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Estado e Sociedade: reflexões para uma


introdução à geopolítica

Oswaldo de Oliveira Santos Jr.

Resumo: O presente artigo está dividido em duas partes. Na primeira é feita uma
introdução sobre a Teoria Geral do Estado, com o objetivo de iniciar uma discussão
sobre o Estado a partir de alguns teóricos e pensamentos fundamentais, sem a
possibilidade de esgotar o tema; em seguida é feita uma discussão crítica sobre a noção
de políticas públicas, o que também se mostra como uma introdução ao tema, que será
aprofundado durante o semestre.
Palavras-chave: Estado; urbanização; políticas públicas, cidadania e sociedade.

Introdução
A compreensão da sociedade contemporânea passa necessariamente e
obrigatoriamente pela competência e habilidade na leitura do mundo. Ser capaz de
interpretar, analisar e ler as relações geopolíticas é uma habilidade urgente em todas as
áreas de conhecimento.

Deste modo, este texto oferece introdutoriamente alguns subsídios para a compreensão
da sociedade, considerando que as questões geopolíticas são intensas na nossa
sociedade contemporânea.

Elaborar uma análise sobre o Estado e as políticas públicas é um exercício mais complexo
do que parece à primeira vista, pois não se trata de definir e conceituar o que é Estado
e políticas públicas e de tentar situar num determinado momento histórico e num
espaço geográfico tais conceitos. Como em todo texto introdutório, foi necessário fazer
escolhas e delimitações. Primeiramente retomamos alguns aspectos mais fundamentais
da Teoria Geral do Estado (SANTOS JR., 2009) e, em seguida, abordamos, de forma
introdutória, a temática que envolve as políticas públicas

Teoria Geral do Estado1

1
Ver As abordagens científico-tecnológicas, na referência bibliográfica no final do texto.
2

A teoria geral do Estado deve ser compreendida como uma ciência de síntese, visto que
ela transita entre várias outras ciências e conhecimentos humanos, da psicologia à
política, passando pela filosofia, geografia, história e sociologia. Como ciência, passou a
ser organizada somente no século XIX, mas é possível observar estudos na antiguidade
com Platão (428-348 a.C.) (A República) e Aristóteles (384-322 a.C.), que buscam pelo
Estado ideal sem uma análise pormenorizada do Estado real; também na Idade Média,
em Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) (A cidade de Deus, em 426) e Tomás de
Aquino (1225-1274) (Suma teológica), que irão procurar justificar a existência do Estado
pela via teológica; mas é com Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de O Príncipe, que
o Estado passa a ser analisado como um fenômeno (histórico, jurídico, político e social)
complexo, visto em seu contexto. É esse autor quem instituirá os elementos
fundamentais da ciência política (DALARI, 2009).

Até Maquiavel, os debates sobre a teoria do Estado e a própria organização social


limitavam-se às especulações filosóficas ou teológicas em que os estudos realizados
giravam em torno da moral. Mesmo entre seus contemporâneos, como Erasmo de
Rotterdam (1465-1536) ou Thomas Morus (1478-1535), o debate sobre uma teoria do
Estado não se aprofunda, limitando-se ao humanismo abstrato, construtor de modelos
ideais de bons governantes e sociedades justas (MARTINS, 2000).

Para Thomas Morus, por exemplo, o Estado ideal recebeu o nome de Utopia, um Estado-
“modelo” situado numa ilha formada por 54 cidades, todas iguais; a terra era bem
distribuída e todos os cidadãos nela trabalhavam por seis horas diárias, satisfazendo
assim todas as necessidades econômicas dessa sociedade. A base do governo se
assentaria nas famílias; a cada 30 famílias seria eleito um filarca2. Depois, dez filarcas
elegeriam um protofilarca e, reunidos, elegeriam um presidente vitalício. O ateísmo era
intolerável nesse Estado, visto que seu consentimento negaria as bases morais e
espirituais de Utopia (MASIP, 2001). Aqui a concepção de Estado, portanto, assenta-se
no humanismo.

2
Representante de um grupo de famílias, conforme mencionado no livro Utopia, de Thomas Morus.
3

A criatividade da obra maquiavelana revela-se mais uma vez, pois, envolta num contexto
de limitações de ordem teórica e analítica, ela foi capaz de produzir um pensamento
original para a reflexão dos fenômenos políticos.

Conforme observa Bonavides (2007), o próprio uso moderno do termo Estado decorre
de Maquiavel, que analisa as formas de governo de maneira dualista: ou o poder é
singular, com a monarquia, ou é plural, com a república. Esses elementos são postos na
primeira frase do capítulo I do livro O príncipe, na qual se lê: “Todos os Estados, os
domínios que existiram e existem sobre os homens, foram e são repúblicas ou
principados” (MACHIAVELLI, 1977, p. 11). A matéria com a qual Maquiavel se depara e
que procura elucidar é o Estado:

(...) a realidade política, pensada como prática humana concreta, e o centro


maior de seu interesse é o fenômeno do poder, formalizado na instituição do
Estado. Não se trata de estudar o tipo ideal de Estado, mas de compreender
como organizações políticas se fundam, se desenvolvem, persistem e decaem.
(MARTINS, 2000, p. 16)

É necessário esclarecer que o Estado é concebido por Maquiavel como um


organismo vivo, com poder de mando e coerção, que será imposto pela força e
destinado ao desaparecimento. A força e a solidez do Estado dependerão da sua
estrutura e da virtude cívica3 dos cidadãos (MASIP, 2001).

