Você está na página 1de 14

1

OS BRAÇOS MISERICORDIOSOS: IGREJA, IRMANDADES RELIGIOSAS E


SECULARIZAÇÃO NO PROCESSO DE ENTERRAMENTO DA BELÉM
OITOCENTISTA (1850-1891)

Letícia Pereira Barriga (PPHIST-UFPA/História-UNAMA)

Marlon Pablo Souza Paraense (Universidade de Lisboa/Faculdade de Letras)

PALAVRAS-CHAVE: ​Enterramento. Igreja Católica. Secularização.

Introdução
Em meados do século XIX, os surtos epidêmicos e o processo de secularização
dos cemitérios acabaram por contribuir para o enfraquecimento do poder da Igreja
Católica sobre a morte em várias províncias do Brasil. Tendo ocorrido em diversos
campos da sociedade, a secularização fez-se sentir nas mais profundas estruturas
culturais da sociedade brasileira, vindo a se consolidar definitivamente na virada do
século XIX para o XX. De acordo com os estudos de Berger (1985 apud SILVA, 2005,
p.136), “o instituto da secularização é o processo pelo qual setores da sociedade e da
cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”, processo que
ocorreu na Belém do século XIX.
Em Belém, capital da província do Grão-Pará, parte da cultura passou a se
desvencilhar de muitas amarras imprimidas pela Igreja Católica que, por séculos, foi a
principal mentora de diversas atividades (educação, saúde, valores, comportamento) e,
dentre elas, as exercidas no campo dos mortos. Assim, o processo de enterramento,
exclusivo da Igreja, passou a ser gerenciado pelo Estado, configurando na secularização
dos cemitérios com a criação do Cemitério de Nossa Senhora da Soledade, em 1850.
Faz-se necessário observarmos alguns costumes e tradições fúnebres que
estavam enraizados e consolidados culturalmente numa sociedade de população
tradicionalmente católica, e regidas pelos ditos ​bons costumes da ​Santa Mãe Igreja​. Os
solos dos templos católicos eram considerados sagrados; assim, a prática de
sepultamentos fora desses recintos era inconcebível. Uma grande parte da população
católica acreditava fielmente que dessa forma criar-se-ia um elo entre vivos e mortos
através das orações cotidianas além, claro, de se manter um prestígio social e da
salvação da alma do falecido.
2

De acordo com Érika Amorim da Silva (2005), este espaço comum do cotidiano
de parte da população era algo enraizado e há muito consolidado. A Igreja até esse
momento desempenhava um papel fundamental de templo principal na cidade mas,
sobretudo, servia também de espaço para muitos outros fins que iam do nascimento às
reuniões políticas, findando com o sepultamento conforme evidenciado a seguir:

(...) a notoriedade do catolicismo romano no seio da sociedade ocidental há


muito havia se cristalizado já que, por muito tempo, foi esta instituição que
ditou as regras de condutas sociais como o casamento, nascimento e óbitos,
uma vez que o Brasil se encontrava sobre o regime do Padroado. (SILVA,
2005, p. 22)

É no seio de uma sociedade marcada por condutas sociais rigorosamente aplicadas pela
Igreja, que os sucessivos anos de epidemias na segunda metade do século XIX
contribuíram para o surgimento e a consolidação dos cemitérios fora dos domínios da
igreja e sua posterior secularização. Tais situações causaram um forte desgaste no Clero
1
, a ponto deste atuar em várias instâncias de modo a tentar encontrar meios que
refutassem a perda do domínio sobre os mortos.
Após séculos de hegemonia sobre vivos e mortos, a Igreja estava por ver, no
horizonte próximo, uma perda significativa de parte de seu domínio sobre seu
“rebanho”. Esta situação foi observada no periódico ​A Boa Nova2, de origem católica,
possibilitando um olhar de dentro da própria Igreja. Os artigos do periódico noticiado
semanalmente deixavam transparecer acentuadamente as insatisfações e preocupações
da Igreja diante do Estado.
Assim, tradições e costumes postos em cheque, restava à Igreja trabalhar com
alternativas para tentar continuar com o prestígio e domínio sobre os mortos que, por
meio da secularização do enterramento, passariam para novos sepulcros construídos
fora dos seus domínios e supervisões. Dentre estas alternativas, temos o papel das
Irmandades. Tais instituições mantinham larga influência sobre seus associados, seja na
prática do catolicismo popular, ou na vida de cada um. Parte dessas influências era

