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Música e Músicos no Paraná: sociedade, estéticas e memória. v.

1,
Curitiba: Artembap, 2014.

PEÇAS DIDÁTICAS PARA PIANO DE


HENRIQUE MOROZOWICZ
Dra. Ingrid Barancoski 1
UNIRIO
ingridbarancoski@uol.com.br

Resumo
O artigo faz uma apreciação das peças didáticas para piano do compositor paranaense
Henrique Morozowicz (1934-2008), com base em características de didatismo do repertório
de ensino apontadas por Jacobson, Lancaster e Rabinoff. A presença de tais elementos é
demonstrada através de exemplos de diversas peças para piano do compositor, de níveis
básico e intermediário de dificuldade. O artigo pretende resgatar este repertório discutindo
sua utilidade pedagógica e comprovando sua qualidade musical.

Palavras-chave: Pedagogia do piano; Técnica pianística; Música paranaense; Idiomatismo


pianístico; Música contemporânea

DIDACTIC PIANO PIECES BY HENRIQUE MOROZOWICZ

Abstract
The article makes an assessment of didactic piano pieces by the Brazilian composer Henrique
Morozowicz (1934-2008), based on characteristics of the didactic teaching repertoire
highlighted by Jacobson, Lancaster and Rabinoff. The presence of such elements is
demonstrated by examples from several piano pieces by composer, basic and intermediate
levels of difficulty. The article intends to redeem this repertoire discussing their pedagogical
usefulness and proving their musical quality.

Keywords: Piano pedagogy; Piano technique; Music from Paraná (Brazil); Piano idiomatic
writing; Contemporary music

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Professora Associada III da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Concertista.
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Música e Músicos no Paraná: sociedade, estéticas e memória. v. 1,
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AS PEÇAS DIDÁTICAS PARA PIANO NA PRODUÇÃO DO COMPOSITOR

O compositor paranaense Henrique Morozowicz (1934-2008) faz parte de uma


geração de compositores brasileiros nascidos nas primeiras décadas do século XX, que se
dedicou à composição de peças didáticas para piano. Entre eles também estão: Heitor
Alimonda (1922-2002), Ernst Widmer (1927-1990), Osvaldo Lacerda (1927-2011), Ernst
Mahle (1929) e Sérgio Vasconcelos Correa (1934), entre outros.
Henrique Morozowicz iniciou sua carreira como pianista e, desde criança cultivava a
habilidade de improvisar ao piano. Teve atividade intensa como solista e também como
camerista e acompanhador, além de atuar como organista. Já na adolescência escreveu suas
primeiras obras2. A combinação das atividades de pianista e compositor resultou numa
listagem generosa de obras para piano, de todos os níveis de dificuldade3, caracterizadas por
um marcante domínio do idiomatismo do instrumento.
Na Tabela 1, podemos observar a distribuição cronológica das peças para piano de
nível elementar e intermediário (de acordo com a classificação em GANDELMAN, 1997, p.
181-192). Podemos observar que, embora a maior produção de peças didáticas se concentre
na década de 1970, o gênero foi uma constante em toda a sua carreira.
O intuito pedagógico é evidente nos títulos – com termos como ‘facílima’ e ‘acessível’
–, e também em comentários nos manuscritos – como por exemplo na partitura das 2
Invenções: “para desinibir os pianistas paranaenses”.

2
O próprio compositor afirma: “Mas foi só mais tarde, em 1950, depois de ser organista da Catedral, que
escrevi minha primeira peça original, o Para dormir, um acalanto para vozes femininas, e A Capella para
embalar meu irmãozinho Norton, que tinha então um ano” (MOROZOWICZ: 1995a, p. 92).
3
O catálogo de obras de Henrique Morozowicz inclui as seguintes instrumentações: coral, canto e piano, piano
solo, 2 pianos, piano a 4 mãos, órgão, piano e instrumentos de percussão, cravo solo, duos a quinteto de
instrumentos de sopro e de cordas com e sem piano, e orquestra de câmera.
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Elementar III Intermediário I Intermediário II


