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ANÁLISE PRELIMINAR DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL E

PORTUGAL

Ana Carolina Alves da Silva1, Lidiane Maciel2.

Universidade do Vale do Paraíba/Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, Avenida Shishima Hifumi,


1
2911, Urbanova - 12244-000 - São José dos Campos-SP, Brasil, carolinaana967@gmail.com ,
2
lidiani.maciel@gmail.com .

Resumo - o presente trabalho pretende fazer uma breve analise quanto às mudanças consequentes
do ingresso de um individuo no Ensino Superior, especificamente na Universidade. O estudo se
baseará em conceitos do sociólogo Anthony Giddens, sociólogo britânico que propõe a Teoria da
Estruturação. Para complementar a discussão, através de uma critica no que tange o acesso ao
Ensino Superior, usar-se-á a teoria de Pierre Bourdieu, principalmente o conceito proposto pelo autor
de Capital Cultural. O parecer sobre a acessibilidade do Ensino Superior será corroborada com o uso
de dados do Brasil e Portugal, traçando uma breve comparação dessa área nos dois Estados.

Palavras-chave: Reflexividade; Hermenêutica dupla; Ensino Superior; Capital.


Área do Conhecimento: Ciências Humanas

Introdução

As mudanças consequentes do ingresso no ensino universitário são facilmente perceptíveis, tanto


para os indivíduos que vivenciam o ambiente quanto para os que convivem com estudantes desse
nível. Segundo o site da Direção-Geral do Ensino Superior, em Portugal:

O ensino universitário é orientado por uma perspectiva de


promoção de investigação e de criação do saber e visa
assegurar uma sólida preparação científica e cultural e
proporcionar uma formação técnica que habilite para o
exercício de atividades profissionais e culturais e fomente o
desenvolvimento das capacidades de conceção, inovação e
análise crítica. (DGES)

Dessa forma, é possível compreender que o ensino universitário visa agregar conhecimentos para
o exercício profissional, mas também difundir conhecimento que aprimoraram o indivíduo no exercício
da sua cidadania. No entanto, verifica-se certa complexidade no acesso a esse nível educacional por
parte de alguns grupos sociais.
Leandro Almeida e col (2012), numa reflexão sobre a democratização do Ensino Superior em
Portugal e no Brasil, coloca que no país o capital social e cultural das famílias “está igualmente
presente na escolha do tipo de instituição e de curso por parte dos alunos” (ALMEIDA e col,
2012:903). Verifica-se uma tendência no sentindo de

quanto maior é o capital social da família, maior é a tendência


de escolha de cursos universitários mais longos e com maior
relevo social, como por exemplo Medicina, Direito e
Engenharia. No caso das famílias de menores recursos, é
maior a procura de cursos mais curtos e mais dirigidos para o
mercado de trabalho. (ALMEIDA e col, 2012: 903)

No cenário brasileiro, Cibele Yahn de Andrade, num estudo acerca do acesso ao Ensino Superior
no Brasil, constata “que o ingresso sequencial para o ensino superior tem ocorrido para grande
parcela da população mais rica.” (ANDRADE, 2012:21),
Diante desse cenário, torna-se imperativo entender que fatos contribuem para tal diferenciação no
acesso ao Ensino Superior, tanto no Brasil quanto em Portugal.

XXII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica, XVIII Encontro Latino Americano de Pós-Graduação e
VIII Encontro de Iniciação à Docência - Universidade do Vale do Paraíba.
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Metodologia

O presente trabalho se insere no âmbito da Sociologia, sendo desenvolvido através da análise


comparativa de dados secundários no que toca o Ensino Superior brasileiro e português. Atrelado a
isso, houve o estudo acerca da temática à luz de autores como Anthony Giddens, Pierre Bourdieu,
Maria Lourdes Gisi, Camila Penna, entre outros.

