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A Casa com Vista para o Mar de Marina Abramovié

Entrevista a
AnaBernstein

m novembro de 2002, Marina Abramovié A idéia


realizou a performance A Casa com Vista Essaperformancenascedo meu desejode ver seé
para o Mar na Galeria SeanKelly, em Chel- possivelusar a simplesdisciplina didria, regrase
sea,Nova York. Durante doze dias, de 15 a restrições
para mepurificar. Possotransformarmeu
26 de novembro, a artista viveu no espaço campode energia?É possivelpara estecampode
concebido por ela, constituído por três módu- energiatransformaro campode energiadopúbli-
los suspensosna parede ao fundo da galeria: à co e do espaço?
esquerda,um módulo contendo um vaso sani-
tário e um chuveiro; no meio, um módulo con- Condiçõespara a instalaçãoviva: artista
tendo uma mesa,uma cadeirade madeira e um Duraçãodo trabalho 12 dias
metrônomo; no módulo à direita, uma camade Comida semcomida
madeira sem colchão com um travesseirofeito Agua grandesquantidades
de pedrae uma pequenapia com uma torneira. dedguamineralpura
Em frente a cada módulo, via-se uma escada Falar semfalar
com degrausfeitos de enormes facas.Próximo Cantar possívelmasimprevisível
à entrada da sala, num pedestalao centro, um Escrever semescrever
telescópio. Em jejum durante estesdoze dias, Ler semler
Abramovié viveu à vista do público. A perfor- Dormir 7 horas
mance podia ser vista diariamente das 9:00 às Ficardepé ilimitado
18:00h. No dia 22 de novembro, uma sexta-fei- Sentar ilimitado
ra, a galeria permaneceuaberta ao público das Deitar ilimitado
9:00h até à meia-noite. No lobby da galeria,an- Banho 3 vezes por dia
tes de penetrar no espaçoda performance, o
público podia ler ascondiçõesdeterminadaspor Conditiçõespara a instalação viva: público
Abramovié para o trabalho, expostasao lado. usaro telescópio,
permaneceremsilêncioe
(A.B.) estabelecer
didlogode energiacoma artista

MarinaAbramovicé artistaplásticae performer.EntrevistaconcedidaaAna Bernstein,emNovaIorque,


em 18 deJaneirode 2003. :
Ana Bernsteiné mestreem Hist6ria Socialda Cultura pelaPUC-RJe cursao doutoradoem Perfor-
mancesStudiesna Universidadede NovaIorque.
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1-
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A Casacom Vistapara o Mar de MarinaAbramovié

\ SalaPreta:Vamos começarfalando sobre O telescópioestá presentepara revelar a


I a performanceA casacom vistapara o mar. A nudez da situação,o fato de que eu não tenho
l. meu ver essaperformance funciona como um
entrelugar do corpo do artista e do corpo do
onde me esconder.Há somente um momento
em todo o trabalho em que pude me esconder

