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Realização dos direitos fundamentais

sociais mediante controle judicial da


prestação dos serviços públicos básicos
(uma visão comparativa)
Andreas J. Krell

Sumário
1. Introdução. 2. Os direitos sociais como
direitos fundamentais. 3. Falhas na prestação
dos serviços públicos sociais – falta de leis
ordinárias? 4. Eficácia dos direitos sociais – a
“proibição de retrocesso”; aplicabilidade
imediata dos direitos fundamentais sociais?
5. A doutrina alemã dos direitos fundamentais
de defesa como base de direitos a prestações
positivas: transponível para o Brasil? 6. O
“padrão mínimo social” para uma “existência
digna”. 7. A questão da “constituição dirigente”.
8. O Poder Judiciário: a tradição do forma-
lismo; necessidade de uma interpretação
constitucional material-valorativa. 9. Nova
compreensão da teoria da separação dos
poderes; controle judicial de políticas e orça-
mentos públicos. 10. Normas programáticas
sobre direitos sociais: mero “simbolismo”?
11. Conclusão.

1. Introdução
São os direitos sociais que mais têm
suscitado controvérsias no que diz respeito
a sua eficácia e efetividade, inclusive quanto
à problemática da eficiência e suficiência dos
instrumentos jurídicos disponíveis para
lhes outorgar a plena realização1.
Constitui um paradoxo que o Brasil
esteja entre os dez países com a maior
Andreas Joachim Krell é Professor de
economia do mundo e possua uma consti-
Direito Ambiental e Constitucional do Centro
de Ciências Jurídicas da UFAL e dos Cursos de tuição extremamente avançada no que diz
Pós-Graduação em Direito da Faculdade de respeito aos direitos sociais, enquanto mais
Direito do Recife (UFPE). Doutor em Direito de 30 milhões de seus habitantes continuem
pela Universidade Livre de Berlim. vivendo abaixo da linha de pobreza (“indi-
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gência”). A maioria dessas pessoas não 2. Os direitos sociais como direitos
encontram um atendimento de qualidade fundamentais
mínima nos serviços públicos de saúde, de
Depois da revolução industrial do século
assistência social, vivem em condições
XIX e das primeiras conquistas dos movi-
precárias de habitação, alimentam-se mal mentos sindicais em vários países, os
ou passam fome. direitos da “segunda geração“ surgiram, em
A Constituição do Brasil sempre esteve nível constitucional, somente no século XX,
numa relação de tensão para com a reali- com as Constituições do México (1917), da
dade vital da maioria dos brasileiros e con- República Alemã (1919) e também do Brasil
tribuiu muito pouco para o melhoramento (1934), passando por um ciclo de baixa
da sua qualidade de vida; o texto legal normatividade e eficácia duvidosa. Seus
supremo, para muita gente, representa pressupostos devem ser criados pelo Estado
apenas uma “categoria referencial bem como agente para que eles se concretizem.
distante”2. Encontram-se em contradição Os direitos fundamentais sociais não são
flagrante a pretensão normativa dos direitos direitos contra o Estado, mas sim direitos por
fundamentais sociais e o evidente fracasso meio do Estado, exigindo do Poder Público
do Estado brasileiro como provedor dos certas prestações materiais. O Estado, por
serviços essenciais para a vasta maioria da meio de leis, atos administrativos e da
sua população. Discute-se, cada vez mais, a criação real de instalações de serviços
complexidade do processo de transformação públicos, deve definir, executar e imple-
dos preceitos do sistema constitucional mentar, conforme as circunstâncias, as
mediante realização de programas e políticas chamadas “políticas sociais” (educação,
governamentais3. saúde, assistência, previdência, trabalho,
Uma parte cada vez maior da doutrina habitação) que facultem o gozo efetivo dos
constitucional questiona criticamente o direitos constitucionalmente protegidos.
empenho dos poderes públicos em imple- As normas constitucionais progra-
mentar as políticas relativas aos direitos máticas sobre direitos sociais que hoje
fundamentais sociais (art. 6, CF) e aos encontramos na grande maioria dos textos
princípios fundamentais da dignidade da constitucionais dos países europeus e latino-
americanos definem metas e finalidades as
pessoa humana e à erradicação da pobreza,
quais o legislador ordinário deve elevar a
consagrados na Constituição de 1988 (art. 1º,
um nível adequado de concretização. Essas
III, e art. 3º, III, CF)4.
“normas-programa” prescrevem a reali-
Ao mesmo tempo, surge a questão: está o
zação, por parte do Estado, de determinados
Poder Judiciário brasileiro preparado para fins e tarefas5; no entanto, elas não repre-
exercer um papel mais expressivo no sentam meras recomendações ou preceitos
controle das políticas públicas? A jurispru- morais com eficácia ético-política meramente
dência e parte da doutrina do país têm diretiva, mas constituem direito diretamente
aderido a teorias estrangeiras sobre a aplicável.
aplicação e eficácia dos direitos sociais, que Segundo Pontes de Miranda, as normas
nem sempre se prestam a ser empregadas constitucionais programáticas são dirigidas
no Brasil. aos três poderes estatais: elas informam os
O tema é tão importante como complexo. parlamentos ao editar leis, bem como a
Neste artigo, pretende-se enfocar somente Administração e o Judiciário ao aplicá-las,
alguns pontos cruciais da questão e chamar de ofício ou contenciosamente. A legislação,
a atenção do leitor para um dos maiores a execução e a própria jurisdição ficam
desafios do Direito Constitucional brasileiro sujeitas a esses ditames, que são como
da atualidade. programas dados à sua função6. São os
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direitos fundamentais do homem-social capítulo bastante contraditório no tocante à
dentro de um modelo de Estado que tende relação interna dos direitos e garantias. A
cada vez mais a ser social, dando preva- redação desses artigos tão importantes foi
lência aos interesses coletivos, antes que aos considerada confusa e metodologicamente
individuais7. inadequada13.
A efetividade dos direitos econômicos e A Constituição confere ao legislador
sociais em cada país depende em grande uma margem substancial de autonomia na
parte da adoção de múltiplas e variadas definição da forma e medida em que o direito
medidas complementares, na maioria dos social deve ser assegurado (“livre espaço de
casos de caráter promocional, em todos os conformação” ). Essa função legislativa seria
campos de ação: político, jurídico, social, degradada se entendida como mera função
econômico, cultural, sanitário, tecnológico, executiva da Constituição. Num sistema
etc.8. Sem dúvida, as normas sociais progra- pluralista, as normas constitucionais sobre
máticas requerem uma política pertinente à direitos sociais devem ser abertas para
satisfação dos fins positivos nela indica- receber diversas concretizações consoante
dos9. O Welfare State, na origem essencial- as alternativas periodicamente escolhidas
mente um Estado legislativo, vem-se trans- pelo eleitorado. A apreciação dos fatores
formando, cada vez mais, em Estado econômicos para uma tomada de decisão
administrativo e burocrático10. quanto às possibilidades e aos meios de
O art. 6º da Constituição brasileira de efetivação desses direitos cabe principal-
1988 reza: mente aos órgãos políticos e legislativos14.