1
Clero é a corporação de todos os sacerdotes ordenados a partir do diaconato, onde cada grau galgado
possui suas especificidades dentro da igreja, subdivididos em seculares, mas atuantes nas comunidades
paroquiais e regulares atentos mais aos assuntos internos, dentre eles a manutenção dos dogmas da Igreja.
2
O ​periódico católico ​A Boa Nova​ circulou na capital do Pará entre os anos de 1871-1873.
3

exercida fortemente pelas cartas de compromisso3, levadas muito a sério pelos


associados nas diferentes Irmandades que aqui se instalaram. Assim, ousamos
categorizar as Irmandades, no processo de secularização dos cemitérios em Belém,
como braços misericordiosos, alternativa encontrada pela Igreja para a garantia de seu
poder junto ao campo dos mortos.
Para tal análise, apoiamo-nos na documentação dos livros de sepultamentos do
Cemitério de Nossa Senhora da Soledade entre os anos de 1850-1880, e recortes do
periódico católico ​A Boa Nova que circulou na capital do Pará entre os anos de
1871-1883. Com base nestas fontes primárias, propusemos a mostrar como o processo
de secularização contribuiu para o enfraquecimento da Igreja em Belém,
especificamente no que diz respeito à gerência dos cemitérios e da prática do
sepultamento, direcionando-se às Irmandades religiosas como alternativas para a
garantia de seu prestígio.
Demarcaremos temporalmente a análise deste artigo do ano de 1850, momento
de inauguração do primeiro cemitério público e secular da cidade de Belém, e que
demarca o início do processo de secularização dos cemitérios, ao ano de 1891, onde se
finalizou a retomada em definitivo destes espaços públicos pelo Estado, com a
promulgação da primeira Constituição Republicana que pôs em circulação a lei de
secularização dos cemitérios, que desde 1890 já havia sido aprovada na Constituição
Provisória.

1. Fim da hegemonia: a Igreja e os mortos no processo de secularização

Na segunda metade do século XIX, o Brasil vivenciou um movimento jurídico e


político, mas também comportamental, que imprimiu mudanças estruturais em diversas
áreas da sociedade ocidental, qual seja o processo de secularização. De acordo com
Maria Aparecida Borges de Barros Rocha (2011) este processo

[...] refere-se primeiramente, a um fenômeno jurídico-político: a separação entre Igreja


e Estado. Com todas as transformações, o Estado moderno, temendo perder a
soberania, não tolera o domínio e o controle da instância religiosa sobre a

3
As cartas de compromisso das Irmandades eram uma espécie de estatuto que regiam cada uma delas,
tendo obrigatoriamente de serem aprovadas tanto pela Igreja quanto pelo Estado, para poderem funcionar
e serem reconhecidas.
4

sociedade. A secularização designa igualmente, a localização da religião fora


da esfera pública, e seu limite circunscrito ao domínio privado. Enfim, ela
remete a um processo de laicização pelo qual as diversas instituições sociais
conquistam sua autonomia dotando-se de ideologias, referências e regras
próprias (ROCHA, 2011, p. 02).

Das atividades comerciais às mudanças comportamentais. Dos enfermos aos


mortos. A paulatina transferência das ​mãos da Igreja para as ​mãos do Estado de um
conjunto de valores e ações conformou-se num processo de laicização da sociedade
brasileira. Quanto às questões envolvendo as áreas da saúde e dos enterramentos,
observamos uma correlação entre o processo de secularização e os discursos sanitaristas
proeminentes na época. Diante de um cenário abalado por fortes surtos epidêmicos,
crescia entre a intelectualidade e os governos de meados do XIX a necessidade de se
racionalizar as ações sanitárias, de medicalizar os atendimentos dos enfermos e de
laicizar os rituais fúnebres.

Tais surtos epidêmicos imprimiram tempos difíceis para Belém em meados do


século XIX. Severamente castigada pelas diversas epidemias ocorridas no período,
vivenciou uma atmosfera de medo e pânico disseminados sobre a população,
principalmente nas classes menos favorecidas, que beiravam a miséria e faziam de
lugares extremamente insalubres suas moradas, local ideal para abrigar as epidemias.
Marcada pela febre amarela no início da década 1850, a cidade de Belém chegou a ter
seu cotidiano alterado pelo medo da morte que reinava naquele momento, como
observado a seguir por Magda Nazaré Pereira da Costa.

Os estragos causados pela peste foram, portanto, inúmeros atingindo grande parte da
população, e em poucos meses a cidade de Belém e seus moradores tiveram
seu cotidiano totalmente alterado. Preocupado com a situação, o poder
público ressaltava ainda que “(...) nesses dias luctuosos de amargura e
atribulação, paralisou completamente a marcha dos negócios públicos e
particulares; os cuidados de todos se empregarão exclusivamente em sepultar
os mortos, e acudir os enfermos e agonizantes (...). (RELATÓRIO do
Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, 1850, ​apud C​ OSTA​, 2​ 006, p. 25)

Pelo fato das autoridades não terem encontrado uma profilaxia eficaz e capaz de conter
a febre amarela, outro surto epidêmico voltaria a se instalar nos anos de 1855-1856, e a
morte voltava a gracejar de forma mais aguda. Dessa vez a cólera voltaria a se instalar
5

sob os negligentes olhares das autoridades portuárias, ao subestimarem a entrada do


vírus por meio dos vapores vindos de outras províncias já contaminadas.
Não menos vítimas fez a varíola, conhecida há tempos por ter atormentado a
cidade pelo menos desde o século XVIII. Começou novamente a aparecer logo após a
passagem da febre amarela, entre os meses de maio de 1851 e setembro de 1852,
ceifando centenas de vidas em um curto período. A varíola voltaria seguidamente a
manifestar-se entre os anos de 1866-1868, 1872-1876, 1878-1885 e 1887-1890. Juntas,
tais epidemias consumiram milhares de vidas na província do Pará e, em especial, a
cidade de Belém, conforme é identificado nos livros de sepultamento do cemitério da
Soledade entre os anos de 1850-1880 (IHGP) e nos apontamentos mencionados por
Magda Nazaré Pereira da Costa (2006).
Este cenário epidêmico, correlacionado às péssimas condições sanitárias de
Belém, sustentaram os discursos sanitaristas recorrentes na segunda metade do XIX.
Para Cybelle Salvador Miranda (2013), as péssimas condições sanitaristas deste
período, somadas aos surtos epidêmicos, não deixavam muitas opções para recusas em
saneamento, mesmo que estas fossem de encontro aos costumes, valores e tradições
fúnebres.
A intensa circulação de pessoas e mercadorias levava a cidade de Belém a
desenvolver-se de forma acelerada na segunda metade do século XIX, muito
impulsionada pelo comércio do látex, surgindo como promissora no cenário econômico
internacional. Logo, o centro da cidade também propiciava um ambiente ideal para a
fácil propagação dos miasmas4, disseminando o medo, e desencadeando o pânico,
principalmente entre “pessoas de cor” e pobres5. Estes grupos étnico-sociais estavam
sempre dispostos a buscar oportunidades no centro comercial, mas habitavam em sua

4
Era comum nesse momento, observaram-se animais mortos nas ruas sem que tivessem alguém para
recolhê-los, além de entulhos de diversos tipos, todo esse material ao entrar em decomposição contribuía
para a proliferação de inúmeras epidemias, cólera e febre amarela achavam condições ideais para se
manifestarem. Uma vez que todo esse material em decomposição acabava contaminando os poucos
pontos de água potável existente na cidade, além de se também habitat ideal para os mosquitos
transmissores da febre amarela.
5
Ver: A teoria dos fluidos ou miasmas. MULLER, 2002 ​apud​ MIRANDA, Cybelle, 2013, p. 2-4.
6

maioria em locais com condições extremamente insalubres, ambiente ideal para a


morada das epidemias6.
Como forma de combater estas mazelas que assombravam as principais
províncias do Império, e diante de tamanhas evidências pautadas em bem elaborados
pronunciamentos higienistas, quase sempre não permitiam discursos e questionamentos
contrários, proibindo-se em definitivo os sepultamentos no interior das igrejas. Os
enterros fora dos interiores e arredores das igrejas iriam representar um distanciamento
das obrigações e costumes religiosos, além de uma considerável perda de receita para a
Igreja.
Entretanto, de acordo com Érika Amorim da Silva (2005), um novo discurso médico
sanitarista não seria capaz de mudar em pouco tempo costumes e relações enraizadas e
consolidadas em uma sociedade atrelada aos rituais fúnebres dentro do solo sagrado,
sendo percebida como uma forma direta de contato com Deus. Assim, essa retirada dos
interiores e arredores da igreja seria lenta e gradativa. As formas de resistir dos
belenenses giravam em torno de alguma garantia, ainda que pequena, da Igreja no
cemitério secularizado com a presença das Irmandades Religiosas, reação bem diferente
da presenciada em Salvador7.

