Resumo: A tarefa de Sísifo materializa a experiência da
repetição, o encontro entre o princípio e o fim. Este artigo visa estabelecer a relação entre É nesta acepção simbólica que pensamos ser a motivação e as fases de mudança do com- útil a transposição da ilustração mitológica portamento em sujeitos com dependência de para a realidade clínica do tratamento de álcool. São descritas as diferentes fases do doentes alcoólicos, uma vez que a tarefa de processo de mudança comportamental em recuperação (alicerçada na aliança de traba- associação com as técnicas motivacionais lho entre a equipa técnica e o utente) foi fre- mais adequadas que visam a maturação mo- quentemente entendida como um trabalho de tivacional. Sísifo, um trabalho marcado por uma difícil repetição, a recaída, entendida como o retor- Palavras-chave: Estádios de Mudança; En- no ao ponto de partida. trevista Motivacional; Prevenção de Recaídas. A prevenção das recaídas foi assim conside- Motivation and Change: From Sisyphus rada uma prioridade terapêutica a partir do to Heraclitus momento em que o alcoolismo foi definido como uma condição crónica e por essa razão, Abstract: os modelos de tratamento têm dedicado uma The present paper provides a description atenção especial à manutenção/estabilização of the relation between motivation and the da abstinência. Muitos têm sido os esforços de stages of behaviour change in subjects with compreensão deste problema e as propostas alcohol dependence. The different stages of de intervenção que visam interromper a sua change and their association with the moti- natureza cíclica, promovendo uma mudança vational techniques used to promote change profunda no plano do comportamento e do are described. funcionamento mental destes doentes. A intervenção psicológica, a nível da preven- Keywords: Stages of Change; Motivational ção das recaídas em pacientes alcoólicos tem Interviewing; Relapse Prevention. sido articulada em torno de três eixos: em primeiro lugar, a compreensão dos processos Sísifo, personagem da mitologia grega, foi de mudança; em segundo lugar, o desenvolvi- condenado pelos deuses do Olimpo a carre- mento de técnicas de intervenção que visam a gar uma enorme pedra da base até ao cimo maturação motivacional; e por fim, a compre- de uma montanha e assim que atingia o topo, ensão do processo de recaída e o aperfeiçoa- empurrava a carga para o sopé, retomando a mento de técnicas que têm como objectivo a tarefa do início. sua prevenção.
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* Psicólogo Clínico - Unidade de Tratamento e Reabilitação de Alcoólicos do Hospital Miguel Bombarda; nfaleiro@hotmail.com 1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada pelo autor no 4º Congresso de Alcoologia em Sesimbra 2005 Nuno Faleiro Silva
Este trabalho irá centrar-se essencialmente possibilidade de transformação, entram na
sobre as duas primeiras linhas de investiga- fase de Contemplação. É neste período que ção, motivação e mudança, articuladas sob o emerge a ambivalência conduzindo-os a uma pano de fundo da prevenção de recaídas. ponderação das vantagens e desvantagens do De acordo com Prochaska, J.; DiClemente, consumo e da abstinência. Não é rara a per- C.& Norcross, J. (1992)1, autores que estuda- manência nesta fase do processo de mudança ram profundamente os processos de mudan- durante longos períodos de tempo devido a ça comportamental no âmbito das condutas uma estagnação nos processos de decisão, aditivas, o percurso terapêutico assemelha-se motivada pela excessiva ambivalência (con- a um processo que engloba diferentes fases, templadores crónicos). sendo que cada uma destas etapas repre- Os indivíduos atingem o denominado estádio senta o estado subjectivo do indivíduo rela- de Preparação quando a ponderação dos be- tivamente à mudança. Este modelo, também nefícios da mudança desejada é superior à denominado Transteórico porque se pretende percepção das desvantagens, iniciando-se um descritivo e isento de pressupostos teóricos processo de compromisso com a mudança ou etiológicos, descreve a sequência de fases concreta do comportamento. Nesta fase, os que constitui o processo de mudança. Neste indivíduos começam a estabelecer objectivos sentido, o foco situa-se menos nas causas e a organizar um plano para os atingir. do comportamento aditivo do que no modo como ocorre a mudança comportamental, A implementação do plano de acção marca o tanto em ambiente natural como em contexto início do estádio de Actuação onde se procura terapêutico. materializar a mudança comportamental. É uma fase activa de transformação do compor- Deste modo, na fase de Pré-Contemplação, os tamento e da relação com o meio envolvente indivíduos não possuem consciência crítica na qual a utilização dos recursos disponíveis acerca da existência de um padrão proble- mático de consumo e, por essa razão, não se e a resolução de possíveis obstáculos desem- encontram motivados para realizar alterações penham um papel preponderante. no seu comportamento. Poderão manter-se O estádio de Manutenção é caracterizado pela nesta fase indefinidamente, quer devido ao consolidação dos objectivos atingidos e pela desconhecimento das consequências lesivas prevenção da recorrência dos comportamen- do consumo, quer por insuficiente confiança tos modificados. na sua capacidade de mudar. O retorno ao padrão de consumo impõe uma Quando os sujeitos começam a problema- avaliação do processo de recaída e dos seus tizar o padrão de consumo, colocando a possíveis determinantes com o objectivo de
