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ESCOLA POLITÉCNICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária


PHD - 2301 HIDRÁULICA I

NOTAS DE AULAS

ESCOAMENTO EM MEIOS POROSOS

Prof. Livre-Docente Paolo Alfredini

São Paulo, 2000 (2ª Edição)


(1ª Edição: 1998)

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ESCOAMENTO EM MEIOS POROSOS

1. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO MOVIMENTO DE ÁGUAS SUBTERRÂNEAS

1.1 Generalidades sobre os escoamentos de filtração

Com o termo de filtração ou percolação compreende-se geralmente o conjunto dos


fenômenos de movimento da água através de um meio permeável, como aquele constituído
por um terreno solto natural. Esta propriedade propicia a que o fluido ache toda uma rede de
canalículos irregulares pelos quais pode se movimentar. Devido às pequenas dimensões destes
poros, o movimento apresenta relevantes resistências e portanto normalmente é muito lento.
Para cada ponto da água tem-se uma cota piezométrica, e que devido à lentidão do
movimento corresponde praticamente à distribuição hidrostática de pressões, pois a altura
cinética é normalmente negligenciável.
O movimento da água no meio poroso obedece ao princípio básico de deslocamento
dos pontos de maior nível piezométrico para os pontos de menor nível piezométrico. Há
necessidade deste gradiente piezométrico hidráulico na direção do movimento para compensar
a dissipação de energia devida às resistências viscosas. Na direção normal ao movimento, ao
contrário, a cota piezométrica é constante.
Resulta evidente a dificuldade de um estudo que pretenda seguir o movimento em cada
canalículo, cujas características geométricas são irregulares e complicadas, sendo portanto
preferível recorrer aos aspectos globais (macroscópicos) do movimento, considerando,
juntamente ao espaço efetivamente sede do movimento, também aquele ocupado pelas
partículas sólidas, considerando o todo como um conjunto físico tendo as propriedades do
meio contínuo.

1.2 Velocidade de filtração

A velocidade da água no meio poroso está relacionada com o tamanho e orientação


dos poros.
Designa-se por velocidade de filtração, ou velocidade média aparente, U, a quantidade
de água que atravessa na unidade de tempo (Q), a unidade de área aparente normal às linhas
de corrente. No escoamento em meios porosos, como se sabe, a água circulável ocupa apenas
uma fração ne da área total atravessada, já traduzindo em termos de características
tridimensionais, resultando então na velocidade real de filtração (Ur):

U = ne . Ur (1)

A velocidade de filtração é um parâmetro muito importante a considerar no domínio


dos escoamentos em meios permeáveis, referindo-se, em particular, a esta velocidade o
número de Reynolds do escoamento:

Re = U . d/ν (2)

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Sendo ν a viscosidade cinemática da água e o parâmetro geométrico característico, d,
é, por sua vez, normalmente o diâmetro médio ou mediano da curva granulométrica das
partículas do solo, sendo que em terrenos fissurados toma-se duas vezes a largura da fissura.

2. EQUAÇÕES DO MOVIMENTO EM MEIOS POROSOS

2.1 Aplicação das equações gerais do movimento aos escoamentos em meios porosos
homogêneos e isotrópicos - Lei de Darcy

Como anteriormente se referiu, o escoamento em meios porosos por ser muito lento é
normalmente laminar. Assim, sob esta premissa, espera-se que nos pequenos dutos formados
pelos interstícios do solo a velocidade de filtração seja proporcional segundo um coeficiente C
à perda de carga por unidade de comprimento na direção da velocidade, j (gradiente
piezométrico hidráulico), tal como ocorre nos movimentos viscosos laminares em condutos
cilíndricos capilares. Assim:

U = ne . C . j (3)

Considerando um coeficiente de proporcionalidade K, como produto da porosidade


efetiva pelo coeficiente de proporcionalidade C, chega-se à equação:

U=K.j (4)

O coeficiente K é conhecido por coeficiente de permeabilidade, condutividade


hidráulica ou, simplesmente, permeabilidade. Tem dimensões de velocidade.
A lei fundamental de filtração (Equação 4) foi estabelecida por Henry Darcy, em 1856,
no estudo “Fontaines Publiques de la Ville de Dijon”, com base na observação da variação da
cota piezométrica à passagem da água através de um filtro cilíndrico de material permeável
(ver Figura 1), sendo conhecida como Lei de Darcy.