Década (2 peças para uma nota (2 invenções) (1955)5•
de 1950 só) (1955)4 Suite acessível (1958)
Suite facílima (1958) 3 Estudos breves (1958)
3 Prelúdios melancólicos
(1958)
Década Pequena Suite (1960)
de 1960 4 pequenos estudos
(1966)
Década Sonatina I (1972) Pour Martina (1972)
de 1970 1º. Caderno de Karina Marchas lúdicas (1976)
(1973)
Suite de Natal (para
piano a 4 mãos) (1976)
Década
de 1980
Década Sentimento Latino
de 1990 (1995)6
Tabela 1: Peças de Henrique Morozowicz de nível elementar e intermediário organizadas por décadas, segundo
as datas de composição
Fonte: elaborado com base nos dados fornecidos por Gandelman (1997)

A LINGUAGEM MUSICAL DAS OBRAS DE HENRIQUE MOROZOWICZ

O caráter cativante das peças de Morozowicz se deve em grande parte a uma


maneira intuitiva de compor, ou como ele mesmo definia, com “sentido auditivo-intuitivo e
de sensibilidade” (MOROZOWICZ, 1995a, p. 94). A comunicabilidade da música era
preocupação constante para ele, e isto estava acima de quaisquer pretensões vanguardistas:

Podemos, em música, nos exprimir coloquialmente, ou ao nível de obra literária, ou


podemos escrever tratados filosóficos, obras de grande conteúdo dramático,
poético e até místico, exprimindo-nos em uma linguagem diferenciada, mas ainda
no bojo de um código de comunicação acessível a uma porção significativa de
pessoas. Não nos cabe inventar uma língua nova (MOROZOWICZ, 1995a, p. 97).

4
Considero 2 peças para uma nota só e 2 Invenções como experimentações, provavelmente influenciadas pelas
aulas com Koelreutter na década de 1950, e não como peças com propósito didático, embora sejam de nível de
dificuldade não avançada. Essa questão fica mais clara no decorrer do artigo.
5
A peça Sentimento Latino foi composta após a publicação de Gandelman. Inseri aqui no nível Intermediário II,
seguindo os mesmos critérios de classificação.

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Esta ideia nos remete ao pensamento do compositor tcheco Karel Husa (1921), seu
professor no Programa de Mestrado em Composição, na Universidade de Cornell (EUA), no
início dos anos 1980, e que ele muito admirava e considerava na sua formação. Nas palavras
de Husa:

Não quero ser um compositor cerebral. Quero ser inventivo, produzir uma
partitura que revele algo interessante, instigante e sofisticado para o intérprete ou
o maestro, ou outro compositor. Ao mesmo tempo, deve ser musical e terno, e
7
demonstrar que eu me importo com as outras pessoas (apud DUFFIE).

Morozowicz (1995a, p. 98) se mostrava deliberadamente contrário a métodos


intelectualizados de composição: “Tenho a impressão de que, por obra do intelecto,
podemos muito mais facilmente perder o pé na realidade e cair em devaneios surrealistas,
do que quando agimos por instinto ou pela intuição. Isso se agrava quando ignoramos a
nossa cultura”.
Paralelamente, sua atitude era contrária a preconceitos e aberta às mais diversas
linguagens, tanto do passado como do presente:

Escrever no sistema tonal é tão gratificante, intelectualmente, como escrever em


qualquer sistema atonal. A diferença, porém, é que temos que ter um bom ouvido,
familiarizado com as sutilezas da linguagem harmônico-tonal, para poder fazer uma
música preferencialmente baseada na consonância e não na dissonância. Ao que
parece, este é um privilégio reservado para poucos... E nesse sentido, quem pode
ser mais extraordinário que J. S. Bach, cuja obra é tão contemporânea. (...) A
presença de Bach é atemporal (apud BONK; JUSTUS, 2002, p. 215).

