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Teoria das esferas

Conversando comigo mesmo sobre a poética do espaço1


Peter Sloterdijk* Tradução de Giovane Martins** e Vitor Ferreira Lima***

Senhor Sloterdijk, como parte de sua trilogia sobre esferas, você propõe a criação de uma
teoria que constrói espaços como categorias antropológicas chave. Por que essa ênfase?

Nós temos que falar de espaços porque os humanos são, eles-mesmos (them- selves), um
efeito do espaço que criam. A evo-lução (evo-lution) humana só pode ser entendida se nós
também tivermos em mente o mistério do insulamento/fabricação de ilhas
[Insulierungs-geheimsis] que então define a emergência de humanos: humanos são animais
domésticos que domesticaram a si mesmos em incubadoras de culturas primevas. Todas as
gerações antes da nossa estavam cientes de que você não pode acampar do lado de fora, na
natureza. Os acampamentos dos ancestrais do homem, datando de cerca de milhões de anos,
já indicavam que eles estavam distanciando a si mesmos de seus arredores.

No terceiro volume de sua trilogia há um longo capítulo sobre arquitetura, “Interiores:


arquitetura de espumas”. Por que você escolheu essa provocativa metáfora?

Primeiro de tudo, por uma razão filosófica: nós simplesmente não somos capazes de
continuar a velha cosmologia da velha Europa que se apoiou em equacionar casa e lar com
mundo. A metafísica clássica é um fantasma baseado em um tema implícito que foi realçado
somente em alguns lugares – por Hegel e Heidegger, por exemplo –, nomeadamente que o
mundo precisa ser ele mesmo construído como
1 Agradecemos a gentileza da permissão tanto do autor quanto da Harvard Design Magazine,
para tradução desta entrevista, originalmente publicada em Harvard Design Magazine,
Summer 2009, Number 30. (N. T.)
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possuindo características de uma casa e que as pessoas na cultura ocidental deveriam ser
compreendidas não somente enquanto mortais, mas também enquanto residentes de casas.
Sua relação com o mundo em sua inteireza é a de habit-antes (inhabit-ants) em um prédio
abarrotado chamado cosmos. Então, as quest-ões (quest-ions) são estas: por que o
pensamento moderno deveria dar tchau a essa equação entre mundo e casa? Por que
precisamos de uma nova imagem para designar como homens modernos vivem em
contêineres sociais e arquitetônicos? Por que eu proponho o conceito de espumas?
A resposta mais simples é esta: porque, desde o Esclareci-mento (Enlight-ment), nós não
precisamos de uma casa universal para considerar o mundo um lugar digno de se habitar. É
suficiente uma unité d'habitation, um amontoável número de células habitáveis. Através do
tema da célula habitada, posso manter o imperativo esférico que se aplica a todas as formas
de vida humana, mas que não pressupõe totalização cósmica. O amontoado de células em um
bloco de apartamento, por exemplo, não gera mais a clássica entidade casa/mundo, mas uma
espuma arquitetônica, um sistema multicâmara constituído de mundos pessoais relativamente
estabilizados.
Seria essa deterioração do mundo-casa ou da esfera totalizante em bolhas de espuma uma
imagem de entropia?
Ao contrário, na modernidade, é estabelecida uma complexidade mais profunda que aquela
possível sob a clássica noção de unidade. Nós não podemos nos esquecer que a metafísica é o
campo de sólidas simplificações e que, portanto, possui um efeito consol-ador (consol-atory).
A estrutura da espuma é incompatível com um mindset monoesférico; o todo não pode mais
ser retratado como um todo redondo e abrangente. Deixe-me utilizar de uma anedota para
indicar a mudança significativa: em suas memórias, Albert Speer recorda que os designes
para a gicanto-mânica (giganto-manic) nova Chancelaria do Reich, em Berlim, originalmente
previu uma suástica coroando a cúpula, que teria cerca de 290 metros de altura. Em um dia de
verão de 1939, Hitler, então, falou: “A coroa do maior prédio do mundo tem que ser a águia
sobre globo”. Esse comentário deveria ser levado como atestando a restauração mais brutal
do pensamento monocêntrico imperial – como se Hitler tivesse, por um momento, intervindo
na agonia da metafísica clássica. Em contraposição, por volta de 1920, em suas reflexões
sobre os
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fundamentos da Biologia Teórica [Theoretische Biologie], Jakob von Uexküll já tinha
afirmado: “Foi um erro acreditar que o mundo humano consti-tuiu (consti-tuted) um estágio
compartilhado para todas os seres vivos. Cada ser vivo tem o seu próprio estágio especial que
é tão real quanto o estágio especial que possuem os humanos... Essa percepção nos oferece
uma visão completamente nova do universo como algo que não consiste em uma única bolha
de sabão que tenhamos enchido tanto que fomos bem além de nossos horizontes e assumido
proporções infinitas e que é, ao invés disso, constituído de inúmeras bolhas de sabão, uma
seguida da outra, que se sobrepõem e se interseccionam em todo lugar”. O próprio Le
Corbusier utilizou a imagem da bolha de sabão para explicar a essência de uma boa
construção: “A bolha de sabão é completamente harmônica, caso o sopro nela contido seja
distribuído igualmente, e bem regulada internamente”2. Esta declaração poderia ser
considerada o axioma da esferologia: o espaço vital só pode ser explicado em termos da
prioridade da parte de dentro.
Em sua exploração da “arquitetura da espuma”, você escreve que a modernidade,
explicitamente, lida com a questão da residência. O que você quer dizer com isso?