público, porque você precisa do público, você de fato. É o momento em que estou tomando
esperaque o público tente estabeleceruma tro- banho, estou me enxugandoe ponho meu ros-
: ca de energiacom você, mas ao mesmo tempo to na tolha - por apenasalguns segundos.E
essaparticipação é restrita. Até mesmo em ter- quando estou no vasosanitário e abaixo minha
i mos físicos- há uma linha branca demarcando cabeça.Estessão os dois únicos momentos na
1- o espaçoentre você e o público e há também as performanceem que meu rosto não estavavisí-
~, escadascom degrausde facasque não constitu- velo O telescópio é realmente uma espéciede
f~ em exatamenteum meio de acesso.Somente medidaparamim de que nãohá nadaa escon-
~: um xamã poderia subir estasescadas.Então a der. Eu preciso destetipo de coisa quasecomo
meu ver há um paradoxonestetrabalho: por um um controle da parte do público, de que tudo o
lado você precisada participação, da troca com que ele estávendo é 100% e eu estou ali 100%.
o o público; por outro lado, a performance pa- Toda a idéia é realmentea interaçãoentre mim
recefavorecero vouyerismo,porque o público a e o público. Então a situação pode parecer
observaconstantemente,mesmo nas situações voyeurística apenasnum primeiro momento.
mais íntimas. E há também o telescópio, que Mas no momento em que você penetra no es-
ao mesmo tempo que recorta o campo visual, paço e sentea energiado espaço,há uma carga,
amplia a sensaçãode estarmoslhe observando você seenvolvede alguma maneira,você setor-
atravésda fechadura.Então a performance me na um participante, e aí o elemento voyeurís-
pareceum entrelugar do corpo do artista e do tico desaparece. Mas é definitivamente o entre-
corpo do público. lugar do corpo do artista e do corpo do público.
Marina: Você estátotalmente certa. Este Esta é realmentea minha primeira performan-
trabalho é realmentea idéia do entrelugar.Tam- ce que tem estaponte. Porqueao longo do meu
bém, nestetrabalho não só o público tem uma trabalho eu sempreconsidereique uma coisaé
função importante como também estou usan- o corpo do artista atuando diante do público,
do os objetos que sãofeitos principalmente para outra é o corpo do público criando os objetos
o público. De certa forma estou demonstrando que servem como adereços- eu os chamo de
como devemserusadosnuma re-ritualizaçãoda objetostransitórios, nunca de esculturas- a fim
vida cotidiana - como sentar, ficar de pé, dei- de que o público atue, que tenha a experiência,
tar, fazerxixi, tomar banho e daí por diante. E porque sempre acreditei que somente a expe-
há a presençado metrônomo, a presençados riência pessoalé capazde lhe transformar. Esta
minerais na forma de travesseiro,na cadeira e é a primeira vez que eu junto essasduas coisas
na cama. Mas não concordo muito com você de fato.
de que a performance seja sobre voyeurismo, SalaPreta:Uma dascoisasque se tornou
i porque a posição voyeurística é quando você totalmente clara para mim nestaperformanceé
I observaalgo ou alguém à distância e você não que para que o público possater a experiência
! participa de fato. Aqui, basicamente,vocêé um da performanceele tem que lhe dar o seu tem-
I participante ativo porque você tem essarelação po. Vi genteentrando e não tendo paciênciade
comigo através do olhar. Então todo mundo ficar; diziam "não há nada acontecendo"e iam
que quer participar neste trabalho tem apenas embora. Outras pessoaspermaneciame quan-
que dar um passoà frente e olhar para mim, e do você permanecee vem diversasvezes,vários
ti eu repondo imediatamente. dias, então você começarealmentea viver a ex-
~c periência.Quer dizer,você tem que ficar ali por
~

..
sala preta

um período muito maior do que geralmente verdadefoi assimque eu tive essaidéia, porque
levaparaver um trabalho numa galeria.O tem- os monges estão neste tipo de estado.Você se
po confere intensidade e profundidade à expe- transforma apenassentando perto deles, mes-
riência da performance. O espaçoda galeria se mo que você não entenda a língua. Logicamen-
torna, como você diz, uma "ilha de tempo", e te asvibraçõesem torno delessãoinexplicáveis,
isto é totalmente verdadeiro, porque vivemos mas você começa de fato a se sentir diferente
sempre correndo e nunca temos tempo para imediatamente. E eu estavapensando, vamos
nada. Neste sentido, seu trabalho propõe uma pegar um delese trazer aqui como se fosseum
relaçãodiferente com o tempo. Me lembra um readymade e mostrá-lo para o ocidente. E ao
pouco os filmes deTarkovsky,tão lentos que são mesmo tempo, eles não funcionariam no meu
quasedolorososde assistir. contexto porque essaé a minha coisa,não a de- .
Marina: Bom, vamos falar sobre tempo. lesoO contexto delesé o contexto espiritual do :