6
Tal cenário de insalubridade e as correlatas políticas estatais na tentativa de solucioná-lo era uma realidade em
todo o Brasil oitocentista. Emília Viotti da Costa (2010), em suas observações, nos mostra também o
precário abastecimento de água disponível aos moradores, principalmente os do interior do Brasil, que
tinham em poucos poços e chafarizes públicos sua única fonte de abastecimento, ficando seus dejetos
depositados nos ribeirões ou no mar caso a cidade fosse litorânea ou simplesmente jogados nas ruas
destas cidades. Dentre as principais insalubridades que assolavam as cidades, a água potável exigia das
autoridades uma rápida e eficaz resposta, e em muitos casos só poderia ser dada com grandes
intervenções urbanas, quando implantadas poderiam afastar esses miasmas, além de proporcionar ao povo
outra visão da cidade, com o intuito de começar a agregar embelezamento e saneamento dos padrões
europeus, sobretudo francês. Ver: COSTA, Emilía Viotti da. ​Da monarquia à república: momentos
decisivos​. 9 ed. São Paulo: UNESP, 2010.
7
​ e
A capital da província da Bahia foi palco em 1836 do evento conhecido pela historiografia como ​Cemiterada. D
acordo com os estudos de João José Reis (1991), a ​Cemiterada mobilizou a população local, membros das
Irmandades se sentiram lesados com o novo ambiente destinado para os mortos. Na ocasião o espaço foi
destruído após sua inauguração, forçando as autoridades locais a revogarem as leis que regiam a
construção do cemitério e entregava a administração para um grupo de empresários, sendo reconstruído
um ano mais tarde quando a Santa Casa de Misericórdia adquire o local e reconstrói o cemitério para, em
1844 finalmente entrar em funcionamento. As negociações ocorridas em Salvador, entre Igreja,
Irmandades, Câmara e Governo, não conseguiram em tempo hábil encontrar uma solução satisfatória aos
interesses envolvidos, logo surgiram diversos movimentos liderados principalmente pelas Irmandades em
forma de abaixo assinado, fizeram chegar inclusive na corte no Rio de Janeiro. ver: REIS, João José. ​A
morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.​ São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
7

Em Belém, a criação do Cemitério da Soledade não implicou em contraposições


violentas. Tal reação menos acalorada pode ser compreendida de um lado pelos
recorrentes surtos epidêmicos, como analisamos em parágrafos acima, e de outro na
própria subdivisão do ambiente interno do cemitério, que desde sua fundação permitiu
às Irmandades adquirirem espaços específicos destinados aos seus associados, onde
posteriormente foram levantados jazigos suntuosos que lhes atenderiam na hora da
morte.
Assim, manifestações mais acaloradas em questionamento aos cemitérios
seculares acabaram por não se concretizarem em Belém, pois, instituições como as
Irmandades que mais poderiam excitar o povo, levando-o para a rua na tentativa de
refutar o novo espaço destinado aos mortos, acabaram por ser contempladas pelo
Estado, e consideradas pela Igreja Católica como uma alternativa, um ​braço
misericordioso​, para a garantia de algum prestígio sobre os enterramentos.

2. As Irmandades: entre tradições religiosas e mudanças seculares

Local de encontros geralmente norteados pela crença e devoção em um santo (a),


as Irmandades ou ​braços misericordiosos conseguiram em meios difícies de
convivência entre senhores escravocratas, negros escravizados, negros libertos, além de
índios e mulatos, formentar pequenos, porém, constantes, encontros capazes de
colocarem lado a lado esses indivíduos sociais do meados do século XIX. Daí esses
espaços de demarcação terem se tornado um dos principais modelos de socialização
dentro da sociedade belenense, capaz de reunir e proporcionar encontros de classes
sociais diferentes. De acordo com Marcio Couto Henrique (1997), as Irmandades,