Aqui, estou desenvolvendo uma ideia que Walter Benjamin se referiu em seu Arcades
Project. Ele parte da assunção antropológica de que as pessoas, em todas as épocas,
dedicam-se a criar interiores e, ao mesmo tempo, procura emancipar esse tema de sua
aparente atemporalidade. Então, ele pergunta: como o homem capitalista do séc. XIX
expressa sua ânsia pelo interior? A resposta é esta: ele usa a tecnologia mais avançada para
orquestrar a mais arcaica das necessidades, a necessidade de imunizar a exist-ência
(exist-ence), ao construir ilhas protetoras. No caso da galeria (arcade), o homem moderno
opta por vidro, ferro forjado e um conjunto de peças pré-fabricadas para construir o interior
mais abrangente possível. Por essa razão, O Palácio de Cristal de Joseph Paxton, erguido em
Londres, em 1851, é a construção paradigmática. Ela forma o primeiro hiperinterior que
oferece a perfeita expressão da ideia espacial do capitalismo psicodélico. É o protótipo do
interior de todas os posteriores parques
2 [Ver une Architecture, 1923]
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temáticos e arquiteturas de eventos. A arquitetura anuncia a abolição do mundo externo. Ela
abole mercados de fora e os traz para dentro, para uma esfera fechada. Os tipos espaciais
antagonistas do salão e do mercado formam um híbrido. Isto é o que Benjamin considerou tão
intelectualmente excitante: o cidadão do séc. XIX procura expandir sua sala de estar para um
cosmos e, ao mesmo tempo, imprimir a forma dogmática de um quarto ao universo. Isso
provoca uma tendência que é aperfeiçoada no design de apartamentos do séc. XX, bem como
no design de shoppings e estádios – esses são os três paradigmas da moderna construção, isto
é, a construção de microinteriores e macrointeriores.
Le Corbusier uma vez disse que tínhamos que escolher entre revolução e arquitetura. Ele
optou pela arquitetura. Em sua interpretação, isso significa que ele votou pela explicação de
condições residenciais?
Revolução é simplesmente a palavra errada escolhida para descrever explicação. Um
engenheiro sempre opta pela melhor tecnologia. Tudo que é bem-sucedido é operacional,
enquanto que fases revolucionárias não chegam a lugar algum, durante o tempo em que não
contiverem habilidades potenciais reais. Esse é o motivo pelo qual ninguém pergunta hoje
que programa está sendo anunciado, mas que programa está sendo escrito. A escrita é um
arquétipo da habilidade: a invenção da escrita marca o início da subversão operacional do
mundo como ele existe. Apenas ela é efetiva em popularizar modos novos de lidar com as
coisas. Incidentalmente, os apartamentos modernos estão cheios de eletrodomésticos técnicos
que explicam a vida no lar. As ferramentas atuais não mais possuem mãos, porque as mãos
pertencem a um passado fora de moda, entregues a aparelhos com botões: chegamos ao
mundo de operações de ponta de dedo.
Para retornar a Benjamin: em que medida devemos ler essa referência aos interiores maiores
como uma explicação para o capitalismo?
Assim como Freud tentou explicitar os sonhos, Benjamin propôs um tipo de interpretação
onírica do capitalismo. Meu trabalho explicativo se refere ao dinamismo espacial de nosso
estar-no-mundo. Eu quero mostrar como toda forma de espaço criado
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leva a um problema de projeção. Humanos são animais que gostam de se movimentar, que
mudam de quartos, espaços, até mesmo de elemento no qual vivem. Eles sempre vivem no
“movimento de A para B, e de B para A”, para citar Andy Warhol, e eles são do modo que
são porque sempre carregam consigo, a cada novo espaço, a memória de um espaço diferente
que eles previamente estiveram. Em outras palavras, você não pode criar um espaço
inteiramente neutro e não pode inventar um espaço inteiramente novo; você sempre gera
espaços diferenciais que são equipados (out-fitted) em contraste com um espaço anterior
diferente. O homo sapiens possui um dinamismo projetivo que se deve ao fato de nossa
espécie ser equipada com memória de situações pré-natais.
Estou certo em pensar que esse pré-natalismo é o leitmotif na primeira seção do seu projeto
Esferas, ao qual você intitulou Bolhas?
Esferas I é essencialmente dedicado a elaborar um sólido conceito de intimidade. Com essa
finalidade, desenvolvo um movimento explicitamente regressivo com o objetivo de abordar o
tópico do ser-em (being-in), em marcha à ré (como haveria se passado). Eu primeiro abordo o
fenômeno da interfacialidade. Deixe-me explicar: caso as pessoas se olhem entre si, surge um
espaço não trivial, que não pode ser construído em termos físicos ou geométricos – o espaço
interfacial. Aqui, não ajuda mesmo se eu me sirvo de uma fita métrica para determinar a
distância entre a ponta do meu nariz e o seu nariz. A relação interfacial cria uma relação
espacial de fato única. Eu descrevo a última em termos de uma interfacialidade mãe/criança,
algo que podemos estudar no reino animal também. Em meu próximo passo, tento
inter-pretar (inter-pret) as imagens das relações inter-cordais (inter-cordial) que emergem
quando as pessoas estão ligadas umas as outras de modo tão efetivo que dois corações
formam um espaço comum de ressonância – aqui, o fator metáfora aumenta. E então eu vou
na ponta dos pés até a mais íntima das relações, aquela entre mãe e criança: nesse processo,
eu explico como mulheres são unidades arquitetônicas – ao menos se encaradas sob a
perspectiva da vida nascente.