A análise elaborada por Maquiavel é sustentada teoricamente pela filosofia da


história e pela psicologia humana. A partir da primeira, ele afirma que os fatos históricos
são cíclicos de modo geral, por isso a sua compreensão é necessária para o
entendimento da realidade; a partir da psicologia, ele irá compreender que todos os
indivíduos são egoístas e ambicionam o poder, em todos os lugares e tempos (MARTINS,
2000).

A observação minuciosa do passado torna-se para Maquiavel elemento essencial


na condução do Estado. Para ele, a virtú (do estadista) consiste exatamente em sua
capacidade de retirar do passado modelos de ações para o presente capazes de lhe
proporcionar o sucesso na ação política, passando a ter “controle” sobre as

3
A virtude cívica para Maquiavel correspondia à sabedoria do cidadão, dedicado à melhoria das instituições
(MASIP, 2001). Não pode ser confundida com a virtú.
4

circunstâncias boas ou más, a fortuna (idem, p. 18). Da análise Texto para reflexão

histórica ele observará, por exemplo, que: “Quando muitos homens


reunidos se consideram um só
Quando são conquistados Estados que se corpo, têm uma única vontade
habituaram a governar-se por leis próprias e em que se refere à comum
liberdade, por três modos se pode conservar a posse: conservação e ao bem-estar
geral. Então, todas as molas do
primeiro – arruiná-los; segundo – ir morar neles;
Estado são vigorosas e
terceiro – deixar que vivam com suas leis,
simples, suas máximas claras
arrecadando um tributo e criando um governo de
e luminosas. Não existem
poucos, que se mantenham amigos. interesses confusos,
[...] contraditórios. O bem comum
se mostra em geral com
Exemplifique-nos a história de espartanos e evidência e não exige senão
romanos. Os primeiros criaram em Atenas e Tebas bom senso para ser
governo oligárquico – tornaram a perdê-las. Os reconhecido.” (ROUSSEAU,
romanos, visando manter a posse de Cápua, Cartago 1985, p. 112)
e Numância, destruíram-nas. E não as perderam.
“Quanto mais harmonia reinar
[...] nas assembleias, quanto mais
Assim sendo, para manter-se uma república se aproximam os acordos da
conquistada, o caminho mais aconselhado é destruí- unanimidade, mais dominante
la ou habitá-la pessoalmente. (MACHIAVELLI, 1977). é a vontade geral, porém os
longos debates, as dissensões,
A virtú será condição essencial do estadista, que, diante o tumulto, anunciam o
ascendente dos interesses
da fortuna, ou seja, do imponderável e incerto, irá dela depender particulares e o declínio do
Estado.” (ROUSSEAU, 1985,
para manter o controle de todas as coisas. O príncipe virtuoso p. 114)

não é necessariamente aquele bom cristão, cheio de qualidades


morais e virtudes; na realidade, essa virtú diz respeito às qualidades do governante para
chegar e se manter no poder, ainda que para isso se faça uso da força, contudo sempre
buscando ser amado e respeitado pelos seus súditos, jamais provocando o ódio (CHAUÍ,
2000, p. 396).

Após Maquiavel, vieram os pensadores do que se denominou direito natural ou


jusnaturalismo: Thomas Hobbes4, John Locke5, Montesquieu6 e Rousseau. O direito
natural é aquele estabelecido pela própria natureza. Um conjunto de regras que tem
por fundamento a natureza humana, portanto, consideradas gerais e imutáveis,
contrapondo-se ao direito positivo, que deriva dos poderes do Estado. No século XVIII,

4
Para Hobbes, o Estado político-social surge em decorrência de um pacto social (MASIP, 2001).
5
Para Locke, o Estado social é a “delegação voluntária dos integrantes do estado de natureza (...) para
defender-se de transgressões” (idem, p. 178).
6
Montesquieu é tido como o precursor da separação entre os poderes do Estado (legislativo, executivo e
judiciário). Ele compreende que a vida em sociedade é uma lei natural e que há três tipos fundamentais de
Estado: o democrático, o monárquico e o déspota. Sua grande obra de referência para este tema é O espírito
das leis.
5

no contexto do Iluminismo, o direito natural possuiu um caráter revolucionário, tendo


sido a sustentação ideológica da Revolução Francesa e também utilizado nas
articulações para a independência dos Estados Unidos. A teoria do Estado elaborada por
J. J. Rousseau teve como princípio o direito natural, que resultou em um contrato social
(SANDRONI, 1994; DALARI, 2009).

Na análise elaborada por Sandroni (1994, p. 100) nota-se que:


Modernamente, os princípios do direito natural, ao mesmo tempo em que são
usados para defender os direitos humanos contra o arbítrio do Estado, são
empregados também como principal argumento ideológico do pensamento
conservador contra o socialismo. Este, ao pretender abolir a propriedade privada
dos meios de produção, estaria violentando um dos direitos naturais.