Uma das razõespor que faço essaperformance templo. Então isso seria quaseque uma substi-
de longa duraçãono séculoXXI, é também uma tuição violenta e a única outra possibilidadeera
reaçãoà geraçãomais nova, porque ela se tor- eu mesma fazer. Eu encarei essaperformance
nou uma espéciede vítima da vida apressada. toda como um experimento, foi realmenteum
Tudo tem que ser produzido para esseideal da experimento.
vida corrida, de forma que possaserrapidamen- Sala Preta: Para mim, o seu trabalho é
te consumido. E eu acho que nos tornamos ví- importante também porque nós lemos sobreas
timas também, a arte, o corpo, essetipo de coi- performancesdos anos70, e o fato de que você
sa, porque a arte é consumida rapidamente ainda está fazendo performancesé muito im-
como qualquer outro produto, como qualquer portante para seentender o que é a performan-
. outra mercadoria. Então quando você vem à ce, porque ninguém daquela época continua
galeria,você tem que estar apto a ver uma ins- trabalhando com performance.
talação,a ver uma performance para consumir Marina: Esteano eu vou fazerum grande
o significado daquilo em alguns segundose se- trabalho intitulado Cinco ObrasFdceis.Eu vou
guir adiante. Tudo se resume a esta idéia da re-fazercinco performances,uma minha e ou-
cultura da velocidade.Paul Virillio estásempre tras de quatro artistascujo trabalho eu realmen-
falando da cultura da velocidade - estamos pas- te amo. São performances de que apenas ouvi
sando rapidamente por nossosproblemas, por falar a respeito mas nunca vi e vou re-fazê-Ias.
nossasvidas, passandorapidamente atravésdo Eu propus essestrabalhos ao Guggenheim -
tempo. você sabe,esta idéia tem quasedez anos. Para
Nos anos 70 uma das atitudes mais im- mim é muito difícil, me toma um longo tempo
portantes da performance foi a performancede para fazer uma performance porque considero
longa duração em que o público estavaindo extremamentesério. É realmentesério. Então,
junto com o artista nessaoutra dimensão do para mim, também são importantes o lugar, a
tempo, masvocê realmentenecessitade tempo. ocasiãoe o momento em que isso deve ser fei-
Nos anos70 era fácil ter tempo, agoranão é tão to. Eu tenho me perguntado muito seestaper-
fácil. Então eu estavapensandocomo eu pode- formanceque eu estivefazendoagoraseriadife-
ria possivelmentetrabalhar isso em Nova York, rente seeu a tivessefeito antesou depois de 11
o que eu poderia fazerpara mudar isso.E acho de setembro;como as pessoassão receptivasde
que a única forma de fazerissoé me colocando formasdiferentes,especialmenteem Nova York.
em certos tipos de condição em que aguço mi- E eu havia feito esta proposta Gugge-
nha sensitividade e posso realmente mudar o nheim há muito tempo - porque estetrabalho
nível de vibração de energia- o que eu experi- tem que serfeito em um museu,tem que vir do
mentei com os monges tibetanos na fndia. Na museu porque eu quero colocar em questãode

I ~~
fífirmi
~
A Casa com Vista pára o Mar de Marina Abramovié

novo toda a idéia de performance, da repetição, aio ria das narrativas termina com o episódio do
da recuperação do trabalho. Questionar se te- revólver.l
mos o direito de repetir a performance, se não Marina: Mas isso não é verdade. A dura-
temos o direito, de que forma podemos inter- ção era seis horas e eu não tinha um relógio. A
pretar o trabalho de outra pessoae daí por dian- performance terminou quando o galerista veio
te. É realmente uma função histórica e acho que e me disse que as seis horas haviam se esgotado
tenho o direito de fazer isso porque venho des- e eu deixei de ser um objeto para ser minha pró-
sa geração. E essa geração tem sido completa- pria pessoa, e isso foi o fim. Para mim a preci-
mente mistificada; há tantos trabalhos que você são do tempo é muito importante. Como neste
ouve falar a respeito e eles são uma realidade último trabalho, em que foram doze dias, e eu
totalmente diferente do que as estórias conta- atuava das 9:00 às 18:00 h e, na sexta-feira, era
das para explicá-los e então se transformam em de 9:00 até meia-noite. O elemento tempo é
uma outra coisa. E eu quero refazê-Ias de algu- extremamente importante para mim porque eu
ma forma, para ver quais são os efeitos. E quan- programo minha mente para um certo tempo.
do eu propus ao Guggenheim - você sabe, o Sala Preta: Voltando à Casacom vista para
Guggenheim é uma instituição muito compli- o mar, qual foi o momento mais difícil nesta
cada -, eles disseram sim, talvez, todas essas performance?
questões. Agora, depois desta performance (A Marina: Houve um momento muito di-
casa com vista para o mar), eles querem fazer fícil mentalmente e um momento muito difícil
amanhã. Agora eu não posso fazer amanhã, eu fisicamente. Fisicamente, foi extremante difícil
preciso de tempo. Então estamos discutindo fa- o dia em que a galeria ficou aberta das 9:00h
zer este trabalho este ano. E eu quero re-fazer até a meia-noite, o que significa 15 horas. Mui-
I estas performances e vou chamá-Ias de Cinco tas pessoasdormiram em galerias no passado -
\i ObrasFdceis. . ~ a artis~aingle.saColette~' r:nas
Chris~Bur.den,
t AS~laPreta:QuaIssaoasperformances
que eles~ao tInham que Int.eragIrcom o.publIco.
voce vaI fazer? Eu dIgo que estou dormIndo na galerIa mas na
Marina: Transfixed de Chris Burden, Seed verdade eu nunca dormi, o público era o ele-
Bed de (Vi to) Acconci, Candle Bed de Gina mento mais importante para mim, eu não iria
Pane, minha performance Ritmo O e mais uma virar meu rosto e deitar na cama e apenas estar
performance - talvez algo de Denis Oppenheim ali. Então eu estava quinze horas nessa condi-
ou Bruce Nauman, não sei, ainda estou pensan- ção... porque todo dia eu me acostumava com a
do para ter certeza do que vai ser. idéia de nove horas - das 9:00 às 18:00 - e sen-
Sala Preta: Eu li tantas versões diferentes ti que o ritmo do meu corpo se acostumou ao
de Ritmo o. . . período de nove horas. É impressionante como
Marina: Elas são sempre diferentes. o corpo é como uma máquina. Ele se torna re-
Sala Preta: e quase nenhuma delas men- almente preciso, como um mecanismo, você
ciona o fato de que a performance acabou ao sabeexatamente que horas são sem ter que olhar
fim de seishoras, quando você deixou a galeria.A o relógio. Mas no momento em que as nove

