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Introdução
Em meados do século XIX, os surtos epidêmicos e o processo de secularização
dos cemitérios acabaram por contribuir para o enfraquecimento do poder da Igreja
Católica sobre a morte em várias províncias do Brasil. Tendo ocorrido em diversos
campos da sociedade, a secularização fez-se sentir nas mais profundas estruturas
culturais da sociedade brasileira, vindo a se consolidar definitivamente na virada do
século XIX para o XX. De acordo com os estudos de Berger (1985 apud SILVA, 2005,
p.136), “o instituto da secularização é o processo pelo qual setores da sociedade e da
cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”, processo que
ocorreu na Belém do século XIX.
Em Belém, capital da província do Grão-Pará, parte da cultura passou a se
desvencilhar de muitas amarras imprimidas pela Igreja Católica que, por séculos, foi a
principal mentora de diversas atividades (educação, saúde, valores, comportamento) e,
dentre elas, as exercidas no campo dos mortos. Assim, o processo de enterramento,
exclusivo da Igreja, passou a ser gerenciado pelo Estado, configurando na secularização
dos cemitérios com a criação do Cemitério de Nossa Senhora da Soledade, em 1850.
Faz-se necessário observarmos alguns costumes e tradições fúnebres que
estavam enraizados e consolidados culturalmente numa sociedade de população
tradicionalmente católica, e regidas pelos ditos bons costumes da Santa Mãe Igreja. Os
solos dos templos católicos eram considerados sagrados; assim, a prática de
sepultamentos fora desses recintos era inconcebível. Uma grande parte da população
católica acreditava fielmente que dessa forma criar-se-ia um elo entre vivos e mortos
através das orações cotidianas além, claro, de se manter um prestígio social e da
salvação da alma do falecido.
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De acordo com Érika Amorim da Silva (2005), este espaço comum do cotidiano
de parte da população era algo enraizado e há muito consolidado. A Igreja até esse
momento desempenhava um papel fundamental de templo principal na cidade mas,
sobretudo, servia também de espaço para muitos outros fins que iam do nascimento às
reuniões políticas, findando com o sepultamento conforme evidenciado a seguir:
É no seio de uma sociedade marcada por condutas sociais rigorosamente aplicadas pela
Igreja, que os sucessivos anos de epidemias na segunda metade do século XIX
contribuíram para o surgimento e a consolidação dos cemitérios fora dos domínios da
igreja e sua posterior secularização. Tais situações causaram um forte desgaste no Clero
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, a ponto deste atuar em várias instâncias de modo a tentar encontrar meios que
refutassem a perda do domínio sobre os mortos.
Após séculos de hegemonia sobre vivos e mortos, a Igreja estava por ver, no
horizonte próximo, uma perda significativa de parte de seu domínio sobre seu
“rebanho”. Esta situação foi observada no periódico A Boa Nova2, de origem católica,
possibilitando um olhar de dentro da própria Igreja. Os artigos do periódico noticiado
semanalmente deixavam transparecer acentuadamente as insatisfações e preocupações
da Igreja diante do Estado.
Assim, tradições e costumes postos em cheque, restava à Igreja trabalhar com
alternativas para tentar continuar com o prestígio e domínio sobre os mortos que, por
meio da secularização do enterramento, passariam para novos sepulcros construídos
fora dos seus domínios e supervisões. Dentre estas alternativas, temos o papel das
Irmandades. Tais instituições mantinham larga influência sobre seus associados, seja na
prática do catolicismo popular, ou na vida de cada um. Parte dessas influências era
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Clero é a corporação de todos os sacerdotes ordenados a partir do diaconato, onde cada grau galgado
possui suas especificidades dentro da igreja, subdivididos em seculares, mas atuantes nas comunidades
paroquiais e regulares atentos mais aos assuntos internos, dentre eles a manutenção dos dogmas da Igreja.
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O periódico católico A Boa Nova circulou na capital do Pará entre os anos de 1871-1873.
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As cartas de compromisso das Irmandades eram uma espécie de estatuto que regiam cada uma delas,
tendo obrigatoriamente de serem aprovadas tanto pela Igreja quanto pelo Estado, para poderem funcionar
e serem reconhecidas.
