira:
Para os iorubás tradicionais e os
seguidores de sua religião nas Américas,
os orixás são deuses que receberam de
Olodumare ou Olocum, também chamado
Olofim em Cuba, o Ser Supremo, a
incumbência de criar e governar o mundo,
ficando cada um deles responsável por
alguns aspectos da natureza e certas
dimensões da vida em sociedade e da
condição humana (Prandi, 2012, p. 22).

Por visualizar a criação do mundo a partir desta


88

ótica, os iorubás tradicionais, como coloca Prandi na


citação acima, acreditavam que os orixás eram
responsáveis não só pelos aspectos naturais como água,
terra, fogo e ar, como também por certas atividades da
vida social, como a justiça (orixá Xangô), a batalha (orixá
Ogum) e a caça (orixá Oxóssi), para citar alguns. Assim,
a mitologia (ou itãns) reune as diversas histórias e
passagens de cada orixás, tendo, principalmente, uma
relação na criação do mundo.
Sobre os orixás, o professor pesquisador e
sacerdote do Candomblé no Ilê Axé Ogunfunmilayo em
Minas Gerais, Erisvaldo P. dos Santos (2010, p. 31)
afirma:
os orixás, inquices e voduns são uma
forma de mediação entre Deus – Olorun –
e os seres humanos. Eles são forças da
natureza e ancestrais divinizados. Além do
transe místico, eles estabelecem relação
com os seres humanos através de
manifestações da natureza, como a chuva,
o vento, as tempestades, as ondas do mar
etc.

A dança realizada pelo orixá no corpo do iniciado


não é aleatória, isto é, cada orixá possui uma gama de
movimentos próprios que se relacionam com estas
características descritas por Santos. Além disso, Ligiéro
destaca que:
No candomblé, a dança dos orixás é sem
dúvida o ápice da performance Gêge-
Iorubá no Brasil. Cada orixá tem uma
batida, um canto e uma dança específica.
Através dos movimentos precisos dos
dançarinos incorporados, podemos
identificar o orixá que dança através de
seu corpo (2011, p. 150).

Esta especificidade do movimento, apontada na


89

citação acima, permite uma comunicação entre a materia


corpórea e a dimensão enérgica, como já foi dito, e
consequentemente evidencia a importância do corpo,
pois ele não é somente um meio, ou suporte de
comunicação, ele é parte integrante desta comunicação,
ou seja, sem corpo não há dança e consequentemente
não há comunicação. Em outras palavras, os
movimentos feitos por cada orixá no momento da dança
apresentam tanto o sentido mitológico, traduzindo as
conexões existentes nas atividades cotidianas e na
relação com a natureza, quanto o sentido cósmico, de
religamento com os ancestrais. Assim, o canto, os
movimentos corporais e o toque dos atabaques vão
compondo um cenário épico e religioso presente na
dança dos orixás.
Digo isto, pois estes cruzamentos entre a dança,
o canto e o batuque estão presentes tanto no momento
do ritual do candomblé quanto nas aulas do Seminário
de Augusto Omolú. Sem deixar de considerar os
aspectos diferenciais e simbólicos particulares a cada
uma, sigo a indicação de Bunseki Fu-Kiau, traduzidas
por Ligiéro (2011) ao definir o “batucar-dançar-cantar”.
De acordo com Fu-Kiau, cada aspecto deste se
complementa e evidencia, seja no rito ou na festa, um
continuum. Cito a explicação do filósofo congolês, nas
palavras de Ligiéro, que possibilitará uma compreensão
desta perspectiva:
Fu-Kiau afirma que, quando alguém está
tocando um atabaque ou qualquer outro
instrumetno, uma linguagem espiritual está
sendo articulada. O canto é percebido
como a interpretação dessas linguagens
para a comunidade presente no aqui e
agora. Dançar seria a “aceitação das
mensagens espirituais propagadas”
através de nosso próprio corpo
90

[...].”Batucar-cantar-dançar permite que o


círculo social quebrado seja religado
(religare), de forma a fazer a energia fluir
novamente entre os vivos e os mortos”
(Ligiéro, 2011, p. 134-135).

Diante disso, o festejo e o religioso


apresentariam aspectos complementares, isto é, embora
a dança dos orixás presente no terreiro tenha outros
sentidos simbólicos, como foi visto anteriormente em
relação a preparação do corpo, pode-se dizer que a
dança dos orixás feita por Augusto Omolú apresenta
também aspectos comuns, principalmente, este
cruzamento entre a dança, o canto e o batuque.
Entretanto, percebo no trabalho do artista baiano
um processo constante de ressignificação do movimento
da dança dos orixás. Este processo se inicia quando
criança assistindo e participando dos rituais do
candomblé, ou ás vezes, como ele mesmo narrou na
entrevista, brincando de imitar os orixás; e logo depois
passa pelo período da adolescência, onde ele começa a
participar de grupos folclóricos de Salvador, neste
instante a dança desloca-se do espaço do terreiro para o
espaço dos palcos, é quando Augusto Omolú trilha seus
passos rumo a formação de dançarino, construindo uma
diversidade de experiências em sua trajetória, como foi
visto no capítulo um, desde o ballet a dança moderna; e
por último, chega ao Odin Teatret como artista e
dançarino, e lá com as noções da Antropologia Teatral
de Eugenio Barba vê a possibilidade de mapear estes
movimentos dos orixás. Nesta fase, como anuncia a
epígrafe deste capítulo, o movimento do orixá se torna,
então, um impulso para a criação de ações físicas, ou
ainda, um material cênico para compor de maneira
diferente do folclore, a sua própria dramaturgia.
No próximo tópico, busco então, as noções de
91

movimento, gestos e ação. Até que ponto é possível


afirmar um tipo de transformação do movimento da
dança dos orixás em ação cênica? Quais os limites da
tradição e da pré-expressividade? O que é energia?
Estas são perguntas que impulsionam o segundo
momento deste capítulo. Para isso, me concentrarei em
alguns momentos em uma problematização dos
conceitos apresentados pela Antropologia Teatral de
Eugenio Barba e as fronteiras entre a matriz e as
motrizes culturais, acepções de Zeca Ligiéro (2011).

2.2 OBSERVAÇÕES SOBRE A ANTROPOLOGIA


TEATRAL: O MOVIMENTO, O GESTO E A AÇÃO
CÊNICA

A Canoa de Papel (1994) e A Arte Secreta do


Ator (1995) são dois livros expoentes e fundamentais
para a compreensão da Antropologia Teatral. Nestes
materiais o diretor italiano, Eugenio Barba, apresenta o
seu tratado sobre a prática e teoria do trabalho de
representação do ator/dançarino, ou melhor, possíveis
técnicas para a orientação do fazer cênico. Será a partir
destes referencias que desdobrarei a presente reflexão,
buscando compreender as camadas fundantes da
Dramaturgia da Dança dos Orixás de Augusto Omolú.
Esta incursão nos estudos de Barba ganha
espaço nesta dissertação pelo fato de o artista brasileiro
ter desenvolvido, por mais de uma década junto ao Odin
Teatret, uma pesquisa sobre a dramaturgia do
movimento. Minha intenção é buscar nestes materiais
sobre a Antropologia Teatral, as bases conceituais que
Augusto Omolú em seus seminários, demonstrações de
trabalho, espetáculos e workshops algumas vezes
92

sinalizou, por exemplo, a noção de energia (palavra que


aparece no candomblé como axé e também nos estudos
de Barba como sats). Outras palavras surgiram neste
período da pesquisa em teatro, em conversas com o
artista brasileiro era frequente as palavras: tradição e
identidade. Tais palavras também são escritas por
Eugenio Barba e junto a conceitos como
equilíbrio/desiquilíbrio, dança das oposições, pré-
expressividade, krafti/sats e corpo decidido dão
sustentação a Antropologia Teatral.
De acordo com Barba (1995), a Antropologia
Teatral não busca leis universais, e sim um estudo sobre
o comportamento humano em situação de
representação, isto é, regras que possam ser úteis ao
trabalho do ator/dançarino. Para escrever sobre estas
noções da Antroplogia Teatral e consequemente o
trabalho de Augusto Omolú, organizei esta seção do
capítulo por tópicos conceituais, ou seja, em cada tópico
desenvolverei uma reflexão sobre algum aspecto teórico
proposto por Barba. Embora, esta metodologia possa
parecer execessivamente divisória, compreendo que isto
funcionará muito mais como um mapa, um guia com
entradas e saídas para diálogos sobre o trabalho do ator,
especialmente, o trabalho aqui estudado.

2.2.1 Uma passagem sobre a pré-expressividade no


trabalho do ator

Sobre a noção de pré-expressividade, Eugenio


Barba alerta: “não foi inventada por mim nem por
[Gordon] Craig28. A única coisa que inventei foi o fato de

28
Edward Gordon Craig, ator, encenador e cenógrafo inglês (1872-
1966). “Craig idealizava um ator que unisse uma natureza generosa
93

acreditar nela” (1994, p. 1479). Apesar de o diretor


destacar isto, este conceito do pré-expressivo ficou
amplamente conhecido como um dos alicerces da
Antropologia Teatral29. O nível pré-expressivo para Barba
(1994) parece ser um espaço comum, um princípio
universal daquilo que ele chama de bios cênico30 do
ator/dançarino31. Assim, ao trabalhar em um nível pré-

a uma alta inteligência, onde esta governaria a natureza das paixões


e o pensamento, o movimento do corpo” (Nunes, 2009, p. 65-66).
29
Muitos estudos têm buscado uma reflexão crítica sobre esta
perspectiva antropológica, levantando questionamentos sobre uma
versão reducionista ou determinista em relação a cultura e/ou o
teatro, cito, especialmente, dois autores: Rustom Bharucha (1996 ) e
Patrice Pavis (1996; 2008) que em seus escritos discorrem sobre o
teatro intercultural, especialmente, para questionar a visão exótica
de cultura e a reafirmação de uma posição colonial. Para iniciar uma
relfexão sobre a noção de teatro intercultural, sugiro a leitura da
dissertação de Rodrigo Benza Guerra (2013), onde o pesquisador a
partir de suas experiências na amazônia peruana, fala sobre as
práticas culturais fundamentado em uma concepção dialógica, para
utilizar a expressão do autor. Para provocar ainda mais este debate,
sugiro também a leitura da tese de Marisa Naspolini (2013), que
também busca a partir de sua experiência discutir as fronteiras
teatro e cultura, não é por acaso o título: Fronteiras em movimento,
porém a experiência de Naspolini se dá com a criação e história do
Projeto Magdalena. Consultar nas referências deste trabalho.
30
Segundo Barba (1994) é um dos níveis de organização do
trabalho do ator, constituindo um dos princípios da Antropologia
Teatral. O diretor enumera três níveis de organização: “o primeiro
aspecto é individual. O segundo é comum a todos os que praticam o
mesmo gênero espetacular. O terceira concerne aos atores de
tempo e cultura diferentes (1994, p. 24). O bios cênico, ou vida
cênica, é o terceiro aspecto que está relacionado a “utilização do
corpo-mente segundo técnicas extracotidianas que-retornam
transculturais” (1994, p. 25). Além disso, sobre o bios cênico, o
diretor concluí? “[é] o nível ‘biológico’ do teatro sobre qual se fundam
as diversas técnicas, as utilizações particulares da presença cênica
e do dinamismo do ator” (1994, p. 25).
31
Este termo: “ator/dançarino”, ou sua variação “ator/bailarino”, é
94

expressivo o ator modela suas ações, ou ainda, organiza


os singificados que deseja, intencionalmente, mostrar no
encontro com o espectador.
O ator, pesquisador e membro do LUME32,
Renato Ferracini, retoma os escritos de Barba para
explicar tal conceito no trabalho do ator. Em seu livro, A
Arte de Não Interpretar Como Poesia Corpórea do Ator,
Ferracini sintetiza que “é o nível onde o ator produz e,
principalmente, trabalha todos os elementos técnicos e
vitais de suas ações físicas e vocais” (2001, p. 99). Ao
apresentar tal conceito de Barba, o integrante e
pesquisador do LUME deixa explícito que “partindo
desse pressuposto [no caso da pré-expressividade],
podemos dizer que existe um nível básico de
organização, comum a todos os atores, e anterior à
expressão em si” (Ferracini, 2001, p. 99).
Seguindo por esta perspectiva, a pré-
expressividade é um nível operativo, nas palavras de
Barba: “não é um nível que possa ser separado da
expressão mas uma categoria pragmática, uma práxis
que, durante o processo, tem como objetivo desenvolver
e organizar o bios cênico do ator [...]” (Barba, 1994, p.
154), ou ainda, como maneira de organização da

uma proposição de Barba para que não haja uma separação entre o
teatro e a dança e logo entre o ator e o bailarino. Logo nas primeiras
páginas de seu livro, o diretor alerta: “[...] lendo a palavra “ator”,
dever-se-á entender “ator e bailarino”, seja mulher ou homem; e ao
ler “teatro” dever-se-á enteder “teatro e dança” (Barba, 1994, p. 22).
32
LUME é Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas da UNICAMP,
fundado por Luís Otávio Burnier , na época professor no
Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes na mesma
universidade. Assim, “em 1985, junto de [Carlos]Simioni e da
musicista Denise Garcia, Burnier funda oficialmente o LUME”. Para
saber mais sobre o LUME, acessar sua página
http://www.lumeteatro.com.br/ - Informações retiradas deste site com
acesso em 31 de janeiro de 2014.
95

presença do ator. Além disso, o diretor faz questão de


enfatizar: “o conceito de ‘pré-expressividade’ só serve
para alguma coisa se estiver relacionado com o ator”
(1994, p. 155).
Depois de apresentar tal noção, a pergunta que
me surge é: a pré-expressividade busca, então, um
corpo que existe antes do próprio corpo, um nível de
expressão não “contaminado” pelas relações cognitivas,
sociais, históricas, permeadas nas experiências de cada
ator? Parece-me que os pressupostos da Antropologia
Teatral, sustentam-se em uma afirmação categórica de
um nível comum presente nas diversas tradições
teatrais.
O diretor Eugenio Barba, em Arte secreta do ator
(1995), não hesita em suas definições e concluí:
O teatro pode, entretanto, ser aberto às
experiências de outros teatros, não para
misturar diferentes meios de fazer
representações, mas com a finalidade de
encontrar princípios básicos comuns e
transmitir esses princípios por meio de
suas próprias experiências. [...] A
antropologia teatral procura estudar tais
princípios. [...] Estudando esses princípios
dessa maneira, ela prestará um serviço
tanto para o ator ocidental quanto para o
oriental, para os que têm uma tradição
codificada, e para os que sofrem pela falta
de uma (Barba, 1995, p. 9)

Ao buscar técnicas orientais de representação


em constrate com as técnicas e treinamentos ocidentais,
a Antropologia Teatral possibilita o encontro entre as
tradições e ainda, como indica a citação acima, permite
codifica-las. Entretanto, até que ponto este encontro
entre tradições e uma possível codificação das mesmas
96

reforçaria estruturas colonialistas? Em sua tese de


doutorado, a pesquisadora Marisa Naspolini (2013)
sugere esta tensão ao citar os estudos de Rustom
Bharucha, diretor, escritor e crítico cultural. De acordo
com Naspolini (2013, p. 67):
Podemos, obviamente, questionar até que
ponto estas práticas interculturais não
representam uma via de mão única, como
levanta Rustom Bharucha, quando apenas
um dos lados leva vantagem, configurando
só mais um capítulo (disfarçado) na
história de apropriação e dominação
cultural.

Considero importante esta reflexão de Bharucha,


indicada por Naspolini na citação acima, ainda que meu
objetivo não seja uma análise crítica sobre a
Antropologia Teatral de Barba e/ou seu teatro
intercultural. Porém, não posso deixar de citar esta
perspectiva crítica sobre os estudos de Barba, afinal, que
tipo de intenção existe no momento em que o diretor
europeu seleciona as “tradições” para sua estética e
criação? Seria possível pensar que nestas relações do
próprio grupo em contato com outras tradições e
identidade culturais existiria um princípio comum e
universal? No próximo item abordarei estas questões.