É por isso que quase sempre os defensores do direito natural irão buscar nos postulados
contratualistas a legitimação dos poderes democráticos do Estado, que é visto então
como um corpo moral e coletivo, tornando-se Estado soberano todas as vezes que
exercita seu poder de decisão sobre os indivíduos que a ele se associaram por meio do
contrato social. Esse contrato social é apontado por Rousseau como a solução para
“amenizar” a força destrutiva de cada indivíduo, sem, contudo, restringir a liberdade
individual, já que por esse contrato ele obedece a si mesmo, é consentido (DALARI,
2009).

A base da sociedade, a partir das teses contratualistas, é o assentimento e a aceitação,


e não a autoridade como princípio. É necessário destacar que a preocupação dos
contratualistas gira em torno da questão da melhor forma de organização social e da
melhor maneira de governar os indivíduos (BONAVIDES, 2007). É por isso que se
encontra em Rousseau a afirmativa de que a ordem social (a sociedade) decorre da
vontade. “Assim, portanto, é a vontade, não a natureza humana, o fundamento da
sociedade” (DALARI, 2009, p. 16-17). Vontade que produz o assentimento, a razão que
legitima a sociedade.

O contrato social para Rousseau vem solucionar o problema das disputas entre os
indivíduos que inviabilizam a vida em sociedade. Teoricamente, essa superação decorre
do acordo entre esses indivíduos que, para manter sua liberdade (como direito),
impõem a si o dever de ser livre. Nessa direção ele afirmará que:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de


cada associação de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unindo-se a
todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como
6

dantes [...] é o problema fundamental que o contrato social soluciona.


(ROUSSEAU, 1985, p. 35)

Em tese, o contrato social, uma verdadeira associação entre os indivíduos, fundamenta-


se na liberdade humana como direito e dever, ou seja: “a viabilidade da liberdade geral
resulta da renúncia individual a certas prerrogativas para que assim os homens se
tornem cidadãos7, criadores e participantes da vontade geral”, vontade esta sempre de
toda coletividade (SANDRONI, 1994, p. 73).

Para Rousseau, esse agregado de indivíduos, vivendo agora em sociedade (associados),


passa a agir soberanamente em prol da vontade geral, entendida como a síntese das
vontades individuais e, portanto, legítima e tendendo sempre para um bem público.
Vale destacar que ele diferencia a vontade geral da vontade de todos, que é vista como
a satisfação dos interesses particulares (DALARI, 2009). Essa questão é discutida no livro
II, capítulo III de O contrato social, no qual o autor afirma que:

Há, às vezes, diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta atende
só ao interesse comum, enquanto a outra olha o interesse privado, e não é senão
a soma das vontades particulares, que se destroem entre si; resta para a soma
dessas diferenças a vontade geral.
[...]
Importa, pois, para bem representar a vontade geral, que não exista sociedade
parcial no Estado, e que cada cidadão não tenha outra opinião além da própria.
(ROUSSEAU, 1985, p. 46-47)

Sabe-se que não existiu um momento na história humana em que houvesse uma
associação entre os indivíduos após um estado de natureza, como afirma a tese dos
contratualistas. Contudo, o contratualismo exerce muita influência sobre o pensamento
contemporâneo quando o tema é democracia, ou seja, “várias ideias que constituem a
base do pensamento de Rousseau são hoje consideradas fundamentos da democracia”;
dentre essas ideias se apresentam a vontade popular e os princípios de igualdade e
liberdade (DALARI, 2009, p. 18-19).

7
Para Rousseau, o cidadão é súdito e legislador ao mesmo tempo; é o “indivíduo transformado pela
convivência no seio do estado social” (MASIP, 2001, p. 208).
7

Em resumo, pode-se afirmar que é no contrato social que Rousseau elabora a sua teoria
do Estado. Ele constata que a humanidade passou por três etapas em seu
desenvolvimento (MASIP, 2001):

1) o estado da inocência – período em que a humanidade viveu sem abusos e


corrupções; o ser humano é essencialmente bom;

2) a falsa civilização – período em que viveu com base em valores primitivos,


quando certos abusos começaram a ser cometidos e os valores corrompidos;
há uma degeneração do estado de inocência;

3) o estado social, a verdadeira civilização – período de retorno aos valores


antigos, à vida moral e disciplinada, em que se estabelece o contrato social;
o indivíduo é transformado em cidadão, renunciando aos direitos pessoais
em detrimento da sua coletividade.
8

As sociedades e a noção de Estado

As sociedades atuais são, dentre outras questões, marcadas pela ruptura com a forma
de ler e explicar o mundo. Suas características fundamentais são a fragmentação e o
subjetivismo que se desenrolam na vida social urbana. Os padrões desaparecem e
surgem múltiplas expressões e manifestações que têm impacto direto sobre o sujeito e
suas práticas.

Dessa forma, para um aprofundamento da noção de Estado, é necessário compreender


os elementos norteadores e fundadores das sociedades, e como estas se tornam mais
complexas à medida que se apropriam da técnica e ampliam a metabolização da
natureza. De maneira geral, conceitua-se sociedade como uma população que vive em
um determinado espaço territorial e que, de múltiplas formas, se relaciona e convive a
partir de valores e padrões de comportamentos definidos e aceitos (SANDRONI, 1994).
Ou, ainda, como “conjunto de relações humanas intersubjetivas, anteriores, exteriores
e contrárias ao Estado ou sujeitas a este” (HEINRICH apud BONAVIDES, 2007, p. 65).
Contudo, a concepção de sociedade é abordada de diferentes maneiras ao longo da
história.

