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anaeaoe : “ Praxis Docente _Errcamepeycanermeremeernn moreno copyrigt © 2019 das organizadoras representantes dos colaborador es Coordenacao Editorial: Pontes Editores Editoracao € capa: Eckel Wayne Revisao: Pontes Editores pados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) Sesion Eiiléa Tavares dos./ Gund, Ivana Teixeira Figueiredo. / Gomes, Liliane Maria Fernandes Cordeiro. (Orgs.) ducacao e Desenvolvimento: sociabilidades ¢ tecnologias digitais / Eiziciéia Tavares dos Santos / Ivana Teixeira Figueiredo Gund / Efane Maria Fernandes Cordeiro Gomes (Orgs.)- Campinas, SP : Pontes Editores, 2019. Colecao: Formagao € Praxis Docente - Volume 5 Bibliografia. ISBN 978-85217-0154-5 1. Educagao 2. Formacao de professores 3. Meios auxiliares de ensino L Titulo Il. Colegao indices para catalogo sistematico: 1. Educagao - 370 2. Formagao de professores - 370.7 3, Meios auxiliares de ensino - 371.32 ‘Todos os direitos desta edigao reservados a Pontes Editores Ltda. Proibida a reprodugao total ou parcial em qualquer midia sem a autorizagao escrita da Editora. 0s infratores estdo sujeitos as penas da lei. PONTES EDITORES Rua Francisco Otaviano, 789 - Jd. Chapadio Campinas - SP - 13070-056 Fone 19 3252.6011 ponteseditores@ponteseditores.com.br www.ponteseditores.com.br 2019- Impresso no Brasil SUMARIO APRESENTAGAO... LITERATURA CELIE, A PROTAGONISTA DE A i CORTE & COSTURA.... COR PURPURA, E A ARTE Jacqueline Laranja Leal Marcelino COMER, CONVIVER, MODIFICAR‘SE: FI 6 N 5 -SE: FIGU E ICONOGRAFICAS DA COMIDA EM DOM QUOTES Ivana Teixeira Figueiredo Gund . “OBSESSAO”: CASO DE PAIXAO, AMO! LISPECTOR... , R E EROTISMO EM CLARICE Lilian Lima Gongalves dos Prazeres O UNIVERSO TRAGICO MODERNO NA PRODUCA A DE FLORBELA ESPANCA.. cones Valci Vieira dos Santos A FESTA CRUEL: MITO E SACRIFICIO EM A LUA E AS FOGUEIRAS, DE CESARE PAVESE... Bruna Fontes Ferraz TRAMAS LITERARIAS E SOCIAIS: A EXPULSAO DO PARAISO UM OLHAR, SOBRE A SERPENTE, DE NELSON RODRIGUES .. Gean Paulo Goncalves Santana Edson da Silva Santos SOCIABILIDADES EVES REFLEXOES SOBRE O PAPEL DAABORDAGEM EDUCAGAO ALIMENTAR: BRI s MENTO EM SAUDE PARA A SOCIABILIDADE..121 SOCIOECOLOGICA E LETRA\ Liziane Martins Nathalia da Silva Miranda Grégory Alves Dionor ABILIDADE NA CIDADE DA BAHIA O FRANCISCO PARREIRA. .... 133 AFRICANOS E SUAS REDES DE SOCI SETECENTISTA: O CASO DO CAPITA‘ Raiza Cristina Canuta da Hora Epucacio e Di ESENVOLVIMENTO: LITERATURAS, SOCIABILIDADES & TECNOLOGIAS DICITAIS “OBSESSAO": CASO DE PAIXAO, AMOR E EROTISMO EM CLARICE LISPECTOR Lilian Lima Goncalves dos Prazeres Porque eu fazia do amor um cdlculo matemdtico errado: pensava que, somando as compreensdes, eu amava. Nao sabia que, somando as incompreensoes é que se ama verdadeiramente. Clarice Lispector INTRODUGAO Neste artigo, faremos uma anilise do conto “Obsessao”, de Clarice Lispector. Este compée 0 livro de contos A Bela e a Fera (1979), uma obra postuma que retine oito contos. Trata-se de uma anilise bibliografica, de carater teérico e critico, tendo como objeto de estudo a obra acima apresentada. O conto escolhido nos faz vislumbrar os temas da paixao, do amor e do erotismo que perpassam a obra dessa escritora. Estudamos a personagem Cristina, também narradora da obra em questao, que, apesar de casada e ter uma vida tranquila com Jaime, apaixona-se perdi- damente por Daniel. A partir desse enamoramento, toda a sua vida e a dos que estado a sua volta se transformam. O suporte tedrico deste artigo esta pautado nos estudos de Baitalle (1987), Alberoni (1986), Octavio Paz (1994), Ester Oliveira (1996), dentre outros tedricos que lidam com os temas do amor, da paixao e do erotismo. 