“São direitos sociais a educação, O primeiro intérprete da Constituição é
a saúde, o trabalho, o lazer, a segu- o legislador, ao qual a Constituição confere
rança, a previdência social, a proteção uma margem substancial de autonomia na
à maternidade e infância, a assistência definição da forma e medida em que o direito
aos desamparados, na forma desta social deve ser assegurado (“liberdade de
Constituição”. conformação”). Em princípio, o Poder
Bem distanciado dessa norma, o texto da Judiciário não deve intervir em esfera
Carta traz um capítulo especial sobre a reservada a outro Poder para substituí-lo em
Ordem Social (título VIII), fazendo com que juízos de conveniência e oportunidade,
o jurista deva extrair, daqui e de lá, aquilo querendo controlar as opções legislativas de
que constitua o conteúdo dos direitos organização e prestação, a não ser, excepcio-
relativos a cada um daqueles objetos sociais, nalmente, quando haja uma violação
deixando para tratar, nos arts. 190-230, de evidente e arbitrária, pelo legislador, da
seus mecanismos e aspectos organiza- incumbência constitucional.
cionais11. Os direitos sociais de trabalho No entanto, parece necessária a revisão
(art. 6º CF), educação (art. 205 c/c art. 6º CF), do vetusto dogma da “separação dos
habitação, saúde, cultura e assistência social poderes” em relação ao controle dos gastos
(art. 203) dependem, na sua atualização, da públicos e da prestação dos serviços sociais
satisfação de uma série de pressupostos de básicos no Estado Social, visto que os
índole econômica, política e jurídica. Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se
Vale ressaltar que os direitos fundamen- mostraram incapazes de garantir um cumpri-
tais sociais na Constituição brasileira estão mento racional dos respectivos preceitos
longe de formarem um “grupo homogêneo“ constitucionais. A eficácia dos direitos
no que diz respeito a seu conteúdo e à forma fundamentais sociais a prestações materiais
de sua positivação12. O constituinte não depende naturalmente dos recursos pú-
seguiu, na sua composição, nenhuma linha blicos disponíveis; normalmente há uma
ou teoria específica, mas acabou criando um delegação constitucional para o legislador
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concretizar o conteúdo desses direitos. acima de tudo, da contratação de profes-
Muitos autores entendem que seria ilegítima sores, do pagamento de um salário digno,
a conformação desse conteúdo pelo Poder da sua qualificação e reciclagem. Os prédios
Judiciário, por atentar contra o princípio da escolares devem ser mantidos em boas con-
separação dos poderes15. dições, aquisição de material escolar,
limpeza, etc.
3. Falhas na prestação dos serviços O direito à saúde, por sua vez, sofreu
públicos sociais – falta de leis uma regulamentação constitucional menos
ordinárias? forte. Nos artigos 196 a 200 da Carta Federal,
não consta que ele seja um direito subjetivo
No entanto, a eficácia social reduzida
público, nem que haja responsabilidade da
dos direitos fundamentais sociais não se
autoridade quando da falta ou insuficiência
deve à falta de leis ordinárias; o problema
do serviço18. A qualidade dos serviços
maior é a não-prestação real dos serviços
públicos de saúde depende do fornecimento
sociais básicos pelo Poder Público16. A
de remédios, vagas e leitos nos pronto-
grande maioria das normas para o exercício
socorros e hospitais, da contratação de
dos direitos sociais já existe. O problema pa-
médicos especializados, de enfermeiros
rece estar na formulação, implementação e suficientes, etc.19
manutenção das respectivas políticas públicas Pergunta-se, portanto, se a tolerância da
e na composição dos gastos nos orçamentos deterioração ou a não-estruturação de um
da União, dos Estados e Municípios. serviço social básico como a educação ou a
Onde já foi implantado o serviço público saúde pode ser questionada na justiça.
necessário para a satisfação de um direito Outro problema correlato é o da não-
fundamental, a sua não-prestação em execução dos orçamentos públicos, isto é, a
descumprimento da lei ordinária pode ser não aplicação, por parte dos agentes do
atacada com o mandado de segurança17. A Poder Executivo nos três níveis federativos,
situação se torna mais complicada onde o dos recursos financeiros previstos pela lei
Poder Público mantém-se inerte, não insta- orçamentária para determinadas tarefas e
lou os serviços necessários ou onde os serviços públicos.
mesmos funcionam precariamente (omissão Sem poder aprofundar esse aspecto,
parcial ou total – ex.: hospitais públicos). constatamos que ainda são poucos os meios
Os direitos fundamentais sociais à jurídicos eficientes para combater a má
educação e saúde não são simplesmente aplicação dos recursos públicos. Nesse
“normas programáticas”, mas foram regu- contexto, ações de improbidade administra-
lamentados por meio do estabelecimento tiva (Lei nº 8.429/92) normalmente não
expresso de deveres do Estado e, correspon- procedem20. A ação popular em defesa da
dentemente, de direitos subjetivos dos indi- moralidade administrativa (art. 5, LXXI, CF)
víduos. O direito à educação é definido como igualmente apresenta grandes dificul-
dever do Estado e da família (art. 205). O dades.21 O controle dos Tribunais de Contas,
art. 208 especifica que esse dever do Estado onde houver, restringe-se aos aspectos
“será efetivado mediante a garantia de (...)”, formais dos gastos. Até hoje existem muni-
enumerando, em seguida, uma série de cípios onde se gasta – legalmente! – mais
metas ou objetivos a serem alcançados. O dinheiro em divertimentos populares (con-
seu § 1º diz que o acesso ao ensino obriga- tratação de “trios elétricos”) ou na manu-
tório é gratuito e um direito público subje- tenção da Câmara do que em toda área da
tivo; segundo o § 2º, “o seu não-oferecimento saúde pública. Esperam-se novos impulsos
ou oferta irregular importam responsabili- da polêmica “Lei da Responsabilidade
dade da autoridade competente”. A quali- Fiscal”, ainda em tramitação no Congresso
dade do ensino em todos os níveis depende, Nacional.
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4. Eficácia dos direitos sociais: a representa a materialização, no mundo dos
“proibição de retrocesso”; aplicabilidade fatos, dos preceitos legais e simboliza a
imediata dos direitos fundamentais aproximação entre o dever-ser normativo e o
sociais? ser da realidade social26.