Discussão

Anthony Giddens, sociólogo britânico, em sua Teoria da Estruturação traz o individuo como ator
reflexivo e intencional, que tem consciência das suas ações e pode enuncia-las (PENNA, 2012, p.5).
A ideia do individuo como ator reflexivo refere-se ao conceito de reflexividade, conceito chave dentro
da teoria. Para o autor, esta “[...] deve ser entendida não meramente como autoconsciência, mas
como o caráter monitorado do fluxo contínuo da vida social” (Giddens, 2009, p. 3). Permeada pela
ideia de desencaixe do espaço-tempo, característica das sociedades modernas, a reflexividade:

[...] consiste no fato de que as práticas sociais são


constantemente examinadas e reformadas à luz de informação
renovada sobre as próprias práticas, permitindo assim a
construção de novas formas de reencaixe (PENNA, 2012 p.6)

Para Giddens, a relação entre a sociologia e seu objeto de estudo deve ser entendida como
"hermenêutica dupla". Nas palavras do autor, “o conhecimento sociológico espirala dentro e fora do
universo da vida social, reconstituindo tanto este universo como a si mesmo como uma parte integral
deste processo.” (GIDDENS, 1991, p. 20). A correspondência da Sociologia com o mundo social pode
ser ilustrada conforme o esquema a baixo:

Figura 1: Ciclo do conhecimento

Fonte: elaborado pela aluna

O movimento acontece da seguinte forma: ao ter acesso a um estudo científico, o individuo acaba
por apropriar-se e incorporar informações que este possuía. Essa incorporação acontece de tal forma
que essa nova informação configura-se em valores que, por sua vez, resultam numa mudança de
comportamento. Tal mudança servirá de objeto para um novo estudo cientifico, reiniciando o ciclo. A
partir desse conceito giddeniano, torna-se mais compreensível à mudança da qual os universitários
são sujeitos.
No entanto, ao analisar o ensino universitário e as implicações deste nas ações do individuo, não
se pode deixar de estabelecer uma crítica ao acesso a esse nível educacional. Segundo Casimiro
Balsa, em sua obra Perfil dos Estudantes do Ensino Superior Desigualdades e diferenciação, “o
momento de acesso ao ensino superior representa a última etapa de um processo ao longo do qual

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se produzem complexas formas de selecção sócio-cultural” (BALSA, 2001 p.43). Alinha com esse
pensamento, Maria Lourde Gisi, ao analisar o ensino superior no Brasil, apontando que “a trajetória
histórica da educação superior não é uma história à parte, integra o contexto socioeconômico e é
determinado, em grande parte, por este” (GISI, 2006 p.2).
No que diz respeito ao acesso à educação, a teoria sociológica de Pierre Bourdieu encontra-se
como uma das bases da temática. Segundo a teoria do autor, os indivíduos posicionam-se nos
campos, nichos de atividade humana, onde são estabelecidos conforme o capital que tem
acumulado, podendo ser de caráter econômico, social, simbólico ou cultural (FERRARI, 2008). Ao
tratar do ingresso no ensino universitário, o capital cultural distingui-se dos demais, pois como
entende Gisi:

O vestibular, segundo Tragtenberg (2004), mascara uma


seleção social preexistente, pois confere um poder simbólico a
quem já tem um poder real, àqueles que possuem capital
econômico e cultural, os que tiveram maiores oportunidades
durante sua vida, que podem comprar bons livros, frequentar
boas escolas, viajar, fazer cursos de línguas, assim o vestibular
apenas escolhe os já escolhidos, é uma seleção que se dá na
história da vida das pessoas, em especial para as
universidades e cursos de maior prestígio. (GISI, 2006 p. 6)

Para Bourdieu, o capital cultural é incorporado ao longo da vida do individuo, devido às


oportunidades sociais que estes possuem, sendo um processo de assimilação pessoal, não podendo
ser apreendido instantaneamente. Nesse sentido, o autor coloca que