Corpos de mulheres são apartamentos! Agora, por trás dessa tese bastante chocante,
encontramos uma perspectiva um tanto dramática sobre história natural. Entre insetos,
répteis, peixes e pássaros – isto é, entre a grande variedade de espécies – o ovo
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fertilizado, o portador da in-formação (in-formation) genética, é posto em um ambiente
exterior que vagamente possui as propriedades de um útero ou ninho externos. Agora, algo
muito incrível acontece na linha evolucionária que leva até os mamíferos: o corpo das fêmeas
da espécie é definido como um nicho ecológico para a sua descendência. Isso leva a uma
dramática virada interna na evolução. O que nós vemos é um uso dual das fêmeas de uma
espécie: de agora em diante, elas não são somente sistemas de ovos postos (em um senso
metabiológico, feminilidade significa a fase bem-sucedida de um sistema de ovulação), mas
elas põe os ovos dentro de si próprias (them-selves) e tornam seu próprio corpo disponível
como um nicho eco-lógico (eco-logical) para sua descendência. Desso modo, elas se tornam
mães animais integradas. O resultado é um tipo de evento que não existia antes no mundo:
nascimento. É o proto-drama que forma o que vai da partida do ambiente total primário até a
chegada como um indivíduo. Assim, o nascimento é um tipo de evento biológico tardio e tem
consequências ontológicas. A expressão “ser nascido” (to be born) enfatiza o lado animal; a
expressão “ver a luz do dia” enfatiza a diferença existencial. Uma lógica bastante explícita é
necessária para explicar isso.
Você está dizendo que a projeção da experiência primária básica opera em todas as atividades
arqui-teturais (arch-tectural) posteriores?
Exatamente. Aqui o lado criativo da projeção emerge. Projeção, obviamente, não se refere,
como em psic-análise (psicho-analysis), aos meros sentimentos (isto é, às afetações
confusas), mas ao processo de criação espacial per se. Se nós perguntarmos, então: que
interiores os seres desejarão ter se eles carregarem consigo as marcas de terem nascido?
Então a resposta deve ser: eles optariam, sem dúvida, por interiores que os permitissem
projetar um traço do estado arcaico de projeção em suas construções de conchas tardias. A
construção de conchas para a vida cria uma série de repetições do útero em ambientes ao ar
livre. Arquitetos precisam entender que eles estão no meio entre biologia e filosofia. Biologia
lida com o meio ambiente; filosofia, com o mundo.
Mas isso não explica a grande diversidade de necessidades espaciais humanas. Nem todos os
indivíduos repercutem o desejo de um “estado arcaico de
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proteção”, nesta forma. Quando em espaços pequenos, muitas pessoas se sentem presas e
desenvolvem respostas claustrofóbicas. Poderíamos dividir as pessoas entre habitantes de
cavernas e moradores de árvores – para umas, é o amor à concha que conta; para outras, o
amor à espacialidade.
Eu não poderia ter dito isso melhor. A teoria das esferas não busca explicar tudo. Ela não é
uma teoria universal, mas uma forma explícita de interpretação espacial. Aliás, você pode dar
conta de todas as maneiras de diferentes tipos de espaços a partir do ponto de vantagem da
pré-natalidade – grandes espaços oceânicos de um lado e espaços confinados infernais do
outro. O Esferas I é endereçado aos fenômenos micro- esferológicos em geral. Estes
fenômenos são sempre interpessoais em estrutura, e o relacionamento diádico me oferece,
aqui, o paradigma. Mostro como deveríamos construir a díade humana e segui-la de volta até
a proto-intersubjetividade pré-natal. A descoberta, aqui, é a de que, inicialmente, o
relacionamento não é tanto mãe/criança, mas sim criança/placenta. A duplicação original tem
lugar em um nível pré-pessoal, pelo vínculo formado pelo assim chamado cordão umbilical
psico-acústico. Aqui, eu me inspiro no pensamento de Alfred Tomatis e outros autores que
têm arado este campo complicado3. Eles relacionam o ouvido fetal como o órgão de ligação
primária. Isso é bastante irritantemente excitante para aqueles que aceitam o postulado, e
absurdo para aqueles que não acreditam que há um problema aqui.
Qual o papel que desempenha, aqui, o ato da explicação?
A explicação é uma matéria não apenas dos instrumentos conceituais que desenvolvemos
para iluminar os fenômenos da vida – tais como a habitação, o trabalho e o amor –, ela não é
só um processo cognitivo. Pelo contrário, está ligada à elaboração de verdade. Isso pode
apenas ser alcançado com o uso de uma lógica expressiva, ou uma lógica de produção. É
desnecessário dizer que aqui eu estou seguindo a tradição da antropologia marxista e/ou
pragmatista. Se for verdade que toda a história natural é necessária, a fim de explicar a
formação da mão humana (ou melhor, a diferença entre pata e mão), então é do mesmo modo
verdadeiro que nós precisamos de toda a história cultural para explicar a diferença entre
ruídos e linguagens.
3Cf. Alfred A. Tomatis, The Conscious Ear. Barrytown, NY: Station Hill Press, 1991.
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Nem tudo que implicitamente existe precisa ser tornado explícito. Uma explicação cobre
apenas aquelas partes do contexto da vida que podem ser tecnicamente reconstruídas. A
hipótese subjacente do meu empreendimento é uma proposição metabiológica: o que
chamamos de tecnologia repousa sobre a tentativa de repor os sistemas biológicos e
imunológicos sociais implícitos com sistemas imunológicos sociais explícitos. Você precisa
entender o que você quer repor melhor do que um mero usuário entende. Se você deseja
construir um protético, você tem de ser capaz de definir a função do órgão a ser substituído
mais precisamente do que se você usa o original. Aqui, você se move da afirmação funcional
real para o nível do geral e então volta para o possível equivalente funcional. E você pode
reconhecer os funcionalistas pelo fato de que eles sempre fazem duas perguntas: em
princípio, o que o sistema alcança nesta forma atual? E, finalmente, o que poderia ser feito
em vez disso?