José Afonso da Silva, em obra famosa,
Foi Rui Barbosa quem introduziu no
trata somente da eficácia jurídica dos direitos
Brasil, inspirado no sistema norte-ameri-
sociais. Ele mantém a sua subdivisão das
cano, o conceito das normas constitucionais
normas naquelas de eficácia imediata,
auto-aplicáveis (self-executing) e não auto-
eficácia contida (mais restringíveis por lei
aplicáveis (not self-executing). Segundo Clève,
ordinária) e – as mais interessantes para nós
o Supremo Tribunal Federal do Brasil, até
– as normas de eficácia limitada ou restrita27.
hoje, está trabalhando com essa “insufi-
No entanto, o autor aceita a criação de
ciente dicotomia”22. direitos subjetivos individuais a partir de
As normas sobre direitos fundamentais direitos fundamentais sociais somente na
são de aplicação imediata, conforme disposto sua vertente negativa, isto é, quando o legis-
no § 1º do art. 5º da Constituição Federal23. lador ou a administração tomem atitudes
Esse dispositivo serve para salientar o contra o objetivo expresso nelas: qualquer
caráter preceptivo e não-programático lei que atente contra esses princípios seria
dessas normas, deixando claro que os inconstitucional.
direitos fundamentais podem ser imedia- Para podermos construir uma garantia
tamente invocados, ainda que haja falta ou da manutenção do nível de prestação social
insuficiência da lei. O seu conteúdo não uma vez alcançado, seria importante escla-
precisa ser concretizado por lei; eles possuem recer se essa proibição se refere somente à
um conteúdo que pode ser definido na atividade legislativa ou também ao nível de
própria tradição da civilização ocidental- organização fática dos serviços básicos e do
cristã, da qual o Brasil faz parte. A sua regu- volume das prestações materiais, como
lamentação legislativa, quando houver, cortes no orçamento da respectiva entidade
nada acrescentará de essencial: apenas pode pública. Também não fica claro se as leis
ser útil (ou, porventura, necessária) pela orçamentárias nos três níveis federativos
certeza e segurança que criar quanto às poderiam diminuir o valor das verbas
condições de exercício dos direitos ou quanto destinadas aos fins sociais básicos e se leis
à delimitação frente a outros direitos24. ordinárias já existentes sobre o assunto não
O legislador ordinário, ao concretizar os podem mais ser revogadas. Infelizmente, os
direitos fundamentais, goza de uma relativa defensores dessa tese da “proibição do
liberdade de conformação, sendo esta bem retrocesso” ainda não aprofundaram a
maior relativamente a normas progra- questão. Ainda não houve decisão judicial
máticas25. Em relação aos direitos sociais, o que tivesse declarado inconstitucional uma
dispositivo da aplicação imediata não ganha lei ou um ato que diminuiu uma prestação
importância maior, visto que esses devem social28.
ser tratados de maneira diferente dos Lopo Saraiva, por sua vez, não aceita que
direitos clássicos na defesa contra o poder as normas programáticas da Constituição
estatal. Sarlet entende que o art. 5º, § 1º, sobre direitos sociais criaram direito subje-
impõe aos órgãos estatais a tarefa de “maxi- tivo somente em seu aspecto negativo, e não
mizar a eficácia” dos direitos fundamentais. sob o ângulo positivo. Ele nega que o efeito
Por eficácia jurídica entendemos a capa- jurídico dessas normas só se manifestaria
cidade (teórica) de uma norma constitucio- numa eventual nulidade de normas legais
nal para produzir efeitos jurídicos. A que contrariassem o sentido do preceito ou
efetividade, por sua vez, significa o desem- programa declarado na Constituição29. É
penho concreto da função social do Direito, essa a tendência progressiva da doutrina
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constitucional moderna no Brasil, como para desenhar e planejar a vida social e o
veremos adiante. futuro da sociedade como um todo. Esse tipo
de Estado Social já ultrapassa nas suas
5. A doutrina alemã dos direitos finalidades e pretensões o modelo clássico
fundamentais de defesa como base de do Welfare State e procura a harmonia entre,
num lado, idéias liberais de uma economia
direitos a prestações positivas:
livre e, no outro, a igualdade de chances e a
transponível para o Brasil? distribuição de riquezas33. Nesse contexto,
A dogmática jurídica alemã é, em muitos vem-se tornando uma tarefa essencial a
aspectos, transponível ou adaptável para o progressiva “prevenção de riscos” (Risiko-
Brasil, já que muitos preceitos e formulações vorsorge): o Estado tenta nortear e direcionar
das Cartas de 1988 e anteriores foram o processo de desenvolvimento científico-
fortemente inspirados pela Lei Fundamental tecnológico da sociedade, protegendo-a
Alemã. Todavia, isso não acontece com os contra as possíveis conseqüências perni-
direitos sociais, que quase não constam da ciosas de fenômenos como a manipulação
atual constituição germânica. Devemos genética, a alteração de ecossistemas,
lembrar que os mesmos textos e procedi- doenças novas, a energia nuclear, etc34.
mentos jurídicos são capazes de causar A Lei Fundamental da República Federal
efeitos completamente diferentes, quando da Alemanha (de 1949) não incorporou
utilizados em sociedades desenvolvidas nenhum ordenamento sistemático dos
(centrais) como a alemã, ou numa periférica direitos sociais da “segunda geração” (dos
como a brasileira30. Não se pode transportar trabalhadores, educação, saúde, assistên-
um instituto jurídico de uma sociedade cia), fato que se deve às más experiências
para outra, sem levar-se em conta os condi- com a Carta anterior de Weimar. Essa
cionamentos sócio-culturais e econômico- Constituição de 1919 é tida, no mundo
políticos a que estão sujeitos todos os inteiro, como uma das primeiras Cartas que
modelos jurídicos31. incorporaram os direitos sociais a prestações
Um número elevado de importantes estatais no seu texto. No entanto, para a
contribuições de autores brasileiros sobre o doutrina constitucional alemã pós-guerra,
tema dos direitos fundamentais e sua inter- ela serve como modelo de uma Carta
pretação fazem referência expressa à “fracassada” que, inclusive, contribuiu para
doutrina e jurisprudência da Alemanha32. a radicalização da política desse país nos
A estrutura da Carta de 1988 – bem como os anos 20 e a tomada do poder pelos nazistas
textos constitucionais da Espanha e de em 193335. Os seus modernos artigos sobre
Portugal, pelos quais foi fortemente influen- direitos sociais foram “ridicularizados” por
ciada – difere bastante daquela da Lei parte dos integrantes da extrema direita e
Fundamental de Bonn. Aquelas contêm um esquerda política, como “promessas vazias
alto número de normas programáticas, do Estado burguês” e “contos de lenda”.
mandamentos, diretivas, fixação de metas e Como conseqüência, o legislador funda-
dão menos valor a uma normatividade mental de 1949 renunciou deliberadamente
estrita, à obrigatoriedade e justiciabilidade. à formulação de normas que conferem
O modelo de Estado Social vigente na direitos subjetivos a prestações. Os direitos
Alemanha de hoje tem como pontos básicos sociais, cuja eficácia sempre depende de
a industrialização, a tecnologia, a comuni- vários fatores econômicos e políticos,
cação e a racionalidade na gestão dos ficaram de fora36. A maioria dos autores
serviços públicos. O Estado não é chamado alemães se dirige contra direitos fundamen-
somente para preservar e proteger o funcio- tais sociais na constituição, porque estes
namento livre da ordem econômica, mas seriam, na sua maioria, não-realizáveis na
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atualidade por parte do Estado, provocando soas acabam sendo ameaçadas imediata-
a impressão do cidadão de que todo o tex- mente no seu direito à vida e integridade
to constitucional seria nada mais do que física39.
uma “construção de frases” ou um “ca- A doutrina moderna dá ênfase em
tecismo popular, cheio de utopias” que afirmar que qualquer direito fundamental
resultaria na perda da normatividade constitucional – seja ele direito civil e
da Carta e da sua força de estabelecer político ou econômico, social e cultural –
valores 37. contém, ao mesmo tempo, componentes de
Por outro lado, quase todas as consti- obrigações positivas e negativas para o
tuições dos 16 Estados federados alemães Estado40. Nessa visão, a tradicional diferen-
(Länder) contêm direitos sociais. Houve ciação entre os direitos “da primeira” e os
uma discussão acirrada sobre a necessida- “da segunda” geração é meramente gradual,
de da inclusão desses direitos da “segun- mas não substancial, visto que muitos dos
da geração” (especialmente a emprego e direitos fundamentais tradicionais foram re-
habitação) no texto da Carta Federal no interpretados como sociais, perdendo
contexto da unificação das Alemanhas em sentido as distinções rígidas41.
