Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Na teoria política de Aristóteles, o homem, como qualquer outro ser vivente, é zoé (vida
nua = mera existência biológica), mas que em razão de uma sua qualidade, que outros
seres viventes não têm – a linguagem -, tem, também, uma existência política: é a
linguagem que torna possível ao homem passar de zoé a politikònzôon (animal político),
vale dizer, lhe possibilita uma vida política (bíos políticos).
É naquele “além disso” captado pelo poder soberano moderno que se funda a biopolítica.
Em que consiste, pois, este Estado de População? Consiste na inclusão da via biológica –
vida e saúde, sexualidade e trabalho etc – nos cálculos e mecanismos de poder do
Estado. Antes, a preocupação do Estado era a de manter e administrar o seu espaço
territorial (Estado Territorial), sendo que, com a modernidade e a conseqüente constituição
do Estado de População, a vida e a saúde dos súditos passou a ser a preocupação central
do poder soberano, com o fim de torná-los corpos dóceis, na medida em que nesta mesma
modernidade se faz a convergência entre poder político e capitalismo. Nisto, pois, se
aclara a afirmação de Foucault: “Resulta daí uma espécie de animalização do homem
posta em prática através das mais sofisticadas técnicas políticas. Surgem então na história
seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja a simultânea
possibilidade de proteger a vida e de autorizar seu holocausto” (Apud AGAMBEN, op. cit.,
p. 11).
Interessante notar, segundo Agamben, que a teoria biopolítica de Foucault converge com
aquela desenvolvida por Hannah Arendt em “A Condição Humana”, segundo a qual, a
progressiva importância que o animal laborens passa a ocupar na sociedade faz com que
a vida nua ocupe o vértice das relações de poder, derruindo, com isto, o espaço público.
Fato é, no entanto, que apesar da convergência entre o pensamento de Foucault e de
Arendt, ambos jamais foram desenvolvidos de modo a ensejar uma interpretação conjunta
e harmônica das relações políticas na modernidade. Este, pois, então, é o fim a que se
lançou Giorgio Agamben ao lançar-se à série intitulada Homo Sacer (RAULFF, 2004/609)
[1].
Isto quer significar, primeiramente, numa negação da teoria contratualista, segundo a qual
a sociedade civil surge do consenso entre os homens, e segundamente na afirmação da
natureza pré-jurídica do viver humano: antes da decisão soberana há o caos (ausência de
ordenamento jurídico), sendo soberano aquele que tem o poder de criar o ordenamento
jurídico. Por ser soberano, tem ele também o poder de decidir sobre a normalidade ou
anomia da vida social, e com isso, de decretar o estado de exceção, que significa nada
menos do que a suspensão da vigência da lei: apesar de válida, a lei não vige.
Vê-se, assim, que o soberano tem o poder de exclusão-inclusão: ao legislar sobre o caos,
capta a vida nua, dando-lhe existência política. O homem ingressa na vida política através
de uma inclusão-exclusiva: ingressa na pólis através de sua exclusão do mero existir
biológico. Mas como também pode decidir sobre o estado de exceção, tem o soberano o
poder de excluir do direito a sua vigência: o direito é incluído pela sua exclusão.
Se esta afirmação soa teratológica, é porque se torna claro o “[...] indício não só da
consumada separação entre cultura filosófica e cultura jurídica, como também a
decadência da segunda [...]” (AGAMBEN, 2004/59). Com efeito, quer o homem viva sob
um regime totalitário quer sob um regime democrático, o exercício do poder político sobre
a sua vida torna-o sujeito a ser despido de sua humanidade (atributo conferido pelo
direito), tornando-se, assim, em mero ser vivente. Isto assim se dá porque a decretação do
estado de exceção torna a força de lei em força de lei (AGAMBEN, 2004/61).
A continuidade do estado de exceção enunciada por Walter Benjamim se torna mais clara
ainda quando se toma em linha de raciocínio que, enfim, o problema central da soberania
não é “quem” a exerce (a querela entre Schmitt e Kelsen sobre quem deve ser o guardião
da constituição é um exemplo bastante eloqüente deste ponto), mas sim sobre “o quê” ela
é exercida: sendo o estado de exceção uma inclusão-exclusiva, é a própria vida a sua
preocupação última.
Com efeito, duas doutrinas modernas tornam bastante evidente este paradigma. O
primeiro é a doutrina kantiana da pura forma da lei, que pode ser caracteriza como
uma estrutura ontológica do dentro-fora: a tese benjaminiana de um estado de exceção
permanente coincide com a idéia kantiana de “uma pura forma da lei”, cuja validade
decorre não de seu conteúdo, mas sim do simples fato de a mesma conter um significado
“moral”: por ter a forma de lei, deve ser obedecida. Assim, conforme narrado por Kafka na
lenda Diante da Lei, é a lei a porta aberta na qual o homem já está: ele não entra porque
sempre esteve abarcado por ela na sua perene exclusão; nasce sob a vigência da lei.
Disto pergunta MassimoCaccciari: “Como podemos esperar ‘abrir’ se a porta já está
aberta? Como podemos esperar entrar-o-aberto? No aberto se está, as coisas se dão, não
se entra [...]” (ApudAGAMBEN, 2002/57). Este tipo de relação implica num perpétuo
estado de exceção porque gera uma indiscernibilidade entre a vida e a lei: o homem é a-
bandonado à pura lei, e por pertencer, deste modo, ao bando soberano, não é mais
homem, mas mera vida nua.