(...) o legado de bens culturais acumulados e transmitidos pelas


gerações anteriores pertence realmente (embora seja
formalmente oferecido a todos) aos que detêm os meios para
dele se apropriarem, quer dizer, que os bens culturais
enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e
possuídos como tais (ao lado das satisfações simbólicas que
acompanham tal posse) por aqueles que detêm o código que
permite decifrá-los. (BOURDIEU, 2003 p. 297)

Os elementos constitutivos da dita “cultural geral”, para Bourdieu, seriam impostos pela classe
dominante, que acaba por legitimar e defini-los como aquilo que baseia o sistema de ensino. Nesse
ponto surge o problema, uma vez que nem todos os indivíduos terão acesso a “cultura geral”, seja por
questão da posição que a família ocupa, meio social ou poder econômico, fatores intimamente
relacionados. No entanto, são conhecimentos que se fazem necessários, dado que o sistema
educacional se pauta nestes.
Como em qualquer sistema de comunicação, é fundamental que o receptor domine o código
utilizado na mensagem transmitida. Na esfera pedagógica, a compreensão e aproveitamento do
aluno, no sistema de ensino, dependem deste possuir os elementos da “cultura geral”, o que varia
conforme a distância existente entre a cultura familiar deste e a cultura escolar.
Entendendo, basicamente, do que se trata o capital cultural e como a acumulação deste está
sujeita a diversos fatores, torna-se claro o quão restrito o ensino universitário pode ser. E mesmo
quando indivíduos desfavorecidos, no que tange o acúmulo de capital cultural, tem acesso a esse
nível educacional, acabam por terem de optar por universidades menos renomadas, cursos de menor
prestigio e horários que possibilitem ter um trabalho.
Em estudo feito acerca do acesso e sucesso no ensino superior em Portugal, constatou-se que “os
estudantes de famílias com níveis socioculturais mais reduzidos frequentam preferencialmente cursos
de ciências sociais (34.4%), enquanto que os alunos com uma origem sociocultural elevada se
orientam predominantemente para os cursos de engenharia (43.4%).”(ALMEIDA et al, 2006 p. 510).
Nesse mesmo estudo tabularam-se dados a partir dos resultados obtidos pelos estudantes na nota de
acesso ao Ensino Superior e na média obtida no final do 1º ano considerando o gênero e a origem

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sociocultural. Em relação a origem sociocultural, “verifica-se também uma diferença estatisticamente
significativa [...] favorável aos alunos dos níveis mais favorecidos” (ALMEIDA et al, 2006 p. 510).
Um estudo do mesmo gênero foi feito no Brasil, apresentando dados referentes a duas
universidades, uma publica e outra comunitária, com um grupo de 390 alunos. Quanto a classe social
e o acesso ao ensino superior, constatou-se:

[...] que a renda familiar está acima de R$ 3.601,00 para


49,3%, entre R$ 2.701,00 a R$ 3.600,00 para 14,9%, entre R$
1.801,00 a R$ 2.700,00 para 12,7%, entre R$ 901,00 a R$
1.800,00 para 9,9%, e até R$ 900,00 para 6,9%, sendo 6.3%
as respostas em branco. Os dados relacionados à renda
familiar deixam evidente que quanto menor a renda, menor o
número de alunos. (GISI, 2006 p.9)

No Censo do Ensino Superior de 2015, no Brasil, apresentou-se a seguinte tabela ao tratar do


número de ingressantes de graduação presencial, por turno, segundo a categoria administrativa:

Tabela 1: Censo do Ensino Superior – Ingressantes

Fonte: Censo do Ensino Superior – 2015

Os dados apresentados atestam o posicionamento de Gisi de que “os alunos que vêm de classes
menos favorecidas dificilmente conseguem uma vaga em instituição pública e para frequentar uma
instituição particular torna-se necessário trabalhar durante o dia.”Em busca do sonho dourado do
diploma universitário, os alunos de classes menos favorecidas são forçados a optar pelo turno
noturno.
Os estudos apresentados acima vêm no sentido de evidenciar a realidade que se conhece
empiricamente. Realidade esta de que um jovem de uma classe social menos favorecida encontrará
obstáculos maiores, em relação àqueles de classe social mais favorecida, na entrada no Ensino
Superior e obtenção do diploma.