2.2.2 O espetáculo da tradição ou uma tradição


espetacular?

Para falar sobre tradição, quero retomar neste


item uma pergunta indicada no primeiro capítulo desta
dissertação, quando o artista brasileiro foi convidado a
participar da ISTA em Londrina como representante da
cultura (afro)brasileira. Naquela época, Barba e Varley
97

estavam a procura de um artista local que reunisse


através de estruturas codificadas a tradição brasiliera,
de maneira, que estas estruturas pudessem ser
repetidas em partituras corporais. Sobre este momento
do encontro, Varley (2013) escreve em sua carta
dedicada a Augusto Omolú:
Você não tinha nem demonstração nem
espetáculo. Precisava criá-los de qualquer
forma para participar da ISTA como um
representante da tradição das danças dos
orixás. Você nos mostrou várias partes das
coreografias que conhecia como bailarino
e, também, uma sequência de danças dos
orixás. Parecia que você tinha diferentes
identidades que dependiam da música que
te acompanhava.

Diante disso, a questão principal que surge é:


Augusto Omolú seria, na cena, no momento do
espetáculo, um representante da tradição afro-brasileira?
De maneira geral, esta pergunta poderia ser também
formulada assim: Até que ponto esta representação na
cena teatral sugere um ideal de tradição, moldado em
um ideal de corpo?
Como foi visto sobre pré-expressividade,
Eugenio Barba afirma que há um substrato comum a
todas as tradições, em suas palavras: “atores diferentes,
em diferentes lugares e épocas, apesar de formas
estilísticas específicas às suas tradições, têm
compartilhado princípios comuns” (Barba, 1995, p. 8).
Buscar este ponto comum, princípio ou fio condutor,
entre as culturas ocidentais e orientais é um dos
objetivos da Antropologia Teatral.
Em contraponto, cito a partir dos estudos
culturais de Stuart Hall (2009; 2011) sobre identidade
uma compreensão que vai além desta noção unificada
98

de cultura. De acordo com Hall (2011, p. 9):

Um tipo diferente de mudança estrutural


está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isso está
fragmentando as paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades
pessoais, abalando a ideia que temos de
nós próprios como sujeitos integrados.

Nessa perspectiva a compreensão de sujeito e


identidade está no sentido plural, Hall alerta que as
identidades estão constantemente em processos de
negociação, isto é, estamos a todo instante negociando
nossas identidades em relação aos outros e às próprias
mudanças sociais. Assim, tanto o sujeito quanto a noção
de identidade cultural sofreriam mudanças constantes,
uma dinâmica que dificilmente se alinharia em um único
eixo. Isto me leva a questionar este princípio pré-
expressivo de Barba e além disso a compreensão do
diretor sobre a “tradição”. Mais uma vez pergunto, como
codificar uma tradição oriental, como codificar uma
tradição afro-brasileira? No mínimo terá que se
estabelecer um ideal de tradição e codificação, o que
imprimiria na estética teatral uma intenção evidente do
diretor, um olhar que no caso, passaria a ser
eurocêntrico.
Em relação a pesquisa e o contato com Augusto
Omolú, posso dizer que muitas vezes me encontrei
repensando minhas próprias identidades, o
pertencimento ou não a um território e as minhas
transformações de posturas corporais em lugares e
contextos culturais distintos. Em Salvador, por exemplo,
99

constantemente eu era vista como baiana, e quando eu


afirmava que era do sul do Brasil, a pergunta seguia num
tom de curiosidade: mas há negros em Santa Catarina?
Esta noção de pertencimento e associação de um
fenótipo a um território e ainda, das relações de
pertencimento ou não a uma cultura afro-brasileira,
estiveram presentes em muitas conversas informais
durante o Seminário. Cito mais uma vez um trecho
escrito por Hall, que traz algumas perguntas
direcionadas a este aspecto de busca essencializante de
identidade cultural.
O autor enumera as seguintes questões:
Como podemos conceber ou imaginar a
identidade, a diferença e o pertencimento,
após a diáspora? Já que “a identidade
cultural” carrega consigo tantos traços de
unidade essencial, unicidade primordial,
indivisibilidade e mesmice, como devemos
“pensar” as identidades inscritas nas
relações de poder, construídas pela
diferença, e disjuntura? (Hall, 2009, p. 28).

Assim, de acordo com Hall, falar sobre identidade


cultural é pensar na noção de instabilidade ou
deslocamento de um “eu central”. Esta implosão tem
como marca principal o período após a diáspora. Este
autor acredita que a busca por uma identidade negra
essencial é problemática na medida em que
desconsidera os fatores históricos, sociais, culturais e
biologizantes. Para compreender melhor sobre isto,
destaco o seguinte trecho:

No momento em que o significante “negro”


é arrancado de seu encaixe histórico,
cultural e político, e é alojado em uma
categoria racial biologicamente constituída,
100

valorizamos, pela inversão, a própria base


do racismo que estamos tentando
desconstruir. Além disso, como sempre
acontece quando naturalizamos categorias
históricas (pensem em gênero e
sexualidade), fixamos esse significante
fora da mudança e da intervenção políticas
(Hall, 2009, p. 326-327).

É importante, portanto, pensar na fragilidade de


categorias que estabilize ou de alguma maneira exclua
os processos políticos, inclusive, as estratégias de
resistência desenvolvidas por milhares de africanos e
afrodescentes diante da violência e repressão do
sistema escravocrata. O que mais uma vez me faz a
questionar a posição de Barba ao buscar uma tradição
codificada, pois diante de um epísodio histórico tão
complexo, como classificar o que é ou não passível de
ser codificado como tradição africana e afro-brasileira?
Para complementar a reflexão quero trazer ao
debate uma problematização sobre a noção unificadora
e homogenizante de negro, mas agora numa perspectiva
histórica apontada por Barros (2012) como categoria
unificante cunhada durante do comércio e tráfico de
escravos, cuja intenção era converger e homogenizar a
complexidade e diversidade do continente africano em
único bloco (Barros, 2012).
O pesquisador e historiador José D’Assunção
Barros reuniu em seu livro, A construção social da cor
(2012), um debate extenso e importante sobre as
diversas etnias e as estratégias do comércio
escravocrata que tinha como um dos objetivos a
homogenização do continente africano; estas estratégias
são denominadas pelo autor de “indiferenciação”
(Barros, 2012, p. 92). De acordo com Barros (2012, p.
40):
101

[...] a diferença “negro” foi construída a


partir da igualização (ou da
indiferenciação, seria melhor dizer) de uma
série de outras diferenças étnicas que
demarcavam as identidades locais no
continente africano, sendo importante
ressaltar que isto não ocorreu
repentinamente, mas sim no decurso de
um processo de quatro séculos que
envolveu a implantação, realização e
superação do escravismo [...] mas que ao
mesmo tempo suprime gradualmente
todas estas diferenças na consolidação da
representação de “negro”.

Esta indiferenciação provocada pela


homogeneização e classificação do tráfico negreiro,
configura um espaço complexo sobre o entendimento de
nação e/ou identidade cultural brasileira. Ao falar sobre a
dança dos orixás do candomblé, por exemplo, é
necessário, a meu ver, apontar este percurso desde o
deslocamento de diversas etnias do continente africano
até a reorganização destes grupos e suas estratégias de
resistência no território brasileiro.
A partir destas leituras de Barros (2012) e Hall
(2009; 2011), minha reflexão sobre identidade cultural
surge nesta dissertação para além de visualizar os
aspectos conflitantes da minha própria identidade como
atriz e negra, como também para perceber o discurso de
Augusto Omolú sobre o seu trabalho da Dramaturgia da
Dança dos Orixás que muitas vezes era interrogado
sobre a utlização de uma tradição religiosa em cena.
Sobre isso, ele diz em entrevista:
As pessoas precisam ver o candomblé
com outros olhos, não só em sua parte
religiosa, mas, sobretudo, em sua parte
cultural. Temos uma leitura, uma
102

explicação, um sentido, enfim, maneiras de


estudar e beneficiar a vida profissional por
meio da arte. Manter a religião distante, às
vezes como uma maneira de protesto, fez
a gente perder muito. Por isso a
desinformação da nossa cultura
geralmente veiculada por igrejas
protestantes, evangélicas. E você, como
negro, termina até se isolando,
discriminando uma coisa que é sua, é sua
identidade. Sem isso, você é quem? Qual
sua identidade cultural? Quem é você?
(Omolú, 2012b).

Há na fala de Augusto Omolú uma crítica


também a concepção de arte, afinal, até que ponto a arte
brasileira se molda em uma perspectiva européia? Por
que o candomblé, com seus movimentos e dança, não
pode ser estudado e compreendido enquanto arte? Há
que se considerar os aspectos culturais e históricos
existentes nesta religião que por muito tempo tornou-se
uma prática de resistência frente a uma cultura
dominante. O que Barros aponta sobre a categoria
“negro” e Augusto Omolú traz em sua prática são
reflexões que a meu ver dilatam nosso olhar, muitas
vezes, viciado por uma hegemonia cultural.
A prática artística de Augusto Omolú me faz
pensar sobre estas fronteiras culturais que muitas vezes
são invisibilizadas em nossa sociedade. Meu discurso
não está centrado um ativismo idealizante, o que busco
é uma reflexão inclusive sobre uma perspectiva
essencializante da própria noção de “matriz” cultural e
para isso, os estudos de Zeca Ligiéro (2004; 2011)
auxiliarão na compreensão de tradição e identidade
cultural dentro do espaço teatral, ou como traz o autor,
como performances afro-brasileiras permeadas de
“motrizes culturais” (Ligiéro, 2011).
103

Ao sugerir o termo “motriz”, Ligiéro destaca a


dinamicidade cultural e social e ainda acrescenta que
tais dinâmicas, a partir dos estudos da performance,
podem ser compreendidas na medida em que são
“reprocessadas” no corpo em contato com os fenômenos
culturais. De acordo com o autor:
[...] a definição de matriz cultural, válida
para muitas áreas e contextos, tem se
mostrado insuficiente para conceituar a
complexidade dos processos interétnicos e
transitórios verificados nas práticas
performativas ou performances culturais.
[...] em vez de “matriz”, proponho uma
definição/conceito e utilizado no plural
“motrizes” para conceituar a complexidade
das dinâmicas das performances culturais
afro-brasileira (Ligiéro, 2011, p 107).

O termo motrizes culturais traz uma noção de


movimento, algo dinâmico e plural e compreende
consequentemente o candomblé, a umbanda, o samba
como práticas performativas ou performances brasileiras.
Além disso, surge como “[...] um conjunto de dinâmicas
culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar
comportamentos ancestrais africanos” 33 (Ligiéro, 2011,
p. 107). Diante disso, retomo a pergunta inicial desta
reflexão: seria possível encontrar um substrato comum e

33
Embora, não seja aprofundada a noção de “comportamento
restaurado” do pesquisador Richard Schechner, digo que Zeca
Ligiéro fundamenta-se nesta acepção para falar destas dinâmicas
culturais e o modo como estes comportamentos foram recuperados
após a diáspora. A partir das teorias de Schechner, Ligiéro afirma
que : “a ética e a mítica ioruba foram recuperadas no Brasil através
de uma liturgia fortemente calcada numa linguagem de movimentos
e gestos dramáticos que compõe a dança sagrada” (2011, p. 150).
104

universal nas tradições e manifestações populares, tendo


em voga uma noção dinâmica da própria cultura?
Acredito que a noção de performance de Ligiéro
em diálogo com os estudos de Richard Schechner
aponta para caminhos sobre o teatro e a performance de
maneira distinta da visão proposta por Eugenio Barba
sobre a Antropologia Teatral, mesmo sabendo que de
acordo com Patrice Pavis (2008) ambos estariam sob
uma perspectiva de teatro intercultural34, assim como, os
diretores: Peter Brook e Ariane Mnouchkine.
Destaco mais um trecho sobre esta perspectiva
dinâmica relacionada às motrizes culturais. Nas palavras
de Ligiéro (2011, p. 112):

Se, dentro de um contexto de busca da


origem, das fontes ou mesmo de conjuntos
de saberes africanos, a palavra passou a
ter um peso de afirmação de identidade
étnica, no decorrer do aprofundamento do
estudo das performances como dinâmicas
interculturais em que a arte, a religião, a
filosofia são reprocessadas por
comportamentos lúdico-corporais, o termo
matriz se tornou insuficiente. Ele remete a
uma única origem, quando o que se
observa é que dessas origens, dinâmicas
próprias foram preservadas, entretanto,
muitas de suas formas iniciais foram
perdidas ao contato e contágio com outras
culturas. Além do mais, não poderíamos
falar em uma única matriz africana, pois
incontáveis e díspares são as culturas
daquele continente, mesmo considerando
somente aquelas provenientes das regiões
subsaarianas.

34
Sobre isto pode-se consultar Rustom Bharucha (1996 ) e Patrice
Pavis (1996; 2008), citados nas referências deste trabalho.
105

A reflexão acima possui grande complexidade,


seria necessário uma pesquisa direcionada as motrizes
culturais e sua relação com o corpo, um canal de troca
e/ou restauração de comportamentos ancestrais. A
noção de matriz de certa maneira cristaliza as dinâmicas
culturais e históricas, como foi visto anteriormente ao
citar Hall (2009; 2011) e Barros (2012).
Até o momento, estes conceitos têm indicado
uma compreensão de sujeito e cultura dinâmicos e não
essencializantes ou determinantes, o que mais uma vez
fragiliza a busca de Barba por uma tradição codificada,
ou ainda, um substrato comum e universal existentes em
todas as tradições.
Acredito que o conceito de encruzilhada ajudaria
na compreensão destas práticas teatrais interculturais,
desde considerasse o corpo lugar, espaço, ou melhor,
como encruzilhada. Dessa maneira, seria possível
perceber as diversas tensões que atravessam o corpo,
desde as motrizes culturais até os processos de criação
e composição do artista. Porém, esta é uma pesquisa
futura, neste momento me limitarei a apresentar um
pouco mais sobre o conceito encruzilhada que muitas
vezes permeou esta pesquisa, ora em seu aspecto
mitológico relacionado ao orixá Exu (a dança, o toque e
o canto deste orixá, por exemplo no Seminário) ora como
metáfora ao sugerir uma situação conflituosa.
Para isso, cito Leda Maria Martins (2000),
dramaturga e pesquisadora sobre ritual e estudos
literários, que traz a seguinte compreensão:
A noção de encruzilhada, utilizada como
um operador conceitual, oferece-nos a
possibilidade de interpretação do trânsito
sistêmico e epistêmico que emerge dos
processos inter e transculturais, nos quais
se confrontam e dialogam, nem sempre
106

amistosamente, registros, concepções e


sistemas simbólicos diferenciados
(Martins, 2000, p. 64-65).

Mesmo este não sendo o foco do presente


trabalho, é importante, a meu ver, apresentar as tensões
que surgiram durante esta pesquisa, por exemplo, como
traduzir a intensidade enérgica que Augusto Omolú
sempre se referia como qualidades dos orixás? Como
traduzir nesta pesquisa o ambiente mítico e, novamente,
enérgitico criado durante o Seminário em Salvador?
Acredito que é neste momento que a encruzilhada foi se
apresentando nesta pesquisa, como coloca mais uma
vez Martins (2000) e, portanto, cito-a aqui para concordar
com sua definição:
Da esfera do rito, e, portanto, da
performance, a encruzilhada é lugar radical
de centramento e descentramento,
intersecções e desvios, texto e traduções,
confluências e alterações, influências e
divergências, fusões e rupturas,
multiplicidade e convergência, unidade e
pluralidade, origem e disseminação.
Operadora de linguagens e de discursos, a
encruzilhada, como um lugar terceiro, é
geratriz de produção sígnica diversificada
e, portanto, de sentidos plurais (Martins,
2000, p. 665).