Os arquitetos são muito bons nisso. Quando constroem uma residência privada, perguntam:
quais características este espaço privado deve ter? Do que ele deve ser capaz? Ele é, acima de
tudo, um espaço protetor, que proporciona alívio. Como podemos representar isso com meios
técnicos? Os arquitetos provavelmente pensariam: “precisamos construir lugares fofinhos!”
E isso provavelmente não estaria muito longe do alvo. Se você perguntar o que um lugar
fofinho representa, então em termos de análise funcional você chega no conceito de
“primazia da atmosfera isolada”. E se você reconheceu a primazia de tal atmosfera isolada, de
fato a primazia da atmosfera per se, então os arquitetos podem definitivamente inferir disso
que não podem ter ideologias geométricas como seus pontos de partida. Em vez disso,
precisam pensar em termos de efeitos atmosféricos de espaço.
Isso exige um forte ato de tradução. A intimidade é uma categoria intersubjetiva que pode ser
expressa, espacialmente, de muitas maneiras diferentes.
Como eu disse, interpreto a subjetividade como um relacionamento espacial não físico. As
criaturas do tipo humano podem, através da existência conjunta, gerar o efeito
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de acomodação recíproca. Como o exemplo de um par de amantes mostra claramente, os
amantes já estão juntos, de uma ou de outra maneira; eles são, de certa maneira, quando estão
juntos, um no outro. O que significa que a questão clássica “No meu ou no seu apartamento?”
é realmente supérflua. Além disso, ela oferece um bom exemplo de explicação: esta
ida-para-algum-lugar-juntos-como-já-estando-juntos é a explicação cinética do que o
ser-junto dos amantes implica. Devido aos dois já estarem implicitamente juntos, eles têm
uma lista de opções de localizações explícitas.
Você utiliza o exemplo arquitetônico do apartamento para mostrar o que o processo de
explicação pode alcançar no que diz respeito à vida moderna residencial.
Interpreto a construção do apartamento como a criação de um mundo-ilha para uma única
pessoa. Para entender isso, você precisa admitir que a palavra mundo não significa apenas o
grande todo que Deus e outros observadores joviais têm diante de si. Desde o início, os
mundos sobem ao palco no plural e tem uma estrutura insular. Ilhas são miniaturas dos
mundos, que podem ser habitadas como modelos do mundo. Por esta razão, devemos saber o
que constitui uma ilha minimamente completa, uma ilha capaz de ser um mundo. No meu
estudo sobre as “insulações” [Insulierungen], distingo entre três tipos diferentes de ilhas: a
ilha absoluta, tal como uma estação espacial, que é colocada como um mundo da vida
implantado em um meio social hostil à vida; a seguir, existem as ilhas relativas, como estufas
para plantas (basta pensar no experimento bem conhecido Biosfera II); e finalmente, as ilhas
antropogênicas, espaços construídos de tal maneira que os humanos possam emergir. Elas
formam uma auto-insulação, um sistema dinâmico reminiscente de uma incubadora humana.
E como isso é possível? Como pode, para argumentar em uma veia darwinista e filosófica,
macacos entrarem em condições de egoidade [Selbstver-hällnisse]? Como o mecanismo
antropogênico recebeu o pontapé inicial?
Descrevo a ilha geradora humana como um espaço de nove dimensões, em que cada uma das
dimensões deve existir para o efeito gerador humano ser desencadeado. Se apenas uma
dimensão é ausente, você não consegue um humano completo. Tudo
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começa com o chirotopo, o lugar da mão. E o que a mão tem a ver com a gênese do ser
humano? A resposta para essa questão fornece uma primeira versão da teoria da ação, uma
pragmática elementar. Enfrento, então, o phonotopo, o espaço de sons em que estão os grupos
que se ouvem. Este é seguido, então, pelo uterotopo, o espaço ocupado por associações mais
profundas de cavernas compartilhadas; o thermotopo, a esfera do calor, ou o espaço onde
você é mimado; e o erotopo, o lugar do ciúme e o campo do desejo. (Gostaria de observar que
a emergência do ciúme, específico da espécie humana, foi extremamente importante para a
gênese dos seres humanos, pois os humanos são animais miméticos que sempre têm
observado o que outros humanos fazem, atentamente e ciosamente, de fato, até mesmo
imitando aqueles que se comportam com sucesso como se eles não observassem o que os
outros estavam fazendo). As próximas dimensões são o ergotopo, o campo da guerra e do
esforço; o thanatotopo, o espaço de coexistência com a morte, em que prevalecem os
símbolos religiosos; e finalmente o nomotopo, o espaço das tensões legais que fornecem um
grupo com uma espinha dorsal normativa. O teorema da tensegridade de Buckminster Fuller
dá um papel importante para isso.
Desta teoria geral das ilhas, podemos derivar a cultura moderna do apartamento, pois um
apartamento funcionará apenas se for convincente como um mundo-ilha minimamente
completo para um indivíduo.
Não parece que, até agora, esta descrição contém a definição de residência, do ser humano
como um ser residencial?