Figura 1 - Esquema demonstrativo da Lei de Darcy

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Considerando-se o filtro ligando dois recipientes de nível constante, z1 a montante e z2
a jusante. A carga piezométrica na seção inicial é h1 e na seção final h2. Como as velocidades
são muito reduzidas, a linha de energia coincide praticamente com a linha piezométrica e
,assim, a perda de carga entre 1 e 2 resulta ∆E1-2 = z1 - z2 = ∆z, e como nos escoamentos em
condutos forçados define-se a perda de carga unitária j e pode-se escrever a Lei Universal de
Perda de Carga:

j = f . ne -2 . U2/(2 . g . d) (5)

sendo: f o coeficiente universal de perda de carga e g a aceleração da gravidade. Sabe-se que


para pequenas velocidades, em regime laminar:

f = a/Re = aν/(U . d) (6)

,resultando então:

U = [2 . g . d2/(a . ν . ne -2)] . j (7)

, correspondendo a expressão entre colchetes ao coeficiente de permeabilidade, conforme já se


havia previsto pela Equação (4). Esta é uma característica global do conjunto constituído pela
água e meio permeável. Enquanto a água pode ser facilmente qualificada por um único
parâmetro (a viscosidade cinemática), nas propriedades características do meio permeável
intervêm muitas grandezas, algumas das quais são de difícil definição, como a forma
geométrica dos canalículos, as suas dimensões, a água que é retida por capilaridade, etc.
A Lei de Darcy comporta-se como uma propriedade macroscópica do meio permeável,
sendo portanto válida somente quando intervém um grande número de poros e quando o
escoamento obedece ao regime laminar. Sua validade é para Re <1, geralmente seu limite
superior situando-se em 4 e excepcionalmente entre 5 e 12, que é a situação mais freqüente
em Hidráulica Subterrânea.

2.2 Permeabilidade

A Figura 2 correlaciona genericamente a porosidade e a permeabilidade de diferentes


sistemas aqüíferos, os quais podem ser também classificados de acordo com a permeabilidade
dos materiais que os compõem, conforme mostrado na Tabela 1. Na Tabela 2 apresentam-se
valores de permeabilidade de alguns solos típicos e na Tabela 3 valores das velocidades reais
de filtração em materiais granulares naturais para diferentes perdas de carga unitárias.

Figura 2 - Correlação genérica das formações com a porosidade e permeabilidade

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Tabela 1 - Classificações das formações em função da permeabilidade

Tabela 2 - Coeficientes de permeabilidade de alguns tipos de solos

Tabela 3 - Valores das velocidades reais de filtração em materiais granulares naturais

O valor da permeabilidade pode ser afetado pela composição química da água, por
exemplo no caso de existirem argilas cujo estágio de floculação pode variar, o mesmo

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podendo acontecer por precipitação química ou introdução de materiais finos arrastados no
escoamento.
Não se dispõe de resultados conclusivos quanto à determinação de K, no entanto é
certo que, pela analogia com o escoamento em tubos capilares, resulta proporcional ao
quadrado de um parâmetro linear característico, que pode ser a peneira que deixa passar uma
certa percentagem em peso dos grãos. Tal escolha parece justificável, na medida em que tal
valor relaciona-se indiretamente à dimensão transversal dos minúsculos tubos constituídos
pelos canalículos. Assim, Hazen (1892) propôs a expressão:

K = 0,00151 . g . de2/ν (S.I.) (8)

, que é válida para solos arenosos em que 0,1 mm < d10 < 3 mm e d60 < 5 . d10. Em que se
introduz o chamado diâmetro eficaz (de), que corresponde à dimensão da peneira que deixa
passar somente 10% em peso do material, com o que é dada grande importância, para fins de
percolação, sobretudo aos grãos de menores dimensões.
O coeficiente intrínseco de permeabilidade do meio, ou permeabilidade geométrica
corresponde a:
k = K . ν/g (9)

Este coeficiente tem dimensão de área. Tais expressões, entretanto, não esgotam o
problema, já que a dimensão de diâmetro por si só não representa de forma satisfatória a
tendência do meio ser percolado, sendo que para problemas e determinações mais precisas
torna-se necessário recorrer em cada caso a determinações experimentais.