A relação existente é que todos eles são pessoas reduzidas à mera existência biológica.
São homo sacer entregues ao (a)bando(no) em razão daquilo que Foucault denomina de
biopolítica, mas que Agamben melhor define como tanatopolítica: o poder que o soberano
tem de decidir sobre quem tem o direito ou não de viver, ou seja, em decidir qual vida
merece ser vivida. São pessoas insacrificáveis, porém matáveis.
De fato, a origem da indiscernibilidade entre vida política e vida nua tem seu limiar na
figura do homo sacer, que era aquela pessoa condenada na vetusta comunidade romana
em razão de haver cometido um determinado delito, e que em razão disto, não poderia ser
sacrificada aos deuses; contudo, se alguém o encontrasse, poderia matá-lo, sem que ao
seu algoz se imputasse a pena por homicídio: uma vida insacrificável, porém matável.
Sendo, pois, o homo sacer aquele homem que se encontrava entre o iusdivinum e o ius
humanum, é uma vida sacra, no entanto matável.
E não é esta a principal característica do homem sob um regime de anomia (que não
sendo mais exceção, é regra, portanto, todos somos homo sacer)? Que a vida humana é
sacra, que os atributos da humanidade sejam todos eles sancionados pelo direito, não
existe dúvida alguma. Não é corrente na doutrina constitucional a afirmação de que a vida
é o direito fundamental primeiro que toda e qualquer pessoa detém pelo só fato de ser
pessoa (artigo 5º, caput da CRFB/88)? Não obstante, é este mesmo ordenamento jurídico
que estabelece o início da vida[3] e o seu término[4]; é este mesmo direito que estabelece
quem pode ou não gozar de sua sexualidade, e como o fazer; é este mesmo direito que
estabelece como, quando e de que forma se poderá exercer atividade laborativa. A lei
capta de tal forma a vida humana, que ela mesma possibilita tanto a sua insacrificabilidade
como a sua matabilidade.
E também não é esta a situação dos refugiados nos campos da África? Ou dos moradores
de Santana, Roraima, que recebiam a importância de R$ 7,00 (sete reais) ao mês, para
servirem de cobaias humanas nos estudos sobre a malária ali realizados por
pesquisadores brasileiros e estadunidenses?
Bibliografia:
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, trd. Henrique
Burigo, 2 ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002 (Homo Sacer – Il PotereSovrano e
lanudavita).
__________. Estado de Exceção, trd. Iraci D. Poleti, São Paulo: Boitempo, 2004 (Stato di
Eccezione).
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 29-91.
BUTLER, Judith. Guantánamo Limbo, in The Nation, de 01/04/2002. Disponível
em http://www.thenation.com/doc/20020401/butler, acessado em 05/01/2006, às 20:45.
BYINGTON, Elisa. O Estado de Exceção: Entrevista com Giorgio Agambem, in Carta
Capital, de 31/03/2004, pp. 76-78.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber, trad. Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, 16 ed., São Paulo: Graal, 2005
MOREIRA, Vital. Constituição e Democracia na Experiência Portuguesa, in MAUÉS,
Antonio G. Moreira (Org.). Constituição e Democracia, São Paulo: Max Limonad, 2001,
pp. 261-283.
RAULFF, Ulrich. An Interview with Giorgio Agamben, in German Law Journal, n. 5, de
01/05/2004. Disponível em http://www.germanlawjournal.com/Article.php?id=437,
acessado em 11/11/2005, às 08:40.
SINGER, Daniel. The Euroleft, or, Who Afraidof Tina?, in The Nation, de 01/11/1999.
Disponível em http://www.thenation.com/doc/19990111/singer, acessado em 05/01/2006,
às 20:30.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao Deserto do Real!, trd. Paulo Cezar Castanheira, São Paulo:
Boitempo, 2003 (Welcometothe Deserto f the Real! Five EssaysonSeptember 11
andRelated Dates).
Notas:
[1] Embora o tradutor da versão brasileira informe que o conjunto da obra intitulada Homo
Sacer se componha numa trilogia, o própria autor, em entrevista a UlrichRaulff, publicada
no German Law Journal, de 01 de maio de 2004, informa que a referida obra é na verdade
uma tetralogia, a começar por Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, seguido
por Estado de Exceção (Homo Sacer II.1), Que Resta de Auschwitz: o arquivo e o
testemunho (Homo Sacer III) e O Reino e a Glória: por uma genealogia teológica da
economia e do governo (Homo Sacer II.2). Contudo, em 2008, Agamben lançou na Itália
um novo livro da série Homo Sacer, Il Sacramento delLinguaggio:
archeologiadelgiuramento (Homo Sacer II, 3), dando a entender que o projeto concebido
como tetralogia se expandiu para novos horizontes de pesquisa.
[2] Neste sentido, MOREIRA, Vital. Constituição e Democracia na Experiência
Portuguesa, in MAUÉS, Antonio G. Moreira. Constituição e Democracia, São Paulo:
Max Limonad, 2001, pp. 261-283. Para uma crítica bem fundamentada à luz da teoria
constitucional, consulte BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, Rio de Janeiro:
Forense, 2003, pp. 29-91.
[3] Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, artigo 2º: “A personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os
direitos do nascituro”.
[4] Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, artigo 3º: “A retirada post mortem de tecidos,
órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser
precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos
não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”.
[5] Se excepciona, é porque a lei internacional existe mas não vige: um estado de exceção
internacional?
Informações Sobre o Autor
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira