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GERALD), GooS Womdintng A owe. vrrwe crirEe . SoS Conor! Padro dors Cdikyus , 2010, 298 p- Acai VU A AULA COMO ACONTECIMENTO! io pode verdadeiramente dizer, isto & wostrar e fazer aparecer seni aquilo que se mostra a ele de si préprio, que aquilo que de si aparece se manifesta e se dirigea ele, (Martin Heidegger) As falas so sempre associagies, liames, teceduras do aqui e agora com 0 jé dito, com o ja conhecido, que recebe das circunstancias interlocutivas novas cores e novos sentidos. Por isso 0 novo no esta no que se diz mas no ressurgimento do jé dito que se renova, que é outro e que vive porque se repete. Por isso aqui nao se tratara de algo novo, mas da articulagéo de questées jé conhecidas, fazendo emergir consequéncias das tomadas de posigao a respeito destas mesmas questies, consequéncias nem sempre explicitadas e, as vezes, até invisiveis para nés quando da formulagio de respostas nos estudos das questdes sobre que nos debrugamos. Gostaria de defender a ideia da aula como acontecimento, e vou- me aproximar desta tese a partir de certos angulos que, aparentemente, sao distantes, para no final tentar costuré-los, numa orientagdo que dé sentido a esta tese, por sua articulagéo a um conjunto de outras teses que, se aceitas, podem implicar a necessidade desta revisdo em nossa concepgio de aula, entendida sempre como um encontro ritual, € por isso com gestos e fazeres predeteri de transmissao de conhecimentos. Creio que a identidade profissional do professor ao longo da Ristéria se construiu, essencialmente, pela sua relagéo com o conhecimento. Em outras palavras, estou querendo dizer que a relagao com o conhecimento, mais do que a prépria relagio Pedagégica, isto & a relaciéo com os aprendentes, desenhou os diferentes perfis profissionais cuja sequéncia constitui a historia de nossa _profissio. Ainda hoje resquicios desta relagio com o conhecimento, indicios da sua presenga, sustentam nossa formagao, a que chamamos de formagao inicial. Nesta formacao inicial hd uma espécie de achego, de aproximacao a um conjunto de conhecimentos organizados ao longo da historia, e nossa suposta ou efetiva formagao se constitui pelo processo de sua aquisigao. Nés nos formamos Professores ao longo de alguns anos de estudos de certos conteiidos, que adquirimos, que encorpamos, e que nos remodelam, nos tornam a Pessoa que nao éramos. Seguramente, esse tipo de formasio é consequéncia de um longo processo histérico de construgéo da identidade profissional do professor, que se mostra nos nossos cursos de formagéo. Certamente reconhecemos que desta forma nos formamos professores. O que pretendo discutir aqui é que, talvez, isto apenas nos forme, mas nao nos torna professores. Iniciemos por um dos aspectos da escola existente, aquela que conhecemos hoje: lugar em que se ensina, lugar em que se aprende. Como ensinar aprender demandam objectos, e estes sao conkecimentos, entao ha na escola uma relagio com certos conhecimentos. A relagao lriddica: 0 professor, 0 aluno, e os conhecimentos. Cada proposta pedagégica, na historia ou no presente, define diferentes posig&es para cada um destes trés elementos, dando énfase ora a um, ora a outro destes trés pélos. Certamente antes da existéncia desta escola que retine professor, alunos ¢ conhecimento, houve outta escola cujo sentido ainda pode ser recuperudo quando falamos, por exemplo, em “escola literaria", em “escola romantica", "escola arquiteténica” etc. Nesse sentido, anterior ao sentido contemporaneo de escola, as primeiras escolas foram seguramente o que podemos chamar de "escolas de sabios". Isto € aquelas escolas em que ha a reuniao entre um sujeito que pensa com Outros sujeitos, ndo como alunos, mas como discipulos, de que as escolas dos sofistas, a escola de Sécrates, a escola de Platio, so 82. exemplos. Mas podemos também incluir entre estas "escolas" os conventos da Idade Média, responsaveis pela preservagao e também por uma leitura ‘retificadora’ - lembremos Santo Agostinho e Tomas de Aquino - de uma rica heranca cultural clissica. Nestas “escolas* ensinavam aqueles que estavam produzindo conhecimento. Nao havia distingao entre o fildsofo e o professor de filosofia. Ensinava-se filosofia porque se era fildsofo. E na Idade Média, cada fundador ou “patrono” de uma ordem religiosa ou de uma abadia era também 0 “fundador" de uma certa leitura, de uma certa interpretagio dos evangelhos. Que sirvam de exemplo Santo Anselmo, Francisco de Assis ou Tereza de Avila, Em resumo, havia um produtor de conhecimentos, e esse produtor de conhecimentos, porque produtor, era buscado por seguidores, voluntirios as vezes, forcados outras vezes, por interesses no conhecimento ou por demonstracdo de prestigio. Para quem est lembrado do romance (ou do filme) “O nome da rosa”, Adso de Melk vai conviver/aprender com Guilherme de Baskerville. Nao é sem diividas © sem lembrangas que o narrador da historia, 0 novigo Adso se torna o sabio velho frei que rememora: ao longo do enredo do romance convive com Baskerville, inicialmente em fungéo de uma demanda dos pais, que o haviam confiado para aprender com o jé sébio Baskerville, depois por vontade prépria expressa na sequéncia (ou cena) em que decide seguir © mestre, sacrificando 0 amor fisico que desejara, experimentara e continuava a desejar. Esta "escola de sébios', de que talver. as relagées de orientadores de pesquisa com seus orientandos, nos programas de pos-graduacao, sejam os tiltimos resquicios no presente, desaparece na