49 $=: oN 2 é ice Lispector? Ela nasceu no dia 19 d Quem é Cor ieia Prcraniana. Junto com as irmas em, de 1920, — de seu pais para o Brasil, em busca de cor’ Day judeus, mig! mais seguras de sobrevivéncia. Sua estreia eg at eae em 1940 e sua rapida ascensiao im, c escrito eriticos de literatura quanto 0s leitores de sya F avo afirma Yudith Rosenbaum (2002). Embora formada emt reito, escolheu a escrita como profissaio. Escolha acertada, Poig firmou-se no meio literdrio desde muito cedo, sendo Teconhecig e prestigiada pelos criticos de sua época. Dona de uma vasta intensa producao literaria, Clarice Lispector faleceu em 1977, vitima de um cancer. Pressign® Poca UM CASO DE PAIXAO, AMOR E EROTISMO “Obsessao” é narrado pela protagonista da obra, Cristina, Ela jdo inicia dizendo que se trata do rememoramento de um caso que viveu. O conto comeca com a narradora-protagonista nos contando como foi sua infancia, adolescéncia e a vida adulta, cor rendo sempre dentro dos limites da normalidade e dos padrdes culturais de sua época. Ela nos revela seus sonhos, quando jovem; Quanto aos meus sonhos, nessa idade tao cheia deles — os de uma jovem qualquer: casar, ter filhos e, finalmente, ser feliz, desejo que eu nao precisava bem e confusamente enquadrava nos fins dos mil romances que lera, sem me contagiar com seu ro- mantismo. Eu apenas esperava que tudo corresse bem, embora nunca me tomasse de contentamento se assim sucedia (LISPECTOR, 1979, p. 44). __ Tudo correra bem. Aos dezenove anos, Cristina conhece Jaime € casou-se com ele. No entanto, podemos perceber, na citacao acima, duas Caracteristicas importantes da protagonista: ae Pelo romantismo Presente nos livros e 0 na0 Sa com a realizacio de sey sonho, ja que este estava m tudo correr bem. Tudo ia bem, até o aparecimento 50 SS ———— Epucacdo € Desexvowmenro: ENTO: Litearuras, socaBiuoADes & TECNor LOGIAS DICITAIS de Daniel e, por conseguint te, 0 inici i se € que podemos classifi Cio de um tri car assim a situacao, aa Em poucas linhas, Percebemos qui sivel estudar sobre a Paixdo, o amc vets No entanto, Benjamin Moser andlise, por meio de uma 4 partir desta obra, é pos- amor e também sobre o erotismo. (2011) entende que, no conto em 'SaO Mais irénica em relag: ‘40 aos temas quanto a possi dade de uniao entre duas pessoas. Com mui frequéncia em sua obra 0 isolamento do individuo € absoluto, 0 fosso entre as Pessoas, instransponivel (MOSER, 2011 S12", Para este estudioso da obra clariceana, Clarice sé var buscar compreender como duas pessoas podem se unir na obra Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1998). - Martanézia Paganini (2005), por sua vez, chama a nossa aten- gao justamente para a presenga do erotismo na obra clariceana e sua relacgaéo com a moralidade: Na produgao literaria da escritora, verifica-se uma tensao entre erotismo e moralidade como marcas de identidade e representacao de um sujeito, em sua maioria feminino, que anseia por um desejo de auto- nomia e de afirmacao, oferecendo-nos possibilidades de se pensar o processo de construcao da identidade a partir da linguagem, fazendo-nos entre-ver um traco fundamental da modemidade - 0 desejo de autonomia—no embate com as contradigdes organi- zadas pela cultura e pela sociedade. Pode-se afirmar que a literatura de Clarice Lispector advém de uma relacdo de gozo. Entre os sinais anunciadores do pra- zer do texto em Clarice Lispector esta a construgao da linguagem, elaborada de maneira a produzir um efeito “devastador”, desconstruindo os lugares feitos (PAGANINI, 2005, p. 11-12). Ancia da linguagem na ns e toda a trama sao ‘oria que Cristina nos Essa pesquisadora destaca a import: obra de Lispector, afinal seus personage! formatados por meio da linguagem. A hist 51 xis Docente conta em “Qbsessdo” nada mais é do que a lingua, . de sua meméria. 