Karl Marx, por exemplo, irá utilizar o termo “sociedade” em três dimensões distintas,
mas relacionadas, como observa Bottomore (1983, p. 342-343):

1) a sociedade humana, ou “humanidade socializada” enquanto tal;

2) tipos historicamente existentes de sociedade (por exemplo, a sociedade


feudal ou capitalista);

3) qualquer sociedade particular (por exemplo, a Roma antiga ou a França


moderna).

O que se observa aqui é que, nessa concepção, os seres humanos vivem em sociedade,
e a ideia de uma sociedade abstrata é rejeitada por Marx, pois o ser humano é um ser
social e a sociedade é inseparável da natureza. A partir do processo histórico
(materialismo histórico), o indivíduo realiza a transformação da natureza
(sociometabolismo) por meio do trabalho, que também transforma as próprias relações
humanas/sociais, criando novas relações de trabalho e o desenvolvimento de novas
tecnologias ou ampliação das forças produtivas (idem, ibidem). Dessas considerações
9

resulta a afirmação, expressa por Marx e Engels (2005, p. 40) no


Texto para reflexão
Manifesto comunista, de que “a história de todas as sociedades
Sociedade civil: “Embora a
até hoje existentes é a história das lutas de classes”. expressão ‘sociedade civil’
fosse usada por autores como
Locke e Rousseau para
Na concepção marxista, a sociedade civil é vista como “espaço” de descrever o governo civil em
contraposição à sociedade
conflitos entre as forças que a compõem: a luta de classes. O natural ou estado da natureza,
o conceito marxista vem de
próprio Estado surge como produto dessa sociedade e de seus Hegel. Na obra deste, Die
antagonismos de classe, acabando por ter como função garantir e bürgliche Gesellschaft, isto é,
a sociedade civil ou burguesa,
preservar os interesses da classe que detém a hegemonia da enquanto esfera de indivíduos
que deixaram a unidade da
sociedade. Assim, pode-se afirmar que “a concepção marxista família para ingressar na
competição econômica, é
clássica de Estado está expressa na famosa formulação de Marx e contrastada com o Estado, ou
sociedade política. A
Engels no Manifesto comunista: ‘O executivo do Estado moderno sociedade civil é uma arena de
necessidades particulares,
nada mais é do que um comitê para a administração dos assuntos interesses egoístas e
divisionismo. (...)
comuns de toda burguesia’”. Tal ação gera no interior da
Para Gramsci, a sociedade civil
sociedade um Estado corporativo e uma urbanização que possui não é simplesmente uma
esfera de necessidades
um sentido corporativo (BONAVIDES, 2007; BOTTOMORE, 1983 p. individuais, mas de
organizações, e tem o
113). Mesmo na doutrina liberal, a sociedade civil será entendida potencial de autorregulação
racional e de liberdade.
como espaço dos interesses privados, ou seja, das diferentes Gramsci insiste na organização
relações sociais, em especial as relações de propriedade (CHAUÍ, complexa da sociedade civil
como o ‘conjunto de
2000; SANDRONI, 1994). organismos comumente
chamados de privados’. (...)

Numa importante obra escrita por Engels, intitulada A origem da Enquanto Marx insiste na
separação entre Estado e
família, da propriedade privada e do Estado, ele afirma que o sociedade civil, Gramsci
enfatiza a inter-relação de
Estado é um produto da sociedade, um produto artificial, uma ambos, argumentando que,
enquanto o uso cotidiano e
verdadeira invenção. Mostra também que o surgimento do Estado limitado da palavra Estado
decorre das questões econômicas e que sua sustentação se dá possa referir-se ao governo, o
conceito de Estado inclui, na
para defender os interesses e as propriedades privadas. Visto realidade, elementos da
sociedade civil (...)”
dessa maneira, o Estado surge para garantir os interesses da (BOTTOMORE, 1983, p. 351-
352).
burguesia e legitimar suas práticas de exploração e usurpação da
classe trabalhadora. Engels observa que o “Estado (...) sancionou
a usurpação” (DALLARI, 2009; ENGELS, 2004).

A partir dessas constatações, conclui-se que o Estado encontra-se dentro da sociedade,


ao mesmo tempo em que é diferente dela. Conforme observou Bobbio (1999), a
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sociedade “tanto pode aparecer em oposição ao Estado como debaixo de sua égide”.
No sentido sociológico, o Estado, visto a partir de sua origem e essência, será uma
instituição dos “vitoriosos” imposta sobre os “vencidos”, com a clara intenção de
organizar, controlar e dominar, impedindo “rebeliões intestinas” e ataques externos.
Ainda visto na acepção marxista, o Estado será um fenômeno histórico provisório
resultante da luta de classes (BONAVIDES, 2007).

Max Weber, ao discorrer a respeito do Estado, compreenderá que todo Estado irá
fundamentar e legitimar sua existência pela força, racionalizando o uso da violência
física legítima, tornando o Estado o único “autorizado” a agir com violência, ou seja, o
Estado é a “derradeira fonte de toda legitimidade, tocante da força física ou material”
(idem, p. 70). Para Weber, portanto, o Estado possui três funções básicas (CHAUÍ, 2000):

1) a coerção legal (exército e polícia), para garantir a propriedade;

2) ser o juiz diante dos conflitos entre os indivíduos, aplicando a lei e a força
sempre que necessário;

3) garantir a liberdade de consciência e pensamento de todos que governa.