1 Na performance Ritmo Oa artista "dispôs sobreuma mesa72 objetos diferentes- incluindo uma arma,
1 uma bala, fósforos, álcool, um chicote, um machado e uma gilet, entre outros - para serem,usadosno
! seu corpo pelo publico como este o desejasse".Ver Bernstein, Ana, Marina Abramovic; do corpo do
~ artista ao corpodopúblico, in VozesFemininas:gênero,mediações
eprdticasda escrita(org. de F. Sussekind,
~ T. Dias, C. Azevedo.Rio de Janeiro, Edições Casade Rui Barbosa,2003, p. 378-97.

,8
-
sala preta

horas se passaram,eu estavarealmenteexausta va tão envergonhadoque não quis escrevernada


e entãoeu tinha que continuar por mais seis paramim. Issomachucamuito. Ele realmente ~
horas. Issofoi realmentedifícil. Foi fisicamente é um bom artista, não é que ele sejaum idiota. "
muito difícil. Quand~deume~a-noite,
eu esta- Eu fiquei pensandocomoissofoi possível.Ele II
va tremendo. Mas veja, seeu tivesseprograma- vem de uma formação completamentediferen- ~'
do estatarefae tivessedito que seriamquinze te, talvezeu estejahá muito tempopor aqui e .;

horas,eu estariaótima. É impressionante,


você elenãopodeseconectarcom o meutrabalhoe I

pode fazer o que quiser com o seu corpo, e eu o que eu estavarealmente fazendoali, e sentiu
possuo essaforça de vontade realmente louca. essetipo de coisa. Foi realmente um choque,
Mas sevocê se programa e o corpo adquire um um choque completo.
certo ritmo. Mas mudar o ritmo se torna uma Sala Preta: Mas ele provavelmente tem ~
tortura. Então, acho que nas minhas futuras acompanhadoo seutrabalho... ;
performanceseu devo estabelecerum número Marina: Sim e não, porque com a guerra
máximo de horas e nunca alterá-lo. na Iugoslávia,não há comunicaçãode fato. Você .
A outra coisa difícil foi uma pessoaque não recebeo New York Times lá e também não
entrou na salae havia uma luz forte no rosto e recebelivros. E eu comeceia pensar,seráque é
eu não podia ver direito. Mas fisicamentesenti inveja, mas não acredito que ele possaser tão
que estapessoaera meu ex-marido da Iuguslá- baixo. E minha mãe estavapreocupada.Ela dis-
via, o qual eu não vejo há trinta anos ou coisa se: o que você está fazendo com sua carreira,
parecida,um tempo enorme. Eu estavacerta de vocêestáfazendoumascoisasestúpidas.Eu dis-
que ele estavaali. Foi tão emocional, meu cora- se:acho que isso é a melhor coisaque já fiz até
ção estavapalpitando, era uma coisa que tinha hoje, na minha vida. Então foram essesdois
a ver com o passado,eu tive que me cobrir de momentos. De resto, eu estavatentando lidar
certa forma e era tão forte porque era uma es- com os problemasdo dia-a-dia, como tonteira,
pécie de reconhecimento intuitivo - seu rosto cansaço,todo o resto.A coisaprincipal era que I
tinha mudado, não sei se isto é verdade ou se todo tempo eu tinha que me colocar numa si- :,
eu não o reconheci, sei lá. Eu apenastive esse tuação envolvendo um certo tipo de dificulda- i
sentimento em relaçãoa ele. Trinta anos é um de; eu tenho sempre que me posicionar no li- "
longo tempo, aspessoasmudam. Após o fim da mite e então eu entro em foco. Isso ajuda mui-
performance,eu disseao Sean(Kelly) estou ab- to, ajuda um bocado. E o resultadoé que você
solutamentecerta de que vi meu ex-marido. Ele não é a pessoamais importante do mundo, o
disse:você estárealmentealucinando, você está público é mais importante. O problema com I
louca, porque seele estivesseaqui ele escreveria os artistas é essacoisa do ego, eles acham que
alguma coisa- porque eu recebi estasacola sãoótimos,achamquesãoimportantes,e todo I;
cheiade bilhetes de pessoaspara mim, me dan- esseego se torna um enorme obstáculo para a
do pequenascoisas,foi uma respostamaravilho- verdadeiraessênciada sua arte aparecer.Aqui, .
sae eu fiquei bastantetocada.E eu estavaolhan- eu não era a coisamais importante do mundo e
do entre essascoisaspara ver se havia algo dei- isso realmenteajuda.
xado por ele, e nada. Então, uma semanamais SalaPreta:Eu considerovocê e o seutra-
tarde,liguei para~ minha m~ee ela me di~se balho com? ~xtremame~te generosos
e issoé t
que o meu ex-mandoestavaIa. Ele é um artls- realmenteurncoentreartistas. .f'
ta, e ele estavalá e foi embora depois de ficar Marina: Ensinar também é muito impor- 1~
uma ou duas horas ali. Ela disseque ele a pro- tante para mim. Acho que toda a idéia da arte e :..