Você deve entender que as casas são, inicialmente, máquinas para matar o tempo. De fato, em
uma fazenda primitiva, as pessoas esperam por um evento silencioso nos campos, um que
elas não podem influenciar mas que, graças a Deus, acontece regularmente – a saber, o
momento em que as sementes plantadas dão frutos. Em outras palavras, as pessoas vivem
inicialmente em uma casa porque se apoiam na convicção de que é recompensador aguardar
um evento fora da casa. No mundo agrário, a estrutura temporal de residir em casas deve ser
entendida em termos de compulsão para esperar. Este tipo de ser-na-casa
[being-in-the-house] foi desafiado pela primeira vez no curso da Idade Média, quando no
noroeste da Europa, uma cultura urbana mais abrangente havia
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surgido novamente. Desde então, uma proporção crescente de populações europeias foram
apreendidas por uma cultura de impaciência ou não-ser-capaz-de-esperar [not-
being-able-to-wait]. Durante os dias de Goethe, na Alemanha, apenas 20% da população era
urbanizada; 80% ainda viviam sob as antigas condições agrárias. Heidegger, a quem eu
gostaria, neste contexto, de relacionar como o último pensador da vida rural, continua a
interpretar o tempo existencial como tempo de espera e, assim, também como tédio. O evento
a que esta situação de espera leva é, naturalmente, algo muitíssimo simples, a saber, o fato de
que as coisas no campo lavrado tornam-se maduras. O filósofo equipara este campo lavrado
com a história do mundo, sem ter em mente que os mundos da cidade já não podem assumir a
forma de campos lavrados. Na cidade, as coisas não amadurecem, elas são produzidas.
Sigo em frente a partir desta definição de vida residencial como ser-no-mundo
[being-in-the-world] colocada em espera, e da casa como um lugar de espera, para a casa
como um lugar de recepção, o lugar onde o trigo importante fica separado da palha sem
importância. A casa original é uma planta de habitação. Ao gastar muito tempo lá, você se
torna, inconscientemente, uma unidade habitual com os seus ambientes; você habita por
hábito4. Uma vez que isso tenha sido alcançado, o pano de fundo foi criado, e o inusitado
pode se destacar pela primeira vez contra esse pano de fundo. A vida residencial é, a este
respeito, uma prática dialética – torna-se útil a si mesma para o seu oposto.
Em uma terceira etapa, desenvolvi a teoria da inserção ou imersão. Aqui, a teoria filosófica
do ser-em (being-in), como originada por Heidegger, é desenvolvida. Respondo à questão do
que significa ser em algo. Como isso acontece? Ilustrei estas questões me baseando nas
declarações de Paul Valéry, que interpretou o ser-em nos termos do paradigma da arquitetura:
para ele, a arquitetura significa que os homens trancam os homens em trabalhos feitos por
homens. Aqui, tocamos no lado totalitário da arte da construção.
Finalmente, como o quarto estágio da explicação, exponho o nervo central essencial do
fenômeno da residência, a saber, o destino da casa como um sistema imune
4Aqui, Sloterdijk joga com as palavras “inhabit” e “habit”. No original, em inglês: “you in-
habit by habit”. (N. T.)
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espacializado. Aqui, foco especificamente na dimensão da atmosfera projetada, o ar que
respiramos em uma construção. Parte da aventura da arquitetura moderna é que ela também
tem se voltado para os lados aparentemente imateriais do ser – nomeadamente, a residência
humana em um cenário atmosférico –, expressos em termos técnicos e estéticos. A arte
moderna da habitação não será capaz de voltar a um nível anterior de projetar contêineres
humanos.
Após ter percorrido esses passos, torna-se claro o que quero dizer quando afirmo que o
apartamento (junto com os estádios de esportes) é o primeiro ícone arquitetural do século
XX. Uma monadologia é necessária para pensar o interior, atualmente. Um homem – um
apartamento. Uma mônada – uma célula mundo...
... e no começo do modernismo arquitetural, a máxima era: uma pessoa não casada (one
unmarried person) – um apartamento.
Correto. As construções modernas de apartamentos repousam em uma ontologia baseada no
celibato. Assim como a Biologia moderna define vida como a fase bem- sucedida de um
sistema imunológico, nós podemos, em Teoria da Arquitetura, definir a existência como a
fase bem-sucedida de uma casa para solteiros (one-person household). Todas as coisas
(every-thing) são desenhadas na esfera interior do apartamento. Mundo e casa se misturam.
Se uma existência de solteiro (one-person existence) pode, de fato, ter sucesso, é somente
porque há um amparo arqui-tetural (arch-tectural) que transforma o apartamento ele mesmo
em um mundo inteiramente prostético. Os primeiros arquitetos modernos, então, estavam
corretos ao verem a si mesmos como modeladores da humanidade. Se ignorarmos o quê de
megalomania, o que fica é o fato de que os arquitetos de apartamentos para solteiros
(one-person apartments) ativaram a versão em massa de um tipo historicamente singular de
ser humano – talvez, esse tipo singular de ser humano tenha sido pré-figurado (pre-figured)
de outra maneira pelos monges eremitas cristãos.
Você descreve o apartamento como um estúdio de relações do eu consigo mesmo (studio of
self-relationships). Se tivermos em mente que a história da humanidade começou quando as
hordas foram formadas, com uma divisão
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rudimentar do trabalho em caça e em criação de crianças, então a emergência deste tipo
singular de humano reprodutor (singular reproducing type of human), que pode viver quase
autonomamente, é ligeiramente preocupante. Tenho, aqui, duas questões: você acabou de
descrever a intimidade, a intimidade diádica, como algo que constitui espaço. O que disso
sobrevive na cultura do apartamento? E não há formas de coexistência que causam impacto
no espaço entre polos extremos, tais como o singular e a massa, o solitário e a assembleia?
A primeira questão é mais fácil de responder: os individualistas de apartamento descobriram
um processo que os permite formar pares com eles mesmos – incidentalmente, Andy Warhol,
a quem já mencionei, foi um dos primeiros a mostrar isso explicitamente, ao afirmar que se
casou com o seu gravador. A autogamia moderna envolve a escolha de uma postura de
“experimentar” a própria vida, encarando-a, avaliativamente, do lado de fora. Os indivíduos,
na era de uma cultura de experiências, constantemente buscam diferenças de si mesmos. Não
podem escolher, como seus parceiros, outro algum que não eles mesmos como Outro interior.