Os elementos que constituem o Estado: o poder político e o ser humano

A questão do poder é central no debate sobre a teoria geral do Estado, afinal o Estado
possui um poder ou ele é o poder? George Burdeau compreende o Estado como sendo
a institucionalização do poder, ou seja, o “Estado é poder”, que por meio dos seus atos
sempre impõe uma obrigação. Essa concepção é seguida pela maioria dos autores que
discutem o tema, para quem o poder é necessário para o ordenamento da sociedade,
considerando que “o Estado, numa sociedade, não pode existir sem um poder”. Esse
poder decorre da dominação do mais forte sobre o mais fraco (DALLARI, 2009;
BONAVIDES, 2007).

O segundo elemento que constitui o Estado é o humano, que se apresenta numa


gradação bastante distinta, como a população, o povo e a nação, ou seja, em três
perspectivas: a demográfica, a jurídica e a cultural; acrescente-se ainda a territorial
11

(BONAVIDES, 2007). Ressalte-se que essas gradações não são simples sinônimos, por
isso é necessário compreendê-las adequadamente.

Ao longo da história, é possível observar que a noção de povo sofreu transformações e


interpretações muito amplas e inúmeras confusões se instalaram, pois no uso corrente
nem sempre fica claro se o termo está sendo usado na acepção da Grécia antiga ou da
Idade Média. Contudo, é a partir dos pressupostos da Revolução Francesa que se tem a
moderna concepção do termo: “a ideia de povo, livre de qualquer noção de classe,
pretendendo-se mesmo impedir qualquer discriminação entre os camponeses e o
Estado”. Começa aí a moderna noção de cidadania, da qual se compreende povo como
aquele que possui vínculos jurídicos com o Estado, que lhes concebe tanto direitos
quanto deveres. Assim, “o povo é o elemento que dá condições ao Estado para formar
e externar uma vontade”, indivíduos que, reunidos, constituem o Estado (DALLARI,
2009, p. 98-99).

O Estado no contexto contemporâneo

Ao discutir a questão do Estado no mundo contemporâneo, Bauman inicia sua


argumentação a partir das bases históricas que levaram à criação do Estado moderno,
afirmando que este é resultado da combinação de três elementos:

1) capacidade militar;

2) autossuficiência econômica;

3) especificidade cultural.

Esses três elementos, ou tripé do Estado moderno, foram quebrados, em


especial o pé econômico, tornando tanto os novos Estados como os mais antigos frágeis
diante das pressões do mercado cada vez mais global. Assim,

Estados fracos são precisamente o que a Nova Ordem Mundial, com muita
frequência encarada com suspeita como nova desordem mundial, precisa para
sustentar-se e reproduzir-se. Quase-Estados, Estados fracos podem ser
facilmente reduzidos ao (útil) papel de distritos policiais locais que garantem o
nível médio de ordem para realização de negócios... (BAUMANN, 1999, p. 76)

Dessa forma, Bauman afirma que “a globalização nada mais é que a extensão totalitária
de sua lógica a todos os aspectos da vida. Os Estados não têm recursos suficientes nem
12

liberdade de manobra para suportar a pressão” (idem, p. 73) imposta pelo mercado,
capaz de levar Estados ao colapso financeiro em pouco tempo. Para ilustrar a forma
dependente pela qual os Estados se veem diante do mercado, ele cita o subcomandante
Marcos, para quem,

No cabaré da globalização, o Estado passa por um striptease e no final do


espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder de
repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e independência
anuladas, sua classe política apagada, a nação-Estado torna-se um mero
serviço de segurança para as megaempresas. (idem, ibidem)
Dessa forma, os Estados devem se ausentar da esfera econômica, sob pena de serem
punidos pelos mercados. A única função atribuída aos Estados é a de garantir o equilíbrio
do orçamento e o policiamento das pressões das populações que se veem expropriadas
de suas riquezas, ou seja, cabe ao Estado o papel de repressor das pressões locais.

A reflexão feita por Bauman está em consonância com a de Mészáros (2003), quando
afirma que “as forças erosivas são transnacionais. No entanto, as nações-Estado
continuam sendo as únicas estruturas para um balanço e as únicas fontes de iniciativa
política efetiva” (idem, p. 64). O Estado passa a ter a função quase que exclusiva de deter
e limitar quaisquer intenções que venham frustrar os interesses dos capitais, e o papel
de legitimar as formas de dominação impostas pelos grandes conglomerados, ou seja,
um Estado operando em favor do capital.

Há, sem dúvida, um enfraquecimento do Estado, mas não a sua supressão, pois sem a
ajuda externa, o apoio que recebe do Estado, o sistema do capital não pode ser mantido
(MÉSZÁROS, 2003). Uma contradição apontada por Mészáros (idem, p. 33) é “a
tendência globalizante do capital transnacional no domínio econômico e a dominação
continuada dos Estados nacionais como estrutura abrangente de comando da ordem
estabelecida”, ou seja, mesmo diante da tendência globalizante e liberal, o Estado
nacional permanece como o avalista último dos grandes conglomerados.