0 feminino de sua obra: Enesse universo de linguagem que g,° Sev Cla cong ig 52 Partindo dessa perspectiva apresentada por Paganini (2005), podemos dizer que, de fato, o amor retratado por Clarice nao representa o amor idealizado e infinito, apesar disso, nao € pos. sivel desconsiderar a presenca dele na obra da autora, por mais que as desilusdes sejam constantes. Outro estudioso que também se interessou pelo tema da paixao em Clarice Lispector foi Benedito Nunes (1987). Revela sobre personagens femininas da autora: Ao apresentar este Universo “feminings nos mostra o quao importante é a lingua, ‘Petey construcao e identificagao do sujeito, linguagem, delineada pela escritora, dj acess, Ma outra via: a via do amor, nunca um amor perfen® mg doido, trucidado, feito de carne e verdade, Ooms descrito por Clarice, é rico e sensual, erotizae™, pulsa o tempo inteiro. Nos textos da escritora hi, ele certa pulsacao erdtica que vem da palavra, a Asa aescritora constréi em suas narrativas Persona sim, mulheres de todas as idades que, no embate ne pulsacao da sexualidade, tentam alcancar a posses si mesmas (PAGANINI, 2005, p. 12). le Ocorre Pa Estamos bem longe da ilusio romantica do desejo espontaneo, da aspiragao imaculada e da autonomia do sujeito enquanto Eu. Essas personagens femini nas séo personalidades fraturadas, divididas - “um feixe de Eus disparatados” -, que se surpreendem Por estarem existindo e que nao contam com 0 abrigo acolhedor da certeza de uma identidade. Buscam a si mesmas no que quer que busquem. Ou se desconhecem e se estranham, o Ego convertido em Alter, 0 circuito da consciéncia reflexiva inte™ rompido por um momento de éxtase que Ihes de Sorganiza a individualidade (NUNES, 1978, p. 275) —__——— Ao & Desenvot 7 EpucacAo HWIMENTO: LITERATURAS, SOcABILIOADES € TECNOLOGISS DICITAIS E justamente no despertar de Cristina para a existéncia pré- pria que 0 conto envereda pelos caminhos do amor e da and Como dito, tudo ocorria bem na vida da personagem ‘aime era um bom marido, pouco ardente, revelou, mas representava ase- guran¢a e a continuidade de seus Pais. Vivia sem Preocupacées, lia de vez em quando para se distrair, mas nao acreditava nas coisas que via nos livros. Era sé. calmaria: [...] As pessoas que me cercavam moviam-se tran- duilas, a testa lisa sem preocupacées, num ciraulo onde o habito ha muito alargara caminhos certos, onde os fatos explicavam-se razoavelmente por Causas visiveis e os mais extraordinarios se ligavam, nao por misticismo mas por comodismo, a Deus. Os unicos acontecimentos capazes de Perturbar suas almas eramo Nascimento, o casamento, a morte e os estados a eles continuos (LISPECTOR, 1979, p. 45). Porém, a calmaria rendia a Cristina estagios de melancolia, uma insatisfagao e, sem saber como lidar com esses assuntos, justificava-os como indisposicao fisica. Seu “caminhar entre a multidao de olhos fechados” (LISPECTOR, 1979, p. 46) foi inter- rompido somente quando a personagem quase morreu, por ter contraido febre tifoide. Durante a convalescenga, mostrou-se indisposta, fragil. Assim, em busca da sua melhora, a familia anunciou que ela seria mandada para Belo Horizonte, pois o clima de Id iria fortalecé-la. E af que a vida de Cristina comeca a mudar completamente. Talvez tenha sido o come¢o. Fora de minha orbita, longe das coisas como que nascidas comigo, senti-me sem apoio porque afinal nem as nogdes recebidas haviam criado raizes em mim, tao superficialmente eu vivia. O que até entao me sustentara nao eram convicges, mas as pessoas que as possuiam. Pela pri- meira vez davam-me uma oportunidade de ver com meus préprios olhos. Pela primeira vez isolavam-me comigo mesma (LISPECTOR, 1979, p. 47). 