Destacavam-se como um espaço privilegiado de socialização, a influência das


Irmandades religiosas se fazia notar nos mais variados momentos da vida
social dos paraenses. Conforme Julita Scarano, todos os acontecimentos, do
nascimento até a morte, eram comemorados nas confrarias e quem estivesse
fora delas seria olhado com “desconfiança” de que tal pessoa não se
encaixava nos critérios exigidos para ser aceito como irmão, coisas como não
ter “bons costumes”, “boa conduta moral e civil”, ser suspeito de “heresia” ou
participar de seitas condenadas pela Igreja Católica. (HENRIQUE, 1997. p.
18)
8

No Brasil oitocentista, destacavam-se os muitos ritos religiosos, sempre


imponentes e marcantes nas datas litúrgicas, cerimônias estas que também serviam para
mostrar aos devotos o quanto era necessário manter-se nos ensinamentos cristãos e
principalmente repassá-los às gerações mais novas. Por outro lado, estas datas podiam
servir também como oportunidade para a manutenção, cada vez maior, de uma
aparência de devotos praticantes e assíduos do catolicismo.
Proporcionados pelas diversas Irmandades que aqui se instalaram, estes eventos
tais como missas celebradas por uma dezena de padres em igrejas bem decoradas, além
das grandes procissões, cortavam o centro da cidade homenageando o santo (a) da
devoção. Todo este aparato enchia os olhos dos devotos que transformavam estes
momentos em uma verdadeira festa comentada em cada canto da cidade, conforme
observou João José Reis (1991).
Afinal, do nascimento do indivíduo até sua morte, obrigatoriamente passava-se
por rituais religiosos, sob os cuidados dessas Irmandades, que tinham dentre as suas
funções prestar assistência aos seus associados independentemente da sua classe social.
Dentre as assistências prestadas pelas Irmandades, uma das mais relevantes era a
assistência funerária, momento este trabalhado e planejado durante parte da vida do
falecido. Era inconcebível a um cidadão cristão não ter uma morte pautada sobre os
ritos fúnebres da Igreja Católica.
Independente da sua posição social, todos que professavam o catolicismo
almejavam serem enterrados junto aos santos dentro das igrejas ou aos arredores8 dela
(ARIÈS, 2014). Mesmo após o surgimento dos cemitérios extramuros santos, este
sentimento quanto ao enterramento ainda perdurou pois, de acordo com a crença
popular, acreditava-se que o sepultamento dentro desses limites deixava o indivíduo
mais próximo da santidade, proporcionando-lhe também grande prestígio social.
Estes ​braços misericordiosos prosperaram ao logo dos anos de sua fundação,
possibilitando-os construir, em alguns casos, suas próprias igrejas ou, em outros casos, a
ocuparem um altar lateral em outros templos. Seus recursos vinham de diversas

8
Além dos interiores das igrejas, fazia-se também uso para sepultamentos em espaços geralmente
localizados por trás dos templos ou nas suas laterais.
9

atividades proporcionadas ao decorrer de cada ano por seus associados, devendo


cumprir rigorosamente seus deveres e assim poder desfrutar de seus direitos em vida ou
após a morte, como pontua João José Reis,
Entre os deveres estavam o bom comportamento e a devoção católica, os
pagamentos de anuidade, a participação nas cerimônias civis e religiosas da
irmandade. Em troca, os irmãos tinham direito à assistência médica e jurídica,
ao socorro em momento de crise financeira, em alguns casos ajuda para a
compra de alforria e muito especialmente, direito a enterro decente para si, e
sepultura na capela da irmandade. (REIS, 2011, p. 50).

Em Belém, destacou-se a Irmandade de São Raimundo Nonato, fundada em


1870 por um mulato de nome Leopoldino do Espírito Santo de Andrade, basicamente
composta por negras e negros, sendo que em sua maioria eram mulheres. Estes, de
alguma maneira, conseguiram articulações no campo político e souberam utilizar ao seu
favor, mesmo tendo inúmeras dificuldades para se manterem vivos, numa sociedade
elitista e escravocrata onde a condição dos negros era extremamente difícil, segundo
Marcio Couto Henrique (1997).
Empenhadas sempre em manter e fazer valer os costumes católicos, as
Irmandades tratavam de cada detalhe do rito e cortejo fúnebre do associado em seu leito
de morte. Mortalhas, velas, caixões, tocheiros, sineiros, choradeiras, missas etc. Nada
passava despercebido, mesmo para aqueles sem muitas posses, sendo que suas
mensalidades pagas em vida mal podiam cobrir os gastos mínimos com o funeral.
Já àquelas famílias que podiam arcar com seus suntuosos funerais estes eram
transformados em verdadeiras festas, fazendo com que o acontecimento movimentasse a
cidade, principalmente financeiramente, gerando consideráveis receitas aos cofres,
sobretudo aos da Igreja, como nos mostra João José Reis, ao perceber que:
A renda funerária dos frades de São Francisco era respeitável. Ela representava em
média, 36% dos recursos que entravam e que incluíam, além dos serviços
fúnebres, venda de produtos da horta, contribuições das Irmandades que lá
funcionavam, aluguel de propriedades, esmolas etc. (REIS, 1991, p.232)