1990, prevalecendo a linha que não quis O famoso autor português Gomes Cano-
“mexer” nas bases estruturais de um tex- tilho, fortemente inspirado pela doutrina
to que, durante 40 anos, garantiu estabili- alemã, ressalta que o direito à vida
dade, bem-estar e liberdade. “é um direito subjectivo de defesa (...),
Os direitos humanos básicos da vida e com os correspondentes deveres
da integridade física também estão inti- jurídicos dos poderes públicos e dos
mamente ligados aos direitos “sociais” à outros indivíduos de não agredirem o
saúde e assistência social. Aqueles são `bem da vida´ (`dever de abstenção´)”.
tradicionalmente considerados como di- Isso, segundo ele, não exclui a possibili-
reitos de “defesa do indivíduo contra o dade de
Estado” (da primeira geração) para que “neste direito coexistir uma dimensão
este não interfira negativamente na liber- protectiva, ou seja, uma pretensão
dade das pessoas. No entanto, no Estado jurídica à protecção, através do
moderno, os direitos fundamentais clássi- Estado, do direito à vida (dever de
cos ligados à liberdade estão cada vez mais protecção jurídica) que obrigará este,
fortemente dependentes da prestação de por ex., à criação de serviços de polícia,
determinados serviços públicos, sem os de um sistema prisional e de uma
quais o indivíduo sofre sérias ameaças. Os organização judiciária”.42
direitos fundamentais de defesa somente A não-inclusão de direitos sociais na Lei
podem ser eficazes quando protegem, ao Fundamental, no entanto, não significa uma
mesmo tempo, as condições materiais mí- recusa do seu ideário subjacente. Assim, o
nimas necessárias para a possibilidade da conceito do “Estado Social” (art. 20, LF)
sua realização. Especialmente na área os representa uma “norma fim-de-Estado”43
direitos básicos da vida e da integridade (Staatszielbestimmung) que fixa, de maneira
física, as prestações positivas do Estado obrigatória, as tarefas e a direção da atuação
para a sua defesa não podem ficar na de- estatal presente e futura44, sem, no entanto,
pendência da viabilidade orçamentária38. criar direitos subjetivos para a sua reali-
Onde o poder estatal deixa de desen- zação. A doutrina alemã se refere a essas
volver esforços para atender a população normas constitucionais como “mandados”
mais carente, que não tem condições de (Aufträge) e não propriamente “direitos”.
pagar um plano privado de saúde, na área Em trabalho recente, Lôbo Torres, apoian-
da saúde preventiva e curativa, essas pes- do-se em autores alemães, alega que os
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direitos sociais consagrados na Constitui- No Brasil, como em outros países peri-
ção brasileira não seriam propriamente féricos, é justamente a questão analisar
direitos fundamentais. Essa tese é indefen- quem possui a legitimidade para definir o
sável, como vamos ver adiante. O Poder que seja “o possível” na área das presta-
Constituinte brasileiro de 1988, em face ções sociais básicas em face da composi-
dos enormes desafios do Poder Público na ção distorcida dos orçamentos das diferen-
área social, inseriu uma vasta gama de tes entidades federativas. Os problemas de
direitos sociais, localizando-os no Capítu- exclusão social no Brasil de hoje se apre-
lo II (“Dos Direitos Sociais”) do Título II sentam numa intensidade tão grave que
da Carta, denominado “Dos Direitos e não podem ser comparados à situação
Garantias Fundamentais”. Segundo todas social dos países-membros da União
as regras de interpretação, esses direitos Européia.
sociais, no Brasil, são também “fundamen-
tais”, com todas as conseqüências dessa
6. O “padrão mínimo social” para uma
sua natureza. A tentativa de relativizá-los
e de retirar-lhes a qualidade da “funda- “existência digna”
mentalidade” não traz nenhuma vanta- Os defensores de uma interpretação
gem, mas é, ao contrário, perigosa. progressiva dos Direitos Fundamentais
A interpretação dos direitos sociais não Sociais alegam a sua qualidade como
é uma questão de “lógica jurídica”, mas de direitos subjetivos perante o Poder Público,
consciência social de um sistema jurídico obrigando-o a prestar determinados ser-
como um todo. É questionável a transferência viços de bem-estar social, os quais devem
de teorias jurídicas, que foram desenvolvi- ser realizados de maneira progressiva.
das em países “centrais” do chamado Nesse contexto, os direitos sociais progra-
“Primeiro Mundo” com base em realidades máticos representam “mandados de otimi-
culturais, históricas e, acima de tudo, sócio- zação” (R. Alexy) que devem ser “densifi-
econômicas completamente diferentes. cados”; o seu cumprimento pode ser negado
Gomes Canotilho vê a efetivação dos por parte do Estado somente temporaria-
direitos sociais, econômicos e culturais mente em virtude de uma impossibilidade
dentro de uma “reserva do possível” e material evidente e comprovável48.
aponta a sua dependência dos recursos Segundo a Teoria do Estado Social, o
econômicos. A elevação do nível da sua Poder Público tem o dever de transpor as
realização estaria sempre condicionada pelo liberdades da Constituição para a realidade
volume de recursos suscetível de ser constitucional. Na vida moderna, que é
mobilizado para esse efeito45. A limitação regida pela tecnologia e a indústria, a
dos recursos públicos passa a ser conside-
prestação dos serviços públicos se torna
rada verdadeiro limite fático à efetivação dos
cada vez mais importante para o exercício
direitos sociais prestacionais46. Essa teoria,
dos direitos sociais (escolas, cultura,
na verdade, é uma adaptação da jurispru-
comunicações, fornecimento de energia,
dência constitucional alemã (Vorbehalt des
Möglichen)47, que entende que a construção água, transportes). Onde o Estado cria essas
de direitos subjetivos à prestação material ofertas para a coletividade, ele deve assegurar
de serviços públicos pelo Estado está sujeita a possibilidade da participação do cidadão.