53 ——— casi Sos e is Docente mento de isolamento, inicialmente, na Esse a Crist escrevia cartas par: 0 fo davel para Cristina. Esta tas paraoes of agra desejo de voltar para casa. Mas ¢justamente h falay Fe aio quea protagonista de “Obsessao” e: oe eves dele, um sentimento novo comecou e, . . sua vida: 0 enamoramento. Pa Segundo Francesco Alberoni (1986, p. 18), © enamoramento é um separar do que estay do e unir o que estava dividido, mas uni; de uni, especial, pois essa unido se apresenta com ™ nativa estrutural a uma relacgao estruturada, q Iter. estrutura desafia radicalmente a antiga, tirandgy® todo o valor. Paralelamente, funda a nova onan dade na base de um valor e um diteito absolute reorganiza ao redor destes todas as outras coisee Essa reorganizacao nao se produz num instante; ¢ um processo. O que se produz num instante bo aparecimento do objeto puro do eros, 0 qual nes aparece como revelacéo. O enamoramento, no en. tanto, nao é esse instante, mas sim um processo no qual o objeto puro do eros, surgido num instante, perde-se, logo reaparece, volta a se perder e volt, a aparecer mais rico, mais concreto, e se impéea todos nés. Daniel tornou-se para Cristina esse objeto do desejo, do amor. A principio, enquanto reconstituiu a lembranca da historia que nos conta, ela nao se recordou do rosto dele. Revelou que, do Primeiro Daniel, esse que lhe fez seguir pelos caminhos da paixao, somente havia guardado a marca: “Sei que ele sorria, apenas isso. De quando em quando, surge-me qualquer traco seu, isolado, daqueles anteriores. |...) Mais nada, E que ele me dominava de tal forma que, se assim Posso dizer, i i é-lo” - ; quase me impedia de vé- (LISPECTOR, 1979, p. 47). A angtistia tomou conta de Cristina, Pois ela pouco consegui: ‘4 Teconstituir a face do objeto amado. Na verdade, sua lembran ; Dranca sO a remetia alma, a “tudo que 30 era humano em Daniel” (LISPECTOR, 1979, p 47). , 54 A propensao de Cristina nha um casamento aparente pelos sintomas de desgaste a vida que levava. Nesse contexto, Al sintoma que conduz os sujeitos ao en Para o enamoramento, embora te- ‘Mente estavel, pode ser justificada emocional e insatisfacao Para com Iberoni (1986) nos fala do namoramento: O enamoramento surge da sobrecarga depressiva, xo &, da impossibilidade de encontrar alguma Coisa de valor na vida quotidiana, O “sintoma” da Predisposicao para o enamoramento [...] sentimento Profundo de nao ser ¢ nao ter nada de valor, ¢ a vergonha de nao té-lo, Esse é 0 primeiro sinal da Preparacao para o enamoramento: o sentimento da nulidade e a vergonha da propria nulidade (ALBE- RONI, 1986, p. 46-47). O que percebemos, através das Primeiras palavras do texto, é que a personagem de que tratamos vivia esse sentimento de nulidade, guiava-se conforme a vida e os outros lhe conduziam, nao tendo interesse por nada. Foram exatamente o desgaste emocional e a percepgao da vida vazia em que vivia os elementos que abriram as portas do coracao de Cristina Para a paixao. Daniel encontrava-se, portanto, no lugar certo e no momento certo. Daniel era um homem de grandes leituras, adorava os debates filos6ficos. Vivia na mesma pensao que Cristina se alo- jara. Esta o notara pela primeira vez quando 0 ouviu conversar com um estudante, insurgindo contra 0 trabalho. O que lhe chamou atencao foi o fato de Daniel agir diferentemente de seu pai e de seu esposo, que nunca se deram a Se de revoltar-se. “Sobretudo percebera ce das palavras le Daniel um descaso pelo estabelecido, pelas ‘coisas da vida (LISPECTOR, 1979, p. 49). Mais uma vez, compara aoa com Daniel, enquanto o primeiro era elogiado pelo bom ese penho, pelo cumprimento da ordem estabeleci aoe — inde chamava a sua atengdo por representar 0 oposto 0 ae Isso revela outra caracteristica do enamoramento, esac Por Alberoni (1986, p. 50), 0 fato de que “[...] a pessoa 55, one ON rrocse xis Docente, 4.205 108505 olhos, ‘pois nela