Morozowicz cultivava o estilo improvisatório na sua escrita, o que vai de acordo com
a prática de improvisar, sempre presente na sua atividade musical.

Eu comecei a inventar música antes de eu começar a compor, assim que eu


comecei a aprender a tocar piano, quando eu ainda era um garoto. Era algo muito
espontâneo tentar inventar música, me baseando nos modelos das peças que eu
estudava. Eu ainda não escrevia as minhas próprias criações, mas eu improvisava e
inventava meus próprios ritmos (MOROZOWICZ, 1995a, p. 11-12).

7
I don’t want to be a cerebral composer. I want to be inventive, to have a score that will reveal something
interesting and intriguing and sophisticated to the performer or conductor, or to another composer. At the
same time, it must be musical and warm, and show that I care about other people.
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Some-se ainda o caráter espirituoso e cheio de bom humor da música de


Morozowicz, próprio de sua personalidade. Um bom exemplo são as Marchas Lúdicas,
quatro peças compostas assumidamente com base no humor musical. As indicações podem
nos dar uma ideia da música, como por exemplo ‘quase tuba’ no Trio da primeira marcha e
‘um pouco teatral e germânico’, na marcha No. 4. Títulos bem-humorados também estão
presentes, como ‘Cuba-libre’, de Sentimento Latino, uma referência ao drink com este nome,
e, segundo o compositor, também à situação política de Cuba (MOROZOWICZ, 1995b:
Prefácio, s/ número de página).

CARACTERÍSTICAS DE PEÇAS DIDÁTICAS PARA PIANO

Segundo o Dicionário Aurélio, o termo pedagógico significa “que facilita o


aprendizado”. Portanto, peças com propósito pedagógico não são apenas peças com nível
acessível, mas também devem cumprir requisitos específicos.
Segundo a pedagoga Jeanine Jacobson, os professores de piano devem selecionar
para repertório de ensino as peças didáticas que satisfaçam a maioria dos seguintes itens:
(1) devem soar cativantes e os alunos devem ter vontade de estudá-las, de aprendê-las e de
tocá-las, mesmo depois de terminado o período de estudo; (2) devem soar de acordo com o
título; (3) devem ser da melhor qualidade musical, sem clichês, com surpresas e variedade
suficientes para manter o interesse do aluno e do professor; alguns elementos desejáveis
para isto são: melodias divididas entre as mãos, melodias na mão esquerda, mudanças
inesperadas de articulações, texturas, notas e/ou harmonias, posições de cinco dedos que
fogem ao padrão maior-menor, uso de todo o teclado, variedade no tamanho das frases,
métricas não usuais, uso do pedal de maneira simples; (4) devem ter nível de dificuldade
uniforme e coerente; (5) devem ter propósitos pedagógicos claros.
Outro conselho de Jacobson é que deve ser considerado, entre outros: (1) se a
partitura é clara de ler; (2) se os dedilhados fornecidos são lógicos e úteis; (3) se as peças
soam mais difíceis do que realmente são; (4) se as peças são confortáveis para tocar (no
sentido motor); (5) se incluem repetições, sequências e imitações, o que facilita o

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aprendizado e a execução; (6) se o professor terá prazer em ensinar a peça (JACOBSON,


2006, p. 189-191).

DIDATISMO NAS PEÇAS PARA PIANO DE HENRIQUE MOROZOWICZ

Nas peças de Morozowicz, podemos observar as várias questões pedagógicas


facilitadoras do aprendizado recomendadas por Jacobson, como listado a seguir:

a) em termos de caráter, as peças são curtas, concisas e cativantes; um ótimo exemplo


disso é a Sonatina I (1972):

Exemplo 1: MOROZOWICZ, H. Sonatina I, I. Amavelmente, cc. 1-17

b) os títulos e as indicações de tempo são claros e sugestivos, o que incentiva a


imaginação sonora do aluno e facilita o entendimento da concepção das peças. No exemplo
2, o título Passeio esclarece sobre as várias questões musicais a serem definidas pelo
intérprete como andamento, dinâmica, fraseado e articulação:

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Exemplo 2: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima, III. Passeio, cc.1-8

Outros exemplos de títulos sugestivos estão na Suite Pour Martina, com os


movimentos: (1) O picapau amarelo, (2) As borboletas em flor, ao vento, e (3) Borboletas
Psicodélicas.