à condição da disponibilidade dos respec- Onde a legislação não concede um direito
tivos recursos. Ao mesmo tempo, a deci- expresso ao indivíduo de receber uma pres-
são sobre a disponibilidade dos mesmos es- tação vital, ele pode recorrer ao direito
taria localizada no campo discricionário fundamental da igualdade em conexão com
das decisões governamentais e dos o princípio do Estado Social 49. Dessa
parlamentos (composição de orçamentos). maneira, os direitos fundamentais da
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primeira geração foram tomados como ra, o princípio fundamental da dignidade
fonte de direitos subjetivos a prestações da pessoa humana, expresso no art. 1º, III,
positivas do Estado. CF, visto que jurisprudência e doutrina
A teoria engenhosa que liga a presta- ainda não criaram linhas firmes de inter-
ção do “mínimo social” aos direitos fun- pretação desses princípios. Ao mesmo tem-
damentais de liberdade (primeira gera- po, o autor reconhece que
ção) é fruto da doutrina alemã pós-guerra “os Direitos Fundamentais e o Mí-
que tinha de superar a ausência de qual- nimo Existencial, nos países em
quer direito fundamental social na Lei desenvolvimento, têm uma extensão
Fundamental de Bonn, sendo baseada na maior do que nas nações ricas, pela
função de estrita normatividade e jurisdi- necessidade da proteção estatal aos
cionalidade do texto constitucional. As- bens essenciais à sobrevivência das
sim, a Corte Constitucional Alemã extraiu populações miseráveis”
o direito a um “mínimo de existência” do e que
princípio da dignidade da pessoa huma- “as pretensões dos pobres à assis-
na (art. 1, I, Lei Fundamental), do direito tência social requerem a interpretação
à vida e à integridade física, mediante in- extensiva”56.
terpretação sistemática junto ao princípio Por outro lado, Lôbo Torres lamenta que,
do Estado Social (art. 20, I)50. Não há dú- nas últimas décadas, tenha havido
vidas que ela parte de um direito “a desinterpretação dos mínimos
fundamental a um “mínimo vital”51. Ao sociais e da necessidade de maximi-
mesmo tempo, a Corte deixou claro que zação dos direitos sociais, com o
esse “padrão mínimo indispensável” não emburilhamento das garantias que os
poderia ser desenvolvido pelo Judiciário cercam”.
como “sistema acabado de solução”, mas Nessa sua visão, o acesso universal iguali-
por meio de uma “casuística gradual e tário às ações e serviços de saúde, assegu-
cautelosa”52. rado no art. 196 da Constituição, transfor-
A teoria do “mínimo existencial”, que mado em gratuito pela legislação infracons-
tem a função de atribuir ao indivíduo um titucional, torna-se utópico, uma “procla-
direito subjetivo contra o Poder Público mação demagógica”, que gera expectativas
em casos de diminuição da prestação dos inalcançáveis para os cidadãos57.
serviços sociais básicos que garantem a sua
Para Barroso, esse “padrão mínimo” no
existência digna, até hoje foi pouco
cumprimento das tarefas estatais poderia,
discutida na doutrina constitucional bra-
sem maiores problemas, ser ordenado por
sileira e ainda não foi adotada com as suas
parte do Judiciário, o que deixa de
conseqüências na jurisprudência do país.
Lôbo Torres quer ligar o conceito do acontecer devido apenas a motivos ideo-
“mínimo social” ao status positivus liber- lógicos e não jurídico-racionais58. Sarlet
tatis (Jellinek), entendendo-o como condi- demostra que, no caso da negação de pres-
tio sine qua non às condições iniciais da li- tações de serviços sociais básicos por par-
berdade53. Citando a doutrina constitucio- te do Estado, não conseguem convencer os
nal alemã dominante54, ele alega que, sem argumentos comuns da falta de verbas e
o mínimo necessário à existência, cessaria da falta da competência do Judiciário para
a possibilidade da própria sobrevivência. decidir sobre a aplicação dos recursos pú-
Esse mínimo garantido nas condições ma- blicos, especialmente na área da saúde, o
teriais de existência estaria baseado no bem maior da vida humana. Para ele, “a
próprio conceito da dignidade humana55. denegação dos serviços essenciais de saú-
Num lado, é válida a tentativa do autor de acaba por se equiparar à aplicação de
de fecundar, dentro da doutrina brasilei- uma pena de morte”59.
Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 247
Uma garantia mais efetiva da presta- um “constitucionalismo moralmente re-
ção dos serviços básicos e da assistência flexivo” (U. Preuss) em virtude do “des-
social no Brasil também não levaria a uma crédito de utopias” e da “falência dos có-
situação de “tutela” ou criação de de- digos dirigentes”, que causariam a prefe-
pendência do cidadão em relação às pres- rência de “modelos regulativos típicos da
tações sociais do Estado, um perigo que subsidiariedade”, de “autodireção social
pode existir somente em países de índices estatalmente garantida”62. O “entulho pro-
elevados de desenvolvimento60. No entan- gramático” e as “metanarrativas” da Car-
to, essa visão mais moderna ainda não re- ta Portuguesa, segundo ele, impediriam
presenta a linha dominante na doutrina e aberturas e alternativas políticas, tornan-
jurisprudência do Brasil. São justamente do necessário “desideologizar” o texto
os tribunais superiores que mostraram constitucional63. O modelo da “constitui-
fortes objeções e ressalvas contra a sua ção dirigente” hoje também estaria im-
própria legitimidade a formular ordens prestável perante a transformação de or-
concretas contra governos referentes à dens jurídicas nacionais em ordens parci-
prestação adequada dos serviços públicos ais, em que as constituições são relegadas
sociais. para um plano mais modesto de “leis fun-
damentais regionais”.
7. A questão da “constituição Além disso, o autor português passou a
negar a possibilidade da geração de direitos
dirigente”
subjetivos na base de direitos constitucionais
Na doutrina constitucional contempo-
sociais, alegando que somente o legislador
rânea, comenta-se a mudança na linha
ordinário seria legitimado a determinar o
doutrinária do famoso constitucionalista
conteúdo concreto dos direitos sociais, sem
português Gomes Canotilho. Na sua obra
vinculação estrita às normas programáticas
“Constituição Dirigente e Vinculação do
da Constituição. Assim, ele afirma, por
Legislador”, publicada em 1982, ele defendia
exemplo, que a garantia constitucional da
a tese de que as normas programáticas cons-
gratuidade do acesso a todos os graus de
titucionais sobre direitos sociais, econômi-
ensino “pode lançar a constituição nas
cos e culturais seriam capazes de obrigar o
querelas dos limites do Estado Social e da
legislador a criar as respectivas leis ordi-
ingovernabilidade”64. Lôbo Torres comunga
nárias que fixassem as prestações positivas
com essa “nova” posição do mestre lusitano
e o Poder Executivo a oferecer os serviços e
e nega a possibilidade de eficácia das
prestações para realização do conceito cons-
normas constitucionais atributivas de
titucional. Ao mesmo tempo, o autor não
direitos sociais sem a intermediação da lei65.