Conclusão

Neste trabalho buscou-se explicar como conceitos giddenianos, tais como reflexividade e
hermenêutica dupla, auxiliam no entendimento acerca do processo que acontece na mudança do
comportamento de indivíduos que ingressam no Ensino Universitário. Ademais, apresentou-se uma
critica quanto ao acesso a tal nível escolar, através do conceito bourdiniano de capital cultural. No
sentido de validar o parecer apresentado, dados do Ensino Superior brasileiro e português foram
apresentados, demonstrando como a obtenção do diploma universitário pode ser dificultada por
motivos de caráter diverso.

Referências

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“[...] AS DECLARAÇÕES DA OFENDIDA NÃO MERECEM FÉ ” A CONDIÇÃO
DA MULHER NOS PROCESSOS CRIMES DE ESTUPRO E DEFLORAMENTO EM
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS ( 1906 - 1922)

Ana Carolina Alves da Silva1, Profª Drª Maria Aparecida Papali

Universidade do Vale do Paraíba/Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, Avenida Shishima Hifumi,


1
2911, Urbanova - 12244-000 - São José dos Campos-SP, Brasil, carolinaana967@gmail.com ,
papali@univap.br

Resumo – O presente artigo busca discutir a existência de um discurso que transfere para a mulher
a culpabilidade sobre ocorrências criminais, contida nos processos crimes de estupro e defloramento
em São José dos Campos - SP. Para tanto, serão utilizados cinco processos crimes entre os anos de
1906 e 1922, que se encontram no Arquivo Público de São José dos Campos. Será feita uma análise
do conteúdo apresentado em tais ações judiciais, principalmente no que se refere aos depoimentos
prestados pelas testemunhas e declarações de oficiais de Justiça. Busca-se averiguar o discurso
patriarcal em relação à situação da mulher, ressaltando condutas tidas como “desonrosas” para
moças, estabelecendo-se um entendimento de culpabilização das mesmas.

Palavras-chave: mulheres; defloramento; discurso; conduta; culpabilização.


Área do Conhecimento: Ciências Humanas

Introdução

O Brasil, no final do século XIX, passou por grandes mudanças, como abolição da escravidão e
Proclamação da Republica, e adentrou o século XX adotando ações na busca de se igualar as
grandes potências europeias, que desfrutavam da Belle èpoque, num forte discurso de modernização
e higienização dos centros urbanos As grandes cidades da época, como São Paulo e Rio de Janeiro,
foram palco de grandes intervenções estatais com o propósito de reformular visualmente as cidades,
sob os moldes europeus. (PADILHA, 2001:18).
São José dos Campos, embora não fosse um grande centro urbano, não fugiu as tendências de
busca por modernidade, higienização e embelezamento da época. Exemplo disso foi a construção do
Theatro São José na década de 1920, atualmente ocupado pela Biblioteca Cassiano Ricardo, que,
como aponta Antonio Carlos Silva e Estefânia Fraga ao estudar o prédio, almejava exalar ares de
progresso e glamour. (SILVA; FRAGA, 2008;99). Unindo-se a essa predisposição que vigorava, a
cidade entrou na Fase Sanatorial, período no qual ficou conhecida pelos seus “bons ares” para o
tratamento de tuberculosos, fato que veio a colaborar no projeto de higienização da cidade. (LESSA,
2008)
Diante de tantas mudanças na organização e planejamento da urbanização das cidades, os meios
sociais foram induzidos, de modo a terem de se adequar a um novo modelo, como constata Padilha
ao estudar a cidade de São Paulo na virada do século, “a essas transformações sociais e urbanas
correspondia uma nova experimentação do viver na cidade”. (PADILHA, 2011:21). Uma das formas
de entender essa “nova experimentação do viver na cidade” da qual Padilha fala, refere-se ao lugar
que os indivíduos vão ocupar nessa nova organização dos meios sociais, em especial, o da mulher.
Carla Pinsky ao estudar a mulher na primeira metade do século XX, entende que houve uma
necessidade de demarcar lugares e condutas aceitáveis e distinguir mulheres que seriam dignas do
respeito social. Uma vez que se iniciava um processo de distanciamento do ideal de mulher perfeita,
aquela que cuidaria da casa, sempre submissa, entendedora de que não estaria apta a ocupar os
espaços públicos uma vez que tais espaços pertenciam aos homens, mantêm-se virgem até o
casamento, andando sempre acompanhada ao sair de casa, obediente e não fazendo nada que
pudesse corromper sua reputação (PINSKY, 2012:472). A partir desse conceito, traça-se o perfil da
mulher perdida, ou seja, aquela que não seguia com os bons costumes, não sendo honrada ou digna
do respeito da sociedade. E essas determinações de boa e ruim eram tão fortes que estavam