2.3 Exame crítico da validade da Lei de Darcy

A Lei de Darcy é perfeitamente válida para estratos paralelos de permeabilidade


uniforme, nos quais a perda de carga unitária seja pequena. Como já se viu, a hipótese
admitida equivale a considerar o regime laminar, com resistência viscosa, ou em outras
palavras, pressupõe que o escoamento se faça com números de Reynolds pequenos.
Entretanto, para fortes declividades, o regime de escoamento pode tornar-se turbulento e então
a Lei de Darcy deixa de ser válida, conforme os pioneiros resultados de Forcheimer (1935).
Com base no valor Re = 10, Tolman (1937) calculou as velocidades críticas em que o regime
deixa de ser laminar em materiais de granulometria uniforme, apresentando os resultados
constantes da Tabela 4.

Tabela 4 - Velocidades críticas de escoamento da água a 20°C em meio granular uniforme

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A comparação dos dados desta tabela com os da Tabela 3 fornece um critério para
prever o tipo de regime para uma carga hidráulica conhecida em dado material granular.
Assim, é possível verificar que para qualquer material mais fino que o cascalho, sob cargas
normais, dificilmente o regime deixará de ser laminar.
Como se verá adiante, num poço no qual se retira água por bombeamento a
declividade da curva de depressão da linha piezométrica nas vizinhanças do poço é muito
elevada. Assim, em muitos casos, a validade da Lei de Darcy é discutível. Vários autores
propuseram para a função de resistência ao escoamento expressões diversas da forma linear
proposta por Darcy.
Nos filtros rápidos de tratamento de água o número de Reynolds varia de 0,4 a 3,0,
quando o filtro está bem limpo; já na operação de retro-lavagem do filtro, à contra-corrente,
com as velocidades indicadas pela prática, o número de Reynolds do escoamento é da ordem
de 30, muito além dos limites de aplicabilidade da Lei de Darcy.
Afim de se determinar o limite de aplicabilidade da Lei de Darcy procurou-se estudar
o movimento de filtração de modo análogo aos condutos forçados, isto é através da Lei
Universal de Perda de Carga:

j = f . U2/(d . 2 . g) (10)

, hipotizando-se que o coeficiente f dependa de um particular número de Reynolds referido à


dimensão d dos grãos como representativa do diâmetro dos condutos através dos quais ocorre
a filtração. Os resultados de experiências com areias e pedregulhos homogêneos de diâmetro
médio d mostram que o movimento laminar traduzido pela lei de Darcy é bem verificado até
um valor de número de Reynolds de 5, com f = 1150/Re (ver Figura 3).

Figura 3 - Gráfico de f x Re

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Resultando:

j = 575 . [ν/(g . d2)] . U (11)

, resultando a Lei de Darcy com:

K = 0,00174 . (g . d2)/ν (12)

, que é comparável com a Equação (8).

Como se pode observar pela Figura 3, após uma zona de transição, a partir de Re
aproximadamente 200, vale uma lei de movimento turbulento com f = 15,5. Segundo vários
estudos, esta transição para o movimento turbulento pode oscilar entre números de Reynolds
de 60 até 200, de acordo com as condições do meio. Nestas condições tem-se:

j = U2/K’ (13)

Mais recentemente este tema foi tratado por Arbhabhirama (1973) utilizando um
número de Reynolds e um coeficiente universal de perda de carga calculados com a raiz
quadrada do coeficiente intrínseco de permeabilidade do meio, k, respectivamente Rek e fk, ao
invés da dimensão d dos grãos.
Qualificando a seguir o material de diâmetro médio, d, de coeficiente intrínseco de
permeabilidade do meio, k, e de porosidade, n, com base no coeficiente adimensional a seguir
apresentado:

coeficiente adimensional = [d/(k/n)1/2] (14)

