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ISSN da publicação: ISSN 2175-6880 (Online)

Anais do Evento 2010


Volume 12
Trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho 12 - Gênero, corpo e sexualidade

Coordenadores:
Prof. Drª. Miriam Adelman (UFPR)
Lennita Ruggi
Mariana Azevedo
Milena Costa de Souza

Ementa: O Grupo de Trabalho Gênero, Corpo e Sexualidade pretende reunir pesquisas


teóricas e empíricas que elaborem reflexões sobre gênero, corpo e sexualidade nas sociedades e
cultura contemporâneas. Entre as áreas contempladas por esse GT, destacaríamos problemáticas
referentes a: (i) gênero e práticas corporais; (ii) o(s) universo(s) do queer; (iii) representações de
gênero nos discursos literários e midiáticos; (iv) socialização, educação e gênero; (v) juventude,
gênero e sexualidade ; (vi) mobilizações sociais e políticas públicas voltadas para a igualdade de
gênero e erradicação do preconceito sexual.

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HOMOFOBIA? – PROBLEMA DE QUEM?

Esmael Alves de Oliveira e Miriam Pillar Grossi

RESUMO
Ao apresentar como título deste texto Homofobia? – Problema de quem?, nos propomos o desafio
de pensar os mecanismos de produção e reprodução de discursos e de práticas que, imersos numa
compreensão naturalizante da sexualidade, consolidam práticas de preconceito e discriminação
contra Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros(LGBTTT). Neste sentido,
não ignorando as especificidades com que se manifestam as práticas de preconceito contra os
LGBTTTs que reivindicam outras categorias além da homofobia (tais como lesbofobia e
transfobia), optamos pela noção geral de homofobia, assim entendida, conforme as concepções
propostas por Rogério Junqueira (2007) e Daniel Borillo (2001) como portadora de um sentido
polissêmico e plural em disputas. Assim sendo, refletimos, a partir da observação em uma escola de
Manaus sobre um caso empírico homofobia, e analisamos práticas e representações de diferentes
agentes sociais do quadro institucional da escola. Práticas, fundamentadas em percepções do senso
comum e em fundamentações teóricas e políticas, que visam ora evitar, ora consolidar a homofobia
no ambiente escolar e que refletem diferentes concepções vigentes no Brasil contemporâneo sobre a
visibilidade e o “assumir-se” homossexual (Sedgwick, 2007; Miskolci, Simões 2007).
Palavras-chave: homofobia, homossexualidade, preconceito, escola

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HOMOFOBIA? – PROBLEMA DE QUEM?