Assim, esta concepção de Martins (2000) sobre


encruzilhada possibilita um olhar mais amplo sobre a
complexidade e a tensão entre corpo e identidade, ou
ainda, entre ritual e performance. Passo pela
encruzilhada, não como um andarilho distraído, este
conceito é mencionado aqui a fim de romper com uma
visão homogênea de cultura ou de representação desta
na cena teatral. Acredito, para continuar a utilizar a
metáfora do deslocamento, que é possível olhar para o
107

trabalho de Augusto Omolú não como uma via de mão


única ou uma estrada de sentido duplo (arte de um lado,
religião de outro), e sim como lugar de tensão.
No próximo tópico, trago outra palavra/conceito
que surgiu durante esta pesquisa: energia. Portanto, na
reflexão seguinte busco apresentar os encontros e
desencontros entre a compreensão de energia
fundamentada por Eugenio Barba a partir do sats,
enquanto Augusto Omolú parecia falar de energia em
direção a noção de axé.

2.2.3 O axé de Augusto Omolú e o sats de Eugenio


Barba: diálogos sobre a noção de energia no
trabalho do ator

Durante a pesquisa desta dissertação, a palavra


“energia” apareceu muitas vezes nas rodas de
confraternização do Seminário em Salvador, na
entrevista com Augusto Omolú e nas leituras sobre o
trabalho do ator e o seu processo de criação. No
candomblé, palavra axé é uma energia vital, uma força
presente nos corpos, na natureza, ou ainda, no contato
proprocionado pela vida cotidiana entre aquilo que é
visível e aquilo que é invisível (Santos, 2010).
Na Antropologia Teatral, trabalhar com a energia,
significa operar no nível pré-expressivo. Assim, propõe
Barba, o ator modela sua energia e organiza seu bios
cênico. Irei me concentrar neste ponto, pois acredito que
embora Augusto Omolú fosse integrante do Odin Teatret
e estivesse há alguns anos com Barba, sua
compreensão a respeito de energia era, em certa
medida, diferente.
Para Barba, “a energia pode ficar suspensa
numa imobilidade em movimento” (1994, p. 84). Assim, o
sats seria um tipo de momento anterior a ação (pré-ação)
108

onde o corpo está decidido a agir. O diretor italiano traz


estas definições da seguinte maneira:
A palavra grega enérgheia quer dizer,
justamente, estar pronto para a ação, a
ponto de produzir trabalho. No
comportamento físico, a passagem da
intenção à ação constitui um típico
exemplo de diferença de potencial. No
instante que precede a ação, quando toda
a força necessária se encontra pronta para
ser liberada no espaço, mas como que
suspensa e ainda presa ao punho, o ator
experimenta a sua energia em forma de
sats, preparação dinâmica (Barba, 1994, p.
84).

Nessa perspectiva, o sats é uma espécie de


tensão entre as forças opositórias do impulso e do
contra-impulso que atuam antes da ação, é o intervalo
onde o ator se encontra decidido, a ponto de fazer a
ação, por isso, o sats pode ser compreendido como uma
pré-ação, ou melhor sublinhado pelo autor como “[...] um
momento de transição que desemboca numa nova
postura bem precisa, uma mudança de tonicidade do
corpo inteiro” (Barba, 1994, p. 86).
O diretor polonês Jerzy Grotowski35 tinha uma

35
Jerzy Grotowski (1933-1999) foi um importante diretor do século
XX, que aprofundou as pesquisas do diretor russo Constantin
Stanisláski sobre o trabalho do ator. Segundo Nunes (2009, p. 75):
“Tanto Stanislavski quanto Grotowski situaram o trabalho sobre as
ações e o comprometimento do corpo como chave para o contato
com a memória, as emoções, os sentimentos e demais estados
considerados anímicos. As ações permitiram o acesso a um
potencial criativo e orgânico [...]”. Ao lado de Grotowski, estiveram
Peter Brook, Eugenio Barba e Thomas Richards, sendo este último o
assistente mais recente que em seu livro Trabalhar com Grotowski:
sobre as ações físicas (2012 ) revisita os conceitos do diretor
109

atenção voltada também para a energia, especialmente,


o que defendia como impulso (Ferracini, 2011). Seja
impulso ou sats, ambos, buscam a partir disso a
intencionalidade e organicidade em uma ação física. De
acordo com Ferracini (2011, p. 105), “[...] existe uma
espécie de pré-ação e uma pré-expressividade latentes,
antes mesmo do nascimento de qualquer ação física
orgânica visível no espaço”. Assim, o pesquisador e
membro do LUME continua a explicar que estes pré-
elementos: intenção, élan e impulso/contra-impulso são
preparadores para ação (no caso a ação física). Tendo
localizado estes conceitos do trabalho do ator, numa
perspectiva de Barba, é necessário explicitar também as
diferenças entre movimento, gesto e ação física.
Para falar sobre isso, não posso deixar de citar
que o estudo sobre a ação física no trabalho do ator
inicia-se com o diretor russo Constantin Stanislásvki, e
logo após ganha maior atenção com Grotowski. Nessa
trajetória final, surge Barba, um diretor italiano que em
contato com Grotowski desenvolve suas pesquisas sobre
a presença cênica do ator, buscando através da
Antropologia Teatral, uma organização do trabalho físico
do ator.
Pois bem, há uma definição de Grotowski sobre
estas diferenças entre movimentos, gestos, atividades
cotidianas e a ação física. Em seu livro Trabalhar com
Grotowski: Sobre as Ações Físicas, Thomas Richards
destaca que “Grotowski sempre apontou para a diferença
entre ações físcias, de um lado, e atividades,
movimentos, gestos e sintomas do outro [...]” (2012, p.

polonês. O escrito de maior repercussão de Grotowski é Em busca


de um teatro pobre, organizado para a publicação por Eugenio
Barba, com data da primeira publicação em português em 1971, nas
referências deste trabalho cito este livro numa versão da segunda
edição.
110

85). Assim, Richards transcreve parte da fala de


Grotowski feita em uma conferencia em Santacarcangelo
em 1988. Naquela ocasião, o diretor polonês explicou:
É fácil confundir ações físicas com
movimentos. Se estou caminhando em
direção à porta, não é uma ação, é um
movimento. Mas se estou caminhando em
direção à porta para contestar “suas
perguntas estúpidas”, para ameaçá-lo de
interromper a conferência, então haverá
um ciclo de pequenas ações, e não um
movimento (Grotowski apud Richards,
2012, p. 86-87).

E continuando sua explicação, Grotowski separa


os gestos das ações físicas. Assim, o gesto seriam os
movimentos que acontecem na periferia do corpo, ou
seja, o gesto nasce – segundo Grotowski – de fora para
dentro; quando a ação física busca uma intenção e que
seja de maneira orgânica. Para diferenciar as atividades
cotidianas, os movimentos, os gestos e as ações físicas,
Richards (2012) sugere que se pense em três perguntas
no momento do trabalho do ator: por quê? para quem?
ou contra quem?
Para obter este movimento intencional e por
consequência gerar a ação física de maneira orgânica é
necessário uma busca interna (Nunes, 2009). Pode se
dizer que esta busca intencional e orgânica, cria uma
divisão entre o que está dentro e o que está fora do
corpo, sublinhando a dicotomia: interior e exterior.
Nessas perspectivas, “os movimentos que nascem de
uma espécie de impulso vital se conformam como ação
física; se nascerem das extremidades (mãos e rosto),
tendem a ser classificados como gestos” (Nunes, 2009,
p. 91).
Na dança dos orixás haveria uma separação
111

entre movimento e ação? Parece-me que, especialmente


no candomblé, movimento é ação. Cada movimento,
mesmo que seja periférico surge da relação entre o axé
e o corpo. Dessa maneira, mesmo um movimento que
utilize só as mãos, estará envolvendo todo o corpo,
fazendo com que a energia desloque-se e concentre-se
nesta parte “periférica”. Para acrescentar cito:
O santo, através do seu iaô, simpatizante
ou adepto, realiza diferentes danças que
demonstram quem ele é, a sua história
mítica e o seu papel na natureza e no
mundo. Dançar para o santo, ou
simplesmente dançar, nesse contexto da
comunidade/terreiro, significa o mesmo
que ritual religioso em seu aspecto público.
Há, assim, um valor litúrgico em cada
coreografia, que além de ser descritiva,
teatralmente dramática e de expressão
estética, é funcional, desempenhando um
tema, um complemento sagrado no amplo
processo vivo e dinâmico que é o culto dos
orixás (Sabino; Lody, 2011, p. 118).

Por todo este conjunto de detalhes presentes na


dança dos orixás, acredito que a dramaturgia, então, no
trabalho de Augusto Omolú poderia ser entendida neste
limiar entre os significados existentes (mitologia) e a
criação de outros significados (processo de criação
individual do artista). Sobre isso, o artista brasileiro disse
em entrevista: “quando crio um personagem, tenho que
estabelecer relação com todas as energias dos orixás”
(Omolú, 2012b).
Parece-me que a compreensão de Augusto
Omolú sobre energia está direcionada também ao axé, a
força vital de cada orixá. Na dança dos orixás no terreiro,
esta força vital tem um aspecto de ligação com o
cosmos, com o universo, ou melhor, a religação entre os
112

ancestres e o corpo daquele que dança. Este “fio”


invisível de energia aparece na construção de
personagem do artista como um impulso, resgatado
como diz o artista por uma memória. Cito abaixo um
trecho da entrevista em que ele explica isto:
Eu não penso, porque são coisas que não
dá para você pensar, não dá para você
programar, são energias. E eu também já
vivia isto desde pequeno. Para mim a
grande dificuldade talvez seja a de pensar.
Quando eu penso, eu não faço. Eu
trabalho também com outra memória. Isso
Barba me ajudou muito, a reconhecer essa
outra memória, que é uma memória física
(Omolú, 2012a).

A concepção de memória física e a busca por


uma organicidade no trabalho do ator são contribuições
de Grotowski e que refletem nos princípios da
Antroplogia Teatral de Barba e consequentemente no
treinamento e na construção de espetáculos com seus
atores do Odin. O diretor polonês, Grotowski, encontra
nos rituais a possibilidade de tornar as ações do ator no
palco mais orgânicas e menos artificiais. Segundo Nunes
(2009, p. 78):

[...] no final dos anos 50 do século XX,


Grotowski acreditava na possibilidade de
renascer o ritual [...]. Foi na força coletiva
viva e originária dos ritos de diferentes
tradições que o encenador buscou as
fontes para re-instaurar a organicidade
necessária a relação ator e espectador. Os
procedimentos eram baseados em um
compromisso físico, tanto do ator quanto
do espectador, procedimentos estes já
evocados por [Antonin] Artaud em sua
crítica a discursividade do teatro.
113

Assim, Grotowski buscava, continuando a citar


Nunes, um “rito sem ritual” (2009, p. 79). Parece-me que
esta concepção do diretor polonês pode ser observada
também no trabalho de Augusto Omolú sobre a dança
dos orixás. Durante o processo de criação, a energia do
orixá é ressignificada pela memória física, pelas
posturas e os movimentos corporais. No momento da
dança no terreiro, por exemplo, em que posição os pés
se encontravam? Como o orixá Ogum apresentava sua
espada e seu escudo, em que altura as mãos estavam?
Qual o tipo de intensidade e força presentes no corpo
daquele que dançava? Esta força é de ataque e defesa?
O que diz a mitologia sobre este movimento?
Enfim, ao tentar responder estas perguntas,
inicia-se o processo de transformação daquele
movimento dançado no espaço do terreiro para uma
ressignificação no espaço cênico, adquiri-se, então, um
grau de dramaturgia, a dramaturgia do movimento. No
próximo capítulo, meu objetivo será mapear no material
videográfico do espetáculo Orô de Otelo (1994) de
Augusto Omolú, a relação entre a dramaturgia da
dança, entre a mitologia e qualidade de energia do orixá
em diálogo ou contraponto com uma dramaturgia de
William Shakespeare, o clássico Otelo.
114
115

CAPÍTULO TRÊS

A CERIMÔNIA DE OTELO: A DRAMATURGIA DA


DANÇA DOS ORIXÁS E O TEXTO DRAMÁTICO DE
WILLIAM SHAKESPEARE

“Otelo é meu carro-chefe.


Quando sinto alguma
dificuldade, sei que vou
encontrar respostas em
Otelo.”

Augusto Omolú
116

O objetivo deste capítulo é identificar, a partir do


espetáculo Orô de Otelo (1994), os elementos presentes
na Dramaturgia da Dança dos Orixás, desde o seu
aspecto mitólico até as tensões que esta pode sugerir
com o texto teatral de William Shakespeare.
No segundo momento deste capítulo, concentro-
me na compreensão de dramaturgia, apresentando a
perspectiva de Eugenio Barba e os aspectos da
mitologia que também podem ser compreendidos como
dramaturgia do orixá. Portanto, neste capítulo direciono-
me para a pesquisa do artista brasileiro, foco desta
dissertação, trazendo imagens dos movimentos da
dança dos orixás.
117

3.1 SOBRE O REGISTRO VÍDEOGRAFICO E A


MONTAGEM DO ESPETÁCULO

Augusto Omolu in Oro de Otelo36 – Esta é a frase


de abertura do material videografico encontrado, um
fragmento com duração de nove minutos e vinte e três
segundos de apresentação postado em uma página da
web. O espetáculo ao vivo tem duração de uma hora e
dez minutos.
Há poucas informações sobre o vídeo e na
medida em que assisto crio suposições em relação a
este registro fílmico. A imagem retrata uma parede ao
fundo com barras de apoio, o que sugere uma sala
tradicional de dança. O público, no ângulo filmado, não
aparece, pela posição do artista posso deduzir que se
há um público assistindo, este se encontra na mesma
posição da câmera37. A todo tempo, o enquadramento é
direcionado ao artista brasileiro, não há cortes e nem
variações de ângulo, o que me sugere uma única
câmera fixa, produzindo uma imagem estável e que em
alguns momentos varia em quadros abertos e fechados
(close-up).
No espetáculo ao vivo, existe uma trilha sonora
composta pelo som gravado da ópera de Otelo de
Giuseppe Verdi que é acompanhada pelo som ao vivo

36
Orô de Otelo é o primeiro solo de Augusto Omolú com direção de
Eugenio Barba, apresentando a primeira vez na ISTA em Londrina
em 1994. Depois de quase duas décadas de trabalho com o Odin
Teatret e as colaborações na ISTA, este espetáculo torna-se
referência para a compreensão da pesquisa sobre a Dramaturgia da
Dança dos Orixás que o artista brasileiro desenvolvia. Este
fragmento está disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=wsAozYpkvPM com data de
publicação em 24 de novembro de 2011.
37
A palavra correta é câmara, entretanto, opto neste escrito por
“câmera”. Sobre estas diferenças consultar Santos (2012).
118

dos atabaques em cena, sobre isso o artista brasileiro


fala que:
O Orô é feito com música ao vivo,
idealmente. Surgiu com o formato de
acompanhamento de três músicos, como
ocorre no ritual do candomblé. Você tem
os três atabaques (grande, médio e
pequeno) com os três ogãs que tocam e
cantam (Omolú, 2012b).