Assim,

(...) apesar de todos os esforços das potências dominantes de fazerem seus


próprios Estados nacionais triunfarem sobre os outros (...) precipitando a
humanidade, no curso dessas tentativas, para as vicissitudes sangrentas das duas
guerras mundiais do século XX, o Estado nacional continuou sendo o árbitro
último da tomada de decisão socioeconômica (...) bem como o garantidor real
dos riscos assumidos por todos os empreendimentos econômicos transnacionais.
(idem, p. 33).
13

O Estado torna-se muito mais que porta-voz das vontades e interesses de uma parcela
da sociedade; torna-se também seu melhor fiador.

Conselhos populares

Na origem do que se denomina hoje conselhos gestores ou conselhos municipais, que


fomentam e articulam as políticas públicas, estão os conselhos populares, que surgiram
como espaços articuladores e mobilizadores da sociedade para promover o debate e
organizar a população. Nessa direção, Elenaldo Celso Teixeira (1996) observa que:

Os teóricos marxistas clássicos já os concebiam [os conselhos populares] como


órgãos embrionários de um governo revolucionário, cujos delegados recebiam
um mandato imperativo e revogável, isto é, deveriam seguir estritamente as
instruções dos representados e poderiam, a qualquer momento, ser suspensos
de suas funções.

Esses conselhos populares são encontrados em diversos momentos históricos, como,


por exemplo, na Comuna de Paris (1871), nos sovietes na Rússia, e em conselhos
operários na Alemanha e na Itália. No caso dos países capitalistas, os conselhos
populares tornaram-se estruturas paralelas de gestão da coisa pública, em alguns casos
sendo lentamente absorvidos pelo próprio Estado ou apontando para uma nova
estrutura política, ampliando a participação na gestão pública (TEIXEIRA, 1996).

Especificamente no caso brasileiro, os conselhos surgiram na década de 1930, com a


instituição do Conselho Nacional da Saúde (CNS), um órgão colegiado, com
representação do governo, de profissionais da saúde e da população. O Conselho
Nacional da Saúde era um órgão consultivo que dava validação às políticas públicas na
área da saúde instituídas pelo governo.

A partir da década de 1970/1980, surge a noção dos “conselhos comunitários”, muitos


formados a partir das associações de amigos de bairro. Esses conselhos comunitários
foram literalmente criados pelo poder público como forma de controle dos movimentos
populares, que nesse período se articulavam com muita força, especialmente os
movimentos de moradia e de favelas. Essa fase se insere no período de resistência à
ditadura militar e das lutas pela redemocratização, encerrando-se na década de 1980
com a época das negociações ou a “era dos direitos” (TEIXEIRA, 1996; e GOHN, 2003).
14

Sobre os conselhos comunitários, Teixeira (1996) destaca que:

Já em 1979, em São Paulo, um decreto do prefeito [Reynaldo de Barros] criava


um “conselho comunitário”, formado por associações de bairros.
Posteriormente, ele foi estruturado por administrações regionais para discutir o
orçamento municipal e captar demandas e reivindicações das diversas regiões
que, no entanto, eram atendidas segundo os critérios da administração.

Nota-se que esses conselhos foram muitas vezes a forma que o poder público encontrou
para cooptar as lideranças populares que agiam de forma direta e independente até
verem suas demandas atendidas, tais como saúde, habitação, educação e trabalho. Essa
forma de atuação do poder público foi ampliada para os estados, e já nos anos 1980
notava-se em vários estados brasileiros (SP, RJ, MG, ES etc.) a presença dos “conselhos
comunitários”, muitas vezes sob a denominação “ação comunitária”, como no caso de
São Paulo durante o governo Montoro (GOHN, 2003). Por outro lado, esses conselhos
se constituíram também como espaços que propiciaram as discussões que levaram à
elaboração da Constituição de 1988, ou seja, “as experiências dos conselhos foram
referências para a Constituinte nos arranjos institucionais visando à participação da
sociedade no controle, fiscalização e proposição de atos e decisões governamentais”
(TEIXEIRA, 1996).

Os conselhos se transformaram tanto em espaços de resistência e transformação social


como em formas de controle das demandas oriundas dos movimentos sociais, muitas
vezes silenciados sutilmente. O debate teórico sobre o papel que os conselhos tiveram
no Brasil é intenso, tanto nas universidades como nos partidos políticos. Isso decorre do
fato de que, independentemente da característica do conselho, eles se transformaram
nos principais articuladores das políticas públicas no Brasil a partir da Constituição de
1988. O exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) é bastante emblemático quando se
observa a participação popular na instituição e no acompanhamento de uma política
pública de saúde. Assim, os conselhos tornaram-se parte da estrutura administrativa do
Estado brasileiro, tanto que somente no município de São Paulo existem 19 conselhos
municipais em funcionamento, com vinculação direta às secretarias municipais. O
próprio Ministério das Cidades mantém informações e orientações sobre as formas de
criação dos conselhos municipais.

Política pública, uma forma de fazer política?


15

“A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por


conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no
intraespaço e se estabelece como relação” (ARENDT, 2006, p. 23).