Esmael Alves de Oliveira; 1 Miriam Pillar Grossi 2

Gostaria de iniciar este artigo evocando algumas lembranças recentes de minha experiência
pedagógica como professor do ensino fundamental e médio em uma escola particular de Manaus. A
escola, com 28 anos de existência (fundada em 1982), pertence à uma congregação católica e atende
alunos do ensino infantil ao ensino médio de ambos os sexos. Composta por um público de classe
média alta, em um bairro bem tradicional da cidade, a escola goza de um destacado prestígio, sendo
responsável por formar personalidades de destaque da cidade de Manaus.
Atuei como professor de filosofia nesta escola pelo período quatro meses (2009), onde tive a
oportunidade de trabalhar com alunos do ensino fundamental e ensino médio, da faixa etária dos 10
aos 19 anos. Certamente não é minha intenção fazer uma retrospectiva da minha carreira
profissional, senão de localizar o contexto em que se deu meu contato empírico com um caso de
homofobia.
Na referida escola tive um aluno, que podemos chamar pelo nome fictício de Pedro, que
cursava o ensino fundamental (atual 8o ano). Pedro, tinha 15 anos e era bem conhecido na escola.
Era muito bem quisto por um número bem restrito de colegas de sala e seu nome e sua presença não
passavam despercebidos entre os mesmos. Sua fama de “espontâneo” e “escandaloso” corria longe
e não era difícil de ouvir alguma história relacionada aos seus desentendimentos com os outros
meninos da sua classe (troca de insultos, xingamentos, ofensas).
Um dado interessante a ser destacado é que assim que cheguei na escola, fui longo
informado sobre a conduta “diferente” de Pedro. Vale ressaltar que compreendemos o conceito de
diferença na perspectiva de Daniel Welzer-Lang (2001), ou seja, todas as formas de sexualidades
não obedecendo aos padrões heteronormativos se configuram, numa perspectiva heterossexista,
como algo desviante e, portanto, não natural (neste sentido, diferente). Assim sendo, os
antagonismos e diferenciações são estabelecidos segundo um critério de naturalização do sexo
1
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (PPGAS/UFAM) e atualmente é
doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) e pesquisador do
NIGS (Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades).
2
Antropóloga, Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de
Santa Catarina – PPGAS/UFSC e coordenadora do NIGS (Nucléo de Identidades de Gênero e Subjetividade).
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biológico (homem/mulher). Portanto, com relação às instruções que recebi assim que cheguei na
referida escola, de que eu deveria “ficar atento”, conforme a fala da coordenação pedagógica, a
qualquer ato “inadequado/desviante” de Pedro no contexto da sala de aula e caso tivesse qualquer
“problema” deveria comunicar imediatamente as pedagogas, é porque havia previamente um
conceito de comportamento (in)adequado. Ou seja, como o aluno não mantinha nenhuma
correspondência com as relações heteronormativas que lhe eram esperadas (não era com os outros
meninos), não desempenhando “satisfatoriamente” o seu papel masculino, o grupo de colegas de
classe reagia acusando-o de “viadinho”. Estava, portanto, diante de um “desviante” (Becker, 2008).
No caso específico, além de ser classificado como “homossexual”, Pedro era constantemente
lembrado de seu comportamento não “convencional”.
Pedro era bem espontâneo, irreverente e com uma personalidade forte, era conhecido entre
os professores pela sua postura “indisciplinada” e às vezes “inconveniente”. Aos poucos fui
percebendo, contudo, que aquele comportamento tido como “disciplinarmente” inadequado era
antes uma forma de chamar a atenção para sua “invisibilidade visível” (afinal sua popularidade, não
colocava-o sempre num status de desigualdade em relação ao grupo?). Pedro não se auto-definia
como gay, mas assim era encarado pelos seus colegas e demais membros da escola por seus
comportamentos “nada masculinos”: seu jeito de falar, seus trejeitos, sua postura, etc. O “problema”
de Pedro era do conhecimento de “todos”. Segundo uma das pessoas da orientação pedagógica:
“estava sendo acompanhado de perto e necessitava de uma atenção especial”. Naquele momento
fiquei me perguntando sobre o motivo. A resposta veio logo em seguida: eram constantes os
conflitos em sala de aula com o aluno, não só em relação aos alunos como também em relação aos
professores. Posteriormente, vim saber que tal aluno tinha todo um acompanhamento psicológico na
escola e segundo a responsável pelo setor a maioria dos conflitos que Pedro tinha em sala de aula
estava relacionado ao seu processo de “crise de identidade”. Para a psicóloga Pedro tinha certas
tendências homossexuais e não estava conseguindo administrar isso com a família e nem na sala de
aula. Segundo ela, havia uma vigilância e uma cobrança muito grande da família de Pedro sobre ele.
Tal fato não pode ser ignorado, haja vista que constantemente a homossexualidade surge como um
problema antes familiar que social, pois constantemente é no próprio lar onde o preconceito e a
discriminação fazem-se sentir tão ou mais fortes do que no contexto social, conforme já atentou
Mott (2000).
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Mas afinal de contas, como compreendemos o conceito de Homofobia? Talvez seja a partir
desse ponto que possamos compreender a dimensão abrangente e problemática com que se
configura a prática homofóbica em relação à Pedro. Tomamos de empréstimo a definição proposta
por Daniel Borillo (2001):

hostilidade geral, psicológica e social, por aqueles e aquelas de quem se supõe que
desejam a indivíduos de seu próprio sexo ou que tem práticas sexuais com eles.
Forma específica de sexismo, a homofobia também rejeita a todos os que não se
conformam com o papel pré-determinado por seu sexo biológico. Construção
ideológica consistente na promoção de uma forma de sexualidade (hetero) em
detrimento de outra (homo), a homofobia organizar uma hierarquização das
sexualidades e extrai dela conseqüências políticas (Borrillo, 2001: 36) [Tradução
livre].