Contudo, neste vídeo não há som e ainda os


atabaques não aparecem no recorte filmado, sendo
assim, não é possível saber se no momento da
apresentação tinha algum tipo de trilha acompanhando
os movimentos do artista brasileiro e/ou a presença de
músicos. A descrição, em italiano, do material
videografico limita-se a breve resumo do espetáculo ao
vivo, não há indicações sobre data, local, público ou tipo
de evento em que aconteceu esta apresentação.
No site oficial do grupo dinamarquês, o
espetáculo ao vivo é classificado como uma produção da
ISTA e aparece como parte do Multicultural Projects
(Projetos Multiculturais). Diferente dos outros integrantes
do Odin, o trabalho do artista brasileiro sobre a
Dramaturgia da Dança dos Orixás é pouco comentado
no site, sendo possível encontrar principalmente no
OTA38 – Odin Teatret Archives, alguns vídeos e fotos do
artista brasileiro em workshops e apresentações nos
eventos da ISTA. Em contato por email com a
administração do OTA fui informada que não há uma
gravação do espetáculo ao vivo disponível para
comercialização e que talvez, existisse um pequeno
registro de alguma apresentação, mas que esta não
38
OTA – Odin Teatret Archives – Consultar em
http://www.odinteatretarchives.com/
119

poderia ser emprestada fora da sede do Odin.


O discurso de Augusto Omolú nas entrevistas
(2010; 2012a; 2012b) ressalta a importância do
espetáculo, como aparece na epígrafe deste capítulo, ele
afirma que este era o “carro-chefe” de sua pesquisa. Na
carta de Julia Varley (2013), ela descreve em longos
parágrafos o processo de montagem de Orô de Otelo. E
mesmo no site oficial do Odin, são apresentados os
festivais pelos quais o espetáculo percorreu, como: I
Festival Internacional de Artes Cênicas do Ceará, III
Encontro Internacional de Artes Cênicas do TJA, ambos
em Fortaleza e ainda Shakespeare International Festival,
em Bucharest, Romania – todos datados no ano de
2012, último ano de apresentação.
A pergunta que me surge é: sendo o Orô de
Otelo um importante espetáculo na trajetória de Augusto
Omolú, marcando sua entrada como colaborador na
ISTA e ainda traduzindo, de certa forma, os elementos de
sua pesquisa sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás,
por que são apresentadas tais limitações em relação a
divulgação, registro e até mesmo comercialização do
material videografico? Além do mais, isto me levar a
outra questão: com quase duas décadas de trabalho
com este grupo, qual era o grau de participação39 do
artista brasileiro no Odin Teatret?
Na introdução deste trabalho, contei sobre minha
experiência ao assistir o espetáculo As grandes cidades
sob a lua (2003), onde os atores e atrizes do Odin estão

39
Como foi visto no primeiro capítulo desta dissertação, Augusto
Omolú entra em 1994 como colaborador na ISTA, e ano de 2002 ele
se torna integrante do Odin. No entanto, em entrevista (2012b),
quando indagado sobre sua participação no grupo dinamarquês, ele
responde que se vê como um colaborador, e diz assim: “Entrei aqui
como um colaborador e agora me sinto justamente como um
colaborador” (entrevista realizada um ano antes de seu falecimento).
120

em cena a todo instante e Augusto Omolú surge nos


minutos finais com uma breve participação. Mesmo com
as limitações de áudio e ausência de informações, este é
o material encontrado para dissertar sobre o primeiro
espetáculo solo de Augusto Omolú dirigido por Eugenio
Barba. Dada a sua importância, concentro-me, então, no
próximo item sobre o processo de montagem do
espetáculo em questão.
Nas entrevistas pesquisadas, Augusto Omolú
afirma em vários momentos o quanto foi intenso e ao
mesmo tempo desafiante o processo de montagem de
Orô de Otelo, pois ele sabia dançar os movimentos dos
orixás, mas não tinha a compreensão dos conceitos
teatrais da Antropologia Teatral. Ele conta ainda que a
cada movimento do orixá, o diretor italiano interrompia e
“tinha mil explicações para dar” (Omolú, 2012a).
Ao lado de Barba e Omolú estava Julia Varley,
atriz e integrante do Odin por mais de trinta anos. No
grupo dinamarquês, os atores mais antigos repassam os
ensinamentos da Antropologia Teatral durante um
período de treinamento aos atores recém-chegados,
depois disso, o treinamento passa a ser individual. Após
realizar uma residência artística em Hostebro na sede o
Odin Teatret em 2012, durante sua pesquisa de
mestrado, Lara T. de Matos (2012) explica uma das
formas de relação de aprendizado criadas pelos
integrantes do grupo dinamarquês:
[...] os membros do grupo criaram um
esquema onde cada ator “adota” uma
pessoa de fora do grupo, ou seja, fica
responsável por sua comida, seu
treinamento, pela casa onde mora até que
este ator esteja apto a fazer parte dos
espetáculos e se tornar um indivíduo do
grupo (Matos, 2012, p. 24).
121

Entretanto, a participação de Augusto Omolú


diferencia-se deste status de residência, ou ainda, de
“adoção” pelo grupo como coloca a atriz e pesquisadora
na citação acima. Embora Julia Varley acompanhasse os
ensaios e apresentasse os conceitos do grupo, destaco
que o artista brasileiro fora convidado pelo diretor italiano
a ocupar uma posição de representante de uma tradição.
Em Holstebro, o artista teve contato com os outros
integrantes do Odin e ainda pode fazer improvisões junto
a dançarina do Odissi Sanjukta Panigrahi40, como se
pode ver nas fotos das próximas páginas.

40
Sanjukta Panigrahi (1944 – 1997) dançarina de Odissi, uma dança
clássica indiana. Na carta de varley, ela diz que Sanjukta foi uma
das fundadoras da ISTA . Eugenio Barba, por sua vez, cita a
importante presença da dançarina indiana em seu livro A canoa de
papel. Além disso, no livro A arte secreta do ator, há muitas imagens
de Sanjukta danaçdno, com movimentos de oposição, de equilíbrio e
desequilíbrio feitos na dança indiana.
122

Na foto acima, Augusto Omolú e Sanjukta. Fotografia de Jan Rüsz.


Disponível em http://performatus.net/uma-carta-para-recordar/
123

Nas fotos acima: Augusto Omolú, Sanjukta Panigrahi e Julia Varley.


Ambas em Holstebro, Dinamarca, 1993. Fotografia de Jan Rüsz.
Disponível em http://performatus.net/uma-carta-para-recordar/
124

Observo nas fotos o jogo de improvisação entre


a dança dos orixás e a dança clássica indiana. Nesta
época, Augusto Omolú ficou sob as orientações de
Varley, ele estava sendo “preparado” para a ISTA em
Londrina. Assim, conforme aparece nas entrevistas e na
carta de Varley, o espetáculo Orô de Otelo não tinha o
objetivo de se tornar um solo, mas de ser uma
demonstração de uma tradição brasileira dentro dos
princípios da Antropologia Teatral para ser apresentada
no encontro da ISTA em Londrina. Sobre o desafio em
transformar esta demonstração em um espetáculo, ele
conta em entrevista:
Levou um tempo para eu tomar posse
disso tudo. Até que aquilo começou a fazer
parte de mim, fui buscando em mim
mesmo um poder dentro desse espetáculo.
Ele poderia não existir hoje se ainda
tivesse com a conotação de uma
demonstração. Foi ficando claro para mim
que estava fazendo um espetáculo. Fui
buscando a cada ensaio (Omolú, 2012b).

Como foi visto no capítulo anterior, Barba busca


um nível comum, uma base pré-expressiva existente em
todas as tradições. O diretor italiano fala também de
distintas técnicas corporais, ele define que:
No contexto cotidiano, a técnica do corpo
está condicionada pela cultura, pelo estado
social e pelo ofício. Em uma situação de
representação existe uma diferente técnica
do corpo. Pode-se então distinguir uma
técnica cotidiana de uma técnica
extracotidiana (Barba, 1994, p. 30).

Esta tensão entre cotidiano e extracotidiano, isto


é, gestos e posturas corporais dentro de um contexto
125

cotidiano de determinada tradição em contraposição a


técnicas extracoditianas é outro princípio da Antropologia
Teatral de Eugenio Barba. Digo isto, pois este contato
entre Sanjukta Panigrahi e Augusto Omolú, mediado por
Julia varley, ilustra a maneira pela qual o diretor italiano
desenvolve sua pesquisa sobre o teatro intercultural e o
nível pré-expressivo, já discutido no capítulo anterior.
A seguir apresento imagens retiradas do
material videográfico a fim de perceber os movimentos
da dança e sua relação com a mitologia do orixá e o
texto dramático de William Shakespeare.

3.2 O MOURO DE VENEZA DE WILLIAM


SHAKESPEARE NA DANÇA DOS ORIXÁS DE
AUGUSTO OMOLÚ

“Quem de Orô se aproxima,


de dia ou de noite, pode
escutar sua voz cavernosa e
horripilante, grave como o
som dos berrantes”
(Trecho da Mitologia de Orô)

O que é Orô? Segundo o artista brasileiro: “Orô é


uma homenagem, uma festa, um nome. Orô de Otelo [o
espetáculo] é como oferecer uma festa a você, uma
homenagem a você” (Omolú, 2012b). Entretanto,
Reginaldo Prandi afirma que “presentes na memória de
poucos sobreviventes das antigas gerações de
candomblé estão Orô, o temido espírito da floresta, de
rugido assustador [...]” (Prandi, 2012, p. 23). Assim, com
126

significados completamente diferentes, pode-se dizer


que Orô é tanto um espírito da floresta quanto uma
cerimônia.
Nesta cerimônia, o artista brasileiro re/apresenta,
a partir da dança dos orixás, os personagens centrais do
texto teatral Otelo do dramaturgo Inglês William
41
Shakespeare . O texto do autor inglês e a dança dos
orixás são os pontos que geram as tensões
dramatúrgicas do espetáculo. A sinopse, disponível na
página oficial do Odin, anuncia:
Lendo o texto Otelo de Shakespeare, o
performer, um homem negro
elegantemente vestido, se deixa levar pela
história. O artista encena os principais
personagens - Otelo , Desdêmona , Iago ,
de acordo com as palavras que são
cantadas em “Otello" [ópera] de [Giuseppe]
Verdi. O performer muda de um
personagem para outro, construindo
diálogos entre eles, mas também reagindo
42
aos personagens que ele interpreta .

Nos primeiros minutos do vídeo encontrado,


Augusto Omolú aparece sentado, vestido com blusa e

41
Esta peça foi escrita entre 1603 e 1604. Utilizarei aqui a obra
publicada no ano de 2011 com tradução de Barba Heliodora, da
Editora Nova Fronteira. A referência bibliográfica completa desta
obra segue nas páginas finais desta dissertação.
42
Tradução livre do original em inglês: “Reading Shakespeare's
"Othello", the performer, an elegantly dressed black man, gets
carried away by the story. The performer enacts the main characters
- Othello, Desdemona, Iago, according to the words which are sung
in Verdi's "Otello". The performer changes from one character to
another, building dialogues between them, but also reacting to the
characters he interprets” - publicado na página do Odin Teatret.
Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-
projects/or%C3%B4-de-otelo.aspx acesso dia 22 de janeiro de 2014.
127

calça brancas, um cinto marrom escuro e de pés


descalços. Ainda sentado, ele faz uma sequência de
ações que se referem justamente a esta descrição da
sinopse, de alguém que embarca em uma história
através da leitura.
Sobre a escolha deste enredo, o artista brasileiro
conta:
Na concepção do Eugênio [Barba], a
história do Otelo se casaria com a minha
própria história, por isso entro vestido de
branco. Além de ter uma formação em
dança clássica e moderna, eu venho
primitivamente lá do candomblé, da
religião. Daí a junção de um negro clássico
com a ópera e os atabaques. Resultou um
bom casamento (Omolú, 2012b).

Parece-me que as tensões entre a história


pessoal do artista brasileiro e a estrura ficcional do texo
do dramaturgo inglês foram as grandes motivações do
diretor italiano para a criação cênica de Orô de Otelo.
Nos próximos tópicos, escrevo sobre a dramaturgia do
espetáculo e ainda apresento imagens recortadas a
partir do vídeo para que se possa visualizar alguns
movimentos da dança do orixá e as tensões com o texto
dramático.

3.2.1 Dramaturgia: texto e(m) movimento

Neste tópico, localizo a noção de dramaturgia, a


partir da Antropologia Teatral de Eugenio Barba, pois foi
neste encontro com o diretor italiano que Augusto Omolú
deu início a uma pesquisa voltada para a dramaturgia
dos movimentos da dança dos orixás.
De acordo com Barba, a dramaturgia não se
128

limita ao texto dramático, mas constitui-se por tudo que


está em cena, desde a cenografia até as ações do ator.
Nesta perspectiva, a dramaturgia é “o ‘trabalho das
ações’ na representação” (Barba, 1995, p. 68). Assim, o
diretor explica:
Numa representação, as ações (isto é tudo
que tem a ver com a dramaturgia) não são
somente aquilo que é dito e feito, mas
também os sons, as luzes e as mudanças
no espaço. [...] Os objetos usados na
representação também são ações. Eles
são transformados, adquirem diferentes
significados e colorações emotivas
distintas (Barba, 1995, p. 68).

É a partir desta noção que o diretor italiano vai


falar que o trabalho do ator concentra-se nas ações e
por consequência imprime uma dramaturgia, a
“dramaturgia do ator” (Barba, 1995). No caso de Augusto
Omolú e seu espetáculo Orô de Otelo, as suas ações
estão fundamentadas na dança dos orixás, logo a dança
adquire uma dramaturgia própria, a dramaturgia do
movimento.
A dramaturgia do movimento, especificamente,
no espetáculo supracitado pode ser compreendida como
um entrelaçamento da mitologia dos orixás com o próprio
texto dramático de Shakespeare. Além do aspecto
mitológico, a dança dos orixás, como foi visto no capítulo
dois, conecta-se com os elementos da natureza, pois
“cada elemento da natureza – terra, ar, fogo e água –
apoia e indica como o orixá vai caracterizar suas danças
para, assim, ser reconhecido publicamente” (Sabino;
Lody, 2011, p. 155).
Sobre a relação da mitologia e da dança dos
orixás, no sentido do ritual, isto é, dentro do terreiro, os
129

pesquisadores Jorge Sabino e Raul Lody afirmam:


A dramaturgia que se revela na dança de
cada orixá confirma um misto de
linguagens que une dança, teatro,
performance, música instrumental, música
vocal, indumentária e cenários, que são os
próprios ambientes dos terreiros
decorados, com bandeirinhas de papel,
folhas, tecidos, entre outros elementos.
Esses elementos são específicos em
cores, formatos e materiais, de acordo com
a cerimônia, a festa (Sabino; Lody, 2011, p.
156).

Portanto, a dança do orixá é mais do que uma


série de movimentos ou coreografias. O canto, o toque,
os elementos da natureza, as cores das vestimentas,
tudo isso configura uma rede de significados. A partir
disso, não é somente o movimento que está em cena,
mas todos os aspectos que compõe a dança em si. A
mitologia é, consequentemente, a dramaturgia do orixá.
Para visualizar esta relação entre a mitologia e
os diálogos ou tensões com o texto de Otelo de William
Shakespeare, trago nas próximas páginas imagens dos
movimentos dos orixás retiradas do material videográfico
encontrado, a fim de perceber a dramaturgia (ou
dramaturgias) deste espetáculo.

3.2.2 Três personagens shakesperianos na dança


dos orixás de Augusto Omolú

Neste tópico trago imagens para visualizar


alguns movimentos da dança dos orixás utilizados por
Augusto Omolú na criação do espetáculo Orô de Otelo.
É importante evidenciar que os movimentos dos orixás
130

foram impulsos para a criação e composição cênica. As


interpretações que faço aqui são enquanto pesquisadora,
minha escrita neste momento objetiva encontrar
elementos da Dramaturgia da Dança dos Orixás e,
portanto, cada movimento apresenta um conjunto
complexo de significados que vão desde os elementos
da natureza relacionados a cada orixá até a mitologia
que cada dança representa.
Partirei dos movimentos dos orixás femininos:
Oxum, Iemanjá e Iansã, utilizados, principalmente, para
representar a personagem Desdêmona de Shakespeare.
Oxum é conhecida por ser a “divindade das águas
doces” (Ligiéro, 2004, p. 94). Além disso, “seu poder de
sedução transparece na beleza física, na doçura da voz,
na delicadeza de seus gestos. [...] É muito vaidosa”
(Ligiéro, 2004, p. 94).
Ações como pentear, perfurmar, colocar joais e
se banhar diante do espelho são características deste
orixá. Pode-se dizer que Oxum “é, sem dúvida, o orixá
que tem na estética o seu mais notável argumento de
sedução e de comunicação com os outros orixás e com
os homens” (Sabino; Lody, 2011, p. 151).
A seguir apresento uma sequência com três
imagens de Augusto Omolú e que podem ser
identificadas como movimentos da dança de Oxum. O
que me leva a esta afirmação é, principalmente, o gesto
feito com a mão, uma representação do espelho, ou
abebê43, utilizado por Oxum.