Exemplo 3: MOROZOWICZ, H. Pour Martina, II. As margaridas em flor, ao vento, cc.1-10

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Podemos listar muitas indicações originais e de fácil entendimento musical, como por
exemplo: ‘movido com graça’, na primeira peça da Pequena Suite; ‘balançando quase
caipira’, na quarta peça da Pequena Suite; ‘afetado e pipocante’ em 4 Pequenos estudos, No
4; ‘piccante’ em O Picapau amarelo, primeiro movimento de Pour Martina; ‘amavelmente’
no primeiro movimento de Sonatina I; ‘bem alegre’ em Cai, cai balão, No 2 e em Ti-ri-la-la-la,
No 4 do 1º Caderno de Karina; ‘pulandinho’ em Fuks Du hast, No 8 do 1o Caderno de Karina;
‘com movimento de boneca’ em Mietze, Mietze, Katze, No 10 do 1o Caderno de Karina; ‘bem
brincalhão’ em Wlas kotek na plotek, No 11 do 1o Caderno de Karina; ‘um pouco teatral e
germânico’ em Marchas lúdicas No 4.

c) o trabalho é equilibrado entre as mãos direita e esquerda, com frequentes


ocorrências de contraponto invertido, como na segunda peça da Pequena Suite:

Exemplo 4: MOROZOWICZ, H. Pequena Suite, II. Bem marcado e vivo, cc.1-4

O mesmo equilíbrio é encontrado na escrita para piano a quatro mãos, tanto entre as
partes primo e secondo como entre as mãos de cada pianista:

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Exemplo 5: MOROZOWICZ, H. Suite de Natal, I. Sinos de Belém, cc. 1-8

d) peças com melodias na mão esquerda são frequentes:

o
Exemplo 6: MOROZOWICZ, H. 1 Caderno de Karina, 6. Teresinha de Jesus, cc.1-5

e) a escrita traz riqueza de articulações e variedade de texturas, sempre com clareza de


notação e de intenção musical:

o
Exemplo 7: MOROZOWICZ, H. 1 Caderno de Karina, 7. Frère Jacques, cc. 1-11

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f) padrões não usuais de cinco dedos também são encontrados:

o
Exemplo 8: MOROZOWICZ, H. 4 pequenos estudos, N 1, cc. 1-4

g) encontramos várias peças que soam mais difíceis do que realmente são. Um dos
melhores exemplos é a Suite Pour Martina. No Exemplo 9, a facilitação motora é conseguida
pela alternância das mãos em padrões métricos regulares:

Exemplo 9: MOROZOWICZ, H. Pour Martina, III. Borboletas psicodélicas, cc.1-13

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h) o propósito pedagógico é objetivo e o nível de dificuldade sempre uniforme em cada


peça. No Exemplo 10, em Reminiscência, da Suite Facílima, encontramos um excelente
material para os professores ensinarem aos seus alunos o gesto musical anacruse, bastante
claro na escrita de cada uma das mãos e repetitivo do início ao final da peça. Não há outros
elementos desafiadores e, assim, pode-se focar na anacruse.

Exemplo 10: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima, V. Reminiscência, cc.1-9.

i) as peças são estruturadas com repetições, sequências e imitações de motivos


melódicos também concisos:

Exemplo 11: MOROZOWICZ, H. Sentimento Latino, VIII. Xaxado, cc.1-10

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CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DAS PEÇAS DE HENRIQUE MOROZOWICZ

Como mencionado, a escrita de Henrique Morozowicz (não só das peças didáticas) é


sempre confortável para tocar. Um bom exemplo é a primeira peça da Suite acessível
(Exemplo 12), em que o uso das teclas pretas e brancas assim divididas entre as mãos e
combinada ao paralelismo dos acordes faz com que ambas as mãos possam tocar sem
problemas na mesma região do teclado; além disso, os elementos melódicos concisos e
repetitivos facilitam o aprendizado e promovem a velocidade necessária.