Certamente entram em cena, a partir dessa definição, aspectos psicológicos e sociais. Não é
à toa que Borrillo faz uma distinção entre dois tipos de homofobia: a homofobia irracional ou
psicológica (o preconceito em si) e a cognitiva ou social (a externalização). Mais do que uma
questão de ordem particular ou subjetiva, a homofobia se configura como um gravíssimo problema
social e político. Neste sentido, nossa pergunta inicial (Homofobia? – problema de quem?), teve
uma motivação: despertar a atenção para a dimensão social do problema. Não se trata de uma
prática isolada, não se trata de um problema entre agressor e agredido, também não diz respeito
apenas à uma esfera da vida social (ou família, ou escola, ou ou...). A homofobia se estabelece nos
mais variados espaços, nos diferentes níveis da vida social. Assim, as ações de combate à
homofobia não podem ser efetuadas de modo isolado, precisam penetrar os diferentes âmbitos
institucionais, políticos e sociais. A escola, a família, as instituições públicas e privadas necessitam
tratar a homofobia como um problema de todos. Conforme pesquisas recentes, a prática
homofóbica, a violência, o preconceito e a discriminação contra homossexuais já deixaram há
tempos de ser um “caso isolado”, viraram quase uma questão rotineira. De acordo com relatório
anual divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) em março deste ano, cerca de 200 homossexuais
foram assassinados durante o ano de 2009 em todo o País. Segundo o levantamento, foram
assassinados no Brasil no ano passado 198 homossexuais, nove a mais que em 2008 (189 mortes) e
um aumento de 61% em relação a 2007 (122). Dentre os mortos, há 117 gays (59%), 72 travestis
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(37%) e nove lésbicas (4%). 3 Outra pesquisa, realizada pela Fundação Perseu Abramo, e divulgada
em 03/05/2009, apontava que quase metade dos brasileiros (45%) assume que tem preconceito
médio ou alto contra gays, lésbicas, travestis ou transexuais. Os dados também indicavam que 25%
das pessoas se classificam como homofóbicos, aqueles que têm ódio ou não toleram homossexuais.
Desses, 19% admitem uma homofobia média e 6% assumem uma homofobia forte.4
A homofobia não tem classe social, raça, gênero, nível de escolaridade, setores e a
banalização desta violência se torna um dos principais mecanismos propulsores para sua
consolidação.
Não podemos ignorar ainda as imbricadas relações de poder que se constituem no interior
dos discursos e práticas homofóbicas. Há toda uma noção de normalidade essencializada. Sexo e
gênero são considerados como tendo uma ordem inerente que não pode ser quebrada. Neste sentido,
Pedro não só questionava no ambiente escolar (através de si mesmo) os pressupostos dos papéis
sociais de gênero como também alertava para o “perigo” de novas “identidades indesejáveis”, que
desestabiliza a “ordem” de gênero e gera o “caos”. Se não bastasse não gostar de meninas,
conforme fala dos alunos da turma, ainda por cima queria ser mulherzinha? Ser gay era até
aceitável, mas ninguém precisava ficar sabendo. A homofobia contra Pedro se estabelecia à medida
que ela não mais correspondia ao “ser ontológico” que se pressupunha constituí-lo enquanto pessoa.
A homofobia nesse sentido, tem como papel central inferiorizar a homossexualidade, conferindo ao
comportamento sexual hetero o status de superior, natural ou evidente. Havia ainda outro agravante:
uma escola confessional, com um discurso bem claro acerca da homossexualidade, certamente não
poderia encarar a questão a não ser sob um ponto de vista de “perversão”.
Se o sexo pode ser tomado como a constituição anatômica do corpo (composta pelas
genitálias masculina e feminina), não há de se espantar com o fato de que, no senso comum, a
compreensão do que seja um homem e uma mulher estejam estritamente associadas às funções
sexuais desempenhadas por cada um. Ou seja, se o sexo está para o corpo, o gênero por sua vez
seria o pleno desempenho dessas funções tidas como de “caráter natural”. Neste sentido, ao homem
corresponderiam papéis masculinos (virilidade, vigor, valentia, atividade) e à mulher papéis