Os pontos experimentais para valores constantes deste número adimensional dispõem-


se sobre curvas correspondentes `a Equação (15) (ver Figura 4):

fk = Rek-1 + constante (15)

8
Figura 4- Gráfico de fk x Rek

Para valores reduzidos de Rek a Equação (15) traduz a Lei de Darcy, em que a
constante se anula. Para valores elevados de Rek o valor de fk tende a uma constante,
correspondendo ao movimento turbulento.
Assim, a introdução das paramétricas adimensionais fundamentadas na porosidade do
meio elimina as diferenças de comportamento devido à forma e a textura do material
granulométrico.

2.4 Determinação da permeabilidade


2.4.1 Considerações gerais

O conhecimento do coeficiente de permeabilidade é fundamental para a resolução dos


problemas de escoamento em meios permeáveis, dependendo os valores deste parâmetro da
forma, dimensões e arranjo dos grãos. A identificação do tipo de solo permite que se tenha, de
início, uma idéia da ordem de grandeza do coeficiente de permeabilidade, recorrendo-se às
tabelas anteriormente apresentadas. No entanto, para problemas e determinações mais precisas
torna-se necessário recorrer em cada caso a uma determinação experimental deste coeficiente,
seja em laboratório, seja “in situ”.A determinação em ensaios de laboratório utiliza aparelhos
genericamente denominados de permeâmetros, cujo princípio de funcionamento baseia-se na
Lei de Darcy, realizando-se um filtro com uma amostra indeformada colhida do terreno. As
medições de campo são essencialmente mais válidas, já que permitem examinar diretamente o

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terreno “in situ”. Esta determinação tem por base a análise do comportamento dos terrenos
quando se efetua a extração ou a injeção de vazões e envolve, em geral, a medição das
próprias vazões e de pressões ou cotas piezométricas e a introdução dos valores medidos nas
equações que regem os escoamentos produzidos.

2.4.2 Determinação do coeficiente de permeabilidade em laboratório

Referem-se sucintamente dois tipos de permeâmetros, o de carga constante e o de


carga variável.
• permeâmetro de carga constante (ver Figura 5a) é constituído por um reservatório
de seção constante, geralmente cilíndrico, contendo a amostra, disposta entre duas
placas porosas que não ofereçam praticamente resistência ao escoamento.

Figura 5 - Esquema do princípio de funcionamento de permeâmetros


(a) - carga constante (b) - carga variável

Aplica-se à referida amostra uma carga constante ∆h, que produz um escoamento
permanente no meio permeável com uma vazão que se mede por método volumétrico ou por
dispositivo medidor aferido. Sendo a vazão Q e A e L, respectivamente, a área da seção
transversal e a altura da amostra, tem-se:

K = (Q . L)/(A . ∆h) (16)

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Para a obtenção de resultados dignos de maior confiança realizam-se ensaios com
diferentes cargas.
O permeâmetro de carga variável (ver Figura 5b) é geralmente utilizado quando se
torna necessário aplicar uma carga elevada sobre a amostra, variando a carga e
conseqüentemente a vazão durante o ensaio. Representando por ∀ o volume escoado num
dado intervalo de tempo, t, por A e a as áreas das seções da amostra e do tubo de alimentação,
respectivamente, por ho a carga inicial e por h a carga após o decurso do tempo t, tem-se:

d∀/dt = (K . A . h)/L e d∀ = - a . dh ⇒ dh/h = - [(K . A)/(a . L)] . dt (17)

e, por integração entre os instantes inicial e final:

K = [(a . L)/(A . t)] . ln (ho/h) (18)

A determinação experimental da permeabilidade em laboratório é afetada por


diferentes causas de erro. Com efeito, sendo a amostra extraída de uma zona individualizada
do aqüífero pode não se revelar representativa das suas características globais. De fato,
quando é retirada a amostra o arranjo das partículas, em geral, modifica-se relativamente ao
que correspondia ao terreno natural. Também se torna difícil eliminar a totalidade do ar
existente nos interstícios do corpo de prova ensaiado, obtendo-se então um coeficiente de
permeabilidade inferior ao real. Finalmente, os ensaios anteriormente descritos não tomam em
consideração a anisotropia própria das formações geológicas naturais.