Exemplo 12: MOROZOWICZ, H. Suite acessível, I. Tocatinha, cc. 1-5

Outro elemento frequente é a repetição de um mesmo tema em diferentes registros,


o que possibilita a exploração de todo o teclado e incentiva a percepção dos contrastes de
sonoridades entre os vários registros (podemos entender este procedimento como uma
alusão ao órgão, que o compositor também tocava).

Exemplo 13a: MOROZOWICZ, H. Marchas Lúdicas, I. Trio, cc.1-8

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Exemplo 13b: MOROZOWICZ, H. Marchas Lúdicas, I. Trio, cc.17-25

Outra característica marcante de Morozowicz, tanto nas peças didáticas como nas de
pianismo mais adiantado, é a utilização de escolhas dadas ao intérprete. Nas peças de que
tratamos aqui, isto já aparece de diversas formas:

a) na opção de alteração ou não de uma nota:

Exemplo 14: MOROZOWICZ, H. 1º. Caderno de Karina, 6. Teresinha de Jesus, cc. 6-10

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b) na escolha de uso dos registros e tamanho de frase:

Exemplo 15: MOROZOWICZ, H. Pour Martina, III. Borboletas psicodélicas, cc. 14-22 (o compasso 16 pode ser
repetido quantas vezes o intérprete quiser, e o compasso 19 pode iniciar uma oitava abaixo e terminar uma
oitava acima do que está escrito)

c) no número de repetições de um mesmo elemento:

o
Exemplo 16: MOROZOWICZ, H. 4 pequenos estudos, N 4, cc. 32-34

d) na opção de transpor ou não um trecho. Por exemplo, em Cuba-libre, de Sentimento


Latino, o compositor coloca a seguinte observação: “pode-se tocar esta peça em teclas

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pretas. Para isto, leia todas as notas com bemóis, e dó sustenido e fá sustenido como
naturais”8.
Essas diferentes escolhas na interpretação das peças despertam o aluno para
possibilidades de improvisação musical. A importância da atividade de improvisar é
confirmada por pedagogos como Sylvia Rabinoff:

A habilidade de improvisar fará do aluno um músico melhor. Não é só uma questão


de preencher interlúdios (...) ou adicionar ornamentos; é questão de desenvolver
habilidades interpretativas e técnicas. A improvisação desenvolve uma melhor
relação táctil com o teclado, a consciência auditiva, poder ficar a vontade em
qualquer tonalidade, melhora a memória e a leitura, e é valiosa para o
entendimento de análise, segurança ao tocar e presença como intérprete. (...)
improvisação é um passo além da aquisição do vocabulário musical, é a utilização
9
criativa deste vocabulário (RABINOFF, 2004, p. 228-229) .

Henrique parecia já estar ciente destas ideias pedagógicas, bastante avançadas para
o Brasil na época (décadas de 1950 a 1970).
A habilidade de transposição também é utilizada no primeiro movimento da Sonatina
I, na qual a repetição do trecho entre os compassos 2 a 9 deve ser feita “lendo em bemóis”.
Ao lado da improvisação, a transposição é uma das principais habilidades funcionais do
piano, e deve ser desenvolvida desde os níveis iniciais10. São raras as oportunidades onde
estas habilidades são integradas ao repertório, como nos oferece Henrique Morozowicz11.