historia dos sistemas escolares®. Parece-me que a primeira grande divisio social do trabalho educative se dara no periode do Mercantilismo, j4 como consequéncia, inclusive, da expansio europeia, quer pela acao dos * Como ma histria, im sistema de pensamento.nasce no oMto teleividade deste desaparecimento que as relagdes de orientadores/orientondoe pode indicia. Afina, como enfatiza Balkin, 0 penstmento nasce no pensemento do Outro, impeegnado do outro fodo signa festa sua ressureiio. Por isso & sempre salutar ensergar 0 passado no presente, mas sem esquecer que 0 futuro nie & reprodugio do presente, por mais estabilizada que sea a estrutura, € da estabilidade das estruturas com a instabilidade das acgbes que se tece a diferenga, Ra constroi pel professor. E bastante instrutivo, para todos nés, independentemente da area fem que atuamos, fazer um retorno & Diddctica Magna, obra de Coménio, nascida na década de 1620. Interessam algumas de suas metéforas, bastante elucidativas da identidade do professor que se omega a desenhar nos comegos do século XVII. E com estas metiforas que se constroi a identidade do professor que perdurard por um longo periodo da nossa histéria. E preciso lembrar, no entanto, que estas metéforas foram elaboradas no contexto especifico da expansio europeia e consequente vontade de expansdo do cristianismo, da evangelizagao, com que 0 frade Coménio estava comprometido até por dever de officio’. A titulo de exemplo, consideremos a seguinte passagem: sero habeis para ensinar mesmo aqueles a quem a natureza no dotou de ‘muita habilidade para ensinar, pois a missio de cada um (nao) ¢ tanto tirar da propria mente o que deve ensinar, como sobretudo comunicar ¢ infundir na juventude uma erudigéo jé preparada e com instrumentos também ji preparados, colocados nas suas mos. Com efeito, assim como qualquer organista executa qualquer sinfonia, clhando pa alver ele 1 de cor 86 com a voz ou com 0 SrgB0, ofessor de ensinar na escola todas as assim também por que & que coisas, se tudo aquilo que devers ensinar e, bem assim os modos como o hi de ‘ensinar, 0 tem escrito como que em partituras? (Coménio, XXXII) Ha muitas pessoas que precisam aprender, mas a humanidade nao dispée de doutos em miimero suficiente para Ihes ensinar. Entio, com resolver 0 problema? A metéfora do organista, que executa qualquer sinfonia mesmo nao sabendo compé-la ¢ extremamente 3 Apenas um registro: é interessante notar que Coménio ndo vivia no "centro" da Ges que detinham o poder econémico ou cultural. Ao indicie outro: que & nas margens que se do novo, daqullo que est por vr. iva: ao ouvinte nao i compor, interessa que acomp: Onde tudo jé esta ra & atividade de en pedagdgica - que se enumeram as caract profissio de "professor" 1, ser habil para ensinar mesmo nao sendo muito dotado; 2. sua fungao € comunicar (e infundir) na juventude uma ‘erudigao jé preparada, e nao retirada da prépria mente (isto 6, N40 precisa ser produzida por ele proprio); 3. para exercer sua fungao, tudo se Ihe dé nas maos: 0 qué € © ‘como ensinar (uma partitura ja composta) Deste ponto de vista, 0 processo de educagio se dé como se um de seus agentes, o professor, executasse uma partitura, O professor nio precisa ser douto, mas saber tudo 0 que deve fazer, e este "tudo" Ihe & dado nas mios pelos doutos, que preparariam 0 que ensinar € como ensinar. Esta passagem de um sujeito que produzia conhecimentos para um sujeito que sabe o saber produzido por outros © que o transmite instaura na constituigio mesma da identidade Profissional o signo da desatualizagao, porque como o professor nao esta produzindo os saberes que ensina, ele esta sempre atris destes saberes que estéo sendo produzido por outros. E necesséria uma continua atualizacao para estar sabendo o que se produz de novo que, Para se tomar objeto de ensino, passaré pelo processo de sua ‘transformagio em contetido de ensino. Notemos que a redugio do professor a executor se dé também no contexto em que 0 outro elemento da triade, o aluno, é tomado como uma espécie de receptéculo vazio, a ser preenchido pela instrucao escolar. A profissdo de professor emerge na histéria moderna sob 0 signo da divisao entre produgio de conhecimentos € transmissio de conhecimentos, ¢ a modemidade nao deixou de aprofundar esta divisdo. Digamos que até a segunda revolucéo industrial atingir todos 08 seus efeitos, de formas diversificadas entre centros e periferias, © Professor se define como aquele que sabe um saber produzido por outros e que o transmite a alunos. O modo de conceber a estes variou ao longo deste processo, desde a “tébula rasa” em que inscrever @ ividade ias dessa 85 instrugéo até o reconhecimento de sua capacidade agentiva no proceso de aprendizagem, processo de que o ensino deveria ou poderia ser derivado. Esta identidade social do professor, 0 sujeito que sabe © saber produzido por outros, e que o transmite, permanece ao longo da histéria, mais ou menos do século XVII até inicios do século XX. Desta identidade temos ainda resquicios, nas pequenas aldeias em que 0 professor & consultado inclusive sobre diferentes problemas, até mesmo de relagdes familiares. Quer dizer, 0 professor é um sujeito social que tem um saber e por este saber cle & respeitado. Ele transmite este saber e é pelo saber que tem poder, inclusive de aplicar castigos para filhos dos outros. Nao é incomum, pelo menos no Bra: que pais digam aos professores: "A senhora pode puxar por ele, pode pé-lo de castigo". E por este suposto saber que o professor esta autorizado a falar, a impor ¢isciplina e comportamentos. Neste tempo, coube a escola ¢ aos professores, de forma mais ou menos constante, mas sempre com diferentes matizes, organizar e seriar um conjunto de conhecimentos que a tradigao, e depois a ortodoxia escolar, considerou e considera essenciais a formagio dos sujeitos sociais. E nesta organizagao e seriagao constituiram-se préticas © saberes que a didatica, apoiada por outras ciéncias, foi registrando, analisando e tornando conhecimento. E 0s conhecimentos se foram avolumando a espera de uma nova divisdo social do trabalho... E com 0 desenvolvimento das tecnologias que, a partir da segunda revolucio industrial, e bem mais fortemente nos inicios do Século XX, outra divisio social do trabalho vai-se operar, construindo uma nova identidade do professor. Identidade cada vez mais aprofundada hoje pelas novas tecnologias da informagao: 0 professor ja nao mais se define por saber o saber produzido pelos outros, que organiza e transmite didaticamente a seus alunos, mas se define como aquele que aplica um conjunto de técnicas de controle na sala de aula Em certo sentido, numa metéfora extremamente forte, a nova identidade do professor é a identidade do capaz, do exercicio de uma capatazia, do controle do processo de aprendizagem da crianga. Se ha um deslocamento, digamos assim, na relagao triddica professor, aluno € conhecimento, este deslocamento se dé no tipo de atuagao do professor, pois a relagio do aluno com o conhecimento nao 6 mais mediada pela transmissio do professor, mas sim pelo material didatico posto na mao do aprendiz, cabendo ao professor controle do tempo, da postura e dos comportamentos dos alunos durante esta relago com 0 conhecimento através do material didactico. Quem wstrui 6 0 material didético. Ao professor compete distribuir o tempo, distribuir as pessoas, © verificar se houve “fixagao" do contetido, comparando respostas dos aprendizes com o “livro do professor", onde exercicios e tarefas estio resolvidos e oferecem a chave de correcao de qualquer desvio. Num mesmo gesto, uma nova identidade e uma fixagao dos sentidos. A profecia comeniana se coneretiza: 0 professor, mesmo “nao dotado pela natureza" pode ensinar porque tudo jé Ihe ¢ "dado": o que ensinar, como ensinar, os gestos a fazer e as respostas adequadas a aceitar... O que na fase anterior era de responsabilidade da escola e do professor - a transformagao do conhecimento em contetido de ensino - passa a ser agora atribuigio dos autores do material didatico, das equipes de producao editorial, etc. Restam ao professor controlar os tempos de contacto do aluno com o material, conferir as respostas segundo um modelo dado, chamar a atencio dos desvios comportamentais ou académicos* A telagio direta entre o aprendiz e 0 conhecimento através dos livros didaticos, do material didatico, s6 teve 0 sucesso que teve entre és, seguramente porque também se alteraram os préprios faremos em nossa memBrla as frequentes perguntas: yam?” "S leram?" "Mais trés minutos para acabar" +0 modelo produzido por esta segunda grande divisio social do trabalho perm texisténcia de professores leigos dando aula, professores formados em matemtica dando aula de portugues, e isso no Brasil nao é nas cidades subdesenvolvidas do ‘mas mesmo na cidade de Sio Paulo. Ha alunos de segundo geat que aulas, em escolas pb aulas nao fosse uma funglo de profissionais, mas uma espécie de biscate, de trabalho remuinerado, uma espécie de mesada que o pai jd no pode dar. Estudantes do ensino médio, professores do ensino fundamental. Afinal, basta aprender o livta. diditico e fazer 0 que esti prescrito, mandar fazer 0 exercicio, corrigit © exercicio segundo as resposta dadas no manual do professor, e manter com autoritarismo a disciplina. No estado cle Séo Paulo, o mais desenvolvido de todos, ainda em 2010 chamado professor substituto substitui em qualquer disciplina, nao importa qual tena sido sua formagao ini tecebendo salrios baixissimos, como se dar mecanismos de subjectivacao dos sujeitos. O cuidado de si torna-se uma responsabilidade do préprio aprendiz’. Quer dizer, ele tem que aprender a trabalhar com 0 material que o professor Ihe entrega, que a escola the entrega. E ele tem de cuidar de si préprio. E isto implicard intimeras mazelas que tém sido denunciadas pelo discurso critic: culpabilizagio do aluno pelo insucesso escolar, reproducio das realidades sociais, desvalorizagao das culturas escolarmente nao rentaveis, etc. Neste tempo ja nao é mais obrigagao do professor saber o saber Produzido pela pesquisa: esta é uma responsabilidade do autor do livro didatico, do material didatico. H4 uma nova instancia discursiva construida pelas novas relagdes de produgio. E nesta instancia séo seriados os contetidos de ensino como se os conhecimentos tivessem diferentes niveis. E esta seriagao em abstracto se impie como aquela adequada a faixas etarias, a estagios de desenvolvimento, etc. Abre-se todo 0 espago para um tecnicismo da transmissao dos conhecimentos feitos contetidos de ensino’. Mas o que me parece mais sutil, e que é Produto deste proceso de transformagao dos conhecimentos em contetidos de ensino é que aqueles sao hipéteses formuladas para responder a perguntas, enquanto os contetidos de ensino sé transmitidos como verdades. O que se constroi na ciéncia como hipétese, na escola vira verdade. __B © modo de exposigio desta verdade é uniforme - como a Propria verdade se existente o seria. Quer dizer, 0 prestigio da suposta “verdade cientifica”® se transfere também para o modo de sua * Estou usando muito livremente resultados dos estudos de “tecnologias do eu" 7 0 teenicismo dos fins da década de 1960 ¢ da década de 1970 esta retornando forlemente enire nés, especialmente na area do ensino de lingua materna, pelo trabalho de linguistas aplicados que t&m definido sequéncias didaticas pare aprendlizagem de todos e cada um dos géneros de discurso do repertirio dispontvel (sem os géneros afeitos precisamente 4 atividade em que estio envolvides os alunos: anotacoes, resumos, grades, quadros sinépticos, esquemas, et esquuecendo or isso mesmo © ensinamento primeiro da fonte a que supostamente recorre: o pensamento de Bakhtin). Pete * Em cléncia, sé ha verdade no interior de uma teoria. A verdade da ciéncia nao tem como seu pardmetro a realidade em si, pois esta é inacessivel enquanto tal como. 'mostram varios epistemélogos contemporaneos. im Foucault a propésito das 88 exposigio aos aprendizes. E como alguns alangam 0 sucesso trabalhando com o material que thes é entregue, quando ha insucesso, este € culpa do aluno. As avaliagdes de aprendizagem, que deveriam ser diagndsticos de ages a serem executadas no processo de ensino, indieagSes de caminhos a serem percorridos no aprender a ensinar a aprender, tornam-se verificagbes de fixagao de conteitdos e quando 0 insucesso surge, culpa é do aluno e nao do material com que ele tentou aprender. E que ensinar nao é mais um modo de constituir uma civilizagéo, mas um modo de controlar e restringir sentidos. E aprender deixou de ser uma afiliagao civilizacional para se tornar um euidado de si pelo qu se situar na estabilidade de um modelo de sociedade que se pensa absolutamente estabilizado e imutavel. Se 0 aluno nao aprendeu é porque nao estudou, nao quis aprender, tem deficiéncias e por isso ele mesmo ¢ 0 culpado por sua consequente situacao social. O enunciado que melhor resume 0 sucesso deste modelo de exercicio profissional de professor, e de forma de existéncia da escola, é proferido por pais que dizem "Meu filho nao nasceu para estudar". A escola conseguiu io s6 culpabilizar 0 aluno, mas também ideologizar seus pais. Escreve-se uma histéria de inculeagio da ideologia da incompeténcia, operagdo que atinge preferencialmente sujeitos de determinada classe social. E como a escola ensina 'verdades de forma verdadeira, pode-se propagar a ideologia de que a escola (e a educagio que ela fornece) ¢ 0 espaco privilegiado de construcio das igualdades sociais entre sujeitos desiguais. Se a alguém lhe foi dada a oportunidade e assim mesmo ele nao aprende, trata-se de incapacidade, qualquer que ela seja, ¢ em consequéncia a inserga0 social dela resultante nao deve ser considerada um problema da estrutura da sociedade, mas um problema individual, uma wcompeténcia para construir o seu proprio cuidado de si, j4 que a sociedade estruturada como esta teria oferecido, através da escola, a oportunidade de equalizagao das desigualdades produzidas pela estrutura social Foi neste modelo que nés nos criamos, seguramente ao menos a minha geragao. A escola como um lugar de ascensao social, que a estrutura na verdade permitiu a uns poucos para poder continuar mantendo sua prépria reproducdo. Ha que haver exemplos, responsdvel 0 préprio aprendiz para methor mas exemplos. Eu préprio me incluo com um destes exemplos, afinal sou filho de pai analfabeto, terceira geragio de imigrantes. E sempre que me mostram a possibilidade de ascensio via escolarizacao, eu me Pergunto pelos meus outros colegas de primeiro ano primatio. Onde esti 0 Alberto, meu colega de I’ ano, que se sentava na mesma carteira? Eram aquelas velhas carteiras escolares, um banco longo, que ocupavamos dois a dois. Onde estio aqueles que comigo conviveram, que eram do meu bairro e com os quais perdi 0 contato? Tenho noticias de apenas um, que morava préximo a0 centro, casa que causava invejas. Ele se tornou dentista. De mais ou menos trinta, dois gatos pingados bem sucedidos nos processos escolares. Mas nao é o Pequeno niimero de bem sucedidos, sucesso que escapa por entre as frinchas da estrutura, que motiva a critica ea crise da escola de hoje Este modelo de professor como sujeito que controla o processo da aprendizagem entra em crise nas duas iltimas décadas do século XX. E nds ainda estamos vivendo precisamente este momento de crise, cuja amplitude ndo esta deixando nada de fora. Esto em crise os sistemas de produgao: sobre o desemprego, jd nem se pode mais falar em ‘exército de reserva’ porque 0 modelo se constroi pela exclusio explicita; estio em crise os paradigmas cientificos: a época da incerteza implica retomadas de questées nunca imaginadas como questdes pelos cientistas positivistas de ontem; estio em crise instituigdes sociais milenares: valores sob 0s quais se constituiram as religides deixaram de ser orientadores de nossas condutas (0 medo do inferno, felizmente, reflui); enfim est em crise nosso modo de habitar 9 planeta: os problemas ecolégicos demandam uma revisio da relagio que mantemos com a natureza, Estamos vivendo um momento proximo aquele vivido nos inicios da modernidade. Ideologicamente, os discursos hegeménicos proferidos nao incorporam como problema estrutural seu 0 processo de exclusio cada vez mais forte e cada vez mais universal. Ao contratio, dio a entender que os \desempregados' tém que passar por novos processos de formagao para obterem lugar no mercado de trabalho, modificado pela tecnologia avancada. Como se re-orientagées profissionais fizessem aparecer novos postos de trabalho, sugados pela tecnologizagao