43
Além dos elementos da natureza, dos toques e cantos, cores e
roupas específicas para cada orixá, há também a ferramenta que
cada orixá traz. Assim, estas ferramentas são compreendidas como
“[...] insígnias que identificam o caráter, a função e as histórias dos
orixás. São elas: Ogó para Exu; Obé para Ogum; Damatá ou ofá
para Odé; Ofá e abebê para Logun Edé; Xaxará para Omolu; Dã
para Oxumaré; Abebê para Oxum e Iemanjá; Abiri para Nanã; Oxê
131

Destaco abaixo, outra sequência em que


aparece a representação deste espelho. Diferente das
imagens acima, Augusto Omlú aparece em pé, com
postura ereta. Com uma das mãos, ele faz o movimento
de pentear os cabelos, com um olhar fixo ao espelho,
representado no alto pela outra mão.

Parece-me que os movimentos acima podem ser


compreendidos como uma variação da dança do orixá
Oxum e também com aspectos da dança de Iemanjá.
Enfatizo que, apesar de trazer tais imagens e ainda
contextualizar a dramaturgia, no sentido mitológico, que
cada movimento pode conter, a criação e composição do
artista brasileiro apresenta transformações e diferenças

para Xangô; Eruexim para Oiá; espada e escudo para Oxaguiã e


Opaxorô para Oxalufã” (Sabino; Lody, 2011, p. 164).
132

das danças que são representadas dentro do terreiro,


isto é, da dança dos orixás no candomblé.
Apresento então o segundo orixá feminino,
Iemanjá que apesar de sua beleza e sensualidade, é
conhecida por seu caráter materno. De acordo com
Ligiéro, Iemanjá “é a mãe que se desdobra em amores e
compreensão de seus filhos” (2004, p. 98), além de ser a
mãe das águas, “é mãe dos deuses, dos homens e dos
peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a
loucura, talvez o orixá mais conhecido no Brasil” (Prandi,
2012, p. 22).
Há muitos mitos que falam de Iemanjá enquanto
mãe protetora e ainda como orixá importante na criação
do mundo. Sobre isso, Prandi afirma que Iemanjá “no
Brasil ganhou a soberania dos mares e oceanos, regidos
na África por Olocum, orixá esquecido no Brasil e pouco
lembrado em Cuba [...]” (Prandi, 2012, p. 22). Sobre a
dança deste orixá, Jorge Sabino e Raul Lody consideram
que:
Muitas coreografias de Iemanjá traduzem
sua relação com a água, com o mar,
mostrando uma intimidade de nadadora,
com mergulhos e flutuação, realizando
também gestos maternais e de guerreira,
além do sentido sexualizado de algumas
danças (Sabino; Lody, 2011, p. 155).

No vídeo é possível notar uma movimentação


parecida com esta descrição da dança de Iemanjá. Em
alguns momentos, entre um movimento e outro, o artista
brasileiro faz uma sequência de ações que traz a
sensação de tocar as águas com as mãos, movimentos
ondulares, feitos lentamente, uma vibração que muitas
vezes começa nos ombros e termina nas mãos. Como já
disse, muitos dos movimentos da dança dos orixás são
ressignificados pelo artista brasileiro, os recortes que
133

trago aqui buscam apresenta movimentos que estão


neste limiar: entre a dança dos orixás e sua dramaturgia,
seja no aspecto mitológico ou na própria ação dramática
shakesperiana.
Sendo assim, passo para o outro orixá feminino
que fundamenta esta representação de Desdêmona, é
Iansã ou também conhecida por Oiá. É referenciada
como “a deusa dos ventos e das tempestades” (Ligiéro,
2004, p. 90), e geralmente associada a imagem de uma
mulher guerreira. Assim, os movimentos de Iansã
traduzem a força dos ventos e a explosão das
tempestades. Em outras palavras:
As danças de expansão de Iansã mostram
diálogos coreográficos com o vento e com
o ar, seu principal elemento. Em suas
coreografias há muita movimentação,
exigindo-se rápidos deslocamentos e
trabalhos intensos com os braços (Sabino;
Lody, 2011, p. 141).

Abaixo uma sequência desta movimentação de


Iansã, onde o artista brasileiro com as palmas das mãos
viradas para cima faz uma ação de tocar o ar, sugerindo
uma ventania.

Os ventos de Iansã no espetáculo de Augusto


Omolú podem tanto representar a rivalidade entre Otelo
134

e Cassio, alimentada por Iago, como também para


refereir-se aos sentimentos Otelo por Desdêmona. No
primeito ato, o protagonista diz a sua amada: “é com
toda alegria quanto assombro que eu te vejo, alegria da
minh’alma! Se toda tempestade traz tal calma, que os
ventos soprem acordando a morte [...]” (Shakespeare,
2011, p. 47).
Há na mitologia de Iansã muitas passagens que
a descrevem com atos de coragem e esperteza, porém,
parece-me que os mitos de disputa entre Xangô e Ogum
vão ao encontro desta cerimônia para Otelo. Na peça
teatral de Shakespeare, Iago provoca a ira de Otelo ao
insinuar a traição de Desdêmona com Cassio e isto a
leva a morte, sendo asfixiada inocentemente por Otelo.
Entretanto, quando ele percebe que fora enganado por
Iago, sente grande arrependimento e a saída - como
prega as tramas engenhosas de Shakespeare – é
somente uma: a morte. Apunhalando-se, Otelo cai sobre
a cama e morre, mas antes diz: “a beijei ao matá-la; e a
saída é sobre um beijo eu acabar com a vida”
(Shakespeare, 2011, p. 152).
No livro Mitologia dos Orixás (Prandi, 2012) é
possível encontrar passagens que narram batalhas
épicas entre Xangô e Ogum para ficar com Oiá. Conta-
se que “Ogum é o ferreiro. [...] a agressividade e a
violência são as características de que ele necessita
para abrir espaço no mundo e conquistar os recursos
que garantam sua sobrevivência” (Ligiéro, 2004, p. 58).
Enquanto que Xangô: “na natureza, ele é o trovão, o
fogo do céu. [...] Guerreiro forte, viril e apaixonado,
Xangô resolve as questões de justiça e não dá descanso
aos que mentem ou cometem crimes” (Ligiéro, 2004, p.
86).
As danças de Ogum são dinâmicas com saltos e
rolamentos, já que “Ogum desloca-se com velocidade,
135

empreendendo trajetórias contínuas, como se estevisse


caminhando apressadamente ou mesmo correndo ao
encontro da caça [...]” (Sabino; Lody, 2011, p. 130). Já a
dança de Xangô:

[...] é caracterizada pelo sentido de


majestade, pela solenidade em estilo
marcial, cadenciado. Em determinados
momentos da coreografia, esse orixá
representa o ato de lançar pedras e as
atira sobre o mundo. Essas pedras são os
coriscos, pedras do raio, das trovoadas,
dos relâmpagos que anunciam o poder do
fogo, o poder do rei (Sabino; Lody, 2011, p.
145-146).

No vídeo encontrado, é possível perceber


movimentos da dança de Xangô e de Ogum,
intercalados com os movimentos de Iansã. O embate
entre estes dois orixás parece representar no Orô as
diversas situações de batalha, luta e guerra presentes no
texto de Shakespeare – por exemplo, a cena final, a
morte de Desdêmona. Assim, a guerra percorre o texto
dramático, cria uma situação e/ou base do conflito
dramático. Do primeiro ato ao quinto ato, seja nas
rubricas ou nas falas dos personagens, a guerra aparece
como um emblema de coragem e luta, em alguns casos
associada até a personalidade ou a moral do
personagem, é o caso de Otelo que diz a Iago: “na
guerra matei homens por ofício, mas tenho como base
de consciência jamais matar com premeditação”
(Shakespeare, 2011, p. 20).
Em outro momento do texto de Shakespeare,
Otelo, atormentado cada vez mais pela ideia de ser
traído por Desdêmona diz a Iago: “faça-me ver, ou ter tal
prova ao menos, que não me reste aspecto nem detalhe
que deixe dúvida: pois, senão, morre!” (Shakespeare,
136

2011, p. 86).
Estas emoções poderiam ser representadas pelo
ator, tradicionalmente, por gestos e expressões que
singificassem ódio, maldade, amor e bondade.
Entretanto, em Orô de Otelo, a dramaturgia inglesa é
afetada pelas tensões da dramaturgia da dança dos
orixás. A raiva de Otelo torna-se o trovão de Xangô; o
desespero de Desdêmona são ventos e tempestades de
Iansã, alternados pela vaidade de Oxum e a paciência de
Iemanjá; a luta entre Cassio, Iago e Otelo transforma-se
em sequências de cavalgadas de Ogum, com o olhar
atento de Odé (ou Oxóssi) e o machado de dois lados de
Xangô.
Sobre a composição desta dramaturgia da dança
dos orixás, o artista brasileiro afirma o seguinte:
Quando eu faço qualquer movimento está
sempre relacionado há algo, as imagens,
assim como os orixás se relacionam
sempre a algo. Por exemplo, a espada é
elemento característico de Ogum, a
espada, os escudos, os movimentos de
ataque, defesa e proteção, a energia de
guerra. (Omolú, 2012a).

Na próxima página, apresento uma imagem do


material videográfico, especificamente este movimento
de Ogum com a espada e o escudo, citado pelo artista
brasileiro.
137

O escudo e a espada são as armas de Ogum,


estas armas “são usadas na defesa, na proteção e na
manutenção do seu reino – Irê -, pois Ogum é também
chamado de Oni Irê” (Sabino; Lody, 2011, p. 129). No
segundo ato da peça de Shakespeare, mais uma vez
Otelo anuncia: “[...] vida militar deita em paz e acorda pra
lutar” (Shakespeare, 2011, p. 63).
Em relação a Iago, pode-se associar os
movimentos da dança de Oxumarê. Esta dança
apresenta movimentos sinuosos, representa
principalmente a mobilidade e a transformação dinâmica
deste orixá (Sabino; Lody, 2011). Como se pode ver
nesta sequência de Oxumarê, o movimento inicia-se com
a cabeça no chão e terminar em pé, representando a
relação deste orixá com a terra e o céu.
138

Esta transição indica a dualidade do orixá, ora


serpente que se rasteja no chão ora arco-íris que surge
nos céus, além de ser os extremos: céu e terra; este
orixá é também homem e mulher. A mitologia conta que
“Oxumarê era filho de Nanã. No seu destino estava
inscrito que ele deveria ser seis meses um monstro e
seis meses uma linda mulher” (Prandi, 2012, p. 227).
Sobre isso Ligiéro afirma:
Oxumarê é a serpente arco-íris, que vive
girando em redor do mundo. Durante seis
meses é homem e nos outros seis meses
é mulher, chamando-se Bessém. [...] Sua
principal característica é a dualidade, e
talvez por isso ele seja um Orixá tão
exigente e inconstante. Sob a forma de
serpente é perigoso, mas sob a forma de
um arco-íris é benfazejo e extremamente
belo (2004, p. 78).

A dualidade na trama shakesperiana pode ser


interpreta em relação a Iago, que a todo o tempo
demonstra amor e ódio; verdade e mentira; compaixão e
maldade, enfim, emoções opostas e que indicam um
personagem inconstante, porém central para o
desencadear das ações, ou seja, sem Iago não há
conflito dramático.
Por fim, trago a imagem de um último orixá que
139

aparece no final do vídeo, no momento do desfecho, que


interpreto como a cena final: a morte de Desdêmona e
Otelo. Este orixá é o caçador, Oxóssi. Representado na
mitologia como o senhor das matas (Prandi, 2012;
Sabino; Lody, 2011).
A seguir, uma sequência de Oxóssi com
movimentos rápidos e as mãos em um gesto que
representa o arco e a flecha, ferramenta deste orixá.

Sobre as danças de Oxóssi, os pesquisadores


Sabino e Lody afirmam:
Há uma ação coreográfica marcante e que
identifica Odé. Isso se observa no uso das
mãos – como se estivesse apontando uma
flecha -, a esquerda apontando o dedo
indicador e, lateralmente, o polegar; o
indicador da mão esquerda une-se ao
polegar da mão direita, representando,
dessa maneira, a sua principal ferramenta:
o ofá ou damatá, feito de metal (Sabino;
Lody, 2011, p. 134).

A descrição feita pelos autores pode ser


visualizada na sequência apresentada anteriormente.
Além disso, a posição dos joelhos flexionados demonstra
a concentração e agilidade que o caçador precisa ter na
mata, estar atento a todos os ruídos.
140

De maneira geral, apresentei aqui a partir das


imagens retiradas do vídeo do espetáculo Orô de Otelo
sete orixás: Oxum, Iemanjá, Iansã, Ogum, Xangô,
Oxumarê e Oxóssi44. Neste capítulo meu objetivo foi citar
algumas destas danças a fim de perceber as nuances
entre a dramaturgia da dança e a dramaturgia
shakesperiana.
O material videográfico, a entrevista e a minha
experiência no Seminário, serviram como materiais e
fontes para que eu pudesse apresentar alguns
movimentos da pesquisa e prática artística de Augusto
Omolú sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás.
Portanto, a seguir apresento minhas
considerações sobre esta dissertação, destacando
principalmente o processo e as transformações da
pesquisa.