curou para dizer que esta era a pior coisa que do ensino, especialmente,é que num determi-
ele tinha visto em sua vida e que era tão ruim nado ponto da suacarreiravocê tem que passar
que ele estavaenvergonhadopor mim. Ele esta- o seu conhecimento incondicionalmente para

~ ,'.J
-"
fic'W
~13;gi 1
~
A Casa com Vista para o Mar de Marina Abramovié

as novasgerações,.vocêtem que estar incondi- realmente importante para mim. Porque esses
t cionalmenteaberta,porque acredito que em es- três aspectosdo meu trabalho - o corpo do pú-
, sência.o artista é um se~idor .d~ sociedade. b~ico,o corpo do artist~ e asofi~inas- i.st~si~-
AcredIto que esta é a COIsamaIs Importante. rufica em todos os sentIdosa mInha exIstencIa
,
, Detestoestaatitude de ficar fechadono estú- comoartista.
; dio, semseimportar com o que aspessoaspen- SalaPreta:Você publicou também o Un-
I sam,achandoque um dia elasvão me reconhe- finished Businesse FreshAir.
cer. Eu acho isso totalmente egoísta.A verda- Marina: UnfinishedBusinessé como um
deira arte é dar alguma coisa. Claro que você livro de receitas,como um pequeno manual:
estátrabalhando para você, numa primeira ins- vocêpode ir e ficar encarandouma árvore,abra-
;' tância,masdepois,é tudo paraosoutrose isso çandoa árvoree selamentandopor 15 minu-
é realmenteimportante. JosephBeuyseraassim, tos no mínimo. Então você pode fazer isso.
Oohn) Cage era assim,e essessão grandespes- FreshAir é na verdadeum catálogode uma ex-
, soasque acredito me deram uma enorme ener- posiçãodos meus alunos.Também fiz Marking
gia para continuar. O ego é um veneno.E é por the Territory- me convidaram parasercuradora
essarazãoque eu ensino. Os meus alunos têm de uma exposiçãosobre performancesna qual
uma relaçãotão difícil com os professores.Es- eu tinha uma porção de artistas. Porque quan-
tes basicamentetêm inveja (dos alunos), por- do faço palestras,quasenunca falo sobre meu
que elessão mais jovens e vão tomar o seu lu- próprio trabalho, semprecoloco o trabalho dos
gar.Mas eu acredito que fazerarte é muito pre- meus alunos ou das pessoasque gosto. Porque
cioso; quanto mais boa arte há no mundo, se você ver o que você realmentegosta, aquilo
melhor é o mundo. Então minha missão será com que você se relaciona, você entende a si
criar tanto quanto for possível.Vamos inundar mesmo um pouco melhor. Detesto quando é
" "