da producao e pela reducao dos sujeitos capazes de 90 consumo. Como se 0 problema da exclusio fosse conjuntural e nao estrutural | A escola € chamada a responder um desafio que nao é seu, porque ja nao é mais um desafio proposto pela relacdo entre professor, alunos e conhecimentos, mas posto pela vertiginosa obsolescéncia de saberes e praticas produtivas. Em consequéncia assistimos no mundo inteiro reformas curriculares, surgimento de cursos répidos de treinamento profissional antes realizados no interior das fabricas, Criase uma pressa de formacio e paradoxalmente chama-se a escola para uma vocagao que nao é a sua: a de estacionamento provisério de mao de obra descartada pelos modos tecnolégicos globalizados de produgio. © paradoxal destes discursos, que aparentemente defendem uma sélida formacio, ¢ 0 esquecimento de que estio no desemprego intimeros profissionais ‘ontem competentes: estio A procua de emprego também engenheiros, ontem chefes de produgdo; esto & procura de emprego executives, ontem dirigentes empresariais. A sanha do lucto corta os mais altos salérios, e mais altos precisamente porque mais produtivos, mais competentes. Estes gerentes, chefes de setores, administradores, engravatados executives perderam a competéncia de um dia para outro? Numa noite? Com esse discurso, dé-se a entender que 0 desemprego ¢ somente nos niveis mais baixos, quando os cortes esto atingindo todos os niveis da *hierarquia empresarial. Obviamente, & entre aqueles que constituem a base da piramide social que mais se manifesta a excluséo: sempre coube & pobreza de muitos sustentar a riqueza de poucos. i Nesse contexto, a escola se faz, discursivamente, uma instituiggo ‘tébua de salvagao' E como ‘salvacio’ nao sobrevive enquanto conceito sem associar-se & ‘culpabilizagio’, a escola tem sido culpada pelo insucesso de sua formagao face as exigéncias do mercado. E as politicas educacionais ncoliberais, para além de suas reformas curticulares que se constituiram essencialmente pela definigio de pardmetros de conteiidos a serem ensinados e depois ‘cobrados’ nas avaliagdes nacionais e internacionais’, ndo souberam fazer mais do + Nunca a deminciaaniincio de Paulo Freite (1975) foi t3o atual a “edueagio bancitia” ¢ o modelo do neoliberalismo. 1 que propor sistemas de avaliacéo e avaliagdes de sistemas/redes de ensino, cujos resultados produzem hierarquizagSes das instituigdes de ensino, sinalizando para 0 ‘mercado consumidor’ quais as escolas nivel A, quais as redes mais preparadas, quais as regises melhor aquinhoadas. Estou fazendo referéncia & experiéncia brasileira, mas certamente 0 modelo nao é brasilei © mercado de trabalho esti-se tornando diminuto porque o desenvolvimento humano esta permitindo cada vez menos trabalho Para a obtencao dos mesmos resultados. O desemprego estrutural - ou 2 exclusio social como dejeto do modelo de produgio - é apenas mais um indicio de que estamos numa encruzi pensar 0 mundo e nele habitar. Seria absolutamente tolo imaginar que no entrecruzamento das ctises a escola nio estaria implicada. E a identidade da profissio de Professor permaneccria intocada. Felizmente estamos ultrapassando modelo de professor ‘controlador do processo de aprendizagem do aluno’, operador da parafernilia didético-pedagégica. Na crise, gesta. se 0 novo. Hi crise nos processos de producdo de conhecimentos, ha crise has formas de insergao social da juventude sufocada pela destruigzo dos lugares possiveis de trabalho e convivio. Nao poderia deixar de haver crise na identidade da profissao de professor. E a construgao de uma nova identidade nio se processaré simplesmente na redefinigso das formas de relagdes entre a triade professor, alunos, conhecimento, E como nossa forma de conhecer o mundo, as gentes e suas relagdes 6 constitutiva daquilo que somos, esta nova identidade em construgio Para o professor tera profundas relagées com as novas formas dos conhecimentos: sempre parciais, locais, incertos. Talvez nossa grande aprendizagem com os novos paradigmas cientificos e culturais seja a aprendizagem da instabilidade. Por isso nossa nova identidade Profissional se constituiré no amago da solugio do conjunto das demais crises, ¢ uma nova identidade 6 jé forca de construco de solucdes. Se apostarmos - como gostaria de apostar - que a identidade Profissional do professor € definida pela estrutura global da sociedade, mas seu exercicio profissional é também forga propulsora de transformagées, talvez possamos apontar para a inversio de flecha iro. ‘ada no nosso modelo de 92 na relacao do professor e alunos com a heranga cultural como 0 ponto de flexdo nesta construgio identitéria. Esta inversao vem sendo indiciada por nogdes como a de professor reflexivo, pelas nogdes de professor pesquisador, pela defesa da pesquisa-acio como forma de estar na sala de aula de todo professor, pelas parcerias construidas nas investigaSes participantes, etc. Heoras | nea desist aid relagio com a heranga cultural? Passado 0 tempo das ‘escolas de sébios’, o modo de relagao com a heranga cultural, por nés hoje recebica, no campo das ciéncias, como uum conjunto de disciplinas - a filosofia, a algebra, a geografia, a histéria, a literatura, a quimica, a fisica, a matematica... - é a de nao produtores de ciéncia e cultura, mas de sujeitos que dela se apropriam, especialistas em uma das gavetas/disciplinas. Por longos anos estudamos a disciplina que nos & ensinada; por longos anos vamos as fontes disciplinares e aprendemos mais do que nos é ensinado: estamos prontos, mas nao