O forte indivi- dualismo (indivi-dualism) sempre presume que você desenhe internamente o
segundo polo e os outros polos que são parte de uma estrutura de personalidade comp-leta
(comp-lete). A base para este movimento psico-estrutural se deu há tempos na cultura
europeia, e seus elementos podem ser rastreados na antiguidade clássica. O exemplo
arquetípico são os monges eremitas que se mudaram para o deserto de Tebas, a poucos dias
de viagem em direção ao sul de Alexandria, a fim de orar. Até onde sabemos, eles levaram
vidas interiores que apresentaram muitas relações; o mais famoso dentre eles é Santo
Antônio, que foi visitado por espíritos atormentadores tantas vezes, que não foi possível
haver nenhum relato sobre ele ter vivido sozinho. Para colocar isso em termos modernos, ele
compartilhou do mesmo travesseiro com as suas alucinações.
Hoje, ele provavelmente viveria numa ala psiquiátrica, entupido de tranquilizantes. Como
essa forma extrema de individuação se diferencia do autismo?
A pessoa autista não possui a espacial-idade (spacious-ness) interior que a torne apta para ser
sua própria companhia. A estrutura de suplementação de si próprio (self-
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suplementation) do indivíduo possui profundas raízes antropológico-midiáticas (media-
anthropological) e pode apenas ser explicada em termos de história da mídia. A condição
formal mínima de suplementação de si próprio consiste no fato de que o indivíduo em
questão é integrado em uma díade – com um Outro real ou imaginário. A questão da vida
social do indivíduo isolado é ainda mais difícil: o que ocorre com o animal de grupos
pequenos, o homo sapiens, se ele permanece em forma puramente individualista, tal qual o
habitante solitário de seu apartamento mundo? Duas respostas possíveis pareceriam óbvias:
uma é que o indivíduo, por ele mesmo, brinca de ser a horda inteira. Isso implica o esforço de
representar doze ou vinte pessoas dentro de seu mundo interior, membros de três gerações, no
mínimo. Então, na ausência de Outros verdadeiros, uma completa estrutura social tem que ser
simulada.
A Psicologia considera a formação de múltiplas personalidades um sintoma de enfermidade,
uma grave perturbação no desenvolvimento da personalidade.
Do meu ponto de vista, múltipla personalidade não é outra coisa que a resposta individual ao
des-aparecimento (dis-appearance) de seu entorno social verdadeiro e é, portanto, uma
resposta plausível para a falta crônica de estimu-lação (stimu-lation) social. A segunda
possibilidade é relacionada com a prática moderna de fazer uma rede de contatos
(networking). A horda retorna disfarçada de agenda telefônica do Iphone. Proximidade física
não é mais condição necessária para sociabilidade. O futuro pertence ao tele-socialismo
(tele-socialism). O passado retorna como vida de tele-horda (tele- horde life).
Você usa o título “Dialética da Modernização” para descrever como o centro vazio da
sociedade é preenchido com imagens ilusórias de um centro.
Em Esferas III, tento explicar porque devemos purgar de nosso vocabulário não apenas duas
portentosas palavras, revolução e massa, mas também o conceito de “sociedade”, o qual
sugere uma coerência que só poderia ser alcançada por meio de um conformismo
violentamente afirmado. O conglomerado de humanos que, desde o séc. XVIII, chamou-se a
si mesmo “sociedade” é, de modo preciso, não baseado nos pontos
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atômicos que costumamos chamar de indivíduos. Em vez disso, é uma miscelânea de meios
sociais que são estruturados como subculturas. Basta pensar no mundo dos amantes de
cavalos – uma enorme subcultura na qual você poderia se perder, em todo o seu tempo de
vida, mas que é igualmente boa e invisível, caso você não seja um membro. Existem
centenas, senão milhares, de meios sociais no atual terreno social que têm a tendência de, a
partir de seu próprio ponto de vista, formar o centro do mundo e, ainda assim, serem
igualmente bons e inexistentes para os outros. Eu os denomino “sistemas inter-ignorantes”
(inter-ignorant systems). E, entre outras coisas, eles existem em virtude de uma regra de
cegueira. Eles não podem tomar ciência um do outro, se não seus membros seriam subtraídos
do prazer de pertencer a um seleto grupo de poucos especialistas. No que diz respeito a
profissões, há apenas dois ou três tipos de humanos que podem dar-se ao luxo da
poli-valência (poly-valence) em lidar com meios sociais. Os primeiros são os arqui-tetos
(arch-tects), que (ao menos virtualmente) constroem contêineres para todos; os segundos são
os romancistas, que inserem pessoas de todos os estilos de vida em seus romances;
finalmente, vêm os sacerdotes, que falam nos enterros de todas as possíveis classes de
mortos. Ops! Esqueci-me dos novos sociólogos à la Latour.
Em outras palavras, por um lado, a múltipla personalidade e, por outro, o solitário fazedor de
contatos em rede (networker) – essas são as duas opções que considero abertas a popu-lações
(popu-lations) individualizadas. O modo como o homo sapiens é influenciado pelo dote de
seus tempos de horda é, sem dúvida, insuper-ável (insurmount-able), porém, porque a
explicação dessa antiga herança continua simultaneamente em várias direções, os elementos
proto-sociais da vida do homo sapiens podem ser retrabalhados. Eles levam a um tribalismo
eletrônico. Em padrões (motifs) diádicos, em contraste, os relacionamentos íntimos são
explicados a tal nível que a intimidade pode, literalmente, ser desempenhada através da mídia
técnica da suplementação de si mesmo. A longo prazo, surgem tipos humanos que são
bastante diversos dos que conhecemos agora.