" a terracom arte. apenassobreo meu trabalho,achomuito cha-


I Sala Preta: Os melhores professoressão to, porque você se repete. Há certasformas de
aquelesque sãorealmentegenerosos. dizer coisase elassãosempreas mesmase você
Marina: Isso é tão importante. Mas você não pode inventar coisasdiferentes,porque en-
também recebe. Meus alunos realmente me tão você inventaria fatos diferentes.
, põem em foco com o espírito do tempo hoje, SalaPreta: Que artistas contemporâneos
do mundo em que estamosvivendo. Porqueeles vocêadmira ou que estãofazendotrabalhosque
realmentesabemo que está acontecendo,e eu trabalhoslhe inspiram?
tenho experiência,entãojuntos é uma bela tro- Marina: Acho que um dos artistas que é
., ca, realmente.Você conhecemeus livros Artist muito pouco conhecido e mereceuma posição
I Bodye Public Body.Agora estou fazendoo ter- muito melhor na história é Tehching Hsieh, um
:l. ceiro livro da trilogia, do mesmo tamanho dos artista de Taiwan. Ele é o artista mais inacredi-
. outros.Vai serlançado em setembro.Este livro tável. Perto das dele, as minhas performances
é apenassobre as minhas oficinas, não há um sãouma piada, porque ele é um mestre.Ele fez
só trabalho feito por mim. É todo sobreos alu- apenascinco performancesem sua vida e cada
nosque fizeram asoficinas Limpando a casaque performance durou um ano. Ele fez essaper-
eu venho dando no mundo todo e sobreo tra- formance com Linda Montano em que ele fi-
balho que resultou dessasoficinas, é todo sobre cou atado a ela por um ano. Essasó é bem co-
o desenvolvimentodeles. E agora estou fazen- nhecida por causada Linda Montano, mas as
r do essaslistas de todos os alunos que escolhi, outras performancessãoainda mais inacreditá-
í ~ quero dizer, não é todo mundo, você não pode veis. Ele fez uma performancena qual ele viveu
serdemocrático, têm que ser os melhores,mas na rua em Nova York - inverno e verão - sem
. vai ser um livro só sobre as oficina~. E isso é nenhum abrigo, por um ano. Fezum outro tra-

I 11
sala preta

"
balho incrível em que ele batia ponto a cada issofoi em relaçãoàquelemomento,não para !'

hora duranteum ano, com o dia e a hora es- sempre. I

tampados, a cada hora. Isso significa que você SalaPreta:Você diz que a coisamais im- j
não pode dormir mais do que uma hora, não portante na performance é a relação direta, a
pode se afastardesserelógio de ponto por mais transmissãodireta de energiaentre o artista e o ;J

de uma hora. Uma hora, um ano. Isso é uma público. O que aconteceseestaenergiaé ruim? ,
disciplina fantástica.Então, cada performance Marina: É uma realidade.Você tem que \)
dura um ano e depoisde cinco anos,suaúltima lidar com ela. Quando você diz que vai ficar
performance é apenasviver a vida. Ele estávi- nestaposiçãopor doze dias, qualquer coisaque "..
vendoa vida.E eleestáno Brooklynconstruin- acontecernestesdozediasé partedo trabalho. ~~
do casase vendendo-aspara ganhar a vida. Eu Qualquer coisaque acontecer.Então você não
também gosto de David Hammond. Ele estava pode dizer a má energia não faz parte porque
vendendo bolas de neve no Harlem. Ele é um vocêsó quer boa energia.É como na vida quan-
artista negro, é muito talentoso. Há algumas do você desejafelicidade e não quer tempos ru- i
pessoas
contemporâneas
que sãoterrivelmente ins,vocêquerdiasdesole nãoquerdiasdechu- I

interessantes.Mas o melhor é Tehching. Ele é va. Mas a vida não é assim,é tudo misturado,
imbatível. Quero dizer, o que são doze dias então você pegatoda a mistura junta.
comparadosa um ano?Eu fiquei pensandonele Sala Preta: Na verdade há um triângulo
durante essaperformance.Ele é muito especial. de energia que acontecena performance. Por-
Sala Preta: A performance mais famosa que não estamosem relaçãoapenascom você,
dele é a da corda com Linda Montano. mas também com os outros membros do pú-
Marina: E na verdadea idéia foi dele.Mas blico. Então, por exemplo, eu estavana galeria
por causada Linda Montano, por causado fato e alguémentravae eu sentiauma energiamuito
de que ela é americanae ele é de Taiwan, o tra- ruim vindo dessapessoa,e quando essapessoa
balho todo mudou. Ele é fantástico. ia embora era um verdadeiroalívio. .
SalaPreta:Em A Biografiavocêdiz adeus Marina: Mas você sabe,a diferençaentre 1
a uma porção de coisas- risco, extremos, in- vocêe eu naquelemomento é que, por estarem !

tensidade,perigo - mas estascoisascontinuam jejum e estandotão abertade uma certa forma, ~


presentesem seutrabalho. você se torna uma espéciede canal, então tudo -.
Marina:Certo.Masfoi a únicaformaque o queentra,sai,vocênãoguardanada.No seu !