44
Em Orô de Otelo foram utilizadas outras danças de orixás, como
Nanã, Ossaim e Omolu. Entretanto, como estes movimentos
dançados são executados de maneira rápida, não foi possível parar
o frame e recortar como imagem para analisar, assim escolhi os
principais orixás, partindo dos três personagens de Shakespeare.
Além disso, acredito que o artista conseguiu criar em seu espetáculo
uma fluidez entre os movimentos dos orixás, o que muitas vezes
torna impossível dizer passo a passo o movimento específico do
orixá. Para isso, seria necessária a presença do artista em vida para
que ele mesmo pudesse explicar a sua criação e composição junto
ao diretor.
141

PÁGINAS FINAIS

Durante dois anos me deparei com os limites


entre a religiosidade e a arte de uma dança que nasce
no terreiro e transforma-se em dramaturgia no palco.
Como a energia do orixá tornava-se impulso para a
criação artística de Augusto Omolú? Esta foi uma das
perguntas a me perseguir e para tentar compreende-la
tive que sair de minha cidade e ultrapassar as barreiras
de um olhar objetivo.
A perda do artista tornou-se parte da pesquisa.
Depois de um período longo com registros da
experiência em Salvador e um planejamento pronto para
uma segunda etapa, sou surpreendida por algo
impensável. Uma situação inesperada faz com que eu
reveja a pesquisa de um ano, ajuste meu foco para sua
prática artística, mas antes de tudo, sendo necessário,
um olhar cuidadoso sobre sua trajetória.
Depois do dia 02 de junho de 2013 ele se tornou
memória, sua história e trajetória seriam recontadas não
só por mim, mas por todos aqueles/as que estiveram ali,
acompanhando ou simplesmente vivendo por alguns dias
a experiência de estar ao lado de um artista sensível. Eu,
como pesquisadora, me vi diante de uma encruzilhada,
que caminho escolher? Como continuar a pesquisa sem
o artista? Seus discursos estavam espalhados em
vídeos, fotos de espetáculos, conversas e memórias de
outros artistas que tiveram contato com ele; era
necessário, então, reunir tudo isso.
Como falar sem se emocionar? Como escrever
sem ao menos lembrar que minhas dúvidas, perguntas
sobre sua prática artística e o processo de criação não
poderiam ser respondidas por sua voz grave. Fiquei
alguns meses em um processo de silêncio. Cada página,
142

cada texto relido e reescrito mexia comigo, pois me


colocava cara a cara com o fato de que ele já não estava
mais aqui. Foi necessário aceitar que a pesquisa seguiria
adiante, mas não sem o artista, e sim para o artista.
Para continuar precisei de coragem e também de
intuição, passei pela encruza, pedi licença e tomei meu
caminho. Busquei a voz de Augusto Omolú, mas antes,
decidi que minha voz neste escrito não poderia ser
distanciada, eu precisava resgatar minhas lembranças,
falar de meu corpo, e consequentemente falar do
trabalho do artista.
Para isso, transformei a experiência do
Seminário em relato, busquei as imagens do espetáculo
Orô de Otelo (1994), os discursos na entrevista
publicada online na página do Teatro Jornal (2012) e na
dissertação de mestrado de Antonio Ferreira Junior
(2011), além da carta de Julia Varley (2013), atriz
integrante do Odin. Esses materiais foram de grande
importância e deram suporte para as reflexões feitas em
cada capítulo.
O caminho encontrado foi a etnografia, a partir
desta metodologia foi possível considerar a minha
experiência e logo as memórias do Seminário. Por isso,
logo no primeiro capítulo, escrevi sobre a relação corpo e
mente no trabalho do ator. No processo de escrita sobre
este tópico, me vi imersa em um mundo sensorial, muitas
vezes deixava as leituras de lado, colocava uma música
e dançava por entre os livros espalhados no chão. Posso
dizer que a pesquisa proporcionou um conhecimento
para além da Dramaturgia da Dança dos Orixás, eu
conheci a dança do meu próprio corpo.
Muitos autores com seus escritos e pesquisas
me ajudaram nesta caminhada. Encontrei, por exemplo,
nos escritos de Zeca Ligiéro (2011) a noção de “motrizes
culturais” para problematizar o entendimento de matriz;
143

observei a partir do filósofo congolês Fu-Kiau a conexão


entre a dança, o canto e o batuque, o que me permitiu
olhar para a prática artística de Augusto Omolú e para o
ritual do candomblé como fenômenos como processos
dinâmicos.
Ao falar da prática artística de Augusto Omolú
falei do candomblé e por isso, no segundo capítulo, o
primeiro item tratou de apresentar algumas noções
importantes, como as diferentes nações, a compreensão
de orixá e a relação com os elementos da natureza.
Depois, em um segundo momento, direcionei-me para os
conceitos da Antropologia Teatral de Eugenio Barba,
pois a participação na ISTA e a entrada como integrante
no grupo Odin trouxeram para a Dança dos Orixás, de
Augusto Omolú, a palavra: Dramaturgia.
Ao passar pela Antropologia Teatral de Barba me
vi intrigada com as definições de tradição e identidade
nacional, seria possível codificar uma tradição? Ao
considerar a dinâmica do corpo e o movimento (motriz)
existente na cultura, até que ponto as representações de
Barba com o grupo Odin, buscam um ideal de corpo e
tradição? Nesse momento, foi preciso retomar as
leituras de Stuart Hall, conhecidas da época da
graduação. Reli suas reflexões sobre identidade cultural
e como negociamos nossas identidades. Cheguei, junto
com Hall (2009), a outra questão: é possível, ainda hoje,
buscar um ideal de identidade negra? O próprio autor já
indica: “ [...] nossas diferenças raciais não nos
constituem inteiramente, somos sempre diferentes e
estamos sempre negociando diferentes tipos de
diferenças” (Hall, 2009, p.328). A pesquisa e o contato
com Augusto Omolú me trouxeram de forma evidente
esta afirmação de Hall. Em muitos momentos me vi
negociando minhas diferenças e questionando uma
noção essencializante de negro. Afinal, aquela pergunta
144

antiga de Hall (2009) nunca saiu da minha cabeça: “Que


‘negro’ é esse na cultura negra?”
Embora o discurso de Augusto Omolú, muitas
vezes, reforçasse a busca por uma identidade “nossa”,
uma identidade brasileira – percebi que sua própria
prática artística buscava extrapolar as fronteiras de uma
representação folclórica do orixá. Ele mesmo havia
observado, no início de sua trajetória em Salvador, os
limites da dança de seus mestres: Emília Biancardi e
Mestre King. Continuou sua trajetória e encontrou
Eugenio Barba e a Antropologia Teatral, se aventurou em
terras desconhecidas, foi para o frio da Dinamarca,
tornou-se integrante do grupo de teatro Odin, descobriu
que sua dança poderia ser pensada como dramaturgia,
que a mitologia presente nos movimentos dos orixás
poderia ser explícita ou contida, dependendo das
intenções dramáticas que se queria obter na criação
cênica.
A Dramaturgia da Dança dos Orixás foi
interrompida, mas através das imagens de um pequeno
registro videográfico pude apresentar no capítulo três
alguns movimentos dos orixás criados para o espetáculo
Orô de Otelo. O último capítulo buscou não uma
ilustração, mas uma reflexão acompanhada de
descrições dos movimentos – um passeio entre a
mitologia dos orixás e a dramaturgia shakesperiana.
Por quase duas décadas Augusto Omolú
transitou entre Salvador e Holstebro. No Seminário, ele
havia me dito que queria voltar ao Brasil, ficar mais
tempo em Salvador, sua intenção era fazer o Seminário
duas vezes no ano, nas férias de janeiro e de julho. Seus
planos foram também interrompidos, sua pesquisa ficou
na memória corporal dos participantes, dos dançarinos,
jovens, amigos, pesquisadores que estiveram próximo a
ele. Sua dança e dramaturgia tornaram-se nestas
145

páginas registros, relatos, reflexões e diálogos.


A arte e a religião estavam presentes em seu
cotidiano, ás vezes habitavam espaços completamente
distintos, mas ao final sempre ocupavam o mesmo
lugar: o corpo. Para quem deseja se aventurar no
universo de uma dança que se torna além de
dramaturgia, um ritual artístico impulsionado pela energia
do orixá, apresentei nesta dissertação um dos
precursores deste movimento. Augusto Omolú foi um
ator/dançarino atento, curioso e, sem dúvidas, um
pesquisador incasável sobre as conexões entre a arte da
dança, do teatro e da religião.
146
147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUGUSTO, Ronald. Apontamentos marginais: a


poesia e a vida de Cruz e Sousa. Revista Sibila: Poesia e
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156
157

ANEXOS

A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS45:


ENTREVISTA COM AUGUSTO OMOLÚ46

Foto feita durante o Seminário Dramaturgia da Dança dos Orixás, em


Salvador, janeiro de 2013. Arquivo pessoal da pesquisadora.

45
Entrevista concedida por Augusto Omolú para Julianna Rosa no
dia 06 de maio de 2012, em Porto Alegre (RS) no Hotel Plaza Porto
Alegre, durante o 7° Festival Palco Giratório-SESC.
46
No dia 02 de junho de 2013 Augusto Omolú foi brutalmente
assassinado em sua chácara (Chácara Omolú) no Bairro
Buraquinho na cidade de Salvador (Bahia – Brasil). Augusto era
ator/dançarino integrante do grupo dinamarquês Odin Teatret,
dirigido por Eugenio Barba.
158

Julianna Rosa47 (J.R.): Augusto Omolú você podia


contar um pouco da sua trajetória e como conheceu
Eugenio Barba?

Augusto Omolú (A.O.): Foi muito engraçado, para mim


foi uma grande surpresa, foi meu primeiro encontro com
o teatro. Para mim não era problema. Não era novidade
nenhuma, porque desde pequeno, quando eu tinha oito
anos de idade, fui confirmado para Ogum lá na minha
roça. A família toda já fazia parte, a minha mãe também.
Então, praticamente nascido e criado dentro do
candomblé. Quando eu era pequeno, seis ou sete anos,
tinha mania de imitar os orixás. Os orixás chegavam se
manifestavam, ficavam dançando, mas eu também ficava
dançando atrás, muito mais como um divertimento, não
tinha noção, não tinha ideia do que estava fazendo, mas
para mim aquilo tudo era meu mundo, era minha vida ali
dentro da roça. Preparar ebó, sair para pegar folha,
assistir as obrigações, a cerimônia das iáos, tira iáo,
tocar [atabaque]. Eu tocava, naquela época eu tocava
muito porque eu era o único ogã da casa pequeno, tinha
outros ogãs também, mas o confirmado era eu. Então eu
tocava e não aguentava muito, porque eu tinha os braços
pequeninos, mas eu adorava aquilo ali, para mim era
meu mundo. Tocava muito bem para todos os orixás na
maior satisfação, com muita alegria. E isso foi tudo muito
natural para mim. Quando ele [Eugenio Barba] pediu
para eu dançar orixá na cadeira, bom, eu danço orixá até
deitado na cama, isso não é problema [risos]. Era um
teste, mas eu não sabia que aquilo ali já era um teste,
mas fiz. Quando comecei a contracenar com a Júlia

47
A presente entrevista faz parte da pesquisa de mestrado em teatro
de Julianna Rosa, bolsista CAPES e Acadêmica do Programa de
Pós-Graduação em Teatro (PPGT-UDESC).
159

[Varley] também foi muito interessante. Chamou minha


atenção porque eu já tinha uma experiência na dança.
Eu tenho formação na área de balé clássico, durante
muitos anos, trinta anos. Também tenho experiência em
dança moderna, trabalhei com vários coreógrafos. Fui o
primeiro bailarino na Companhia [Balé do Teatro Castro
Alves (TCA)]. Tinha muito compromisso com a
Companhia. Então, ver Júlia fazendo aqueles gestos,
movimentos, ações, me chamou muita atenção, uma
dança em outra forma. E comecei a passar os
movimentos dos orixás, dentro do que ela pedia eu
correspondia com outra energia. E começamos a trocar.
Deu-se inicio aos trabalhos, e então fui viajar para
Dinamarca. Comecei a trabalhar com os atores e depois
voltamos a Salvador. Começamos - Eugenio Barba e eu -
o processo de montagem de Otelo, que foi muito
interessante este processo. Por que eu não tinha ideia
do que ele queria, não tinha ideia mesmo. Eu já tinha ido
à Dinamarca, voltado para Salvador. Eugenio tinha
chegado a Salvador e fomos fazer a montagem. Mas eu
não tinha ideia do que ele queria ou então, eu o via como
um coreógrafo. Eu via Eugenio Barba como um
coreógrafo. E como um costume nosso, de bailarino, o
coreógrafo faz a sua coreografia e nós bailarinos a
executamos. Nós executamos a coreografia que o
coreógrafo criou. Depois a assistente faz a limpeza
técnica daquela coreografia, você como bailarino tem
pouca participação criativa da obra. O coreógrafo tem
tudo na cabeça e no corpo e então ele passa tudo para
você e você como bailarino só executa, entende? Você
não participa do processo de montagem. E isso foram
muitos e muitos anos. E me incomodava muito essa
coisa no balé do Teatro Castro Alves. Porque como
bailarino eu sempre queria mais do que dançar. Essa
coisa de sempre estar fazendo a coreografia do
160

coreógrafo é como se você não tivesse nenhuma


participação, não é sua. Você não coloca sua emoção,
você não acrescenta nada seu, está lá como um boneco,
um robô. E isso me incomodava muito na Companhia.
Eu já estava um pouco cansado, eu queria outras coisas,
tinha outras ambições, eu estava cansado também tinha
mais de vinte anos. Enfim, quando tive esse contato com
Barba e começamos o processo de Otelo, me chamou
mais a atenção, porque eu tinha todo o conhecimento
dos movimentos dos orixás, eu já fazia os movimentos
dos orixás. E Eugenio sempre pedia mais e mais, e eu
sempre recusava, dava só o limite. Eu segurava um
pouquinho, até porque o candomblé para mim era
sagrado, algo religioso. Então, eu ainda tinha aquele
problema de não me abrir muito, de não permitir. Ele
[Eugenio Barba] me pedia coisas que eu não podia
passar para ele, coisas de fundamento do candomblé.
Eu só podia passar aquilo que era permitido.

J.R.: Como é para você a relação entre a


religiosidade e a arte, digo, como é trabalhar com a
religião e a arte?

A.O: Isso a principio foi um pouco difícil, até pelas


questões de proteção. Mas quando você vai
desenvolvendo uma linguagem, passando para outra
visão, como arte, você começa a perceber outros
valores, começa a entender que não está ferindo a
religiosidade, o candomblé, pelo contrário está
contribuindo mais para os valores do candomblé,
principalmente os valores da religião. Então eu comecei
a ceder mais um pouco, porque eu estava vendo outra
coisa e não tinha nada a ver com o terreiro. Nos anos
cinquenta [1950] foi criado, por exemplo, muitos grupos
folclóricos que faziam os orixás no palco. Da forma que
161

estava sendo trabalhado não é que estava imitando o


orixá, entende? É diferente da época dos orixás do grupo
folclórico, na época eram pessoas que imitavam os
orixás, como se estivessem incorporado, faziam caras,
bicos e tudo mais, isso sim eu acho que era algo que
feria a religiosidade. Mas, trabalhar o movimento do
orixá, não. O movimento é também de uma linguagem
universal. Ela pertence a uma religião, mas ela também é
uma arte enquanto movimento. E isto também é visto na
Índia, em Bali, então, por que também o orixá não buscar
dentro desse movimento uma qualidade, ou até um estilo
próprio para o que eu pensava naquela época. Porque
quando eu estava trabalhando, eu sempre trabalhei
dança clássica, dança moderna, mas eu sentia uma
necessidade muito grande de ter uma técnica
especificamente nossa brasileira. Por que eu tenho que
ficar o tempo todo estudando algo que não faz parte da
minha cultura? Tenho que estudar o tempo todo balé
clássico, mas eu não vou ser nenhum bailarino clássico,
nunca, porque eu tenho um bundão, o pé não estica,
porque essa é minha anatomia, minha cultura é essa.
Então eu comecei a trabalhar a dança dos orixás com
dança clássica, com a dança moderna. Isso eu já fazia
antes, em oitenta e três [1983] em um curso livre que eu
criei no Teatro Castro Alves [TCA] que tinha este
objetivo: juntar técnicas com o movimento dos orixás e
criar uma técnica brasileira, talvez um estilo brasileiro. Eu
dava o nome de “dança afro contemporânea brasileira”.
Era um pouco o movimento dos orixás, com uma
pirueta, uma contração de Martha Graham e fui
desenvolvendo outras coisas. Eu criei um grupo
“CHAMA” também, o qual mostrava todo este trabalho
pesquisado. Eu e Armando Pequeno. E pronto. Então,
esse contato com o Barba foi um leque de possibilidades
que me veio. Cada movimento do orixá que eu fazia, ele
162