As análises de João José Reis (1991) foram feitas na cidade de Salvador entre os
anos de 1822-1825; no entanto, podemos supor também que cifras muito próximas eram
10

praticadas na cidade de Belém, que possuía também um núcleo franciscano e estava


entre uma das mais importantes cidades portuárias do Império9.
Tudo tinha seu preço e seu especialista, os padres, sobretudo os párocos, podiam
se beneficiar do comércio dos mortos, mesmo sob críticas do bispo,
Assim em 1829 o arcebispo chegou a chamar alguns de ‘indignos mercenários’, por se
recusarem sepultar os cadáveres de pobres, principalmente negros e índios,
mas também alguns brancos, porém defendeu a maioria deles, que segundo
ele esta ajuda fazia-se necessária, pois alguns deles viviam “quase a
mendigar” (REIS, 1991, p. 234).

Então, esses locais de refúgio chamados de Irmandades ou ​braços


misericordiosos,​ seriam realmente para aqueles que pudessem, de alguma maneira,
arcar com o mínimo de seu funeral, pois o comércio em torno desse acontecimento
beneficiava não somente o comerciante local mas, principalmente, as Irmandades e a
Igreja, que juntas detinham o monopólio sobre os mortos e eram beneficiadas com
vultosas cifras de contos de réis.
Numa visão mais detalhada, Reis (1991) identifica, em dado momento, uma
subdivisão do povo cristão em classes, que podiam variar de acordo com a sua posição
social e seu poder financeiro. Para a Igreja Católica a ​casa de Deus era para todos,
porém muitos que comungavam deste pensamento podiam ficar de fora e sem essa
assistência no último momento de sua vida, vindos a morrer da forma mais tenebrosa
para a mentalidade cristã da época: morrer sem um enterro digno e pautado na fé cristã.
Todo esse comércio funeral praticado entre as Irmandades e a Igreja em meados
do século XIX, em muito nos faz lembrar fatos ocorridos no processo de secularização.
Ao longo deste processo, agregaram-se novos personagens e sentidos e a Igreja Católica
ainda desempenhava seu papel nos funerais, mas de uma forma tímida e menos direta
do que antes, obtendo assim cifras desse comércio bem menores.
Já as Irmandades, estas foram gradativamente assumindo um espaço importante
no processo de enterramento, demarcando elementos religiosos nos rituais fúnebres,

9
Para melhor estudo sobre cidades portuárias no período ver: FURTADO, Luciana Martins. ​Nas pedras
do cais: cidade, cotidiano e trabalho Belém do Pará (1852-1912).​ UFPA Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas programa de pós-graduação em História Social da Amazônia, 2015; e SALES, Mábia Aline
Freitas, FARIAS, William Gaia e MOURÃO, Leila: ​O movimento do porto: a entrada de embarcações
estrangeiras nos meados da Belém oitocentista​. São Paulo, 2011.
11

podendo ser considerada pela Igreja como um braço misericordioso que garantia,
minimamente, seu prestígio ante o processo de laicização dos sepultamentos.