acabaclos. Vamos para o exercicio profissional e nele a todo momento estamos retornando as fontes, retornando a cursos de formagio continuada, ¢ ultimamente retornando aos bancos de alunos para aprender a manusear as ‘mais, recentes descobertas metodolégicas’, as ‘mais recentes receitas de ensinar'... Enfim, de uma forma ou outra, voltamos a heranga para melhor apreendé-la. E tendo aprendido o jé pronto, estarfamos aptos a melhor transmitir. De forma caricata, poderiamos imaginar este tipo de relacdo: a cabega do professor, vazia por natureza, é enchida pelo aprendido na formagio inicial,¢ isto & transmitido para a cabeca do aluino, também vazia por natureza. Como neste processo de transmissio (de trabalho!) a cabeca do professor vai-se esvaziando, retorna-se & formagao continuada para recarregar a cabeca, que novamente se esvaziard na transmissao e assim sucessivamente. Este tipo de relacao pode ser representado pela seguinte figura: 93 Figura HERANGA CULTURAL gua T_Histéria [ Geagrafia_| Matematica | Filos a e Professor Creio que hé necessidade de invertermos a flecha desta relagio. A heranga cultural continua disponivel, mas ela deve ser entendida como de fato 6: ndo apenas um conjunto de disciplinas cientificas, mas um conjunto de conhecimentos ¢ de saberes. Os primeiros incluem as disciplinas ¢ também seus métodos de pesquisa, seus resultados ¢ seus fracassos, seus caminhos no lineares. Os segundos sio constituidos pelas préticas sociais, nao chegam a sistematizagio, mas orientam nossos juizos e muitas de nossas agées quotidianas. O saber € produto das préticas sociais, o conhecimento é a organizagio desse Produto das praticas sociais de forma sistemética, racional, na atividade cientifica!® Como se sabe, estamos hoje cada vez mais indo em busca de saberes que perdemos. Por exemplo, na dtea da satide, estamos recuperando os saberes expressos pela medicina popular dos chés, dos banhos, dos cheiros, ete. Neste sentido, nés estamos nos debrucando sobre a histéria, ¢ a0 mesmo tempo estamos organizando 0s saberes dlisponiveis para construir um futuro distinto daquele que nosso modo moderno de ser pretendia descattar, Quai inverséo de "© Faco aqui referencia, de forma "e, & distingio entre conhecimentos € 94 flecha a se operar nos processos de ensino? Creio que esta inversio, 20 mesmo tempo que enriquece o que temos considerade como heranga cultural valida, pretende que a relagao com o vivido, que é a base da aprendizagem, inspire o processo de ensino. Trata-se de reencontrar 0 vivido para nele desvelar 0 saber auxiliado pelos conhecimentos disponiveis na heranga cultural. Ao contrério do lema "aprender para viver’, trata-se de assumir efetivamente que "vivemos aprendendo" E “viver aprendendo” nao descarta a heranga cultural. Ao contratio, demanda que a usemos e para usé-la é preciso conhecé-la. $6 que a suposigio que orientou a flecha da transmissao foi que 0 uso do conhecimento era posterior a0 processo da aprendizagem de seu todo. A inversio da flecha supde concomitancias, interesses locais na heranga cultural ~ © nao uma parte completa selecionada como contetido. Esta inversao da flecha pode ser representada pela figura abaixo: Figura 2 HERANGA CULTURAL [ Geagrafia | Mate Filosofia Lingua vivide vivide Na inversao da flecha, o professor do futuro, a nova identidade a ser construida, nao ¢ a do sujeito que tem as respostas que a heranca cultural jé deu para certos problemas, mas a do sujeito capaz de considerar 0 seu vivido, de olhar para o aluno como um sujeito que também ja tem um vivido, para transformar o vivido em perguntas. O ensino do futuro nao estaré lastreado nas respostas, mas nas 95 perguntas. Aprender a formulé-las é essencial. Na li “tudo no mundo esté dando respostas, perguntas”. As respostas existentes pata problemas do passado estig disponiveis ‘na rede de computadores, acessiveis na ‘navegagao interndutica’. Aprender nao é se tomar um depésito de respostas jg dadas, Saber nio é dispor de um repertorio de respostas. Saber é ser capaz_de compreender problemas, formular perguntas e saber caminhos para construir respostas. A melhor homenagem que Podemos prestar aqueles que a isto se dedicaram é sabermos as dificuldades dos caminhos da elaboragio das perguntas © das respostas. E somente quem aprende percorrer caminhos inexistentes, porque eles se fazem no percurso, seré capaz de compreender as Tespostas e os caminhos antes percorridos E com as maos cheias de perguntas que melhor nos orientamos no manuseio da heranca cultural. A ela vamos em busca de percursos feitos para responder a outras perguntas. A ela vamos também em busca de respostas que jé foram dadas as perguntas que formulamos: nao se trata de reinventar a roda! O que importa aqui é que as perguntas dirigem a selegio, construgdo ou reconhecimento da inexisténcia de respostas. Creio que o ensino tem dado respostas a alunos que nao conhecem as perguntas. Temos aprendido respostas sem sabermos as perguntas que a elas conduziram, Permitam-me raciocinar com um exemplo, extraido do convivio com professores da cidade de Sao Paulo. Como vocés sabem, a cidade de Sao Paulo é uma cidade cheia de problemas, com os treze ot mais milhdes de habitantes. Uma hora de chuva constante alaga marginais, Produz inundagées em bairros perifiricos, engarrafa o transito etc, Em consequéncias das chuvas e das enchentes, altera-se o funcionamento da escola, Um acontecimento maior se sobrepée ao dia a dia da escola. E um acontecimento infeliz (parece ser necessaria uma catastrofe para que a escola