pedia para eu parar de dançar o orixá e então, para


aquele movimento ele tinha mil explicações para dar.
Imagina que cada dança dos orixás pode ter de vinte a
trinta movimentos, porque os orixás se comunicam com
os movimentos, com as codificações. E a cada
movimento daquele ele tinha mil explicações, isso
começou a me chamar a atenção. Neste processo fui
ficando mais interessado, porque eu sabia dançar os
orixás, mas não sabia do conhecimento, sabia dançar,
mas não tinha o conhecimento e todas estas
informações. Isso foi dentro do processo de Otelo. Ele
[Eugenio Barba] sabia o que queria, pois tinha o
entendimento da Antropologia Teatral, das ações físicas,
dos movimentos, das codificações. Então, ele [Eugenio
Barba] fez o quebra-cabeça dele dentro do que eu tinha
de material. Enquanto eu fui adquirindo o que era rico
para mim, além de ter uma participação no processo da
montagem. Depois da partitura preparada, ele [Eugenio
Barba] veio com a música. Mais ou menos três meses
depois. E nesse período também, Eugenio [Barba] me
deixou trabalhando quando a Júlia [Varley] para estar
sempre recordando os ensinamentos. Mais tarde
acrescentou a Ópera de Verdi cantada por Pavarotti.
Todas as partituras selecionadas por Eugenio Barba
começaram a se encaixar dentro da Ópera. Essa foi a
montagem do espetáculo Orô de Otelo. Então você vê
que não teve muito a participação da religião, foi uma
visão realmente artística. É claro que Eugenio também
respeitou, nunca pediu para trabalhar a religião do
candomblé. Ele queria conhecer sim para então ter uma
informação sobre, para trabalhar depois com a base e os
princípios da Antropologia Teatral. Isto foi muito forte
como forma de contribuição. Foi muito bom como
processo. Cada momento era muito rico, me surpreendia
sempre. Como movimentar os braços, por exemplo,
163

quando o orixá era iansã, orixá dos raios e dos ventos,


eu mostrava o movimento e a energia do movimento.
Então, ele [Eugenio Barba] queria que eu mostrasse toda
a energia do movimento, mas com o movimento
reduzido. [Aqui Augusto Omolú demonstra os
movimentos e exemplifica com o próprio o corpo as
noções de redução e ampliação do movimento]. Isso
para mim era um pouco difícil, pois era algo novo, era
outra história para mim. Eu não achava ruim, ao contrário
comecei a curtir e me permitir. Foi muito rico aprender a
linguagem. Isso me deixou muito apaixonado, pois eu já
estava com esse problema com o balé. Quando eu tive
esta parceria com Eugenio, parece que ele despertou
uma nova vida, uma nova condição de sobreviver dentro
da minha arte. Além de me aprofundar dentro da
pesquisa, dentro do que eu queria como identidade.
Porque estava muito mais próximo para criar um estilo
próprio, basicamente brasileira a partir da dança dos
orixás. Isso foi estimulante, porque eu já tinha uma ideia
de pesquisa e quando me encontrei com ele [Eugenio
Barba] percebi que era isso mesmo que eu queria.
Enfim, eu fui “namorando” esse processo e acredito que
ele [Eugenio Barba] também curtia muito, porque ele
[Eugenio Barba] tinha uma grande caixa de movimentos
e de ações. Porque imagina, com dezesseis orixás, cada
orixá com trinta movimentos diferentes. Para ele
[Eugenio Barba] era muito material. Com movimentos
diferentes, codificações diferentes e energias diferentes,
pois cada orixá conta uma história. Então este encontro
foi fantástico.

J.R.: É interessante quando você fala desta diferença


do balé, do corpo do balé clássico, porque além da
anatomia entra a questão do ritmo e eu percebo em
suas partituras um ritmo diferente. Como é isto para
164

você, como funciona este processo de criação, o que


você pensa sobre isso?

A.O: Eu não penso. As coisas acontecem. [risos]. Eu não


penso, porque são coisas que não dá para você pensar,
não dá para você programar, são energias. E eu também
já vivia isto desde pequeno. Para mim a grande
dificuldade talvez seja a de pensar. Quando eu penso, eu
não faço. Eu trabalho também com outra memória. Isso
Barba me ajudou muito, a reconhecer essa outra
memória, que é uma memória física. Então, é despertar
esta memória física. Quando eu faço qualquer
movimento está sempre relacionado há algo, as
imagens, assim como os orixás se relacionam sempre a
algo. Por exemplo, a espada é elemento característico
de Ogum, a espada, os escudos, os movimentos de
ataque, defesa e proteção, a energia de guerra. Você
tem as imagens e têm os elementos, você incorpora tudo
isso. Não é que você vai pensar em construir aquilo, os
orixás já oferecem toda a condição para você criar como
base de um treinamento. Imagina se você não tem nada
e tem que criar alguma coisa, é diferente, entende. O
Odin [Teatret], os atores, por exemplo, criam e
improvisam sempre buscando algum elemento, eu tenho
os orixás. Se eu vou criar uma partitura para um
personagem, eu posso utilizar um ou dois orixás e a
partir de então improvisar com os elementos. Eu procuro
conservar a energia de cada orixá, improvisei [demonstra
o movimento] não mostro o Ogum, mas a energia de
Ogum [sinaliza com as mãos indicando o movimento da
espada de Ogum]. Você tem que construir interiormente,
a alma está ali. Não é algo que você pensa e vem, ao
contrário já tem que estar lá. E você precisa construir
muito e muito tempo. Trabalhar com todas as condições
e qualidades para poder ir armazenando e juntando
165

todas as informações, depois tudo isso naturalmente


aparece. Tem outro sentido que traz, entende, quando
você pensa, você já está. Eu não vou pensar em como
extrair. Não. Já está lá. Criou-se, então, uma estrutura
interior com todas estas informações, qualidades de
energias. Quando fizemos Hamlet, criou-se partituras e a
nossa linguagem, minha e de Eugenio, não era a força
do movimento e sim o nome do orixá. Ele dizia:
“Augusto entre com ogum, com oxóssi, agora oxalá”.
Então, ele usava o nome do orixá e eu entrava com a
energia do orixá, não tinha nada a ver com o orixá em si,
mas a energia sim. Criamos assim outras relações a
partir de outras possibilidades.

J.R.: Podes falar mais sobre essa relação de troca,


por exemplo, como o teatro começou a aparecer para
ti?

A.O: Sim. Exatamente. Eu começo a perceber a parte do


teatro. Inclusive, eu trabalho isto em minhas aulas, com
os alunos, onde inicio com orixás, os movimentos e
depois trabalhamos com a improvisação. Então, vamos
transformando todos os movimentos de dança em ações.
Até que você já não vê mais o orixá. É como se o orixá
fosse o movimento de partida, e de repente você elimina
o orixá e fica somente com a energia. Nesse momento, é
transformar a dança em teatro, o movimento da dança é
transformado em ações. Mas, você precisa trabalhar
com todo o conhecimento. Trabalhar a redução do
movimento, mas manter a intensidade forte da energia.
Buscar as possibilidades de caminhada, posições.
Buscando sempre outras possibilidades. Como Ogum, a
corrida de Ogum em cima de um cavalo. Um movimento,
meio-movimento, a parte da frente, atrás. Cria-se um
jogo com tudo isso. Você está transformando, então eu
166

vejo o teatro. Para se ter esta visão do que é dança e do


que é teatro, você tem que ter muita informação.

J.R: Augusto, você trabalha com muitos workshops,


oficinas, tem contato com pessoas do mundo inteiro.
Queria saber se você percebe, por exemplo, a
diferença entre aqueles atores, atrizes, negros,
negras, pessoas que já possuem um conhecimento
maior sobre a cultura africana e afro-brasileira ou um
contato com a religiosidade, se há uma diferença em
trabalhar esta técnica da dança dos orixás?

A.O: Não existe essa diferença, mas me deixa muito


surpreso isso tudo. Porque muitas vezes eu consigo um
resultado maior quando estou trabalhando com os
estrangeiros. Quando eu estou trabalhando com pessoas
da nossa cultura mesmo eu sinto mais dificuldade. É
como se eles não estivessem muito preocupados com
isso. Tem sempre aquela coisa assim: “é meu”, “eu já
sei”, “é da minha cultura”, “é da minha raiz”. Mas no final
das contas não sabe de nada. Porque eu trabalho isso
no exterior, por exemplo, na China, na França, na
Dinamarca e sinto que os estrangeiros respondem muito
mais, como se já tivesse um conhecimento. Eles [os
estrangeiros] criam uma identificação muito maior com
os orixás, mais do que o povo daqui [brasileiros]. Tanto
que eu sinto uma presença de Ogum, Oxóssi, lá
[indicando com dedo o exterior]. Aqui eu sinto que ainda
há uma dificuldade. Porque lá, eles [os estrangeiros]
trabalham com outras ideias, como não faz parte da
cultura deles, então estão mais abertos. E aqui como faz
parte da cultura ainda tem muito preconceito. É muito
difícil quebrar isso. Eu tento, eu estou tentando. Temos
muitos problemas no Brasil, preconceito em conhecer,
167

em se aproximar. Meu grande desafio é desenvolver o


meu trabalho, minha linguagem, aqui. As pessoas não
querem estudar sua cultura e a linguagem dessa forma.
Há ainda muito preconceito, daquele que não tem o
candomblé como religião, que está na igreja protestante,
por exemplo, não quer nem ouvir o nome do orixá, muito
menos utilizar o movimento. E quando se fala o nome do
orixá, então, logo dizem “está amarrado, está amarrado”,
não querem nem ouvir o nome [risos]. Mas são negros.
[silêncio]. São negros. E estão negando sua própria
cultura, porque não precisa estar dentro da religião para
ter conhecimento profundo sobre isso, sobre as
influências, sobre a relação que tem os orixás com os
elementos da natureza. É muito rico, porque a natureza
está no mundo, e os orixás são energias, os orixás são a
natureza. Os orixás não estão somente na Bahia, no
Brasil ou na África. Os orixás estão no mundo, porque
eles são a natureza. Quando você começa a trabalhar
com a natureza, levando a energia dos deuses, as
pessoas começam então a criar uma identificação muito
grande. Há pessoas que choram. Choram de emoção,
sentem, por exemplo, oxum e começam a se descobrir.
Começam a ter uma relação muito grande com a água,
com a terra, com o ar. Olha onde estão indo os orixás! O
que os orixás estão fazendo lá do outro lado do mundo.
Olha que força tem! Mas quando chega aqui não é bem
dessa forma. É assim, como já foi dito, aqui as pessoas
falam: “é religião”. Mas isso também aconteceu há
muitos e muitos anos. E por isso muitas coisas se
perderam, foram acabando. Porque também as grandes
babalorixás e ialorixás foram muito massacradas na
época, sofreram muito, porque o candomblé era muito
perseguido. E eles guardavam tudo isso com muito
segredo e morreram com todo o segredo. Hoje não
podemos guardar tanto assim, temos que ter outra visão
168

para valorizar tudo isso que também é segredo ou tudo


isso que é sagrado. Temos que ter outra visão para
valorizar, senão se perde. Ou então continuamos sem
identidade? Não. Eu quero buscar ainda mais forte
a nossa identidade. Ter uma forma de discutir sobre a
nossa identidade cultural em todo lugar do mundo para
que seja visto também como valores. O Brasil não pode
apenas ser visto como o samba de roda, a capoeira e
mulatas. Não, não é isso. A nossa religião também tem
uma arte que pode ser discutida. Tanto que você vê a
música sendo cantada por Carlinhos Brown, e faz muito
sucesso, e é música de candomblé. Não é? Então, os
antropólogos também escrevem sobre isso, como o
Pierre Verger fez muitos livros comparando a África e o
Brasil. Tudo sobre o candomblé está aí, quem quiser
abrir um terreiro só com livros ou internet, pode abrir.
[risos]. Mas, eu acho importante nós buscarmos estes
tipos de valores. Eu fico feliz, por exemplo, quando tem
alguém como você que está interessada em desenvolver
um trabalho, como há outros também que me procuram.
Eu me deixo muito disponível para contribuir e ajudar
nesse grande objetivo de termos uma grande família, a
família de pensadores, os quais estão ali pensando,
estudando, criando novos objetivos, pensamentos,
conhecimentos, pensando outras estruturas. É uma luta.
Você vê todo começo de ano eu faço um Seminário, de
um mês, inicia em janeiro e termina em fevereiro lá em
Salvador. Vêm pessoas de todos os lugares do mundo,
mas brasileiros vem cinco. Às vezes um de Minas
[Gerais], um de São Paulo outro do Rio [de Janeiro]. E
de Salvador? Nenhum. Mas acontece lá em Salvador.
Em Salvador, ás vezes aparece os ex-alunos, ou então,
eu chamo e dou uma bolsa para vir estudar. Porque é
muito triste ter quarenta pessoas e de repente somente
cinco brasileiros, e da Bahia nenhum. Então você vê que
169

não tem muito interesse. Todos ali [Salvador] já se


acham a mãe do santo, o pai do santo, a tia do santo,
todo mundo é dono do santo, e de quem é o santo
então? [risos]. Todo mundo se acha dono do orixá, cheio
de poderes, então fica difícil quebrar essa corrente. Ás
vezes eu penso que o Brasil, ou especificamente a
Bahia, perdeu toda uma referência, porque não se sabe
o que se está fazendo. E isso para mim, me dá a maior
agonia. Entende? Porque quando estávamos lá na
Bahia, nós agitávamos tudo. É como eu falei antes,
pegava a dança clássica e a dança dos orixás, estava
sempre buscando novidades, algo diferente. E ainda
tinha os alunos, que eram multiplicadores. Depois, parou.
Agora está todo mundo fora [fala dos professores,
mestres e outros companheiros que também saíram de
Salvador para fazer trabalhos fora do Brasil]. Então,
agora virou algo muito comercial. Ás vezes se faz dança
de orixá para ganhar dinheiro de turista, e fica lá
ensinando turista a dançar o orixá com cara e com bico,
para quê? Então, quando você pergunta a este sujeito o
porquê daquele movimento, não sabe responder. Sabe-
se dançar o orixá, porque precisa ganhar dinheiro. É
claro, o candomblé é uma escola, mas pare para falar de
cada movimento, do significado, das energias. Quando
essas pessoas com experiência, de candomblé, vêm
para a minha aula, o que acontece? Elas ficam paradas,
não conseguem se mexer. Porque estão cheio de vícios.
Quando eu vejo, eu paro e pergunto: O que você está
fazendo, me diz de onde veio este movimento? Como
está sua mão? E começam a gaguejar e não sabem
explicar nada. Então, iniciamos o trabalho com todas as
noções das qualidades, dos movimentos e das
intenções. É por isso que trabalhar aqui [no Brasil] para
mim é diferente, voltando a sua pergunta. Porque aqui
[no Brasil] as pessoas acham que já sabem.
170

J.R.: Como você se vê agora depois de tanto tempo


trabalhando com o Eugenio Barba?

A.O: Amadureci muito. E até mesmo criou condições e


possibilidade para eu chegar até o outro lado do mundo.
Isso ajudou muito, mas também você tem que querer.
Porque eu passei por situações muito difíceis, distante
da minha família, distante cultura, distante de tudo para
estar lá, porque era aquilo que eu acreditava, naquela
linguagem. A língua não falava, inglês, francês e outras
línguas, mas a linguagem sim. E isso era o mais
interessante para mim, pois era o que eu queria estar ali.
O que Eugenio [Barba] falava eu compreendia, e então
comecei a trabalhar com outras visões, a leitura do
movimento, das ações. Você tem que abrir mão de
algumas coisas. Porque se eu estivesse lá com outros
interesses, outras ambições, como talvez a de aprender
uma língua, o dinamarquês ou inglês, enfim, talvez eu
não tivesse tanta informação e conhecimento. Quem
sabe teria a língua que todos têm, mas não teria a
linguagem. E o que me interessava entre tudo era a
linguagem, e me interessa até hoje a linguagem. É o que
eu estou defendendo. E por isso ainda estou trabalhando
com Barba.