3
Fonte:http://br.noticias.yahoo.com/s/09032010/25/manchetes-brasil-lider-assassinato-homossexuais-diz.html
(acesso em 18/05/2010).
4
Fonte: http://www.fpabramo.org.br/conteudo/7-indice-de-homofobia (Acesso em 18/05/2010).
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femininos (sensibilidade, fragilidade, passividade). Há aí todo um discurso naturalizante sobre a
sexualidade que busca, na constituição biológica do corpo, a correspondência com os papéis sexuais
de gênero (aos homens caberiam tais e tais papéis). Em cena encontram-se discursos naturalizantes,
binaristas e patologizantes sobre sexo e gênero.
Laqueur localiza este processo de compreensão na história e indica a modernidade como o
grande paradigma deste modelo binarista. A partir de um recuo à história, o autor propõe, através da
idéia de sexo único, que antes do século XVIII não havia uma separação restrita entre os sexos. Para
Laqueur, tal divisão mostrou-se como preponderante à medida que no século XVIII vai se
constituindo um discurso médico que busca inserir no corpo biológico a diferença entre os gêneros.
Segundo o autor, anaturalização da diferença entre o mundo masculino e o mundo feminino está
pautada numa idéia individualista (próprio do século XVIII), em contraposição ao modelo
hierárquico (presente na sociedade grega, por exemplo). Para Laqueur se no modelo antigo as
relações sociais entre os gêneros eram medidas em sua dimensão sociológica, na modernidade
ganharão uma dimensão estritamente substancialista/ontológica. Em outros termos, a partir da
modernidade o sexo aparece como o marcador social da diferença entre o homem e a mulher. Neste
sentido, Laqueur defende a idéia de que a divisão de gênero é muito anterior a divisão do sexo. E se
o gênero possui em sua constituição elementos que beiram a complementaridade (sociedade grega),
o sexo se configura como o que estabelece a separação irrestrita (sociedade moderna).
No fim, o caso de Pedro parece evidenciar tal compreensão naturalizada da sexualidade. É a
velha “suposição de que há uma divisão fundamental entre natureza e cultura, entre ‘corpos reais’ e
sua interpretação cultural” (Fausto-Sterling, 2001: 59). Talvez neste sentido é que possamos
compreender a existência de uma forte “política do armário” 5 em que os indivíduos são
permanentemente indagados e questionados quanto à sua orientação sexual (Sedgwick, 2007). Uma
verdadeira arma política que visa, sobretudo, a produção da diferença e a manutenção do estigma
sob o falso prisma de uma política de auto-afirmação.
Os dualismos e binarismos (natureza/cultura, sexo/gênero, real/construído) servem
unicamente para estabelecer fronteiras entre os gêneros que auxiliam na padronização de uma

5
É importante ressaltar que quando nos referimos ao conceito de política do armário estamos nos referindo a
todas as práticas sociais que visam colocar a sexualidade dos sujeitos em evidência, com a intenção de controlá-la e de
estigmatizá-la caso não corresponda aos padrões heteronormativos.
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sexualidade que se apresenta como socialmente adequada desejável. Contudo, se a norma existe é
porque foi criada, mas quase sempre esta dimensão histórica é ignorada das análises sobre as
sexualidades:

Na maioria das discussões públicas e científicas, o sexo e a natureza são


considerados reais, e o gênero e a cultura são vistos como construídos. Mas trata-se
de falsas dicotomias. Começo com os marcadores mais visíveis e exteriores do
gênero – os órgãos genitais – para mostrar como o sexo é, literalmente, construído
(Fausto-Sterling, 2001: 77).