O apogeu dos modelos que você descreve para apartamentos, do início da modernidade até o
pensamento de Kisho Kurokawa e do urbanismo até Constant,
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deu-se na década de 1960. Então, a Arquitetura mudou sua dire-ção (direct-ion), com a cidade
em foco novamente – nomeadamente, a cidade como algo intangível, indefinível, irredutível.
O conceito de capsula desaparece; a cidade é, então, construída como um tecido. O conceito
de rede marca o começo da marcha do pós- modernismo para frente, o que deixa de lado o
individualismo utópico da década de 1960.
Você está certo na medida em que a crítica à arquitetura de cápsula significa a crítica ao
autismo urbano. Mas deixe-me apontar um risco complementar. Toda a conversa sobre rede e
tecido tende a neutralizar o espaço existencial, e eu penso que isso é tão perigoso quanto o
individualismo de capsula. O pensamento a partir de redes (net think-ing) inclui apenas
pontos e interfaces que formam a base da noção de duas ou mais linhas ou curvas que se
cruzam, fornecendo uma cosmovisão, cujo elemento constitutivo é o ponto. Os teóricos de
redes pensam em termos radicalmente não espaciais, isto é, em duas dimensões; eles usam o
conceito de anorexia para interpretar sua relação com o seu próprio meio ambiente. Seus
gráficos revelam que a organização do mundo individual é vista como uma intersecção entre
linhas sem volume. Eu, em contraste, vou pelo conceito de bolha de espuma ou de célula
mundo para mostrar que até mesmo o elemento individual já contém uma intrínseca
expan-são (expan-sion). Não devemos retornar a uma ontologia do ponto, mas tomar, como
variável mínima em nosso pensamento, a célula que é capaz de constituir um mundo. Um
pouco mais de monadologia não faz mal a ninguém: a mônada não é um ponto desprovido de
extensão; ela tem o caráter de um micromundo. “Célula” expressa o fato de que o lugar
individual tem o formato de um mundo. As metáforas de tecido ou rede, talvez, forneçam nós
momentâneos a você, mas você não pode habitar um nódulo. Em contraste, a metáfora da
espuma enfatiza a espacialidade microcósmica intrínseca de cada célula individual.
Entretanto, a metáfora implica uma questão: onde isso levaria caso perguntado no contexto da
Arquitetura? Arquitetos tendem a considerar imagens literalmente.
Isso já aconteceu tempos atrás. Frei Otto é um dos arquitetos modernos que tentou derivar
estruturas espaciais naturais ou organo-mórficas (organo-morphics) de
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bolhas de sabão. A metáfora da espuma sustenta uma virtude intelectual: ela nos previne de
voltar às supersimplificadas geo-metrias (geo-metries) platônicas que são retidas pela história
tradicional da Arquitetura. Não há formas retangulares na espuma, e isso é uma interessante
notícia. E não há mais quaisquer estruturas esféricas primitivas, especialmente se as espumas
forem além de suas etapas húmidas ou autistas. Em seu interior, forças recíp-rocas
(recip-rocal) de deformação estão sempre trabalhando, de modo a garantir que tenhamos
estruturas que não sejam planas e onde regras geométricas mais complexas prevaleçam.
O que você tem contra os ângulos retos?
A ideia que forma a base dessa teoria dos espaços diversos só pode ser entendida se também
considerarmos as paredes estruturais (load-bearing strutures) alternativas que alicerçam a
esferologia. Vivemos em uma era em que as paredes estruturais clássicas, baseadas em forças
de pressão, dão lugar a estruturas baseadas em forças de tensão. Claro que estou
primariamente pensando nas já conhecidas tensegridades de Fuller, em edifícios pneumáticos
e em estruturas de ar do séc. XX. A nova lógica das estruturas funciona muito além de todas
as paredes e pilares. As tensegridades formam a transição técnica da metáfora da espuma às
modernas construções. A espuma é um tipo de tensegridade natural, especialmente quando
para de tomar a forma de espuma “individualista”, em que, em solução líquida, bolhas
individuais flutuam passando umas pelas outras raramente se tocando. Se uma espuma
envelhece e seca, uma estrutura complexa interna emerge. Muitas bolhas estouram; o ar
residual das bolhas estouradas entra, então, em bolhas adjacentes, e a espuma seca a partir de
dentro. Emergem estruturas mais bonitas e exigentes morfo-logicamente (morpho-logically),
espumas de poliedro. Elas são completamente definidas pelo padrão (motif) de
co-isolamento, que diz que a célula da espuma compartilha com sua vizinha o fato de que é
separada dela – minhas paredes são suas paredes. O que nos une é que viramos as costas uma
a outra. O conceito de co-isolamento é fundamental para o universo de formas espumosas. A
adjacência do mundo se projeta, ou ainda, espaços de convivência dentro de uma estrutura
co-isolada possuem uma qualidade diferente de vizinhanças de espaço de culturas tradicionais
segmentadas. No primeiro, tudo o que é social é parcializável – o
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mundo é um conglomerado de pátios desérticos. A imagem do saco de batatas que Marx usa,
em seu 18 de Brumário, para descrever a situação dos agricultores loteados na França é a
primeira descrição do estado da espuma molhada. Cada célula flutua passando pelas outras,
cega para o seu ambiente compartilhado, sem tocar na outra, apesar de todas as suas
similaridades.
Quanto da constituição psicossocial do espaço permanece na metáfora da espuma, e o que
permanece da perspectiva construtivista de constituir espaço?