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Os estragos causados pela peste foram, portanto, inúmeros atingindo grande parte da
população, e em poucos meses a cidade de Belém e seus moradores tiveram
seu cotidiano totalmente alterado. Preocupado com a situação, o poder
público ressaltava ainda que “(...) nesses dias luctuosos de amargura e
atribulação, paralisou completamente a marcha dos negócios públicos e
particulares; os cuidados de todos se empregarão exclusivamente em sepultar
os mortos, e acudir os enfermos e agonizantes (...). (RELATÓRIO do
Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, 1850, apud C OSTA, 2 006, p. 25)
Pelo fato das autoridades não terem encontrado uma profilaxia eficaz e capaz de conter
a febre amarela, outro surto epidêmico voltaria a se instalar nos anos de 1855-1856, e a
morte voltava a gracejar de forma mais aguda. Dessa vez a cólera voltaria a se instalar
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Era comum nesse momento, observaram-se animais mortos nas ruas sem que tivessem alguém para
recolhê-los, além de entulhos de diversos tipos, todo esse material ao entrar em decomposição contribuía
para a proliferação de inúmeras epidemias, cólera e febre amarela achavam condições ideais para se
manifestarem. Uma vez que todo esse material em decomposição acabava contaminando os poucos
pontos de água potável existente na cidade, além de se também habitat ideal para os mosquitos
transmissores da febre amarela.
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Ver: A teoria dos fluidos ou miasmas. MULLER, 2002 apud MIRANDA, Cybelle, 2013, p. 2-4.
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Tal cenário de insalubridade e as correlatas políticas estatais na tentativa de solucioná-lo era uma realidade em
todo o Brasil oitocentista. Emília Viotti da Costa (2010), em suas observações, nos mostra também o
precário abastecimento de água disponível aos moradores, principalmente os do interior do Brasil, que
tinham em poucos poços e chafarizes públicos sua única fonte de abastecimento, ficando seus dejetos
depositados nos ribeirões ou no mar caso a cidade fosse litorânea ou simplesmente jogados nas ruas
destas cidades. Dentre as principais insalubridades que assolavam as cidades, a água potável exigia das
autoridades uma rápida e eficaz resposta, e em muitos casos só poderia ser dada com grandes
intervenções urbanas, quando implantadas poderiam afastar esses miasmas, além de proporcionar ao povo
outra visão da cidade, com o intuito de começar a agregar embelezamento e saneamento dos padrões
europeus, sobretudo francês. Ver: COSTA, Emilía Viotti da. Da monarquia à república: momentos
decisivos. 9 ed. São Paulo: UNESP, 2010.
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A capital da província da Bahia foi palco em 1836 do evento conhecido pela historiografia como Cemiterada. D
acordo com os estudos de João José Reis (1991), a Cemiterada mobilizou a população local, membros das
Irmandades se sentiram lesados com o novo ambiente destinado para os mortos. Na ocasião o espaço foi
destruído após sua inauguração, forçando as autoridades locais a revogarem as leis que regiam a
construção do cemitério e entregava a administração para um grupo de empresários, sendo reconstruído
um ano mais tarde quando a Santa Casa de Misericórdia adquire o local e reconstrói o cemitério para, em
1844 finalmente entrar em funcionamento. As negociações ocorridas em Salvador, entre Igreja,
Irmandades, Câmara e Governo, não conseguiram em tempo hábil encontrar uma solução satisfatória aos
interesses envolvidos, logo surgiram diversos movimentos liderados principalmente pelas Irmandades em
forma de abaixo assinado, fizeram chegar inclusive na corte no Rio de Janeiro. ver: REIS, João José. A
morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
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Além dos interiores das igrejas, fazia-se também uso para sepultamentos em espaços geralmente
localizados por trás dos templos ou nas suas laterais.
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As análises de João José Reis (1991) foram feitas na cidade de Salvador entre os
anos de 1822-1825; no entanto, podemos supor também que cifras muito próximas eram
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Para melhor estudo sobre cidades portuárias no período ver: FURTADO, Luciana Martins. Nas pedras
do cais: cidade, cotidiano e trabalho Belém do Pará (1852-1912). UFPA Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas programa de pós-graduação em História Social da Amazônia, 2015; e SALES, Mábia Aline
Freitas, FARIAS, William Gaia e MOURÃO, Leila: O movimento do porto: a entrada de embarcações
estrangeiras nos meados da Belém oitocentista. São Paulo, 2011.