Recorrentemente indivíduos são questionados sobre sua sexualidade ou orientação sexual


sobretudo quando ela não corresponde aos padrões sociais de gênero. É como se o sexo, o gênero e
desejo estivessem acoplados. Vale lembrar que é exatamente a partir desta tríade, que Judith Butler
problematiza o caráter contingente da produção discursiva que visa estabelecer uma coerência
estável entre estes três eixos temáticos. Neste sentido, uma das questões fundamentais que se
apresenta em Butler é a constatação de que a tríade sexo/gênero/desejo soa antes como “uma
formação discursiva” ou “invocação performativa” do que como uma realidade objetiva.
Segundo a autora, nem o sexo nem o gênero são categorias elucidativas em si mesmas. Pelo
contrário, a idéia de perenidade de um ou de outro conceito, concebidos como a priori, demonstram
atos deliberados e performativos, próprios de uma metafísica da substância que tende a atribuir
essencializações/substancializações. Ou em outros termos, ‘um telos normativo e definidor’: “a
‘coerência’ e a ‘continuidade’ da ‘pessoa’ não são características lógicas ou analíticas da condição
de pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas” (Butler,
2008: 38).
Assim sendo, para Butler, as coerências de gênero mostram-se como verdadeiras ficções
reguladoras haja vista o caráter ambíguo e flutuante das identidades. Como conclusão, a autora se
posiciona por uma definição de gênero como sendo “performativo”: “O gênero é a estilização
repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente
rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe
natural de ser” (Butler, 2008: 59). Em outros termos, a intrínseca associação entre
sexo/gênero/desejo que a escola fazia em relação a Pedro revela-se, na perspectiva da autora, como

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sendo antes um delírio discursivo, afinal de contas “como fenômeno inconstante e contextual, o
gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjunto
específico de relações, cultural e historicamente convergentes” (Butler, 2008: 29). E completa: “A
univocidade do sexo, a coerência do gênero e a estrutura binária para o sexo e o gênero são sempre
consideradas como ficções reguladoras que consolidam e naturalizam regimes de poder
convergentes de opressão masculina e heterossexista” (Butler, 2008: 59).
Não podemos ignorar ainda as imbricadas relações de poder neste processo de
estabelecimento de identidades e de diferenças. Conforme já sinalizou Michel Foucault, a
sexualidade não está isenta destas relações. Pelo contrário, a sexualidade é fruto de discursos que
estabelecem mecanismos de controle e de construção de “sujeitos”. Neste sentido, é que a
sexualidade é inscrita nos corpos e, por conseqüência, o homossexual passa a ser uma figura
ontológica:

“O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma


história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com
uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele
é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo (...)
(Foucault, 2007: 50).

Na escola havia toda uma tentativa de controle sobre o comportamento de Pedro. Era
necessário vigiá-lo, observá-lo e mantê-lo permanentemente à vista. Em cena, a “polícia do sexo”
(Foucault, 2007). O que é interessante notar é a sexualidade de Pedro, ou melhor, sua possível
tendência à homossexualidade (afinal nunca ouvi dizer que ele se assumisse enquanto tal, mas que
isso era interpretado a partir de seu comportamento que supostamente “o denunciava”), era um
problema de ordem psicológica que precisava ser organizado. Se a ação da psicóloga não estava
baseada numa tentativa em convencê-lo da possibilidade de uma reorientação, pois conforme foi-
nos dito em uma reunião de professores pela psicóloga: “ela queria que ele fosse capaz de se aceitar
acima de tudo enquanto pessoa, independente da orientação sexual”, a problematização não era
estendida para o universo da escola. Ou seja, o que quero dizer é que Pedro continuava se
apresentando como uma presença incômoda. Neste sentido, era mais fácil orientar “seu problema”
do que problematizar os atos de preconceito e de discriminação que os outros infligiam contra ele.