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presentes até mesmo no Código Penal vigente, de 1890, que no caso de estupro diferenciava a
intensidade da pena dependendo se a ofendida fosse “mulher honesta” ou prostitua. (FAUSTO,
2001;206).

Metodologia

O presente trabalho se insere no âmbito da História Social, e desenvolveu-se através da analise


qualitativa de fontes documentais no período de 1906 -1922 disponibilizadas pelo Arquivo Público de
São José dos Campos-SP em parceria com o Núcleo de Pesquisa Pró-Memória. Atrelada a essa
análise, houve o estudo acerca do tema à luz de autores que tem desenvolvido pesquisas sobre o
tema, como Boris Fausto, Carla Pinsky, Iáris Cortês e Kety March.

Discussão

Em uma análise na qual o sujeito de estudo é a mulher dentro da legislação brasileira, Iáris Cortês
discorre sobre o Código Civil de 1916, que “esbanjou em discriminações, tratando-a como um ser
inferior, 'relativamente incapaz’, necessitada da proteção, orientação e aprovação masculina
(CORTÊS, 2012: 265). Essa mesma tendência preconceituosa com relação à mulher é observada no
Código Penal de 1890, que baseia os processos criminais analisados para este estudo. Seguindo as
tendências sociais, o Código Penal fazia diferenciação entre a “mulher honesta” e a desonesta:

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:

Pena - de prisão cellular por um a seis annos.

§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta:

Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos.


(Código Penal 1890)

Mas como aponta Cortês, a concepção de honra no sentido de “pureza, discrição, vida sexual
restrita ao casamento” só se aplicava à mulher, ou seja, questões que competiam a vida privada. Já
para o homem, honra relacionava-se à vida pública, ao seu proceder nos espaços públicos.
(CORTÊS, 2012: 266).
Para a sociedade da época, a diferenciação da mulher “santa” ou “pecadora” era feita pela
presença do hímen intacto ou pela falta deste (PINSKY, 2012:471). Esse ideal era ensinado às
moças desde seu nascimento, de forma a ser internalizado pelas mulheres o “dever de proteger o
‘selo’, a flor da virgindade [...]” (FAUSTO, 2001:201). No intento de manter a imagem de “moça de
bem”, as famílias não mediam esforços para proteger suas mulheres daqueles que poderiam vir a
desgraça-las, e até de seus próprios desejos sexuais. Para tanto, havia constante vigia sobre as
mesmas, cuidados sobre seu:

[...] modo de falar, caminhar, vestir ou perfumar-se, além


de evitar os ambientes por onde esta circula. Para não
"ficar falada", deve andar sempre acompanhada quando
sai de casa, para compras ou passeios. (PINSKY,
2012:472)