quis permitir a redução dos direitos sociais
a um simples apelo ao legislador, mas os Essa mudança de visão se deve certamente
entendia como à forte influência da doutrina tradicional
“verdadeira imposição constitucio- alemã (K. Hesse) e à situação social alterada
nal, legitimadora de transformações de Portugal no seio do processo de inte-
econômicas e sociais, na medida em gração econômica e política na União
que estas forem necessárias para a Européia que proporcionou ao país uma
efetivação desses direitos”. prosperidade econômica e estabilidade eco-
Afirmava que a inércia do Estado quanto à nômica e social jamais vivenciada antes,
criação de condições de sua efetivação podia mas definitivamente não é transferível, sem
dar lugar à inconstitucionalidade por os devidos ajustes, ao sistema jurídico e
omissão61. social do Brasil. Bercovici está coberto de
Ultimamente, Canotilho revidou esse seu razão quando salienta que a “constituição
posicionamento, declarando-se adepto de dirigente”, que é o modelo da Carta de 1988,
248 Revista de Informação Legislativa
não tolhe a liberdade do legislador ou a Podemos observar, até os dias de hoje,
discricionariedade do governo de maneira uma maneira extremamente formal de
a prescrever uma linha única de atuação argumentação em grandes partes da dou-
para a política, mas estabelece um funda- trina e jurisprudência do Brasil, que se
mento constitucional para a política, tornan- concentra quase exclusivamente em aspec-
do-se sua premissa material66. tos lógico-formais da interpretação jurídi-
As condições culturais, políticas e só- ca e não permite a influência de pontos de
cio-econômicas vigentes no Brasil no final vista valorativos, ligados à justiça mate-
do século XX não exigem uma exaltação rial69. O operador jurídico ainda não está
de teorias liberalistas e internacionalistas, acostumado a questionar o conteúdo ma-
mas um desenvolvimento firme e contínuo terial de normas legais ou atos adminis-
em direção ao Estado Social, preconizado trativos. Segundo José E. Faria,
pela Carta de 1988, com todas as suas “é cada vez maior o número de juí-
conseqüências. Nesse processo, o Poder zes conscientes de que não estão pre-
Público tem necessariamente um outro parados técnica e intelectualmente
papel do que na Europa unificada, onde o para lidar com o que é inédito; (...)
nível de organização e atuação da socie- de que foram treinados para inter-
dade civil é incomparavelmente mais alto. pretar normas programáticas e nor-
mas com conceitos indeterminados
8. O Poder Judiciário: a tradição do (...)”70.
formalismo; necessidade de uma Podemos observar que muitos represen-
interpretação constitucional material- tantes das diferentes profissões jurídicas
valorativa gostariam de aplicar, no seu trabalho diário,
os direitos fundamentais com mais coerên-
Normas constitucionais sobre direitos
fundamentais contêm, por natureza, con- cia. Eles reclamam do “pouco apoio” por
ceitos vagos, abstratos, de textura aberta, parte da literatura constitucional clássica,
que constituem fórmulas valorativas, as que normalmente se restringiu a apresentar
quais não podem ser interpretadas a evolução e positivação dos diferentes
adequadamente mediante os métodos tra- direitos humanos, acrescentando somente
dicionais da hermenêutica jurídica67. algumas decisões dos tribunais superiores
Talvez o maior impedimento para uma a respeito71.
proteção mais efetiva dos direitos funda- Apesar do fato de a doutrina constitu-
mentais seja a atitude ultrapassada de cional moderna no Brasil enfatizar que o
grande parte da magistratura brasileira Estado Social preconizado pela Carta de
para com a interpretação constitucional, 1988 exige um novo entendimento das suas
cuja base até hoje consiste no formalismo normas jurídicas, que seja orientado por
jurídico que tem dominado gerações de valores72, a maioria dos operadores (juízes,
operadores de Direito, especialmente du- promotores, procuradores, administradores,
rante o tempo autoritário. Segundo Bob- advogados) ainda não passou a interpretar
bio, a concepção “formalista” da interpre- as normas constitucionais e ordinárias
tação jurídica, fruto do jus-positivismo, dá (civis, comerciais, administrativas) “no
absoluta prevalência às formas com base espírito” dos direitos fundamentais e seus
numa operação meramente lógica, isto é, valores subjacentes.
aos conceitos jurídicos abstratos da nor- A natureza político-social dessas normas
ma legislativa com prejuízo da finalidade impõe a necessidade de métodos de interpre-
perseguida por esta, da realidade social tação específicos. O modelo dominante no
que se encontra por trás das formas e dos Brasil sempre foi de perfil “liberal-indivi-
conflitos de interesse que se deve dirimir68. dualista-normativista”, que nega a apli-
Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 249
cação das normas programáticas e dos “tem desprezado o desafio de preen-
princípios da nova Constituição 73. En- cher o fosso entre o sistema jurídico
quanto o positivismo jurídico formalista vigente e as condições reais da socie-
exigia a “neutralização política do Judiciá- dade, em nome da ‘segurança jurí-
rio”, com juízes racionais, imparciais e dica’ e de uma visão por vezes ingênua
neutros, que aplicam o direito legislado de do equilíbrio entre os poderes autô-
maneira lógico-dedutiva e não criativa, nomos”78.
fortalecendo desse modo o valor da segu- Para ele, os tribunais, apesar dos novos di-
rança jurídica, o moderno Estado Social reitos consagrados pela Carta de 1988, con-
requer uma magistratura preparada para tinuam com uma cultura técnico-profis-
realizar as exigências de um direito mate- sional defasada – com métodos exclusiva-
rial, “ancorado em normas éticas e políti- mente formais de caráter lógico, sistemá-
cas, expressão de idéias para além das de- tico e dedutivo –, incapazes de entendê-
correntes do valor econômico”74. los e, por conseqüência, de aplicá-los79.
Apostolova enfatiza que as expectati- Segundo José Afonso da Silva, a eficá-
vas e reivindicações de novos movimen- cia das normas programáticas sobre direi-
tos e grupos sociais da garantia dos seus tos sociais constitucionais é sobretudo in-
direitos aumentaram a “visibilidade social terpretativa, como orientação axiológica
e política” do Poder Judiciário, que se para a compreensão do sistema jurídico
transformou cada vez mais num “espaço nacional. Ele lamenta que nem a doutrina
de confronto e negociação de interesses”. nem a jurisprudência tenham percebido o
A concretização desses direitos sociais exi- seu alcance, nem lhes dado aplicação
ge alterações das funções clássicas dos ju- adequada, como princípios-condição da
ízes que se tornam co-responsáveis pelas
justiça social80.
políticas dos outros poderes estatais, ten-
Entre as teorias existentes sobre os
do que orientar a sua atuação para possi-
direitos fundamentais81, são aceitas no
bilitar a realização de projetos de mudan-
Brasil a liberal e a institucional, enquanto a
ça social, o que leva à ruptura com o mo-
Teoria dos Valores (R. Smend), que entende
delo jurídico subjacente ao positivismo, a
os direitos fundamentais como expressão de
separação do Direito da Política75.
uma “ordem objetiva de valores”, ainda
A questão hermenêutica dos direitos
encontra fortes ressalvas. Segundo essa
fundamentais deixa de ser um problema
teoria – defendida pela Corte Constitucional
de correta subsunção do fato à norma para
Alemã –, os direitos fundamentais atuam
se tornar um problema de conformação
sobre as relações jurídicas diante dos
política dos fatos, isto é, de sua transfor-
poderes públicos e sobre as relações jurí-
mação conforme um projeto ideológico (e
dicas dos cidadãos entre si. Assim, os va-
não lógico)76. O Judiciário não quer assu-
lores assentados nos direitos fundamen-
mir o papel de “arquiteto social” e ser res-
tais são capazes de impregnar toda a or-
ponsabilizado por uma possível convulsão
dem jurídica, como o exercício da discri-
financeira nos orçamentos públicos. No
cionariedade administrativa e o preenchi-
entanto, podemos observar um
mento das cláusulas gerais do direito civil
“progresso de erosão da rigidez
(ex.: “boa-fé”, “bons costumes”).