3. HIDRÁULICA DE AQUÍFEROS

3.1 Regime permanente

3.1.1 Âmbito

O conceito de regime permanente ocorre unicamente quando as extrações totais são


iguais aos totais de recarga. O estudo do regime permanente (ou estável ou de equilíbrio)
porém é de grande importância pois proporciona bases firmes para o estudo de fenômenos
mais complexos, além de resolver certos problemas específicos quando existem situações de
equilíbrio ou pseudo-equilíbrio.

3.1.2 Teoria elementar dos lençóis aqüíferos subterrâneos

A teoria elementar refere-se aos estudos de Dupuit (1863), relativos ao escoamento em


aqüíferos, bem como a um conjunto de exemplos de movimentos da água no solo

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condicionados por galerias ou trincheiras, poços e drenos, os quais têm aplicação direta em
problemas de drenagem e de captação de águas subterrâneas.
Considere-se um aqüífero limitado inferiormente por um estrato impermeável, de
superfície horizontal, e dotado de um poço, galeria ou trincheira drenante de que se extrai uma
vazão. A superfície freática adquire uma configuração do tipo esquematizado em corte na
Figura 6.

Figura 6 - Esquema relativo às hipóteses de Dupuit

Pretendendo determinar a relação entre esta configuração, a vazão e as características


do solo, Dupuit propôs um conjunto de hipóteses simplificadoras que são as seguintes:

a) O regime de escoamento é permanente e o meio é homogêneo e isotrópico;


b) A Lei de Darcy é aplicável ao meio considerado;
c) A perda de carga é igual ao desnível piezométrico, sendo o gradiente hidráulico
suficientemente pequeno para que a distância entre dois pontos da superfície freática possa
ser considerado igual à respectiva projeção horizontal (na Figura 6 ds pode ser tomado
como igual a dx);
d) Ao longo de qualquer linha vertical, que será uma linha isopiezométrica, a componente
horizontal de velocidade é constante, podendo desprezar-se a respectiva componente
vertical em consequência da hipótese c.

Considerando-se um sistema de eixos cartesiano Oxy, a que correspondem as


coordenadas assinaladas na Figura 6, a Lei de Darcy que corresponde a:

U = - K . senθ (19)

, passa a apresentar a forma de:

U = -K . ∂h/∂x = - K . tgθ (20)

Quando a inclinação da superfície freática, isto é a sua depleção, aumenta as


simplificações anteriores perdem validade pois ela equivale a considerar verticais as
superfícies equipotenciais.

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3.1.3 Escoamento para valas (trincheiras ou galerias) ou lençóis aqüíferos cilíndricos

O lençol aqüífero tem a designação de cilíndrico quando as linhas de corrente situam-


se em planos verticais paralelos e apresentam configurações idênticas em todos estes planos.
O escoamento correspondente pode ser estudado a duas dimensões.

a) Aqüífero freático

Considere-se o aqüífero freático da Figura 7 homogêneo e isotrópico, assente sobre


uma camada impermeável horizontal, em que q = Q/l.

Figura 7 – Lençol aqüífero freático cilíndrico

Este aqüífero é atravessado por uma vala horizontal que ocupa toda a sua espessura e é
alimentado por uma vazão igual à que é extraída da vala, isto é em regime permanente.
A integração da Equação (20), com a consideração de que Q = U . h . l, permite
determinar a forma da superfície livre, que é dada por:

h2 – h12 = 2 . Q . (x – x1)/(l . K) (21)

Assim, a equação da superfície de depressão é a de uma parábola.