A liberdade será o pressuposto básico para a realização da coisa pública (res publica –
“coisa do povo”), compreendendo que essa liberdade significa a não dominação e um
espaço que só pode ser produzido e reproduzido por todos; desta forma, a construção
do “espaço público” só terá sentido se realizado entre os iguais que se encontrem
plenamente livres e dispostos a abandonar os interesses privados, ou seja, “... só
podemos chegar ao mundo público comum a todos nós – que no fundo é o espaço
político – se nos distanciarmos de nossa existência privada (...)” (ARENDT, 2006, p. 53).

A política pública pode ser compreendida como uma série de ações organizadas para
atender aos interesses públicos. Trata-se, portanto, de garantir os direitos sociais e
coletivos. “No Estado moderno e seus governos democráticos, o âmbito da política
pública é a cidadania, entendida como relação entre Estado e sociedade civil mediada
pelos direitos” (CATTANI et al, 2009, p. 268). No contexto das políticas públicas, fala-se
dos agentes envolvidos (capital, trabalho e Estado) como sendo “atores políticos” (sic),
isto é, aqueles que atuam na arena social propugnando ações pacíficas para a solução
dos conflitos presentes na sociedade. Em certa medida esta posição ignora as lutas de
classe presentes na sociedade burguesa. Nesse contexto, a cidadania de que se fala é
restrita aos interesses privados e não coletivos, um tipo de cidadania que proporciona
ajustes e reformas na sociedade, mas não rupturas e transformações significativas.

Vimos que os conselhos são espaços de interlocução e articulação entre os denominados


“atores sociais” e de controle social do Estado. São ao mesmo tempo um desafio — a
superação do clientelismo político — e uma oportunidade — possibilitar o escoamento
das demandas oriundas da sociedade. Contudo, a sociedade é uma arena de
necessidades particulares que são impostas a partir da correlação das forças que
emergem dessa sociedade, movendo o Estado de acordo com seus interesses. Portanto,
em um ambiente sob o domínio da lógica neoliberal e do Capitalismo Monopolista de
Estado (CME), a proposição e a articulação das políticas públicas irão encontrar uma
série de entraves que só poderão ser superados e minimizados com a manutenção dos
movimentos sociais organizados, capazes de manter sua independência política e
16

autonomia diante do capital. Uma reflexão sobre as políticas públicas que exclua a luta
de classes e o papel do neoliberalismo neste contexto corre o risco de ser ingênua e
parcial.

Política pública e cidadania no contexto neoliberal

Nota-se que nos anos 1970/1980 houve uma articulação dos movimentos sociais que
pressionaram o surgimento de uma política social que, em certa medida, avançou até
culminar com as conquistas da Constituição de 1988 (a Constituição cidadã). Os anos
1990 iniciaram com ações de desmantelamento dessas conquistas orientadas pela
ideologia neoliberal que impôs um processo de contrarreforma do Estado, que dominou
o cenário político e social brasileiro com uma intensa campanha ideológica visando ao
convencimento da opinião pública. Conforme observaram Elaine Behring e Ivanete
Boschetti (2008):

Ao longo dos anos 1990 propagou-se na mídia (...) uma avassaladora campanha
em torno das reformas. A era Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi marcada por
esse mote, que vinha de Collor, cujas características de outsider (o que vem de
fora) não lhe outorgaram legitimidade política para conduzir esse processo.
(BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 148)

Essas reformas não apenas foram orientadas para o mercado como também foram
“sugeridas” pelo mercado através da intensa presença dos lobistas no congresso
nacional, ao mesmo tempo em que o Estado ampliava a criminalização dos movimentos
sociais. A onda de privatizações iniciada no governo Collor e intensificada no governo
FHC, fez com que o Estado brasileiro é visto como um empecilho para o
desenvolvimento econômico, daí a necessidade de reformá-lo. Esse período inaugura
um processo de “modernidade”, visto que,

Reformando-se o Estado, com ênfase especial nas privatizações e na previdência


social, e, acima de tudo, desprezando as conquistas de 1988 (a constituição) no
terreno da seguridade social e outros – a carta constitucional era vista como
perdulária e atrasada –, estaria aberto o caminho para o novo “projeto de
modernidade”. (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 148)

Neste contexto, o denominado terceiro setor (representado muitas vezes pelas ONGs)
ganha força e espaço na sociedade, tornando-se um dos principais proponentes das
políticas públicas. Entretanto, o que se observa é que o terceiro setor quase sempre
cumpre um papel de legitimador das práticas neoliberais, servindo como um
17

“amortecedor” das pressões sociais e impedindo a organização popular efetiva e, por


conseguinte, o exercício de uma cidadania efetivamente transformadora. Assim, existe
uma série de pesquisadores preocupados com as ações deste terceiro setor:

O “terceiro setor” deve ser colocado no seu devido lugar (...) ele cumpre um papel
ideológico importante na implementação das políticas neoliberais e está em
sintonia com o processo de reestruturação do capital pós-70: de flexibilização dos
mercados nacional e internacional, das relações de trabalho, da produção, do
investimento financeiro. Nega a universalidade ao se dirigir a grupos específicos
e privatiza o público, já que suas “ações” são à custa do erário público, uma vez
que o Estado deixa de angariar impostos por conta dos gastos deste setor com a
filantropia. (COUTINHO, 2003)