3. De ​braços quebrados:​ desentendimentos e o fim da relação entre Igreja e


Irmandades

Mesmo tendo em suas Cartas Compromisso a total obdiência ao Clero local, não
foram poucos os momentos antagônicos e querelas entre Irmandades e Igreja, na Belém
do último quartel do século XIX. Tais fissuras começaram a surgir muito em virtude do
processo de secularização, que avançava em direção a sua consolidação no campo dos
mortos, mas principalmente na política local, que tinha na sua configuração indivíduos
de outros segmentos religiosos, principalmente protestantes e maçons, que juntos
ameaçavam diretamente o poderio da Igreja Católica. Podemos observar o
arrefecimento da tensão nas queixas escritas por católicos publicadas no periódico ​A
Boa Nova​, vejamos
A atual questão das irmandades, bem que à primeira vista pareça attingir só a
disciplina, entende de um modo immediato com o dogma, e torna-se por isso
uma questão de princípios em que é impossivel à autoridade ecclesiastica
ceder. (...) De que se tracta, com effeito? Tracta-se de manter à frente dessas
pias instituições, encarregadas de parte do culto catholico, homens que estão
a frente da rebelião contra o Bispo, contra o Papa, contra o concílio, e contra
as doutrinas da Igreja Catholica (...) homens que ousaram dizer em face ao
seu legitimo prelado: vós sophismaes e corrompeis o cristianismo: somos nós
maçons que o professamos puro e verdadeiro; vós, Bispo catholico, sois um
malvado sectario: malvados sectarios são os padres que vos seguem.
Havemos de atacar-vos, e aracar-vos sempre, porque sois os maiores inimigos
da religião e da sociedade. (Jornal católico ​A Boa Nova​, 29 de abril de 1873,
p. 2, ano III).

Na queixa acima, podemos observar as incursões de grupos opostos à Igreja nas


Irmandades, principalmente os maçons, estes frequentemente repelidos e hostilizados
pela Igreja Católica10. Estas incursões levavam a um acirramento entre católicos e
maçons, observáveis nas contínuas acusações publicadas no periódico A Boa Nova,

10
Este fragmento extraído de um documento pertecente à propria Igreja permite uma interpretação a partir da
análise do campo político, possibilitando uma melhor compreensão do declínio das funções exercidadas
pelas Irmandades. Porém, uma ressalva faz-se necesária, o processo de secularização no campo político é
muito vasto, abrangente e complexo, por estes fatores não foi possível uma análise mais acurada em
respeito aos limites dentro deste artigo. Neste caso, optamos apenas por citar e procurar entender estas
situações políticas que possivelmente contribuíram para um enfraquecimento do Clero local.
12

onde há uma evidente exigência de interdição em Irmandades que mantêm membros


que se recusem a abjurar da maçonaria. Vejamos,
“Setença de interdicto
D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, por mercês de Deus e da santa Sé
apostolica, Bispo da diocese de Olinda.
Recusando a irmandade de Nossa Senhora da Soledade desta capital, apesar de nossas
paternaes admoestações, expulsar de seu gremio alguns menbros que não
querem de modo algum abjurar a maçonaria, sociedade já muitas vezes
condenada pela igreja de Jesus Christo, nós, legitimo pastor destadiocese, em
cumprimento de nosso sagrado dever e em virtude de nossa autoridade
episcopal, laçamos pena de interdicto sobre a mencionada irmandade e sua
capela; declaramos formalmente que a dita pena só deixara de ter vigor com a
retratação ou eliminação daquelles irmãos que por infelicidade são filiados á
maçonaria.
Dada em nosso palácio Episcopal da Soledade aos 5 de janeiro de 1873 Frei Vital,
Bispo Diocesano” (Jornal católico “A BOA NOVA”, 15 de fevereiro de
1873, p. 3, ano III).

A somatória dos momentos de tensão entre as Irmandades e o Clero acirrava


cada vez mais o cenário de disputas políticas e financeiras. De um lado, a Igreja tentava
limitar a autonomia das Irmandades; no entanto, elas tornavam-se cada vez mais
autônomas e independentes. Esta situação pouco interessava para ambas as partes,
porque uma vez suspensa de suas atividades, essas Irmandades perdiam o que talvez
fosse sua maior e mais rentosa função, a de auxílio funeral aos seus associados. Já para
a Igreja, distanciar-se delas significava também distanciar-se dos mortos, perdendo
principalmente a vigília dos dogmas e rituais fúnebres, exercidos principalmente por
estas Irmandades.
As sucessivas querelas entre o Clero e as Irmandades levou ao distanciamento
dos braços misericordiosos, vistos como um fio de esperança da Igreja na ingerência dos
mortos.​ Fio este, que foi rompido definitivamente com a Proclamação da República em
1889, e com o decreto nº 789 de 27 de setembro de 1890, que tornava os cemitérios
secularizados, acabando um domínio de exclusividade da Igreja e de seus ​braços
misericordiosos,​ e possibilitando, dois anos depois, a secularização definitiva dos
espaços de enterramento, com a Constituição de 1891.
De acordo com o decreto de 1890, os cemitérios sob a gerência dos ​braços
misericordiosos passavam a ser inspecionados pelo poder municipal em conjunto com o
poder policial, tornando assim qualquer nova construção de cemitérios particulares
13