Esta equação é válida somente para seções afastadas da vala. Na vizinhança da vala,
na verdade, as hipóteses de Dupuit não são mais válidas, pois onde ocorre a superfície de
ressurgência há forte inclinação da superfície livre. De fato, a curva de chamada define uma
altura de ressurgência, hr, que pode ser estimada por expressões empíricas. A Equação (22)
expressa a vazão:
Q=K.l.(h2-h12)/(2.(x-x1)) (22)

As hipóteses de Dupuit fornecem valores corretos para as vazões mas não para a
superfície livre, que está sujeita à correção da altura de ressurgência na vizinhança da vala.

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b) Aqüífero confinado

Considere-se um aqüífero confinado, horizontal, de espessura b, homogêneo e


isotrópico, cortado por uma vala também horizontal (ver Figura 8).

Figura 8 – Lençol aqüífero confinado cilíndrico

Admitindo-se que o regime seja permanente, isto é, que a camada seja alimentada por
uma vazão igual àquela que se extrai, proveniente de um rio, lago, etc. A vazão numa vala de
largura l será então:

Q=K.j.l.b (23)

Sendo x0 a distância à zona de alimentação (ou à zona não perturbada do escoamento)


e h0 a carga correspondente a esta distância e xv = 0 e hv os valores no início da vala, então:

Q = K . l . b .[(h0 – hv)/(x0 – xv)] = K . l . b . [(h0 – hv)/x0] (24)

O rebaixamento, S, em qualquer ponto é proporcional à vazão.

3.1.4 Lençóis aqüíferos convergentes

Os lençóis aqüíferos convergentes são caracterizados por superfície freática ou


piezométrica correspondente a uma superfície de revolução em torno de um eixo vertical. O
escoamento é radial, podendo analisar-se a partir de um plano que contenha o referido eixo de
revolução.

a) Poços completos em aqüíferos freáticos

Um poço diz-se completo quando atravessa todo o aqüífero, sendo o seu fundo
constituído por uma camada impermeável.
Neste caso a camada aqüífera é limitada pela superfície livre e pela camada
impermeável subjacente, que se considera horizontal. Ao iniciar-se o bombeamento dá-se um
rebaixamento da superfície livre na proximidade do poço, criando-se o cone de rebaixamento.

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O escoamento não pode ser considerado plano. De acordo com as hipóteses de Dupuit, e nas
condições reproduzidas na Figura 9, a velocidade de filtração é definida por:

U = - K . dh/dr (25)

e a vazão correspondente é dada por:

Q = 2 . π .K .r . h . dh/dr (26)

Figura 9 - Poço completo em aqüífero freático

, expressão que integrada entre duas superfícies cilíndricas correspondentes ao raio do poço,
rp, e à distância r0, em que a carga se torna igual à hidrostática, resulta em:

h02 - hp2 = Q . [ln (r0/rp)]/(π . K) (27)

Toma-se para r0 a distância para a qual a ação do poço já se faz sentir muito pouco.
Alguns autores consideram que este raio de influência é da ordem de ln (r0/rp) ~ 6.
Sendo h02 - hp2 = (h0 + hp)( h0 - hp) = Sp . (h0 + hp), então:

Sp = Q . [ln (r0/rp)]/[(π . K) (h0 + hp)] (28)

Esta é a curva característica do poço, que não é linear pois hp é função de Sp. A partir
dela pode-se determinar Q e K, conhecendo-se um ou outro e duas cotas freáticas. Na prática,
deve explorar-se o poço para valores de rebaixamento compreendidos entre 0,5 . h0 e 0.75 . h0,
até por razões de economia, uma vez que a vazão não é proporcional ao rebaixamento.
No que se refere à superfície livre, a fórmula de Dupuit somente é válida para
pequenos valores de inclinação da superfície livre (∂h/∂r < 0,2). Na vizinhança do poço há um
rebaixamento brusco da superfície livre, aparecendo uma superfície de ressurgência. Há várias
fórmulas para estimar esta superfície, indicando-se a de Boulton:

hr ~ h0 - hp - [c . Q/(2 . π . K . h0)] (29)

, em que: c = 3,75 para rp/h0 < 0,1; c = 3,5 para rp/h0 < 0,25.