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retomar um percurso terapêutico assente na da intensidade das forças em conflito: se
aprendizagem pela experiência. A recaída é, o consumo de álcool está exclusivamente deste modo, entendida como uma manifes- vinculado a expectativas positivas, então tação de ambivalência residual face à absti- o indivíduo encontra-se numa fase de nência, ou seja, a existência de expectativas pré-contemplação (ou pré-ambivalente); positivas relativamente ao consumo e/ou a se as desvantagens excedem as vantagens do insuficiente internalização de mecanismos consumo, o sujeito tenderá para iniciar um de protecção (assertividade, regulação dos processo de mudança. afectos, tolerância à frustração, etc...).A ela- A entrevista motivacional foi desenvolvida boração da ambivalência constitui o objectivo como “um estilo directivo, centrado no clien- fundamental da intervenção motivacional. te com o objectivo de promover a mudança comportamental através da exploração e Intervenção Motivacional resolução da ambivalência”2. Deste modo, a A motivação tem sido a variável intrapsíquica motivação, outrora encarada como um pré- mais associada ao sucesso terapêutico, cons- requisito para o tratamento, uma qualidade tituindo-se como ingrediente fundamental intrapsíquica, passa a ser considerada como para a realização de mudanças estáveis. um atributo influenciável pelo tratamento, No campo do tratamento da dependência de comprometendo a equipa terapêutica no pro- álcool têm sido identificados dois importantes cesso de maturação motivacional. obstáculos que se interpõem no percurso de A entrevista motivacional baseia-se num recuperação deste indivíduos: por um lado, conjunto de propostas terapêuticas, das quais a negação da natureza patológica e patologi- destacamos: zante do consumo, por outro, a ambivalência - A sintonização empática: refere-se à capaci- excessiva, sendo que estas características dade de compreensão da situação do sujeito assumem um papel determinante quer na a partir da sua perspectiva, sem incorrer adesão a um plano de tratamento, quer na em juí-zos de valor, a uma postura crítica manutenção da abstinência. ou à indução de culpabilidade; a motivação No âmbito do tratamento, assume-se como é concebida assim como influenciável pelo central a noção de ambivalência que se estilo relacional do técnico, sendo que a refere, de um modo geral, à coexistência, investigação indica que um estilo confronta- no mesmo indivíduo, de posições opos- tivo promove muitas vezes a resistência ao tas face a um mesmo objecto/objectivo. O tratamento comparativamente a um estilo nível de motivação constitui a expressão empático, de suporte3.
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- O favorecimento da dissonância cognitiva to especializado, motivados pela pressão de
como motor da mudança. A existência de factores externos significativos (cônjuges ou uma contradição entre o comportamento familiares, empregadores, sistema judicial, presente e os objectivos desejados poderá etc.) propõe-se a exploração da discrepância conduzir a uma alteração de uma das partes entre a percepção do sujeito e a de outros em conflito de modo a restaurar a sensação significativos. Nesta fase, estimula-se o re- de coerência interna. conhecimento do impacto do consumo quer - A responsabilidade relativamente à mudan- a nível individual, quer a nível das relações ça é colocada explicitamente no doente, de significativas. modo a estimular a percepção de um locus de Na fase de Contemplação, a tarefa central controlo interno; sublinha-se assim o direito prende-se com o favorecimento da discre- do doente realizar as suas escolhas embora pância existente entre o comportamento estas sejam feitas de um modo informado, presente e os objectivos pretendidos de modo privilegiando-se o estabelecimento progres- a incrementar os processos de tomada de sivo de objectivos concretizáveis, de modo decisão. A análise de uma balança decisional5 a aumentar o sentimento de auto-eficácia/ permite ao paciente compreender quer as auto-estima. desvantagens do consumo, quer o peso rela- Com base nestes princípios foram desenvol- tivo (a curto prazo) das vantagens atribuídas vidos um conjunto de técnicas4 que visam a ao consumo. A análise da balança decisional melhor combinação possível entre a posição possibilita ainda, numa fase posterior, a do paciente no processo de mudança e as compreensão da função psicológica do con- intervenções que favoreçam a evolução moti- sumo através da exploração das vantagens do mesmo (p.e.: uma função ansiolítica, anti- vacional de cada indivíduo. depressiva, etc…) permitindo assim detectar Assim, em indivíduos situados numa fase a presença de sintomas de co-morbilidade de Pré-contemplação, a ausência de proble- psiquiátrica associada. O consumo de álcool matização exige, do ponto de vista técnico, o é então encarado como a procura de uma estímulo à reflexão, a tomada de consciência solução (desadaptativa) para certos estados dos riscos associados ao consumo e das suas subjectivos sendo que esta reformulação po- consequências possíveis, uma vez que só po- derá valorizar a parte saudável do sujeito (en- deremos encontrar soluções quando existem tendido como um indivíduo activo em busca problemas. de soluções eficazes) em detrimento de uma Não sendo rara a aproximação destes indiví- auto-imagem desvalorizada (p.e.: o consumo duos, às instituições que oferecem tratamen- como forma de auto-destruição).