8
Na partitura, em inglês e italiano: “Si pio suonare questo pezzo sui tasti neri. Per questo leggi tettu Le note
come bemolli e Il Do# e Il Fa# come naturali. This piece can be played in black-keys. For that, read all notes as
flats and the C# and F# as natural”.
9
The ability to improvise will help make the student a better performer. It is not only a question of filling in
missing interludes (…) or of adding ornaments; rather it is a matter of improving both technical and
interpretative faculties. Improvising gives a superior tactile relationship to the keyboard, an aural awareness,
and a sense of “at homeness” in any key, better memory and sight-reading ability, a gift for compositional
analysis, security, and poise. (…) Improvisation is a step beyond acquiring a musical vocabulary: it is applying
that vocabulary creatively.
10
Kowalchyk e Lancaster alertam que os métodos de ensino tendem a deixar de lado a habilidade de
transposição no nível intermediário, quando o aluno passa a tocar peças do repertório tradicional, mas que
este treinamento deve continuar a ser desenvolvido em todos os níveis (KOWALCHYK; LANCASTER, 1995, p.
225).
11
Entre compositores que utilizam habilidades funcionais integradas em peças de ensino podemos citar os
húngaros Z. Kodaly (1882-1967), G. Kurtag (1926) e o americano R. L. Finney (1906-1997), além das sugestões
deixadas por B. Bartók (1881-1945) no Prefácio dos cadernos do Mikrokosmos.
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Encontramos também uma variedade significativa de procedimentos quanto a


elaborações métricas e rítmicas, como listados a seguir:
e) um deles é o uso de temas que “passeiam livremente” pela métrica (Exemplos 17a e
b). É um procedimento bastante elaborado e complexo, mas que Morozowicz utiliza de uma
maneira de fácil entendimento:

Exemplo 17a: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima (1958), I. Ciranda, cc. 1-5.

Exemplo 17b: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima, I. Ciranda, cc. 20-24.

f) métricas assimétricas são bastante presentes, principalmente nos 4 Pequenos


Estudos, cada um deles trabalhando repetitivamente uma métrica assimétrica não usual:

12
Exemplo 18: MOROZOWICZ, H. 4 Pequenos estudos, 3. Bem ritmado, cc. 1-2

12
O compositor não indica fórmula de compasso em nenhum dos 4 Pequenos estudos, provavelmente
o o
acreditando que isto daria uma ideia de maior complexidade à notação musical. Os estudos N 1 e N 3
o o
trabalham com métricas assimétricas, o N 2 com polirritmia e o N 4 com variação no tamanho do compasso
mantendo pulsação e unidade de tempo estáveis.
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g) no Prelúdio melancólico No 2 o compositor utiliza no ostinato de acompanhamento


divisões da métrica em valores crescentes em padrão repetitivo; isso pode ser bastante útil
para o desenvolvimento do controle e precisão de divisões variáveis do pulso estável:

o
Exemplo 19: MOROZOWICZ, H. Prelúdio Melancólico N . 2, cc.1-4

h) já as síncopas, características de repertório brasileiro, também são frequentes, e


estão presentes em todas as peças de Sentimento Latino13:

Exemplo 20: MOROZOWICZ, H. Sentimento Latino, III. Cha-cha-chá, cc.1-3

13
A obra Sentimento Latino foi escrita para uma encomenda de Piotr Lachert, diretor da editora Chiola Music
Press, seguindo a ideia de uma série de peças fáceis para treinamento de ritmo de pianistas europeus.
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i) são procedimentos rítmicos ocasionais nas peças de Morozowicz, e também mais


comuns no repertório pianístico de ensino: polirritmia (Exemplo 21); mudança de fórmula de
compasso (Exemplo 22, onde as mudanças de compasso refletem o caráter improvisatório
deste movimento); e polimetria (Exemplo 23, onde se sobrepõem padrões de 3
semicolcheias na mão direita e de 4 semicolcheias na mão esquerda)

Exemplo 21: MOROZOWICZ, H. 4 Pequenos estudos, 2. Balançando, cc. 1-4

Exemplo 22: MOROZOWICZ, H. Suite acessível (1958), II. Sesta e seresta, cc.1-9

93
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o
Exemplo 23: MOROZOWICZ, H. Três estudos breves (1958), Estudo N . 1, cc.1-2