lógico-formal em razão das Essa compreensão jurídico-objetiva
exigências de justiça distributiva e, também é de fundamental importância
por conseqüência, dos imperativos para os deveres do Estado, pois a vincula-
de racionalidade material”77. ção de todos os poderes aos direitos fun-
Para José E. Faria, a magistratura brasi- damentais contém não só uma obrigatori-
leira, considerada a partir de seu ethos cul- edade negativa do Estado de não fazer in-
tural, corporativo e profissional, tervenções em áreas protegidas pelos di-
250 Revista de Informação Legislativa
reitos fundamentais, mas também uma sociológicos. São justamente esses aspec-
obrigação positiva de fazer tudo para rea- tos que voltam a ocupar um espaço im-
lizar os mesmos, mesmo se não existir um portantíssimo na interpretação de princí-
direito público subjetivo do cidadão. pios fundamentais e de normas princi-
Evidentemente, qualquer tipo de teo- piológicas – como os direitos fundamen-
ria valorativa floresce melhor na base de tais –, bem como outros conceitos consti-
um pensamento jus-naturalista, como foi tucionais abertos.
o caso na Alemanha pós-guerra como re-
ação aos abusos do regime nazista, que se 9. Nova compreensão da teoria da
valeu, no início, de teses jus-positivistas separação dos poderes; controle judicial
para impedir uma crítica de conteúdo
de políticas e orçamentos públicos
moral e ético contra suas medidas legisla-
tivas, as quais, na sua maioria, foram ela- Em princípio, a estrutura do Poder
boradas de maneira “formalmente legal”, Judiciário é relativamente inadequada para
mas em contradição evidente com os di- dispor sobre recursos ou planejar políticas
reitos fundamentais e os princípios mate- públicas. Ele também carece de meios
riais da Constituição de Weimar82. compulsórios para a execução de sentenças
A experiência do “relativismo” total do que condenam o Estado a cumprir uma
conteúdo das leis positivas levou o famoso tarefa ou efetuar uma prestação omitida; não
jurista e filósofo Gustav Radbruch, inicial- há meios jurídicos para constranger o legis-
mente positivista ferrenho, a mudar comple- lador a cumprir a obrigação de legislar87.
tamente a sua posição depois da guerra e Em certas condições, o incumprimento
defender a existência de “injustiça legal e pelo legislador ou do governo das tarefas
direito supralegal” e de “leis que não são constitucionais ligadas aos direitos sociais
direito”83. Recentemente, a Corte Constitu- é suscetível de desencadear uma inconsti-
cional Alemã se valeu dessa teoria, ao tucionalidade por omissão. Nesse ponto,
confirmar a condenação por homicídio de vale ressaltar que os novos meios proces-
vários soldados da antiga Alemanha suais do mandado de injunção (art. 5º, LXXI,
comunista que mataram centenas de cida- CF) e da ação de inconstitucionalidade por
dãos alemães orientais que tentaram ultra- omissão (art. 103, § 2º, CF) ainda não
passar a fronteira para a Alemanha Ociden- surtiram os efeitos desejados e intencio-
tal; os acusados tentaram justificar-se com nados pelos Constituintes da Carta de 1988,
a existência de uma lei que permitia o uso tema complexo que não pode ser aprofun-
da arma para impedir qualquer “fuga da dado aqui.
República”84. Há omissão legislativa sempre que o
O governo autoritário do Brasil pós-1964 legislador não cumpre (ou cumpre insufi-
se serviu também de medidas formalmente cientemente) o dever constitucional de
legais para limitar a independência dos concretizar imposições constitucionais
órgãos estatais e restringir os direitos civis e concretas. Ele pode não agir (omissão to-
políticos da população, como fez o Ato tal) ou tomar medidas insuficientes ou in-
Institucional nº 5, de 13-12-196885. Essas completas (omissão parcial); no último
experiências, no entanto, não levaram a uma caso, têm relevo decisivo considerações de
posição mais crítica de amplos segmentos caráter material, que dependem do grau
da doutrina e jurisprudência em relação às de densidade da norma impositiva88. As-
teorias e posições positivistas (“kelsenia- sim, os direitos sociais podem funcionar
nas”)86, que defendem até hoje a estrita como verdadeiros direitos subjetivos e ser
separação entre argumentos jurídicos invocados judicialmente por meio de
(“científicos”) e argumentos “metajurí- ações de inconstitucionalidade por omis-
dicos”, como valorativos, ético-morais, são e ação89.
Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 251
A conseqüência do não-atendimento hoje também, a omissão estatal94. O Estado
aos preceitos constitucionais por omissão Social moderno requer uma reformulação
legislativa ou administrativa pode resul- funcional dos poderes no sentido de uma
tar numa inconstitucionalidade perma- distribuição para garantir um sistema
nente, que leva à desestabilização políti- eficaz de “freios e contrapesos”.
ca. Ao mesmo tempo, é incontestável o Sistemas jurídicos em países “centrais”
valor político de uma decisão judicial que como a Alemanha, em que há um alto
declara que o Estado está em mora com padrão nos índices de desenvolvimento
obrigações constitucionais econômicas, humano e um nível elevado de satisfação
sociais e culturais; essas sentenças assu- da população em relação aos serviços
mem o papel de importantes veículos para sociais básicos, recusam, com bons argu-
canalizar as reivindicações da sociedade90. mentos, a idéia do Poder Judiciário como
Gilmar F. Mendes sugere, nesse contexto, “arquiteto da ordem social”, acima de
a aplicação do modelo da “decisão de tudo pela falta de legitimidade democrá-
apelo” da Corte Constitucional Alemã91, tica e de aptidão funcional para efetuar
medida que provavelmente não lograria uma distribuição dos recursos públicos
causar os mesmos efeitos, em virtude das disponíveis95.
relações políticas e sócio-culturais bastante Cappelletti destaca que os juízes de
diferentes dos órgãos constitucionais su- muitos países têm assumido a posição de
premos entre si. O cumprimento de um negar o caráter preceptivo, ou self-executing,
mandamento apelativo pressupõe um cli- de leis ou direitos programáticos de cunho
ma de respeito mútuo e autoridade do Su- social, que normalmente se limitam a definir
premo Tribunal em relação ao Governo finalidades, princípios gerais. No entanto,
e o Congresso Nacional, o que nem sem- o Poder Judiciário, mais cedo ou mais tarde,
pre tem existido no Brasil nos últimos anos. teria que
Em geral, encontramos no Brasil uma “aceitar a realidade da transforma-
resistência ao controle judicial do mérito dos da concepção do direito e da nova
atos do Poder Público, aos quais se reserva função do estado, do qual constitu-
um amplo espaço de atuação autônoma, em também, afinal de contas, um
ramo”.
discricionária, em que as decisões do órgão
Para tal fim, os juízes devem controlar e
ou do agente público são insindicáveis
exigir o cumprimento do dever do Estado
quanto à sua conveniência e oportunidade.
de intervir ativamente na esfera social96.