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Numa zona afastada do poço e no caso de rebaixamento, S, muito pequeno em face de
h0, isto é se (h0 - h) << h0, pode-se tomar:

h02 - h2 ~ 2 . h0 . S (30)

, então:

S = 0,366 . Q .{ [log (r0/r)]/(K . h0)} (31)

b) Poços completos em aqüíferos confinados

Considere-se um aqüífero confinado por dois estratos impermeáveis horizontais e um


poço de raio rp, que atinge a formação impermeável inferior. Nas condições da Figura 10 tem-
se:

Q = 2 . π . b . K . r . dh/dr (32)

Figura 10 - Poço completo em aqüífero confinado

, a qual integrada, tal como no item anterior, fornece a curva que relaciona o rebaixamento no
poço, Sp, com a vazão em regime permanente, que usando o conceito de
transmissividade, T = K . b, é a seguinte:

Sp = h0 - hp = Q . [ln (r0/rp)]/(2 .π . T) = 0,366 . Q . [log (r0/rp)]/T (33)

A expressão da linha de carga ao longo do aqüífero será dada pelo rebaixamento S, no


ponto genérico à distância r do poço, que é conhecida por equação de Thiem (1906). Em
coordenadas semi-logarítmicas (S, log r), esta equação representa uma reta que é característica
do aqüífero. Aqui também pode-se obter Q e K, conhecendo-se duas cotas piezométricas.
A vazão é diretamente proporcional à permeabilidade, à espessura da camada e ao
rebaixamento no poço. Assim, num sistema de eixos cartesianos (Q, Sp) representa uma reta.
Aqui valem as mesmas observações anteriormente feitas quanto ao raio de influência do poço.
Na prática, para estudar-se o aqüífero instalam-se os poços de observação a várias
distâncias do poço e, para cada vazão constante, medem-se os rebaixamentos , Si, às várias

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distâncias, ri, depois de estabelecido o regime permanente. Traça-se, assim, a correlação mais
aproximada que passa por estes pontos. Para S = 0 corresponde a distância r0, determinando-
se assim o raio de influência do poço.

3.2 Regime variável

Nos casos anteriormente referidos considerou-se sempre o regime permanente, isto é


como o aqüífero alimentado com a vazão igual à que se extrai. Na maior parte dos casos reais
isto não ocorre.
No tratamento matemático dos movimentos permanentes considerou-se a água como
fluido incompressível e a estrutura do aqüífero como indeformável. Na realidade, ao se iniciar
a exploração de um aqüífero uma parcela importante da alimentação do poço provém da
descompressão da água na zona de redução de pressão e da compactação do estrato saturado.
Esta ação atinge gradualmente as regiões mais afastadas do local de bombeamento à medida
que se prolonga no tempo o processo de extração de água.
À medida que se extrai um volume de água, cria-se um cone de depleção, ou
depressão, que aumenta com o decorrer do prosseguimento do bombeamento. Assim, o
regime é variável, podendo eventualmente atingir um estágio em que as variações de nível são
tão pequenas que o regime poderia ser considerado permanente.
As equações fundamentais do regime variável são abordadas na literatura técnica
especializada.

4. BIBLIOGRAFIA

FUNDAÇÃO CENTRO TECNOLÓGICO DE HIDRÁULICA - Projeto, perfuração e


operação de poços profundos. 250 p., Impresso no CTH, São Paulo, 1988.

GARCEZ, L. N. - Elementos de Mecânica dos Fluidos - Hidráulica Geral. 449 p., Editora
Edgard Blücher Limitada, São Paulo, 1960.

GHETTI, A. - Idraulica. Parte Seconda, p. 330, Edizioni Libreria Cortina, Padova, 1977.

LENCASTRE, A. - Hidráulica Geral. 654 p., Hidroprojecto, Lisboa, 1983.

NOVAIS-BARBOSA, J. - Mecânica dos Fluidos e Hidráulica Geral. Volume 2, p. 480 a


808, Porto Editora, Porto, 1985.

PIMENTA, C. F. - Curso de Hidráulica Geral. Volume 1, 482 p., Centro Tecnológico de


Hidráulica, São Paulo, 1977.

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