O Terceiro Setor e as ONGs, como sua expressão visível, acabaram ocupando um espaço
na sociedade com propostas de ações visando substituir o Estado em suas funções, já
que a partir do receituário neoliberal o Estado é incapaz e ineficiente por natureza. A
presença das ONGs encobre a verdadeira intenção: limitar a expansão dos direitos
sociais fundamentais e em certa medida dificultar um tipo de organização (popular) que
questione as políticas públicas, muitas vezes mediadas pelas próprias ONGs, como
observou Francisco de Oliveira:

(...) ações visando a crianças carentes, meninos de rua, grupos especiais da


sociedade como deficientes físicos, apoio a grupos étnicos, limpeza e controle
social em favelas — e a lista seria longa —, buscam substituir-se às políticas
universais da cidadania, poder estatal, sob a alegação da proclamada
incapacidade, ineficácia e corrupção que lavram nos aparelhos do Estado. (2000,
p. 38)

A questão da cidadania deve então ser abordada aqui, visto que no Brasil sempre
existiram grupos representantes dos interesses econômicos subordinados ao grande
capital internacional. A relação entre a sociedade civil e o Estado quase sempre foi
marcada por períodos de regimes ditatoriais, em grande parte sob influência
estrangeira. Diante desse quadro, a questão da cidadania terá uma feição particular,
porque nos períodos de transição para a democracia o problema irá se concentrar
também na regulamentação das regras de civilidade e cidadania no interior de uma
sociedade travestida de poderes arbitrários e autoritários. (DAGNINO, 1994, p. 55)

Ao analisar a questão da cidadania no Brasil, Lúcio Kowarick afirma que:

(...) em virtude da condição generalizada de subcidadania, a autoconstrução de


uma percepção de moralidade e dignidade tende a se solidificar nos valores e
símbolos edificados em torno de projetos individuais: é o primado do cidadão
privado. (KOWARICK, 1995, p. 114)
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O conceito de cidadania privada é aquele em que a pessoa constrói sua cidadania a partir
de ações individuais e com toda a precariedade, ou seja, “aquele que com seu próprio
esforço e perseverança venceu”. Com o crescimento urbano e as relações de produção
que não privilegiam as ações coletivas nem proporcionam meios eficientes para o acesso
dos indivíduos aos bens públicos é que se dá a vida na cidade, impondo uma vivência
precária da cidadania. A lógica liberal individualiza a cidadania para subtrair a força das
ações coletivas, em especial as que tenham um caráter de transformações radicais. Cria-
se assim o “cidadão privado”: uma contradição, pois os termos dizem respeito a formas
incompatíveis entre si, já que cidadania pressupõe algo construído coletivamente na
história, enquanto o privado indica algo restrito, quando não individualizado
(KOWARICK, 1995, p. 110-112).

Esta individualização da ideia de cidadania confunde a noção de pertença a uma classe


social como força política capaz de engendrar mudanças no interior das sociedades,
fortalecendo a ideia de que é possível “vencer sozinho”.

Compreende-se que a questão da cidadania passa necessariamente pela análise dos


processos históricos das lutas populares que culminaram no alargamento dos direitos
dos indivíduos e na ampliação da consciência do direito a ter direito. Foi assim nas lutas
que levaram até a Constituição de 1988, a constituição cidadã, e que fundamentou o
princípio de participação da sociedade civil e, em certa medida, possibilitou a discussão
sobre as políticas públicas, processo que inclui necessariamente a sociedade civil
organizada. Esse processo é resultado da luta contra o regime militar levada adiante por
setores da sociedade civil, destacando-se os movimentos sociais e populares (DAGNINO,
2004, p. 97).

Compreendendo a cidadania como processo resultante das lutas populares, J. Quartim


de Moraes afirma que:

A cidadania democrática só cria raízes num povo ao longo da experiência coletiva,


a aprendizagem do exercício da cidadania é lenta e muitas vezes turbulenta. Mas
insubstituível, tanto no que se refere ao voto quanto no que diz respeito às
formas superiores da participação democrática, como o autogoverno local e as
múltiplas formas de autogestão social. Nisso parece-nos consistir sua força
enquanto valor ético-político: a democracia é uma forma que, embora suscetível
de ser preenchida de múltiplos conteúdos, é a mais apropriada para exprimir o
interesse coletivo, tal como o entende a coletividade. (MORAES, 1989, p. 35)
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O processo de ampliação da consciência cidadã (práxis cidadã) decorre das atividades e


reflexões dos sujeitos em sociedade, sendo consequência do exercício cotidiano das
práticas democráticas.

Tomando em consideração que a conquista da cidadania é um processo de lutas, de


avanços e refluxos históricos, é possível constatar a ocorrência de diferentes níveis de
cidadania nos diferentes grupos de países e sociedades. Desta maneira, “a situação
concreta de cada sociedade define os patamares e os limites do exercício da cidadania”
(MORAES, 1989, p. 28).

O exercício de construção da cidadania (e porque não dizer também das políticas


públicas) necessita de sujeitos conscientes, capazes de enfrentar as tensões políticas e
sociais, encontrando mecanismos democraticamente estabelecidos que possibilitem o
avanço e a consolidação das conquistas a partir das lutas sociais. Nesse processo, a
construção da cidadania torna-se possível por meio da práxis, que é capaz de gerar
espaços humanizados: em que haja justiça, liberdade e igualdade, tendo em vista que a
transformação social e a ruptura com a ordem excludente, e não a reforma, devem ser
seu objetivo fundante.

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