encontramos aquily mente desejavel””. ; nto € uM Proceso, a paixao Fi Cm ean dia. Ela sentia o desprezo geting nao mew Fao aos homens e mulheres acomodado, Niel, desprezo arensaol Passou a evitd-lo, tentou sentir antipa® ha a eer a sie aos seus. “Mas foi em vao, Daniel i dele, se para ele eu caminhava” (LISPECTOR, 1979, p. 45° Se eaeado Desde que descobriu a impossibilidade fa se afastar, passou a escutar as conversas do seu objeto de de. sejo, as reflexdes sobre a vida e as pessoas, tudo que ele tanto debatia. Tais conversas foram modificando a nossa Narradora, elas a despertaram do estado de dorméncia que até entao vivia, Lembrou-se dos livros mal lidos. A paixao por Daniel € seu des. pertar para um mundo novo foram se confundido na cabeca de Cristina. Ainda, de acordo com Alberoni, perfeiti é suma qe O enamoramento é um processo no qual a outra pessoa, aquela que encontramos e que nos cor- respondeu, se nos impée como 0 objeto pleno do desejo. Esse acontecimento nos impée a reorganiza- Gao de tudo, e esse fato obriga-nos a repensar tudo, especialmente o nosso passado. Na realidade, nao € um repensar, mas um refazer. E, com efeito, um renascimento (ALBERONI, 1986, p. 18). Cristina revisou seu passado e se redescobriu. Renasceu aberta para o mundo, deixou a Passividade de lado e se lancou na acao. Encontrou-se no estado nascente, de que nos fala Alberoni (1986). Ao relatar sua histéria, Tevela-nos a sua nova condicao: “Yoo tudo se entrelacou, confundiu-se dentro de mim e eu nao saberia Precisar se meu desassossego era o desejo de Daniel ou a ansia de procurar 0 novo mundo descoberto, Porque despertei simultaneamente mulher e humana” (LISPECTOR, 1979, p. 52): Desse modo, foi Ocorrend Seres, por iniciativa de Cristin lumbrada com a vida levada Pp © a aproximagao daqueles dois ‘a. Ela estava cada vez mais des or Daniel, que tinha o sofrimento 56 O_o Eoucacao € Desenvor 7 IVIMENTO: LITERATURAS, SOCIABIUDADES E TECNOLOGIAS DICITAIS como Unico meio Pp a narradora, a Daniel por i ‘OS poucos, também Fi T esse caminho, 0 desejo vida havi; despertado junto com ela, jo de vida havia Roland Barthes (1988), em Fragmentos de um discurso amoroso, nos fala de como 0 outro, o objet ‘0 amado, vai-se tornando um ser sagrado para aquele que o ama: O outro esta destin; Olimpo, onde tudo sobre mim. Essas di escalonadas, estar ‘ado a um habitat superior, um se decide e de onde tudo desce lecisdes que descem sao as vezes ndo o outro ele prdprio subordi- nado a uma instancia superior, de forma que sou Sujeito duas vezes: de quem eu amo e de quem ele depende (BARTHES, 1988, p. 72-73). Daniel, aos poucos, se tornou esse ser superior, soberano para Cristina. Ele a hipnotizava. Ela fazia tudo o que ele pedia, rebuscava as palavras Para parecer inteligente e agradd-lo. Cho- rava, era humilhada. Cristina nao compreendia o porqué de agir dessa forma, de aceitar tao submissamente as coisas que Daniel Ihe destinava: “[...] Nao sei o que, desde o inicio, impediu a minha revolta. Nao sei. Apenas recordo-me de que para o seu egoismo era um prazer dominar e que eu fui facil” (LISPECTOR, 1979, p. 58). Neste ponto da narrativa, Daniel faz a proposta de educé-la. Aqui, podemos dizer que hd um diadlogo com o livro Uma aprendi- zagem ou 0 livro dos prazeres (1998). Nele, a protagonista Loreley mantém uma relacgao amorosa com seu professor (Ulisses), que coloca como condicao para o romance acontecer a necessidade de que ela aprenda, pois era ainda muito nova e com poucos conhecimentos. Loreley se revolta com a atitude do professor de querer ensind-la, pois 0 que ela quer é realizar seu desejo. Ja Cristina se rende ao tom professoral de Daniel. Ela obedecia. Cristina vivia veementemente sua educacao e a intensidade do momento, até que dois acontecimentos