tive de lidar com a dor da separaçãode Ulay, a caso,vocêestavaguardando.É por issoque tan- :
quem eu realmenteamei tanto. Essefoi o mo- tas pessoasque trabalham com cura acabamfi-
mento apósa Muralha da China quando eu es- cando doentes e precisam de tomar esseslon-
tavasofrendotanto que tive queencenara mi- gosbanhosparaselimpar. Mas de uma certa ,
nha vida para ter essetipo de distância. E nesse forma há um tipo de método em que você não
período, essefoi o período em que comecei a guarda, então a má energiavem e vai embora,
construir os objetos transitórios, eu não fiz per- como a boa energia apenasvem e vai embora,
formances,eu realmenteembarquei nessaidéia você se torna apenasum canal. E no momento
toda de glamour, de ser feminina, porque até em que vocêsetorna um canalvocê não coloca
então eu nunca tinha usadomaquiagem,nunca nenhum sentimento, você apenasé. E a idéia
tinha tido um vestido bonito. Fui ao cabelerei- toda dessaperformanceerasobreo aqui e o ago-
ro, comprei sapatosde salto, arrumei um aman- ra, e apenasser. E isso é algo que é o estado
te espanhol,foi realmenteum período sem ne- mental mais maravilhoso se você pode mantê-
nhuma dor. Eu realmentetive que lidar com um 10na vida real.Eu ainda não aprendi isso,ainda
monte de merda, fiquei numa grande depres- não é possívelde todo. Mas estar naqueletipo ';';
são por um longo período. E quando eu disse de momento em que você não acrescentasenti-

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ft13s;
.ii!ii~ I

I
-
A Casacom Vistapara o Mar de MarinaAbramovié

mentos,quando vocênão acrescentaasemoções tar o que você é e o fato de que todasessascon-


, ruins e as emoçõesboas, esseé realmente um tradiçõessãook. Essaé a dificuldade. Paramim,
, estadode equilíbrio, é um grandeestado.E nes- a parte realmenteimportante nestetrabalho era
ta performance eu estavanesteestado a maior a banalidadede fazerxixi, ir ao banheiro. Quan-
I parte do tempo, isso é realmente o que é fan- do você estáolhando para alguém e você esta-
tástico para mim. beleceesseincrível diálogo de energiae há um
Sala Preta: E as cores das roupas - você tremendo silêncio ns sala e todo mundo está ali,
escolhia as cores a cada dia ou elas eram pré- e ao mesmo tempo você tem que fazer xixi. E
determinadas? fazerxixi é um ato tão banal. Mas issoé a reali-
Marina: O construtivista russo Rod- dade e isso é novamentelidar com as contradi-
chenko desenhouumas roupas nos anos 1920 çõesdentro do trabalho. E lidar com isso com
chamadasde roupas de artista. Eu sempresenti dignidade é tão importante quanto qualquer
grande atração por elas, sempre gostei muito outra coisa.Então ascontradiçõessãoextrema-
delas.Basicamente,sãoroupasde trabalho, cal- mente importantes.
çasenormese blusasenormes com um tipo de SalaPreta:Você disseque ficou impressi-
manga... Então eu peguei essaidéia da roupa onada com o quanto a sociedadeamericanaé
de artista, uma espéciede uniforme de artista, reprimida, o quanto ela é puritana, e eu con-
masacrescenteiascores,porque (em Rodchen- cordo totalmente. Como a sexualidadeeravista
ko) a cor era semprea mesma.E eu acrescentei na luguslávia na suaadolescência? Você fala so-
a cor relacionadacom o conhecimento sânscri- bre a igualdadeentre homens e mulheresna lu-
to que eu tenho dasrelaçõesentre planetas,dias guslávia em termos de trabalho e de posições
e cores.É muito simples:segunda-feiraé a lua e sociais.E em termos mais pessoais,mais priva-
é a cor da água,azul escuro;terça-feiraé Marte, dos, como era?
um planetada agressãoe de um tipo de vital ida- Marina: Novamente, é incrivelmente
de, é vermelho; quarta-feira é Mercúrio, verde; cheio de contradições.Porquea situaçãoda mi-
quinta-feira é Júpiter, amarelo;sexta-feiraé Vê- nha família não era normal. A situaçãoda pró-
nus, branco; sábadoé Saturno, violeta; domin- pria luguslávia era sexualmentebastante libe-
go é o sol, ocre, um tipo de amarelodourado. E rada, do meu ponto de vista. Acho que os iu-
cadacor evocauma emoção,então quando você guslavossãoextremamentesexuais.Vocêvê nos
olha paramim vocêestáolhando paraa cor tam- jornais comuns, nos jornais políticos, como o
bém, então com o vermelho você tem boa ener- New York Times da luguslávia, há sempreessas
gia. Co.m az~l você se sente calmo. A p~or ~or gar?tas~~asinacreditavelmentevu:ga~esna pri-
para mIm fOI a verde. O verde é comurucaçao, meua pagIna- essescarasdos Bálcassaosexual- I