Para tanto cuidado com a virgindade há de se pensar que as moças tinham grande apreço sobre
essa condição , mas segundo Boris Fausto em seu estudo sobre crimes sexuais, a proteção da
“honra” estava ligada ao fato desta ser entendida como propriedade da família ou marido da mulher
em questão (FAUSTO, 2001;195-196).
Explorando o Código Penal de 1890, o autor faz diferenciação de estupro (artigo 269) – “ato pelo
qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não” – e defloramento (artigo 267)
– que seria desvirginar uma mulher virgem, menor de idade, empregando sedução, engano ou

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fraude. Levando em conta os documentos analisados para esta pesquisa, observou-se a maior
incidência de casos de defloramento, principalmente sob promessas de casamento, como alegaram
as ofendidas nos depoimentos prestados. Foram encontrados casos também de jovens defloradas
sob promessas de adquirirem uma propriedade, quantia de dinheiro e um casamento arranjado
vantajoso.
No entanto, para ambos os delitos a apuração de denuncias era, e ainda é, caracterizada pela
diferença entre o real e o apurado. Considerando a época estudada, isso se devia a vergonha da
moça e da família de levar a conhecimento publico a desonra ou agressão sexual sofrida ou mesmo a
expectativa da promessa de casamento ou pagamento feita na hora do defloramento (FAUSTO,
2001; 198). Em relação aos documentos analisados nota-se um grande período de tempo
transcorrido entre o ato de desvirginamento e a prestação de denuncia na delegacia de polícia, como
é o caso da jovem Idalina Maria Benedicta, em processo de 1918, que só presta queixa três anos
após ter sido deflorada. Em mais de um caso há a fala da ofendida alegando não ter ido a juízo antes
por vergonha do ocorrido.
Como aponta Fausto (2001), o processo crime de um defloramento ou estupro se dava de forma
muito específica. Iniciado com uma denuncia, logo partia para o exame de corpo de delito, “nos
defloramentos, os peritos devem esclarecer se o fato ocorreu, se é recente ou remoto.” (FAUSTO,
2001:203). Mas o que mais desperta interesse é a existência da fala de qualquer indivíduo citado no
processo, em especial a fala da ofendida, que nos casos estudados era o primeiro depoimento a ser
colhido. Entretanto, ao falar de como aconteciam os processos, o autor destaca que a declaração da
vitima, por vezes, era “um campo aberto onde os advogados dos acusados recolhem contradições
maiores ou menores”. (p.203). Essas inconsistências no testemunho da ofendida poderiam ser
atribuídas a contradição do exame médico, imprecisões quanto ao dia do desvirginamento ou mesmo
a mudança da autoria da desonra para outra pessoa que não a mencionada na denuncia, como
aconteceu com a menor Isaura Maria do Carmo de 14/15 anos, em documento de 1922. Alegando
primeiramente ter sido deflorada por Joaquim Augusto de Andrade, vulgo Joaquim Bingo, sob
promessa de “quinhentos mil reis, um terreno no logar chamado Tanque, no referido bairro e, ainda,
promover o seu casamento com Waldomiro Diogo Pinto” (Processo Crime – 1922; 4), depois mudou
seu depoimento dizendo ter sido Waldomiro Diogo Pinto o autor de sua desonra.
Contudo, o que mais se observou nos depoimentos que constavam nas ações foi o discurso
identificando a conduta da ofendida como desonrosa, conduzindo sua identificação à da mulher fácil,
desfrutável, numa justificativa ao ato praticado. A mesma constatação é observada por Kety March
em estudo feito sobre o estupro, entendendo-o como problemática histórica:

Aos homens acusados era mais prático usar


argumentações referentes ao estupro como ato
7
consentido ou provocado pela vítima , caracterizada
como desprendida da moralidade vigente e, assim, uma
mulher de pouca ou nenhuma credibilidade diante da
Justiça e da sociedade em que vivia. (MARCH, 2017;
101)