vieram perturbar-lhe. O primeiro foi a visita de Jaime, a quem procurou esconder de S7 ¢: > | lo esposo. O segundo foi a doeng, ntia vergonha d q ] tecipou o seu retorno parao Rio de Janeiro, me causou-lhe grande preocupacao e softi ae se afastar de Daniel, queria até que ele the que a quisesse. z, sempre frio, afirmou que ela voltaria, nag ficarem juntos, mas para terminar © processo educacionay para ficarem J Cristina, sempre submissa e jd 0 amando, Penson, que comegara. xaltacoes stibitas que haviam se tornagg “(J numa daquelas ex ) t [+] im, desejei ajoelhar-me perto dele, rebaixar-me frequentes em mim, desey ij adoré-lo. [...] Temi nao suportar a dor de perdé-lo” (LISPECToR’ 1979, p. 62). E no momento da despedida que 0 erotismo ganha forca nas palavras de Cristina: Daniel, pois se! da mae, que am segundo motivo pois nao desejava pedisse pata ficar, Daniel, por sua ve? Eu esperava e na expectativa, todos os sentidos agucados, eu desejaria imobilizar todo 0 universo, temendo que uma folha se movesse, que alguém nos interrompesse, que minha respiracao, um gesto qualquer quebrasse 0 feitigo do momento, desvanecesse-o e fizesse-nos cair novamente na distancia e no vacuo das palavras. O sangue latejava- me surdamente nos pulsos, no peito, na testa. As mos geladas e timidas, quase insensiveis. Minha ansiedade deixava-me numa tensao extrema, como pronta para me atirar num sorvedouro, como pronta para enlouquecer (LISPECTOR, 1979, p. 62). Consideramos esta passagem 0 trecho mais er6tico do conto, onde toda a paixao que Cristina sente transborda e se revela em seu Corpo: 0 sangue latejante, as maos geladas e timidas. Tudo revela um mal-estar de desejo. Ester Oliveira nos diz que: Desde Aristdteles 0 desejo é definido como movi- mento, realizado pela imaginagao. Ele, como o olhat, fascina, faz brilhar o fogo escondido. Nasce de um interdito, de uma perda do objeto proibido, de uma beleza inalcangavel, pois o que é belo estimula-o ea 58 EoucacAo & DeseNvoLMENTO: LITERATURAS, SOCIABILIOADES E TECNOLOGIAS DiciTAIs beleza do co: ‘li ; 1996. p. 13-14), esta ligada ao que excita (OLIVEIRA, Nesse momento, Cristina estava descortinada, entregue a paixao e com medo de perdé-lo. O erotismo atinge profunda. mente © seu ser. Segundo Georges Bataille (1987, p, 14), “toda a concretizagao do erotismo tem por fim atingir 0 mais intimo do ser, no ponto em que o coracao nos falta. A Passagem do estado normal ao de desejo erdtico supde em nés a dissolucao relativa do ser constituido na ordem descontinua”. Nesse momento, nos- sa personagem tinha certeza de que sua vida mudara, havia se separado de todo o seu passado. Queria entregar-se para Daniel de corpo, pois a alma ja lhe fora entregue. “No momento mais grave de minha vida eu estava ridicula, dizia-me o olhar penalizado de Daniel” (LISPECTOR, 1979, p. 63). Esse trecho da obra, em que Daniel lancga um olhar de piedade para Cristina, traz para a discussao a importancia do olhar. Alfredo Bosi (1988) escreve sobre o tema do olhar: 0 olhar conhece sentindo (desejando ou temendo) e sente conhecendo. Esta impiantado na sensibi- lidade, na sexualidade: a sua raiz mais profunda & 0 inconsciente, a sua direcao é atraida pelo ima da intersubjetividade. O olhar condensa e projeta os estados e os movimentos da alma. As vezes a expressao do olhar é tao poderosa e concentrada que vale por um ato (BOSI, 1988, p. 78). E pelo olhar de Daniel que Cristina percebeu ainda mais intensa a sua aflicao. O olhar que ele Ihe langou nao é€ o olhar da sexualidade, do erotismo, mas aquele que revela seu estado de alma, a sua degradacao. Além disso, identificou nele, pois tam- bém o olha, uma recusa de seu amor. Ela nao se contentou com o olhar, apesar do poder que ele possui, e precisou confirmar com a palavra. Entao