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Na verdade, nesta concepção não era o grupo que precisava ser trabalhado, mas Pedro. Afinal de
contas, ele é que se apresentava como “foco causador” do “instinto” de violência do grupo. “O
problema era ele e não os outros”. Afinal, os outros alunos e alunas seguiam numa ordem de
normalidade, esta “constatada por todos”, sobretudo, na hora do intervalo, em que eles costumavam
“namorar” normalmente dando provas de sua heterossexualidade.
Assim, para mim, ficava claro que o problema não eram os outros, mas “ele” (Pedro). Afinal
de contas “é difícil pra turma lidar com isso”, conforme fala de um dos professores. Neste sentido,
no imaginário da comunidade escolar os atos de homofobia: ofensas, palavrões, xingamentos,
piadinhas, eram “justificáveis”. O foco estava na orientação sexual de Pedro.
Diante das várias cenas que presenciava, a homofobia se manifestava de várias formas: a
repreensão em público, as constantes retiradas de Pedro da sala de aula, as recorrentes chamadas
para conversa na sala das orientadoras pedagógicas e o constante questionamento de sua postura em
sala de aula. Por outro lado, haviam as chacotas, as piadinhas, os comentários nos corredores e na
própria sala dos professores. Pedro as vezes demonstrava indiferença diante dos comentários e
“brincadeiras”, ao que parecia, já estava “acostumado” com o tratamento à ele dirigido, embora
outras vezes revidasse.
Naquele contexto se a heterossexualidade se apresentava como “norma”, como
conseqüência não poderia ser esperada outra coisa da “pretensa” homossexualidade de Pedro a não
ser a noção de desvio. Mas o que estava por trás deste controle senão uma determinada
compreensão de gênero? Assim a possível homossexualidade de Pedro passa a ser constantemente
inquirida porque opera uma “ruptura” com a ordem do gênero: homem faz coisas de homem (fala
como, anda como, está com seus pares). Por sua vez, Pedro em tudo questionava esses papéis de
gênero. Assim sendo, podemos dizer que a atenção demasiada dada ao comportamento “feminino”
do aluno nos leva a pensar que o “policiamento do gênero” pode ser entendido como a tentativa de
determinação de um padrão de comportamento em que está em jogo uma identidade
heteronormativa que tem como pano de fundo a naturalização e a essencialização dos papéis sexuais
de gênero: “homem tem que gostar de mulher e se comportar como homem porque assim os fez a
natureza”, eis o que pregam as normas de gênero e que pareciam regular a compreensão que a
escola tinha sobre a sexualidade de Pedro.

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Enfim, sem considerar esgotada esta discussão e tendo consciência dos limites desta análise
(em que ficaram de fora muitos outros aspectos e problemas) gostaríamos de encerrar reforçando o
que muitos outros autores já assinalaram (Welzer-Lang; Borrilo): a homofobia não pode ser
analisada como um fenômeno isolado, está em estreita relação com outras práticas discriminatórias
tais como o racismo, o sexismo, a misoginia, a xenofobia. Assim sendo, não se trata de um
“problema de/dos homossexuais”. Trata-se de um problema social. A homofobia não se manifesta
em um único contexto: está na escola, na família, no trabalho, na rua. Certamente a escola não pode
enfrentar sozinha este problema, contudo, não pode abrir de sua responsabilidade enquanto um
espaço político e pretensamente democrático. Afinal será que a mesma tem se constituído como um
ambiente onde a diferença não é mais encarada como um problema? Ou será que a escola e seus
membros tem se configurado como um poderoso instrumento para criação e manutenção de
preconceitos e discriminações? Não tomando a educação como um ato isento de intencionalidades
e interesses, indagamos sobre as responsabilidades político-sociais da prática pedagógica. Em cena,
o seguinte cenário: o lócus – a escola-instituição; o fenômeno – o preconceito e a violência
homofóbica; e os atores em jogo – estudantes, pais/mães e professor@s. E permanece a pergunta
inicial: Homofobia? – Problema de quem?

REFERÊNCIAS

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MOTT, Luiz. Por que os homossexuais são os mais odiados dentre todas as minorias? Palestra
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