Estudando processos do fim do século XIX e inicio do século XX, Fausto averigua o mesmo
discurso de estigmatização da vítima:

Às vezes, procura-se demonstrar a "desonestidade" da


queixosa através de um conjunto de indícios
desfavoráveis, como o modo de vestir-se, de se
expressar, a freqüência a certos locais (FAUSTO, 2001;
209)

No caso de Anna Francisca, 13 anos em 1913, alegando ter sido deflorada por Dolor Rodrigues
Leite, 15 anos, ao ir comprar açúcar no armazém, consta no depoimento de mais de uma testemunha
falas como “ ouviu dizer por diversas vezes que alguns rapazes desta cidade, [...] faziam troça com
Anna Francisca [...]” (Defloramento – 1913; 33) ou como conta o empregador da menor sobre quando

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foi viajar para o Rio e a deixou com a cozinheira da casa, e ao voltar soube que Anna não comportou-
se bem, saltando pela janela a noite (p.28-29). A conduta apresentada nesses fragmentos pela
ofendida não reflete a que era esperado da “moça de bem”, de forma que o depoimento da mesma
passa a ser desacreditado.
Em outro caso, de 1914, em que Silvina Maria da Luz, 17 anos, atribui sua desonra a Carlino
Santos, encontra-se que:

[...] as declarações da ofendida não merecem fé,


porquanto estão em contradição com os depoimentos de
Maria Antonia e Juvenal a fls e fls, além de ser
inverosimel. Considerando que Silvina da Luz anda até
alta noite, em companhia de Maria Antonia [...] (Inquérito
Policial – 1914; 91)

A Maria Antonia citada aparece no processo como a “escória”, “mulher da vida” retratada por
Pinsky em seu estudo (2012: 472), e por associar-se a esse “tipo” de mulher, a denuncia de Silvina
perde a credibilidade no tribunal. Sendo assim, entende-se que as relações pessoais que a ofendida
possuía poderia influenciar na fidedignidade que seu depoimento teria junto a Justiça. Quando a
“mácula” social encontrava-se em alguém do circulo familiar, o estigma também englobava a vítima.
(FAUSTO,2001;208).
Foi o que aconteceu com a menor Donaria da Silva, 16 anos em 1906, deflorada por Rozendo
Moreira. Mas no depoimento das testemunhas percebe-se o mesmo discurso:

[...] 2º respondeu que o pai de Donaria é professor


particular em São João do Curralinho de onde manda
dinheiro para sua família (ilegível) e que ainda há pouco
dias mandou cartas pª a família. A 3ª que Donaria
sempre conviveu com entre prostitutas e que suas irmãs
são todas prostitutas. (Defloramento – 1906: 68-69)

E no final, em um último apelo do advogado do acusado de inocentá-lo, vê-se o uso da mácula da


conduta “imoral” das irmãs sendo estendida até a ofendida:

[...] assim afirma uma das testemunhas no inquérito,


dizendo que Donaria atribuiu o crime ao accusado,
porque é solteiro e tem dinheiro.
Pela leitura do processo já se conhece quem é Donaria,
sua mãe e irmãs. (Defloramento – 1906; 94)

Os depoimentos desmerecidos de fé, a falta de provas, os depoimentos que desqualificavam a


mulher cooperavam para que muitos dos crimes de defloramento e estupro fossem arquivados e os
autores saíssem impunes, o que ainda mantem-se, apenas com motivos diferentes dos encontrados
nos processos estudados.

Conclusão

Neste trabalho observou-se que a cidade de São José dos Campos, embora não se constituisse
como um dos maiores centros urbanos de seu período, não fugiu às tendências modernizadoras e
higienistas de seu tempo. Em relação às mulheres , percebe-se a permanência da dicotomia mulher
“santa” ou “pecadora” e constante patrulha sobre a conduta das moças, principalmente de suas
famílias, para assegurar sua “honra”. Tal dicotomização é percebida, inclusive, no Código Penal de
1890.