se dé conta dos acontecimentos), mas um acontecimento que consegue ‘tocar’ na rotina escolar: muitos alunos nao conseguem chegar até a escola, varios professores chegam atrasados ou simplesmente n&o chegam; de muitas turmas, nenhum aluno, de outras, alguns poucos, E hd professores ausentes: impossivel realizar a troca de turnos previstas pelo ‘hordrio das aulas'. Que fazer? Nestas isdo de Saramago, © que demora ¢ 0 tempo das 96 ocasi6es, professores assumem alunos que ndo sio seus, constituem-se grupos independentemente das turmas e das faixas de saberes supostos ¢ de idades vividas. Improvisam-se algumas atividades. E todos conversam sobre 0 que ests acontecendo, sobre a chuva, sobre a inundagao em seu bairro, sobre as dificuldades de chegar a escola, etc. E todos vivem © medo e a inseguranga: como voltaremos para casa? ‘Todos de olho na chuva, torcendo para que pare! Terminada a chuva, desimpedido o trénsito, 0 sol raiando: 0 dia seguinte se torna dia de rotina normal. E na escola tudo volta a ser como dantes no quartel de abrantes: abre-se 0 livro na unidade prevista, lé-se 0 texto — quem sabe um poema sobre "Meu Cao Veludo"? - as sinetas voltam a tocar seguindo o horatio das aulas, 05 tumos se repetem, os professores se revezam e os alunos ‘estudam’ o previsto. De ontem, nada sobra! Nenhuma pergunta. Por que ha enchentes? Por que hd inundagGes na cidade? O vivido ontem, hoje nio é nem lembranga... O vivido nao ¢ interrogado. Pois a proposta de inversio da flecha demandaria tomar o acontecimento como lugar donde vertem as perguntas. Imagine uma aula em que se interrogue sobre acontecido, Cada crianga volta para a escola cheia de histérias, de coisas a narrar, de peripécias a comentar. Como foram as coisas c4, como foram lé: curiosidades € vida. Para comegar a escrever uma resposta sobre as razées de uma hora de chuva tropical causar tais transtornos, seré necessario elaborar respostas, porque nao ha uma resposta pronta numa das gavetas da heranga cultural. Seré necessério misturar conhecimentos € saberes, ultrapassar os limites de disciplinas, pasando da ecologia para a antropologia e os modos de ocupagéo do espaco urbano, para a geografia e 0s modos de produgao industrial e 0 tratamento de seus detritos, etc. Mas é preciso ultrapassar 0 senso comum. E ai estd a fungio do professor, que sozinho nao precisa dar conta dos sentidos todos de cada um dos elementos constituintes da resposta 4 pergunta formulada, mas ¢ seu dever organizar com os alunos mais perguntas € buscar em colegas, em profissionais, nas fontes, na heranca cultural, 08 esclarecimentos disponiveis: é aqui que a pesquisa comeca, é aqui que 0 caminho comesa a ser construido e ele somente passa a ter existéncia depois de percorrido, na narrativa que se escreve deste processo de produgao. Enfim, trata-se de pensar 0 ensino néo como 97 aprendizagem do conhecido, mas como produgdo de conhecimentos, que resultam, de modo geral, de novas articulagdes entre conhecimentos disponiveis. Por fim, um segundo exemplo. Busco-o no processo de produgio de textos. O texto é produto de um trabalho de escrita que nao se faz seguindo regras predeterminadas. Todo texto pertence ao género que Ike fornece uma ossatura, mas 0 mero conhecimento da ossatura nao leva & redacao do texto em si. Aliés, 0 conhecimento explicito desta ossatura pode resultar da redacao, e o conhecimento prévio pode ser 0 impecilho & redagdo. Escrever nao é uma atividade que segue regras Previstas, com resultados de antemao antecipados. Escrever um texto exige sempre que o sujeito nele se exponha, porque ele resulta de uma ctiagio. Por isso cada texto difere do outro, apesar de tratar do mesmo tema e estar expresso na configuracdo de um mesmo género. A escrita se caracteriza pela singularidade de seus gestos. A esta singularidade corresponde outra singularidade, a da leitura enquanto construcao de sentidos. Mas ha condigdes para que a escrita se dé: um sujeito somente escreve quando tem o que dizer, mas nao basta ter o que dizer, ele Precisa ter 'razOes para dizer 0 que tem para dizer. Muitas vezes temos algo para dizer a alguém, mas temos razSes para nao dizer. Mas ainda nao basta eu ter 0 que dizer e ter razSes para dizer, eu preciso ter claro Para quem eu estou dizendo. Nos processos de producdo de textos, nas escolas, 0 aluno nao tem para quem dizer o que diz, ele escreve 0 texto nao para um leitor, mas para um professor para quem ele deve mostrar que sabe escrever. Se tivermos resolvido 0 que temos a dizer, para quem dizer, razées para dizer, entio estaremos em condigdes de escolher estratégias de dizer, porque elas dependem de nosso assunto, de Rossas razSes, de nossos interlocutores. Afinal, o estilo é 0 homem Para quem se escreve e nao 56 0 homem que escreve. O trabalho com as estratégias de dizer nao pode ser tratado in vacuo, no vazio, E neste sentido que a drea de produgio de textos também exemplifica a inversao da flecha de que vimos tratando: o professor somente ensina a escrever se assume os processos de escrever do aluno, tornando-se dele um co-enunciador, um leitor privilegiado e atento, um colaborador capaz de encorajar 0 outro a continuar buscando a 98 melhor forma de dizer 0 que quer dizer para quem esté dizendo pelas razGes que o levam a dizer o que diz. ‘Como cada texto singular, toda atividade de sua produggo merece o acompanhamento deste que é co-autor de seus alunos. E nos textos aparecem todos os problemas que podem ser enfrentados no campo da linguagem: os sentidos e as formas comuns ou inusitadas de expressd-los. Assim, a atengio ao acontecimento pode chegar ao detalhe do linguistico no seu sentido estreito. Sobre isso, acrescento uma histéria de sala de aula Lendo os textos de seus alunos, o professor detectou grande frequéncia de problemas no empredo de ‘x’ e ‘ch’ (como se sabe, em portugués um mesmo fonema pode ter varias formas de registro grafico). Apresentou a seus alunos uma lista das palavras que eles mesmo haviam usado, ora com x, ora com ch. Observando esta lista, um dos alunos propés uma regra pratica: “escreve-se com x sempre que antes vem um ‘n’: enxergar, enxachada, enxame.... O professor contrapés: “mas temos gancho!” O aluno modificou sua regra: "é sempre que vem ‘en’ antes”. Nova réplica do professor: “e enchente?”