pergunta para Daniel sobre 0 que aconteceria se ela voltasse; a resposta nao foi uma das melhores: 59 hin. Son: xis Docente, Ficou em siléncio. E, como a on, Gao, acrescentou em voz lenta @ serena, exp} - E além disso, vocé me conhece Mais do preciso para viver comigo. Jg fale ite’ tig Acendeu o cigarro sem pressa, Olhousme; Pau: fundo dos olhos e num meio Sortiso conclyj ™ No a odiaria no dia em que nada Mais tivesse Mee dizer (LISPECTOR, 1979, P. 63). Para lhe POs uma | ica Tudo 0 que o ser que ama desej ja é ser Correspondido, 4 do se fala no desejo do Outro, nao se pensa em ser 9 Outro, Mas ser para ele 0 seu objeto de desejo. Ha sempre em nds um desej de sermos desejados” (OLIVEIRA, 1996, p. 14). Daniel + COM suas le Cristina, agrada-lo, ‘@S das car. Palavras, revelou nao corresponder ferindo-a ainda mais, Apesar de tud. tratou-o amavelmente, perguntou tas que lhe enviaria. Despediram-s aos sentimentos q lo, ela ainda tentou se receberia Tespost: e com um beij descoberto, haja visto que, segi Pessoa que descobrimos amar Penetrar neste mund. intensa”. Foi através do sentimento alimentado Por Daniel que havia atingindo a plenitude e agora ela escapava de suas maos. undo Alberoni (1990, p. 171), “a [-.-] € a porta, a Unica porta para 0 Novo, para ter acesso a esta vida mais tismo que Daniel des- Pertara nela. “O erotismo ¢, em si mesmo, desejo — um disparo em direcdo a um mais além” de desespero, de lor clarecedor com uma a0 mais além de qu (PAZ, 1994, p. 19). Depois de dias Nas conversas Consigo e de um didlogo es- amiga, Cristina resolveu reagir, ir em direca0 © NOS falou Paz (1994), Foi ajeitar-se, pintou 60 Epucacho & Desenvownmenro; MENTO: Literaruras, SOCIABILIDADES € TECNOLOGIAS DIGITAIS as unhas, Comportou-se diferente. como sempre atencioso, e num m dois a lembranga nitida de Daniel 1 racteristicas fisicas, a cor dos olh ajudou-a na resolucao de ir embor: sair para o trabalho, arrumou as ao encontro de seu amante, jaime retornou do trabalho, lomento de carinho entre os lhe chegou a mente, suas ca- 10s, dos cabelos. A lembranga a. No dia seguinte, apés Jaime malas, escreveu uma carta e foi “Os dias correram, os meses tombaram uns sobre os outros” (LISPECTOR, 1979, p. 75). O habito ja havia tomado conta do ca- sal, Cristina ja nao se surpreendia mais. Ainda assim, temia que ele a mandasse embora, de algum modo 0 necessitava. A Paixado avassaladora que sentia se esvaiu, restava 0 amor que nao era certo. Porém ja vislumbrava o fim do relacionamento. Tal fator nos faz lembrar os estudos de Octavio Paz (1994), quando trata do aspecto temporal do amor: O amor também é uma resposta: por ser temporal, © amor é, simultaneamente; consciéncia da morte e tentativa de fazer do instante uma eternidade. Todos os amores sao infelizes porque todos sao feitos de tempo, todos sao o né fragil das criaturas temporais que sabem que vao morrer; em todos 0s amores, até nos mais tragicos, ha um instan- te de felicidade que nao 6 exagerado chamar de sobre-humana: é uma vitéria contra o tempo, um vislumbrar do outro lado, esse mais além que é um aqui, onde nada muda e tudo o que é realmente é (PAZ, 1994, p. 189). Um acidente muda os rumos dessa historia. Por conta dele, ocorrido numa das estradas, Cristina ficou impedida de voltar para casa. Quando chegou, ja ahora do jantar, percebeu uma irritacao em Daniel. Este, por conta de sua auséncia, nao se alimentara durante todo o dia. Ela, prontamente, foi preparar 0 café e de stibito percebeu que Daniel necessitava dela. Nesse momento, Cristina o tira do pedestal que havia posto, pois ja havia servido 0 seu tempo de escrava, € 0 faria por toda a vida, se fosse para 61 ¢€ ha irmagdoe xis Docente um Deus. Ea necessidade que Daniel tinha dela 9 fe levou-lhe ao desencantamento, tirou-lhe