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podendo ser considerada pela Igreja como um braço misericordioso que garantia,
minimamente, seu prestígio ante o processo de laicização dos sepultamentos.
Mesmo tendo em suas Cartas Compromisso a total obdiência ao Clero local, não
foram poucos os momentos antagônicos e querelas entre Irmandades e Igreja, na Belém
do último quartel do século XIX. Tais fissuras começaram a surgir muito em virtude do
processo de secularização, que avançava em direção a sua consolidação no campo dos
mortos, mas principalmente na política local, que tinha na sua configuração indivíduos
de outros segmentos religiosos, principalmente protestantes e maçons, que juntos
ameaçavam diretamente o poderio da Igreja Católica. Podemos observar o
arrefecimento da tensão nas queixas escritas por católicos publicadas no periódico A
Boa Nova, vejamos
A atual questão das irmandades, bem que à primeira vista pareça attingir só a
disciplina, entende de um modo immediato com o dogma, e torna-se por isso
uma questão de princípios em que é impossivel à autoridade ecclesiastica
ceder. (...) De que se tracta, com effeito? Tracta-se de manter à frente dessas
pias instituições, encarregadas de parte do culto catholico, homens que estão
a frente da rebelião contra o Bispo, contra o Papa, contra o concílio, e contra
as doutrinas da Igreja Catholica (...) homens que ousaram dizer em face ao
seu legitimo prelado: vós sophismaes e corrompeis o cristianismo: somos nós
maçons que o professamos puro e verdadeiro; vós, Bispo catholico, sois um
malvado sectario: malvados sectarios são os padres que vos seguem.
Havemos de atacar-vos, e aracar-vos sempre, porque sois os maiores inimigos
da religião e da sociedade. (Jornal católico A Boa Nova, 29 de abril de 1873,
p. 2, ano III).
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Este fragmento extraído de um documento pertecente à propria Igreja permite uma interpretação a partir da
análise do campo político, possibilitando uma melhor compreensão do declínio das funções exercidadas
pelas Irmandades. Porém, uma ressalva faz-se necesária, o processo de secularização no campo político é
muito vasto, abrangente e complexo, por estes fatores não foi possível uma análise mais acurada em
respeito aos limites dentro deste artigo. Neste caso, optamos apenas por citar e procurar entender estas
situações políticas que possivelmente contribuíram para um enfraquecimento do Clero local.
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Referências
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. I ed. São Paulo: editora UNESP, 2014.
COSTA, Emilía Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 9 ed. São Paulo:
UNESP, 2010.
COSTA, Magda Nazaré Pereira da. Caridade e Saúde Pública em tempo de epidemias. Belém -
1850-1890. Dissertação (Mestrado) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-graduação em História Social da
Amazônia, Belém, 2006.
MIRANDA, Cybelle Salvador; BELTRÃO, Jane Felipe; HERIQUE, Márcio Couto & BESSA,
Brenda Tavares. Santa Casa de Missericórdia e as políticas higienistas em Belém do
Pará no final do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro.
v.22, n.2, abr.-jun. 2015, p.525-539.
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REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
ROCHA, Maria Aparecida Borges de Barros. As cartas pastorais de d. Carlos Luís d’Amour e
de d. Aquino Correa - a secularização dos cemitérios públicos da cidade de Cuiabá no
limiar do século XX. Anais do III encontro nacional do GT história das religiões e das
religiosidades – ANPUH – Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e
religiosidades. IN: Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III n.9,
jan/2011. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html
SILVA, Érika Amorim da. O cotidiano da morte e a secularização dos cemitérios em Belém na
segunda metade do século XIX (1850 / 1891). Dissertação (Mestrado em História
Social). 234f. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.
(http://www.sapientia.pucsp.br/tde_arquivos/17/TDE-2005-05-24T14:49:37Z-863/Publico/Erik
aASilva.pdf)
VIANNA, Arthur: A Santa Casa da Misericórdia paraense: notícias históricas 1650 – 1902. 2.
Ed. – Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1992 (Lendo o Pará; 11), p. 175-236,
291-332.
Fontes:
Arquivos da Arquidiocese de Belém - Cúria Metropolitana de Belém