. A supreendente resposta do aluno, depois de um tempo de reflexao foi “é que ja tinha cheio”. Para além de todo um processo de observacao, formulagio de hipétese, infirmagdo e confirmagéo de’ hipétese — raciocinio fundamental na aprendizagem, os alunos ~ porque jé havia participacao do grupo ~ mostraram uma compreensio intuitiva de um Processo gramatical: 0 de formagao de palavras que poderia ter sido tematizado em aula, independentemente do programa previsto. Estar atento aos acontecimentos é perceber estes momentos dbvios de avancar intuiges e chegar a conhecimentos ja sistematizados que podem, também eles, ajudar no processo de compreensio da ortografia da lingua portuguesa no muito dela que nao é idiossincrética como muitos imaginam. Assim, questdes que se apresentam nos pares como peche(pexe)/peixe; cacha (caxa)/caixa; bejo/beijo; quecha/queixa etc. poderiam ter sido trazidas a baila neste momento de raciocinios sobre o funcionamento da ortografia Associar a consciéncia ortografica com a formagio de palavras seria aproveitar a oportunidade que o acontecimento da aula proporcionou. Obviamente, a complexidade do mundo letrado, e a complexidade da escrita fazem da leitura e da escrita uma tarefa de toda a escola, de qualquer érea de conhecimento. Aprender a ler um problema de matematica, aprender a formular um problema de matematica no € uma questo somente de forma linguistica, Transferir estas questdes para 0 professor de lingua portuguesa é imaginar a lingua como uma forma sem contetido! A transformagio que a inversio da flecha na relagdo com a heranga cultural exige que cada sujeito - professor ¢ alunos - se tome autor: refletindo sobre 0 seu vivido, escrevendo seus textos estabelecendo novas relacdes com o jd produzido. Isto exige repensar © ensino como projeto, e para dar conta de um projeto nao se pode esporadicamente conceder lugar ao acontecimento. © projeto como um todo tem de estar sempre voltado para as questées do vivido, dos acontecimentos da vida, para sobre eles construir compreensies, caminho necessirio da expansio da propria vida. As aprendizagens construidas ao longo do proceso de escolaridade podem ser diferentes entre a turma A, B, ou C: isto nao importa", 0 que importa & aprender a aprender, para construir conhecimentos. Ensinar nao & mais transmitir e informar, ensinar é ensinar 0 sujeito aprendente a construir respostas, portanto 56 se pode partir de perguntas. Por isso a inversio da flecha. Poderemos nao Produzir as respostas desejadas, mas somente nossa meméria de um futuro outro para as geragées com as quais hoje trabalhamos poderd iluminar nosso processo de construgio desta nova identidade: a atengo ao acontecimento é a aten¢do ao humano e a sua complexidade. Tomar a aula como acontecimento ¢ eleger o fluxo do movimento como inspiracao, rejeitando a permanéncia do mesmo ea fixidez mérbida no passado. Certamente esta perspectiva transforma de modo profundo nossas formas de organizagdo curricular: uma grade com tudo previsto e setiado. Mas nao faz desaparecer o planejamento local e global do proceso de ensino/aprendizagem. Focalizado na aprendizagem, 0 ensino nao pode ter um planejamento inflexivel. " Esta uniformidade somente importa © interessa aos processos avaliativos contemporaneos. Supostamente todos deveriam saber as mesmas coisas € nos -mesmos tempos para devolverem o ‘depésito’ efetuado pelo sistema... Claro que desconsiderando as diferencas de entrada, as condigdes sociais distintas, et 100 Importa muito mais aprender a aprender do que aprender 0 jé sabido € definido! O conhecimento sistematizado deve fazer parte do percutso € nao ser o fim do percurso. ‘Tomando como essencial que o ensino de lingua materna trabalha falar, ler e esctever & que nas condigdes ras, as duas tiltimas necessariamente ocorrem na escola ea partir dela vai se tornando uma pratica social mais ampla, a ea escrita tornam-se mais relevantes. Ora, se 0 objetivo final é que os sujeitos escolarizados consigam compreender e interpretar 0 que em, e sejam capazes de elaborar textos adequados as situagdes em nvolvidos, entdo as unidades basicas do ensino serao sempre a leitura, a produgio de textos ¢ a reflexio sobre os recursos exptessivos mobilizados nestas duas atividades. Um projeto de trabalho compactuado com o grupo de alunos mento global. A atividade local, oriunda jeto, pode ser extremamente variada, garantindo desenvolvimentos das capacidades de reflexao na leitura, na escrita e na mobilizagio de recursos expressivos. Admitir a variedade nao é admitir 0 espontaneismo: 0 tabalho com projetos o afasta. Nao admitir a variedade em nome da uniformidade é tratar de forma igual questoes diferentes e sujeitos diferentes. do desenvolvimento do pi

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