XXI Encontro Latino Americano de Iniciação Científica, XVII Encontro Latino Americano de Pós-Graduação e 4
VII Encontro de Iniciação à Docência – Universidade do Vale do Paraíba.
O discurso de “moça de bem” era tão difundido na sociedade que é possível encontrar em
processos criminais de delitos sexuais a fala de promotores públicos justificando o descredito da
declaração da ofendida por conta da conduta que esta teria, segundo o depoimento das testemunhas.
E, regularmente, esse discurso era corroborado com a falta de provas ou testemunhas o que é
característico desse tipo de delito, como aponta March (2017), devido a “intimidade do crime” (p.107).

Portanto, nos documentos analisados, é possível perceber a transferência de culpa pelo


desvirginamento do autor do crime para a vitima, isto por conta desta ter atos ou estar associada a
pessoas que eram vistas através do prisma da “mulher fácil, “mulher da vida” ou “prostituta”.

Referências

CANDIOTO, Fábio Zanutto. À Luz da Modernidade Joseense: a Light em São José dos Campos
(1935-1945). In: PAPALI, Maria Aparecida; ZANETTI, Valéria (Org.). Volume I: Os Campos da
Cidade : Sâo José Revisitada. São Paulo: Intergraf, 2008.

CORTÊS, Iáris Ramalho. A Triha Legislativa da Mulher. In: PINSKY, Carla Bassanezi; Pedro, Joana
Maria (Org.).Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto: 2012.

FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a Criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2º ed. São Paulo:
Editora da Universidade de Sâo Paulo, 2001

LESSA, Simone Narciso. A Construção do Pólo Regional do Vale do Paríba: Palnejamento Regional
e Ordenamento Territorial de São José dos Campos. In: PAPALI, Maria Aparecida; ZANETTI, Valéria
(Org.). Volume I: Os Campos da Cidade : Sâo José Revisitada. São Paulo: Intergraf, 2008.

MARCH, Kety Carla. CORPOS SUBJUGADOS: ESTUPRO COMO PROBLEMÁTICA HISTÓRICA.


Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 10, n. 1, jan./jun. 2017. Disponível em
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/oficinadohistoriador/article/view/26768/15676>
Acesso em 9 de jun de 2017
PADILHA, Márcia. A Cidade como Espetáculo: Publicidade e Vida Urbana na São Paulo dos
Anos 20. 1ª ed. São Paulo: Annablume, 2001.
PINSKY, Carla Bassanezi. A Era dos Modelos Rígidos. In: PINSKY, Carla Bassanezi; Pedro, Joana
Maria (Org.).Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto: 2012.
SILVA, Antônio Carlos Oliveira; FRAGA, Estefânia Knotz Canguçu. Em Cena: Teatro São José, um
Patrimônio, Multiplos Significados (1905-1940). In: PAPALI, Maria Aparecida; ZANETTI, Valéria
(Org.). Volume I: Os Campos da Cidade : Sâo José Revisitada. São Paulo: Intergraf, 2008.
SOIBET, Rachel. Mulheres Pobres e Violência no Brasil Urbano. In: PRIORE, Mary Del; PINSKY,
Carla Bassanezi (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10ª ed. São Paualo: Contexto: 2012.

Fontes Primárias
Arquivo Público da Cidade de São José dos Campos/SP.
Inquérito Policial: 2º Oficio Cível – Caixa: 793 – Controle: 15 – Ano : 1918
Sumário Crime: 1º Oficio Cível – Caixa: 2909 – Controle: 646 – Ano : 1922
Defloramento: 1º Oficio Cível – Caixa: 2895 – Controle: 447 – Ano : 1913
Sumário Crime - Defloramento: 1º Oficio Cível – Caixa: 2885 – Controle: 534 – Ano : 1906
Sumário: 1º Oficio Cível – Caixa: 2895 – Controle: 572 – Ano : 1914

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