A espuma, em minha opinião, é uma expressão muito útil para aquilo que os arquitetos
chamam de densidade – ela mesma um fator negentrópico. A densidade pode ser expressa em
termos psicossociais por um coeficiente de irritação mútua. Pessoas geram atmo-sfera
(atmo-sphere) exercendo pressão mútua umas nas outras, empurrando umas as outras. Nós
nunca devemos esquecer que aquilo que chamamos “sociedade” implica o fenômeno de
vizinhos não bem-vindos. Então, densidade é também uma expressão para nosso excessivo
estado comunicativo, e, incident-almente (incident- ally), a ideologia de comunicação está
repetid-amente (repeat-edly) nos instigando a expandi-lo ainda mais. Qualquer um que leve a
densidade a sério, em contraste, finda por reconhecer o valor de paredes. Essa observação não
é mais compatível com o modernismo clássico, que estabeleceu o ideal de habitação
transparente, o ideal de que as relações de dentro deveriam ser refletidas nas relações de fora,
e vice-versa. Hoje, estamos novamente colocando em primeiro plano um modo em que uma
construção possa se isolar, embora isso não possa ser confundido com sua solidez. Visto
como fenômeno independente, o isolamento é uma forma de explicação das condições de
convivência com vizinhos. Alguém deveria escrever um livro reconhecendo o valor do
isolamento, descrevendo uma dimensão da coexistência humana que reconheça que as
pessoas também possuem uma necessidade infinita por não comunicação. Todas as
características ditatoriais da modernidade se originam de uma antropologia excessivamente
comuni-cativa (communi-cative): por tempo de mais, a noção dogmática de uma imagem
excessivamente comunicativa do homem foi ingenuamente adotada. No que se refere à
imagem da espuma, você pode mostrar que as formas pequenas nos protegem da fusão com a
massa e com as correspondentes
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hipersociologias. Nesse sentido, a teoria da espuma é uma policosmologia.
Então, cada bolha de sabão é um cosmos em si mesma?
Não, isso seria novamente uma construção excessivamente autista. Na verdade, nós temos de
lidar aqui com uma teoria discreta da coexistência. Todo ser-no-mundo possui traços de
coexistência. A questão do ser, que é tão acaloradamente discutida por filósofos, pode ser
feita aqui em termos da coexistência de pessoas e coisas em espaços conjuntos. Isso implica
uma quádrupla relação: ser significa alguém (1) estar junto de alguém mais (2) e com algo
mais (3) dentro de algo (4). Essa fórmula descreve a complexidade mínima que é preciso
construir a fim de se chegar a um conceito apropriado de mundo. Arquitetos estão envolvidos
nesse pensamento, já que, para eles, ser-no-mundo significa habitar em uma construção. Uma
casa é uma resposta tridimensional à questão de como alguém pode estar junto de alguém e
algo dentro de algo. De seu próprio modo, os arqui-tetos (arch-tects) interpretam essa que é a
mais enigmática de todas as pre-posições (pre-positions), nomeadamente o “em”.
Por que você pensa que a preposição “em” é enigmática?
Porque ela realça tanto o ser-contido-em quanto o ser-no-lado-de-fora. Pessoas são seres
ekstáticos. Elas estão, para usar os termos de Heidegger, sempre retidas no lado de fora, no
aberto; jamais podem estar definitivamente incluídas em algum contêiner – a não ser em
sepulturas, é claro. Em sentido ontológico, elas estão “no lado de fora”, no mundo, mas elas
só podem estar no lado de fora na medida em que estão estabilizadas a partir do lado de
dentro, por algo que lhes dê firme suporte. Essa conformação precisa ser enfatizada nos dias
de hoje, em contraste ao vigente romantismo da vastidão (romanticism of openness). São os
sistemas espaciais imunes que nos permitem ser-no-lado-de-fora de forma tolerável.
Construções são, então, sistemas feitos para compensar a ekstase. Aqui, o arquiteto precisa
ser localizado, falando em termos topológicos, no mesmo patamar do sacerdote e do
terapeuta – como um cúmplice em se opor a ekstase intolerável. Nesse contexto, Heidegger
incidentalmente foca menos em arquitetura e mais em linguagem, e, de fato, é a linguagem
em sua forma habitual que é a pauta perfeita para compensar uma ekstase
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indesejada. Já que a maior parte das pessoas diz a mesma coisa durante toda a sua vida – e
seus jogos de linguagem são, em regra, completamente repetitivos –, vivemos em um mundo
de redundância simbólica que funciona da mesma maneira que uma casa de paredes espessas.
“A linguagem é a casa do ser”, postulou Heidegger, e estamos gradualmente entendendo
(under-standing5) o que ele quis dizer quando apareceu com essa frase. A linguagem é uma
firme fortaleza na qual podemos repelir o aberto. Porém, nós, ocasionalmente, deixamos
visitantes entrar. Nas relações humanas, falar e construir usualmente criam segurança
suficiente de modo a só vez ou outra permitir ekstase. Por essa razão, do meu ponto de vista,
o arquiteto é alguém que filosofa no e através do material. Alguém que constrói uma
habitação ou erige uma construção para uma instituição faz uma afirmação sobre a relação
entre o ekstático e o enstático ou, caso você queira, entre o mundo enquanto aparta-mento
(apart-ment) e o mundo enquanto ágora.
* Peter Sloterdijk é filósofo, considerado um dos maiores renovadores da Filosofia atual,
autor da trilogia Esferas.
** Giovane Martins é pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) e
estudante de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
*** Vitor Ferreira Lima é pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA)
e estudante de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail:
lima.vitoor@hotmail.com.
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5 É impossível traduzir para a língua portuguesa o jogo semântico aqui estabelecido quando,
em inglês, Sloterdjik hifeniza a palavra “understanding”, desmembrando “under” de
“standing”, querendo dizer algo como “estagnação em uma posição inferior”.
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