proibidas. Agora, somente as câmaras municipais detinham o direito de construção das


necrópoles, sob os regulamentos apresentados pelos poderes competentes do Estado.
Tal medida gerou algumas tensões, que beiraram a conflitos, pois fecharia uma
importante fonte de renda, que reduziria drasticamente as receitas da Santa Casa de
Misericórdia do Pará (Irmandade responsável pelo controle do Cemitério da Soledade e
de Santa Izabel, inaugurado em 1878) e indiretamente atingia também membros do
Clero, sobretudo aqueles que desempenhavam alguma atividade dentro dos cemitérios e
funerais. Ao ter a mesa diretora solicitado remeter um ofício à corporação municipal,
dando-lhe ciência de que a Irmandade solicitaria junto à câmara um pedido de
indenização, este foi negado sobre o argumento de que a corporação municipal apenas
fazia cumprir o decreto federal, não podendo assim ressarcir os prejuízos herdados pela
Santa Casa de Misericórdia (VIANNA, 1992).
Assim, aos vinte e sete dias do mês de janeiro do ano de 1891, quarenta e um
anos após a fundação do primeiro cemitério fora dos domínios da Igreja, a
administração dos cemitérios da capital paraense passou aos domínios da Intendência
Municipal, destituindo em definitivo a ingerência da Igreja Católica e de seus braços
misericordiosos dos cemitérios e rituais fúnebres. Determinava-se, assim, a efetiva
secularização dos processos de enterramento na cidade de Belém.

Referências
ARIÈS, Philippe. ​O homem diante da morte.​ I ed. São Paulo: editora UNESP, 2014.

COSTA, Emilía Viotti da. ​Da monarquia à república: momentos decisivos​. 9 ed. São Paulo:
UNESP, 2010.

COSTA, Magda Nazaré Pereira da. ​Caridade e Saúde Pública em tempo de epidemias. Belém -
1850-1890.​ Dissertação (Mestrado) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-graduação em História Social da
Amazônia, Belém, 2006.

HENRIQUE, Marcio couto. ​Irmandades escravas e experiência política no Grão-Pará do


século XIX​. Revista Estudos Amazônicos Vol. IV, n° 1, 2009, p. 31-51.

MIRANDA, Cybelle Salvador; BELTRÃO, Jane Felipe; HERIQUE, Márcio Couto & BESSA,
Brenda Tavares. ​Santa Casa de Missericórdia e as políticas higienistas em Belém do
Pará no final do século XIX.​ História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro.
v.22, n.2, abr.-jun. 2015, p.525-539.
14

REIS, João José. ​A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.​
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

ROCHA, Maria Aparecida Borges de Barros. ​As cartas pastorais de d. Carlos Luís d’Amour e
de d. Aquino Correa - a secularização dos cemitérios públicos da cidade de Cuiabá no
limiar do século XX.​ Anais do III encontro nacional do GT história das religiões e das
religiosidades – ANPUH – Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e
religiosidades. IN: Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III n.9,
jan/2011. ISSN 1983-2859. Disponível em ​http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html

SILVA, Érika Amorim da. ​O ​cotidiano da morte e a secularização dos cemitérios em Belém na
segunda metade do século XIX (1850 / 1891)​. Dissertação (Mestrado em História
Social). 234f. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.
(​http://www.sapientia.pucsp.br/tde_arquivos/17/TDE-2005-05-24T14:49:37Z-863/Publico/Erik
aASilva.pdf​)

VIANNA, Arthur: ​A Santa Casa da Misericórdia paraense: notícias históricas 1650 – 1902​. 2.
Ed. – Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1992 (Lendo o Pará; 11), p. 175-236,
291-332.

Fontes:
Arquivos da Arquidiocese de Belém - Cúria Metropolitana de Belém

- Jornal ​A Boa Nova ​(1871-1883)

Instituto Histórico e Geográfico do Pará


- Livros de Sepultamento do Cemitério de Nossa Senhora da Soledade - 1850 – 1870.
- Coleção das Leis da Província do Grão-Pará, Tomo XII ano 1850.
- Câmara Municipal de Belém, Ofícios Recebidos - ano 1865.

Você também pode gostar