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A valorização do sujeito implica também a existência de possíveis obstáculos, procuran-
atribuição de uma importância central às do, na relação com o indivíduo e tomando-o mudanças bem sucedidas (p.e.: a iniciativa como fonte das soluções, criar um leque di- de procurar uma consulta de especialidade) versificado de alternativas de resolução. assim como ao privilégio das motivações As fases seguintes, de Acção e de Manuten- intrínsecas em detrimento das motivações ção solicitam da parte da equipa técnica um externas. acompanhamento de proximidade de modo a Outra técnica utilizada em indivíduos que antecipar situações de eventual risco de reca- se encontram nesta fase prende-se com a ída7 e desenvolver estratégias de superação8. diminuição da impulsividade com base na Um aspecto central na manutenção da abs- estimulação da reflexão acerca das conse- tinência prende-se com a inevitável alteração quências futuras do consumo. A utilização do estilo de vida através do envolvimento em de paisagens futuras,6 nas quais colocamos actividades recreativas, reabilitação ocupacio- os pacientes de dois modos distintos: por um nal, profissional, etc…áreas profundamente lado, se prosseguirem o consumo, por outro, afectadas pela história do consumo. se permanecerem abstinentes, visa a anteci- Decorre desta exposição, a necessidade de pação das consequências lesivas e a diminui- sintonização das intervenções terapêuticas ção dos mecanismos de actuação, acting-out, com o posicionamento do indivíduo no que representam a falência dos processos de processo de mudança. A título de exemplo, previsão. salientamos o insuficiente benefício tera- Na fase de Preparação, o acento tónico é colo- pêutico (e o grau de adesão) que um sujeito cado no estabelecimento de objectivos deter- situado numa fase de pré-contemplação po- minados, a par da informação prestada ao su- derá usufruir de uma intervenção no âmbito jeito acerca da multiplicidade de intervenções da prevenção de recaídas. Consideramos que disponíveis (por exemplo: o internamento a combinação mais ajustada entre as neces- para desabituação, o acompanhamento psi- sidades do utente e a resposta terapêutica, quiátrico regular, a frequência de grupos de poderá potenciar a qualidade da intervenção auto-ajuda, a possibilidade de optar por um prestada, contribuindo para uma diminuição acompanhamento psicológico individuali- do número de recaídas. zado, a integração em grupos de prevenção Deste modo, em contraste com o paradigma de recaídas, etc…) de modo a estabelecer de Sísifo, o modelo denominado Transteórico um plano de acção sustentado numa rede de propõe um percurso em espiral progressiva suporte terapêutico e social alargada. Nesta onde a recorrência do consumo não represen- fase, é de especial importância antecipar a ta necessariamente uma regressão ab initio
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mas constitui-se como uma vicissitude de um Bibliografia:
processo de aprendizagem pela experiência 1. Prochaska, J., DiClemente, C.; Norcross, J. In search of vivida (integração dos sucessos e reavaliação how people change: Applications to addictive behaviors. dos insucessos). Parafraseando Heráclito American Psychologist. 1992. vol.47, pp.1102-1114. “nunca se poderá tomar banho (duas vezes) 2. Miller, W. Motivational Interviewing: Research, na mesma água do mesmo rio”. Practice, and Puzzles. Addictives Behaviors. 1996. vol.21, nº6, pp.835-842. 3. Miller, W. and Rollnick, S. Motivational Interviewing: Preparing People to Change Addictive Behaviour. New York. The Guilford Press.1991. 4. Center for Substance Abuse Treatment. Enhancing Motivation for Change in Substance Abuse Treatment. Treatment Improvement Protocol (TIP) Series, Number 35. Washington, DC: U.S.Government Printing Office.1999. 5. Velicer, W.; Prochaska, J., DiClemente, C.; Bradenburg, N. Decisional Balance Measure for Assessing and Predicting Smoking Status. Journal of Personality and Social Psychology.1985.vol.48, nº5, pp1279-1289. 6. Soares, A. Uma Proposta Integrativa na Terapia Cognitiva da Toxicodependência. Toxicodependências. 2001.vol. 7, nº2, pp.29-49 7. Marlatt, G.A. & Gordon, J.R. (Orgs.). Prevenção de Recaída: Estratégia e Manutenção no Tratamento de Comportamentos Aditivos. Porto Alegre: Artes Médicas.1993. 8. Velasquez, M. & al.Group Treatment for Substance Abuse: a stages of change therapy manual. New York. The Guilford Press. 2001. Monti, P., Kadden, R., Rohsenow, D., Cooney, N., Abrams, D. Treating Alcohol Dependence. A Coping Skills Training Guide (2nd Edition). New York. The Guilford Press. 2002.
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