CONCLUSÃO

Henrique Morozowicz satisfaz todos os requisitos apontados por Jacobson para


qualificar boas peças didáticas para piano, como citados aqui no item III. Além disso, o
compositor: (1) explora diversas questões métricas e rítmicas com padrões repetitivos e
alusões a ritmos de danças, facilitando o entendimento e, consequentemente, o
aprendizado; (2) oferece oportunidades de escolhas para o intérprete, desde as peças de
nível básico; (3) integra a prática de habilidades funcionais ao repertório com improvisações
e transposições sugeridas nas peças; (4) faz uso de humor musical com acentuada
espirituosidade, o que dá à sua música um caráter leve e prazeroso.
O repertório de peças didáticas de Morozowicz preenche a descrição de Maris,
quando a pedagoga descreve repertório de ensino de qualidade, o que vai além de satisfazer
listagem de características técnicas:

Tal música soa prazerosa de forma que o ouvinte a percebe e a entende harmônica,
melódica, rítmica e expressivamente. Além disto, é bom tocar (...) Os padrões se
encaixam na configuração da mão (...) e utiliza as características do piano (teclas
brancas e pretas, características acústicas, registros). Esta música prepara os alunos
para o repertório mais adiantado, mas é também música para apreciar, pelo prazer
14
da música em si (MARIS, 1995, p. 184).

14
Such music sounds pleasing in ways that a listener can perceive and analyse harmonically, melodically,
rhythmically, and expressively. Further, it feels good (…) to play. The patterns fit the configuration of the hand
(…) and utilize the characteristics of the piano (black and white keys, acoustical traits, registers). Such music
prepares students for more advanced repertoire, but it is also music to enjoy now, for its own sake.
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As peças didáticas para piano de Henrique Morozowicz constituem, portanto,


repertório de ensino valioso e muito útil tanto para os alunos e professores de piano, assim
como para os professores e alunos de composição, como ótimos exemplos de peças
acessíveis, originais, concisas, musicalmente cativantes e ao mesmo tempo oferecendo
pianismo idiomático e eficiente. É um material utilizado atualmente por docentes atuando
no estado do Paraná, mas que deve ser redescoberto por todos nós, músicos, pianistas e
professores.

REFERÊNCIAS
BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano nos níveis básico
e intermediário. Per Musi, n. 9, 2004, p. 89-113.
BONK, M.; JUSTUS, L. Catálogo temático: Henrique de Curitiba (1950-2001). Curitiba:
Fundação Cultural de Curitiba, 2002.
COHEN, S.; GANDELMAN, S. Cartilha Rítmica para piano. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2006.
CARNEIRO, G. C. In Vino Veritas: a viagem musical de Henrique de Curitiba. Curitiba, FAP,
2008. p. 231-244.
DUFFIE, B. Karel Husa – the composer in conversation with Bruce Duffie. Disponível em:
<http://www.bruceduffie.com/husa.html>. Acesso em: out. 2012.
GANDELMAN, S. 36 Compositores brasileiros – obras para piano (1950/1988). Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1997.
JACOBSON, J. M. Professional piano teaching – a comprehensive piano pedagogy textbook
for teaching elementary-level students. Van Nuys, EUA: Alfred Publishing, 2006.
KOWALCHYK, G.; LANCASTER, E. L. Functional skills and the intermediate student. In:
GORDON, S., MACH, E.; USZLER, M. The well-tempered keyboard teacher. Nova York:
Schirmer, 1995. p. 225-234.
LIMA, D. Henrique de Curitiba Morozowicz: a biography and discussion of selected vocal and
instrumental works with piano. Tese de Doutorado. Florida State University, 2004.
MARIS, B. E. Repertoire and the intermediate student. In: GORDON, S., MACH, E.; USZLER,
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