J.R.: Augusto, obrigada pelo tempo disposto, pela


sua atenção e por ter permitido acontecer esta
entrevista. Agradeço imensamente, pelo registro e
pelas tuas contribuições.
171

Sinopse na íntegra do espetáculo Orô de Otelo

Orô de Otelo - Uma produção ISTA

Lendo o texto Otelo de Shakespeare, o performer, um


homem negro elegantemente vestido, se deixa levar pela
história. O artista encena os principais personagens -
Otelo , Desdêmona , Iago , de acordo com as palavras
que são cantadas em “Otello" [ópera] de [Giuseppe]
Verdi. O performer muda de um personagem para outro,
construindo diálogos entre eles, mas também reagindo
aos personagens que ele interpreta. A música ópera de
Verdi é comentada, apoiada ou em contraponto ao ritmo
tradicional dos tambores do Candomblé. O espetáculo
(ou a performance) é baseado exclusivamente na
codificação da dança dos orixás: todos os gestos, passos
e movimentos originam-se das danças dos santos e
deuses da religião Candomblé. Orô é uma palavra usada
para indicar uma cerimônia. Nas performances de Orixás
são diferentes manifestações das paixões humanas que
animam os principais episódios do jogo. Os
acontecimentos dramáticos evocados pela história de
Otelo conduzem lentamente o performer para um Xirê.
Durante o Xirê, em uma cerimônia de candomblé, os
tambores cumprimentam e chamam os diferentes Orixás
para que eles possam descer e montar o devoto que
está dançando. A performance termina com uma avania,
a dança final e ritmo saudação com a saída de todos os
Orixás.

Performer : Augusto Omolú


Músico : Cleber Conceição da Paixão
Diretor: Eugenio Barba
Assistente de direção : Julia Varley
Música: ritmos de tambores das tradicionais cerimônias
172

do candomblé e fragmentos de uma gravação da ópera "


Otello " de Giuseppe Verdi.

Tradução minha do original em inglês, disponível em


http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-
projects/or%C3%B4-de-otelo.aspx acesso em 25 de
janeiro de 2014
173

Espetáculos com o grupo Odin Teatret, apresento nas


próximas páginas fotos dos espetáculos com
participação de Augusto Omolú esteve. Esta
classificação retirada da página oficial do grupo,
disponível em http://www.odinteatret.dk/ com acesso 10
de janeiro de 2014.

1. Ode ao progresso (1997)

Esta foi a única foto encontrada com o artista em cena. Na foto Iben
Nagel Rasmussen e Augusto Omolú contracenando. Título original: Ode
to progress. Direção de Eugenio Barba. Fotografia de Estudio Blau.
Imagem disponível em http://performatus.net/uma-carta-para-recordar/
com acesso em 10 de janeiro de 2014.
174

2. As grandes cidades sob a lua (2003)

Na foto Augusto Omolú e os integrantes do Odin Teatret. Título


original The Great Cities under the Moon. Direção de Eugenio
Barba. Fotografia de Tony D’Urso. Disponível em
http://www.odinteatret.dk/productions/current-performances/the-
great-cities.aspx acesso em 10 de janeiro de 2014.
175

3. O sonho de Andersen (2004)

Na foto Augusto Omolú e Torgeir Wethal. Título original: Andersen's


Dream. Direção de Eugenio Barba. Fotografia de Jan Rüsz.
Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/past-
productions/andersen's-dream.aspx
176

Na foto Augusto Omolú e Iben Nagel Rasmussen. Título original:


Andersen's Dream. Direção de Eugenio Barba. Fotografia de Jan
Rüsz. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/past-
productions/andersen's-dream.aspx
177

4. Orô de Otelo (1994)


Nas fotos que seguem, estão em cena Augusto Omolú e os músicos
ao fundo, tocando atabaque ao vivo. Direção Eugenio Barba.
Fotografias de Giovanna Talá. Todas as fotos são do espetáculo Orô
de Otelo e estão disponível em
http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-
projects/or%C3%B4-de-otelo.aspx com acesso em de 10 de janeiro
de 2014.
178
179
180
181
182

5. Participação nas performances do Theatrum Mundi ou


Multicultural Projects:

Ur-Hamlet (2006)

Na foto Augusto Omolú, Ni Wayan Pia e Julia Varley. Direção de Eugenio


Barba. Disponível em http://www.odinteatretarchives.com/close-up/ur-
hamlet/images/scheda-image.php?id=53 acesso em 10 de janeiro de 2014
183

O casamento de Medea (2008)

Foto do cartaz do espetáculo. Título original: The


Marriage of Medea. Direção Eugenio Barba. Elenco:
MEDEA: Ni Made Partini; JASON: Tage Larsen;
CLOTHO: Julia Varley; DIONYSOS: Augusto Omolú;
MEDEA'S FATHER: I Wayan Bawa; THE PRIEST:
Cristina Wistari Formaggia. Disponível em
http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-
projects/the-marriage-of-medea.aspx acesso em 10
de janeiro de 2014
184

Ego Faust (2000)

Performance criada para XII Sessão da ISTA.


Acima foto de Augusto Omolú, capa do DVD,
disponível para streaming em
http://www.odinteatretarchives.com/streaming/vi
deo.php?id=65&id_lang=undefined acesso em
10 de janeiro de 2014
185

A ilha de labirintos (1996)


Performance feita em Maio de 1996 durante a ISTA, em
Copenhague, Dinamarca.
Título original: The Island of Labyrinths. Direção de Eugenio Barba.
Não foi encontrado foto e/ou cartaz de divulgação.
Há um vídeo disponível em
http://www.odinteatretarchives.com/losarchivos/el-
archivo-de-material-filmico/examples/video-the-island-
of-labyrinths-2-in-copenaghen-1996

Quatro poemas para Sanjukta (1998)


Performance feita em homenagem a dançarina do
Odissi, Sanjukta Panigrahi.
Título original: Four Poems for Sanjukta. Direção de
Eugenio Barba.
Não foi encontrado foto e/ou cartaz de divulgação.
Há um vídeo disponível em
http://www.odinteatretarchives.com/losarchivos/el-
archivo-de-material-filmico/examples/video-four-
poems-for-sanjukta-1998
186

Material de divulgação do espetáculo As grandes


cidades sob a lua, assistido dia 05 de maio de 2012, no
Teatro SESC no centro histórico de Porto Alegre.
187
188

Material de divulgação do Seminário da Dramaturgia


da Dança dos Orixás, observação participante feita de
10 de janeiro a 05 de fevereiro de 2013. No mateial
abaixo encontra-se escrito “Workshop”, entretanto,
durante o período que estive em Salvador, tanto Augusto
Omolú quanto os participantes referiam-se a Seminário,
portanto, utilizei a segunda nomeclatura neste trabalho,
já que na pesquisa de campo era assim que se referiam
a esta experiência da dança dos orixás.
189
190

Nota de falecimento de Augusto Omolú, publicada


por Odin Teatret

Publicada em quatro idiomas: Dinamarquês, italiano,


espanhol e inglês. Mesmo sendo o artista brasileiro, não
foi encontrado na página oficial do grupo, nota de
falecimento em português. Abaixo, segue na integra a
nota publicada pelo grupo. Disponível em
http://www.odinteatret.dk/news/augusto-omol%C3%BA-
%281962---2013%29.aspx acessado dia agosto de
2013.

Augusto Omolú (1962 - 2013)


191

Odin Teatret i sorg (Dinamarquês)

Danser, koreograf og skuespiller, Augusto Omolú, kunstnerisk


medarbejder på Odin Teatret i Holstebro siden 2002, blev i går
stukket ihjel ved et brutalt røveri i sit hjem i Salvador, Brasilien.
Omolú blev 50 år gammel. Augusto Omolú blev født i Salvador,
staten Bahia i Brasilien, i 1962. Han voksede op i traditionen af den
afro-brasilianske religion, Candomblé, hvor han fik status som ogan
(ceremoniel assistent). Han begyndte at danse i 1976 med
ensemblet Viva Bahia, ledet af Emília Biancardi. Efter at have
studeret klassisk ballet og moderne dans indtrådte han i Casto
AlvesBalletten i Salvador, hvor han fra 1982 var ansvarlig for den
"afro-brasilianske teknik". 1983 -1985 skabte han
kompagniet Chama, hvor han arbejdede både som danser og
koreograf. Augusto Omolú blev i 1994 knyttet til ISTA - International
School of Theatre Anthropology, ledet af Odin Teatrets Eugenio
Barba. I 2002 begyndte han at arbejde som skuespiller på Odin
Teatret og flyttede derfor til Holstebro. I sin ansættelse på Odin
Teatret har han, ud over at medvirke i flere af teatrets forestillinger,
organiseret kurser i orixá danseteknikker (baseret på dansemønstre
fra Candomblé-religionen) for danse- og teaterstuderende verden
over og samtidigt skabt en række koreografier for ballet- og moderne
dansekompagnier i Danmark, Brasilien og Italien. Hans
forestilling, Orô de Otelo, instrueret af Eugenio Barba, forener
erfaringer fra Candomblé-traditionen og teaterteknikker fra Odin
Teatret og ISTA. Augusto Omolú medvirkede i følgende Odin Teatret-
forestillinger: Ode til fremskridtet,De store byer under månen
og Andersens drøm. I ISTA-sammenhæng optrådte han med Orô de
Otelo og var med i Theatrum Mundi-forestillingerne Medeas
bryllup, Ur-Hamlet, Fire digte til Sanjukta, Ego
FaustsamtLabyrinternes ø. I Holstebro blev Augusto Omolú en
meget eftertragtet leder af kurser i dans i forskellige, lokale miljøer.
Også som gæstelærer på Balletskolen blev han højt værdsat af både
elever og personale. Augusto Omolú bliver begravet i sin hjemby,
Salvador, tirsdag den 4. juni 2013.
...

Odin Teatret in mourning (Inglês)

Dancer, choreographer and actor, Augusto Omolú, artistic


collaborator of Odin Teatret, Holstebro since 2002, was stabbed to
death in a violent robbery at his home in Salvador, Brazil, yesterday.
192

Omolú was 50 years old. Born in Salvador, in the state of Bahia,


Brazil, in 1962, Augusto Omolú grew up with the Afro-Brazilian
religion, Candomblé, where he was ogan (ceremonial assistant). He
began as a dancer in 1976 with the ensemble Viva Bahia, led by
Emília Biancardi. After having studied classical ballet and modern
dance, he joined theCastro Alves Ballet in Salvador, where he from
1982 was responsible for the "Afro-Brazilian technique" In 1983 he
created Chama, a company in which he both worked as a dancer
and choreographer until 1985. Augusto Omolú joined ISTA -
International School of Theatre Anthropology, led by Eugenio
Barba, Odin Teatret, in 1994. And in 2002 he began his work as an
actor at Odin Teatret and subsequently moved to Holstebro. During
his employment at Odin Teatret, Augusto not only participated in
several of its performances, he also organised courses in the Orixá
dance techniques (based on the traditional Candomblé-religion) for
dance- and theatre students worldwide, and created a number of
choreographies for ballet and modern dance companies in Denmark,
Brazil and Italy. His performance, Orô de Otelo, directed by Eugenio
Barba, unites experiences from the Candomblé-tradition and theatre
techniques from Odin Teatret and ISTA. Augusto Omolú took part in
the following Odin Teatret performances: Ode to Progress, The Great
Cities under the Moon and Andersen's Dream.
In connection with ISTA he performed Orô de Otelo and he was part
of the Theatrum Mundi performances The Marriage of Medea, Ur-
Hamlet, Four Poems for Sanjukta,Ego Faust as well as The Island of
the Labyrinths. Augusto Omolú was a very popular director of dance
courses in various local environments in and around Holstebro. Also
as a guest teacher at the Ballet School was Augusto highly valued by
both students and staff alike. Augusto Omolú will be buried in his
th
home town, Salvador, Tuesday 4 June 2013.
...

Odin Teatret de duelo (espanhol)

El bailarín, coreógrafo y actor Augusto Omolú, actor del Odin Teatret


en Holstebro desde el 2002, fue muerto ayer durante un robo brutal
en su casa en Salvador, Brazil. Omolú tenía 50 años. Augusto nació
en Salvador Bahía , Brazil, en 1962. Creció bajo la tradición religiosa
afro-brasileña Candomblé, donde tenía el estatus de ogan (asistente
de ceremonia). En 1976 comenzó a danzar en el ensamble Viva
193

Bahia, dirigido por Emilia Biancardi. Luego de haber estudiado ballet


clásico y moderno ingresó en el ballet Castro Alvesde Salvador,
donde fue responsable de las técnicas afro-brasileñas desde 1982.
Del 1983 al 1985 creó la compañía Chama, donde trabajó como
bailarían y coreógrafo. Augusto Omolú se integró en 1994 a la ISTA -
International School of Theatre Anthropology, dirigida por
Eugenio Barba del Odin Teatret. En el 2002 comenzó a trabajar
como actor del Odin Teatret, trasladándose por consecuencia a
Holstebro. Durante su empleo en el Odin Teatret ha participado -
además de los espectáculos - organizando cursos de técnica de
danza de Orixá para bailarines y estudiantes de teatro de todo el
mundo y, al mismo tiempo, creó una serie de coreografías para
compañías de ballet y danza moderna en Dinamarca, Brazil e Italia.
Su espectáculo Orô de Otelo, dirigido por Eugenio Barba, reúne la
experiencia de la tradición Candomblé y la técnica teatral del Odin
Teatret y la ISTA. Augusto Omolú participó de los siguientes
espectáculos del Odin Teatret: Oda al progreso, Las grandes
ciudades bajo la luna y El sueño de Andersen.
En Holstebro Augusto Omolú era muy apreciado para dirigir cursos
de danza en diferentes ambientes locales. También el personal y
alumnos de la Escuela de Ballet de Holstebro valoraban
enormemente su aporte como maestro externo. El funeral de
Augusto Omolú se realizará en su ciudad natal, Salvador, el martes
4 de junio del 2013.
...

Odin Teatret in lutto (italiano)

Augusto Omolú, ballerino, coreografo e attore, collaboratore fisso


dell'Odin Teatret dal 2002, é stato pugnalato a morte durante una
rapina nella sua casa il 2 giugno a Salvador, Brasile. Augusto Omolú
aveva 50 anni. Nato a Salvador, nello stato di Bahia in Brasile nel
1962, Augusto Omolú é cresciuto nell'ambito della religione Afro-
Brasiliana del Candomblé, diventando un ogan (un assistente alle
cerimonie). Iniziò come ballerino nel 1976 con l'ensemble Viva
Bahia, diretto da Emília Biancardi. Dopo aver concluso gli studi come
ballerino di danza classica e moderna, si unì al Castro Alves Ballet a
Salvador, dove, fin dal 1982 fu insegnante responsabile per la
tecnica Afro-Braziliana. Nel 1983 creò Chama, una compagnia nella
quale lavorò sia come ballerino che come coreografo fino al 1985.
Augusto Omolú si unì come maestro all'ISTA - International School of
Theatre Anthropology, diretta da Eugenio Barba, Odin Teatret, nel
194

1994. Nel 2002 iniziò a lavorare come attore all'Odin Teatret,


trasferendosi a Holstebro. Durante i suoi anni con l'Odin Teatret,
Augusto ha partecipato a numerosi spettacoli, e organizzato seminari
sulle tecniche della danza degli Orixá (le cui radici si fondano nella
religione del Candomblé) per ballerini e attori in tutto il mondo. Ha
creato, inoltre, numerose coreografie per compagnie di danza
classica e moderna in Brasile, Danimarca e Italia. Il suo
spettacolo, Orô de Otelo, con la regia di Eugenio Barba, unisce
l'esperienza della tradizione del Candomblé alle tecniche teatrali
dell'Odin Teatret e dell'ISTA. Augusto Omolú ha preso parte nei
seguenti spettacoli dell'Odin Teatret: Ode al progresso, Le grandi
città sotto la luna e Il sogno di Andersen. In connessione con l'ISTA
creò fu il protagonista di Orô de Otelo (Cerimonia per Otello) e prese
parte agli spettacoli del Theatrum Mundi: Il matrimonio di Medea, Ur-
Hamlet, Quattro poesie per Sanjukta, Ego Faust e L'isola dei labirinti.
Augusto Omolú era molto conosciuto nell'ambiente della danza. Le
sue capacità di ballerino e coreografo erano apprezzate sia dagli
studenti che dallo staff della Scuola di Balletto di Holstebro, con la
quale collaborava regolarmente in qualità di pedagogo ospite.
Augusto Omolú sarà seppellito nella sua città natale, Salvador, il 4
giugno 2013.

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