o ar divino, p, FaaUg, cebeu que alguma coisa havia mudado em Cristina, tas ie| ia a reagir, discutiam, até optaram pelo siléncio, A Vida to®%ou ruim, desgastante para ambos, mas ja estavam habity, Ouse presenga, mesmo incémoda, do outro. Essa relacao con 0s § durou até uma noite de chuva, em que, confinados hum tugs, durante dias, foram levados ao limite. E justamente Crist ato, que tanto amou, quem constata que nao podem mais contin? juntos, identificando o carater insuportavel da situacio, War Essa descoberta de Cristina pode ser relacionada a a fi e 10 qui discorre Barthes sobre a constatacao do insuportavel: me Constatar 0 Insuportav I: esse grito serve Para alguma coisa: ao me significar que € preciso sai, disso, de qualquer maneira, instalo em mim Oteatro, marcial da Decisao, da Acao, da Saida. A exaltaca como um lucro secundario da minha impaciéncia; me alimento dela, nela me afundo (BARTHES, 1983, p. 132, grifos do autor). Foi envolvida pela exaltacao que Cristina deixou Daniel e novamente renasceu; diz ela que retornou a vida. Voltou para casa, nao encontrou a mae, que morreu quando ela partiu. Jaimea aceitou de volta, embora nao a tratasse mais como antes. Cristina continuou 0 seu aprendizado, a sua busca pela vida, mas agora sozinha — “sempre sozinha”. CONSIDERAGOES FINAIS Oamor imperfeito, cruel e que sofre é o amor que identifice mos em Clarice. Ele é intenso, pois parte do desejo de descober® e busca por parte do ser que ama, que se apaixona. AO mesmo tempo € um amor que nos contagia, nos faz sofrer, torcet pelt Personagem e nos envolve no traco erotico, fazendo-nos ir além. Esse amor aparece impregnado em cada linha, em cada palave escrita, como foi possivel ver em “Obsessio”. 62 Eoucacdo € Desenvowmenro; 'ENTO: LiTERATURAS, ‘SOCIABILIDADES £ TECNOLOGIAS DIGITAIS O olhar e sua forca também tém estudado, pois influenciaram diretamente nagens. Clarice soube transpor muito be: as sensagGes provocadas pelo olhar, ao amor, ao afeto, quanto aquele q qual atravessou as experiéncias am e Daniel. apel central no conto ‘@ na conduta das perso- 'M para 0 texto literdrio que € tanto o que conduz jue julga e que condena, o orosas entre Cristina, Jaime ; Esperamos que essa breve anilise contribua com os estudos literdrios sobre Clarice Lispector e sua obra. A pretensao aqui nao foi apresentar uma leitura final e tinica do conto em questao, pelo contrario, a ideia é a de que ele deixe brechas para novas leituras, questionamentos, indicando também uma possibilidade de pesquisa a partir da producao clariceana. REFERENCIAS Sa aen Francesco. Enamoramento e Amor. Rio de Janeiro: Rocco, ALBERONI, Francesco. O erotismo. Traducao de Elia Edel. Rio de Janeiro: Rocco, 1990. BARTHES, Roland (org.). Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: F Alves, 1988. BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1988. LISPECTOR, Clarice. “Obsessao”. In:_. ABela ea Fera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou 0 livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MOSER, Benjamin. Clarice, NUNES, Benedito. A paixao de Cl: Os sentidos da paixao. Sao Paulo: Comy OLIVEIRA, Ester Abreu Vieira de. O mito de Don Juan: sua relagao com Eros e Thanatos. Vitoria: Edufes, 1996. ma biografia. Sao Paulo: Cosac Naify, 2011. arice Lispector. In: CARDOSO, Sergio. panhia das Letras, 1987. < rmagao e xis Docente. Cae ae 0 € rep na ficgao de Tese, rome Fesen, Universidade Federal fe ae Lig Pitito Sang: to I, Martanézia R idades do univers' io de Mestrado- Ciéncias Human PAGANIN' particulari Dissertaca Centro de PAZ, Octavio. A dupla cham ROSENBAUM, Yudith, Clarice Lispector. Sao Paulo: Publ : Publifolha 1 2092, ‘as e Naturais, 2005. a. Sao Paulo: Siciliano, 1994.

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