masesteverde,não sei,era um pouco como ver- mente obcecados.Mas no meu caso,minha mãe
de diarréia, eu não me senti tão bem com este era major do Exército e ela me mantinha den-
verde. Mas com cadacor eu me senti diferente. tro de um controle inacreditável.Eu tinha que
Eu fiquei esses12 dias em jejum e essaé chegarem casaàs 22:00 h e então todas as mi-
uma fase de muita dificuldade. Todo mundo nhasperformanceseram feitasantesdas22:00h,
pergunta como eu me preparo. Na noite anteri- o que é completamentelouco. E eu perdi minha
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or à performance eu comi moussede chocolate. virgindade quando eu tinha 23, 24 anos, por
É inconcebível, as pessoasque fazemjejum di- minha própria decisão,porque eu pensavaque
zem que você deve fazer isso, não deve fazer não era normal - eu não tinha oportunidade,
aquilo. Eu não. Eu apenasfaço essascoisasex- tinha que ser pela manhã. Mas de um modo
tremas, todas as vezes.Agora, eu adoro comer. geral, acho que era muito liberado e a posição
Ontem comi esseenorme bolo de chocolate. da mulher na luguslávia é extremamenteforte.
Mas você sabe,a coisa mais importante é acei- Essaé a razãopela qual eu jamais me interessei

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sala preta

por feminismo, porque minha mãe governava troco issopela arte. É por issoque eu gosto des-
tudo. E asmulherestêm a possiblidadede cons- safrasede Bruce Nauman, '~ arte é uma ques-
truir o novo paíscomunista, de estarenvolvidas tão de vida e morte. Issopode sermelodramáti-
em todos níveis do desenvolvimento- no Mi- co mastambém é verdadeiro."Estefoi meu pri-
nistério da Cultura, como diretoras de fábricas, meiro lema em meu primeiro livro, Artist Body.
em todasasposiçõesdo governo.Então eu sem- No segundolivro eu coloquei a frasede Camus,
pre senti que vocêpode fazerqualquer coisaque '~ única pessoaque não tem direito à solidão é
desejar,não importa se você é homem ou mu- o artista." E issoé, entre essasduasfrases,o que
lher. Nunca me senti reprimida, nunca senti que realmenteacredito. E issoestárealmenterelaci-
as mulheresfossemreprimidas. onado à minha formação.
SalaPreta:Me impressionoumuito a his- Sala Preta.' Então você se tornou uma
tória de como o seu avô - ele era Patriarca da guerreiraao seu modo.
Igreja Orodoxa - e seusdois irmãos foram as- Marina: Uma guerreirada arte, sim. Por-
sassinadospelo rei, em 1938. Soa fantástico, que, é como dizer adeusna Muralha da China,
quasecomo uma dessasestóriasque lemos em quer dizer, além de ser uma obra de arte, é o
asMil e Uma Noites... tipo de ato mais dramático e heróico que você
Marina: Eu sei. pode fazer.E doido também. Levamosoito anos
SalaPreta:Ele foi um santo e você é neta para conseguir permissão (do governo chinês)
de um santo, filha de guerreirose de um herói para fazê-Io.E você não desiste.E aí você não
nacional, isto é, figuras maioresdo que a vida. estámaisjunto masestácaminhando 2.500 km
Mas para você elessão parte de você. Críticos para dizer adeus. Você precisa ser totalmente
de arte com freqüênciacomparam o uso da dor, louco para fazerisso.
do sofrimento e do risco em seutrabalho com a Sala Preta: Começou como uma coisa e
corageme o sofrimento de guerreirose santos. terminou como o oposto.
Eu me pergunto como essaformação fantástica Marina: Nós devíamosnos casarno fim
influenciou seutrabalho, sevocêsesentiu com- da caminhadae ao fim foi uma separação.Mas
pelida a setornar uma espéciede guerreira. você faz de qualquer forma, não importa o que
Marina: Minha formaçãome influenciou aconteça.É por isso que é tão importante para
incrivelmente. Eu realmenteacredito em sacri- mim que quando você quer fazer uma coisa,
fício, em lendas,nessetipo de coisa,de que você você fixe uma certa estrutura de tempo e lugar,
sepõe de lado e tem que dar tudo para o mun- e não importa o que aconteça você tem que
do, como meus pais deram para o país,ou meu fazê-Io.Estaé a parte maisforte da idéia.Sevocê
avô para a igreja. Eu realmenteacho que apenas muda, ou desiste,estáacabado.

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