O Supremo Tribunal Federal, na sua atitude
A atividade de interpretação e realização
exagerada de “auto-restrição judicial”
das normas sociais na Constituição impli-
(judicial self-restraint), recusa-se, até hoje, a ca, necessariamente, um alto grau de
controlar os pressupostos constitucionais criatividade do juiz, o que, por si, não o tor-
da edição de medidas provisórias pelo na um “legislador”97.
Governo Federal92 e nega-se a criar as No entanto, B. Santos observa que, nos
normas necessárias para resolver os casos países periféricos como o Brasil, a atuação
concretos, no caso do mandado de injunção93. dos juízes se carateriza pela resistência em
O vetusto princípio da separação dos assumir a sua co-responsabilidade na ação
poderes, idealizado por Montesquieu, está providencial do Estado 98. Nessa linha,
produzindo, com sua grande força simbó- exige-se um Judiciário “intervencionista”
lica, um efeito paralisante às reivindicações que realmente ousa controlar a falta de
de cunho social e precisa ser submetido a qualidade das prestações dos serviços
uma nova leitura, para poder continuar básicos e exigir a implementação de polí-
servir ao seu escopo original de garantir ticas sociais eficientes. Nesse contexto, as
direitos fundamentais contra o arbítrio e, decisões da administração pública não po-
252 Revista de Informação Legislativa
dem se distanciar da “programaticidade de desimportante antes da Revolução In-
principiológica” da Constituição99. dustrial. Segundo ele,
Concordamos com C. Clève, que “a política aparece, antes de tudo,
defende um novo tipo de Poder Judiciário como uma atividade, isto é, um con-
e de compreensão da norma constitucio- junto organizado de normas e atos
nal, e juízes “ativistas”, vinculados às di- tendentes à realização de um objetivo
retivas e às diretrizes materiais da Cons- determinado”103.
tituição, voltados para a plena realização O autor defende a tese que o Judiciário
dos seus comandos e não apenas apega- possui competência, apesar do princípio da
dos aos esquemas da racionalidade formal separação dos poderes, para julgar “ques-
e, por isso, muitas vezes simples guardiões tões políticas” e alega que a “clássica fal-
do status quo100. Torna-se necessária, por- sa objeção à judiciabilidade das políticas
tanto, uma “mudança de paradigmas” na governamentais” se deve ao mau enten-
percepção da sua própria posição e fun- dimento da political question doctrine da
ção no moderno Estado Social de Direito. Suprema Corte dos EUA.
O Poder Executivo, por sua vez, não O controle de constitucionalidade,
somente “executa” as normas legislativas segundo Comparato, inclui os objetivos
sobre direitos sociais. Ele cria as próprias gerais da respectiva política perante as
“políticas” e os programas necessários para normas-objetivo da Constituição, bem como
a realização dos ordenamentos legais. Essa as regras que estruturam o desenvolvimento
função governamental planejadora e imple- dessa atividade; uma política econômica
mentadora é decisiva para o próprio con- exclusivamente voltada para a estabilidade
teúdo das políticas e a qualidade da pres- monetária seria uma afronta contra os
tação dos serviços. O dilema do nível baixo dispositivos do art. 170, CF. No entanto, o
de qualidade dos mesmos parece estar autor reconhece que a probabilidade de
concentrado na não-alocação de recursos introdução do juízo de constitucionalidade
suficientes nos orçamentos públicos, seja da de políticas públicas no Brasil atualmente é
União, dos Estados ou dos Municípios, e, remotas104.
parcialmente também na não-execução dos Segundo L. Lopes, os direitos sociais
respectivos orçamentos pelos órgãos gover- (saúde e educação pública, segurança,
namentais. previdência social) não são fruíveis ou
No entanto, as questões ligadas ao exeqüíveis individualmente, o que não quer
cumprimento das tarefas sociais, como a dizer que juridicamente não possam, em
formulação das respectivas políticas, no determinadas circunstâncias, ser exigidos
Estado Social de Direito não estão relegadas como se exigem judicialmente outros direitos
somente ao governo e à administração101, subjetivos. De regra, os serviços sociais
mas têm o seu fundamento nas próprias dependem, para sua eficácia, de atuação do
normas constitucionais sobre direitos Executivo e do Legislativo por terem o
sociais; a sua observação pelo Poder caráter de generalidade e publicidade. Uma
Executivo pode e deve ser controlada pelo solução do problema para o autor é a
Poder Judiciário. Para Campilongo, possibilidade da contestação e do controle
“o magistrado atua, no Estado Social, das leis orçamentárias, por ação direta de
como garantidor da estabilidade e da inconstitucionalidade (por meio do Minis-
dinâmica institucionais”102. tério Público, art. 102, I, CF), toda vez que
K. Comparato enfatiza que o conceito de contrariarem dispositivos constitucionais105.
política, no sentido de programa de ação, só Um orçamento público, quando não
recentemente foi descoberto pela teoria atende aos preceitos da Constituição, pode
jurídica por corresponder a uma realida- e deve ser corrigido mediante alteração do
Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 253
orçamento consecutivo, logicamente com Nessa linha, B. de Morais vê a garantia de
a devida cautela. Em casos individuais, padrões mínimos de serviços sociais
pode ocorrer a condenação do Poder Pú- básicos como uma questão da realização
blico para a prestação de determinado ser- dos interesses transindividuais (difusos)110.
viço público básico, ou o pagamento de Segundo o entendimento prevalecente
serviço privado (exemplo: reembolso das na Alemanha, os órgãos administrativos
despesas de atendimento em hospital par- têm a função de defender (sempre) o inte-
ticular)106. resse público, por meio da prestação de ser-
Com Perez, não podemos admitir é que viços e a implementação de políticas pú-
os direitos fundamentais tornem-se, pela blicas, o que habitualmente é chamado de
inércia do legislador, ou pela insuficiência “cumprimento de tarefas públicas” (öffen-
momentânea ou crônica de fundos esta- tliche Aufgabenerfüllung); isso inclui tam-
tais, bém as áreas da proteção ambiental, da
“substrato de sonho, letra morta, proteção do consumidor, das crianças e
pretensão perenemente irrealizada adolescentes, dos serviços de saúde, edu-
(...). Seria possível então, na base do cação, etc.
sistema jurídico-constitucional brasi- O simples fato de que o sistema
leiro, o Poder Judiciário coibir a brasileiro distingue entre interesses públi-
administração pública a realizar uma cos (comuns) e interesses difusos (específi-
política pública ou fazer, no caso cos), que são até capazes de entrar em cho-
concreto, observar uma norma pro- que entre si111, mostra que existe aqui uma
gramática? Ou, mais concretamente, certa “desconfiança” do próprio sistema
podem os Tribunais compelir um contra a retidão e eficiência dos órgãos ad-
governo a executar programas de ministrativos na prestação dos serviços
erradicação da miséria (art. 3º, III, públicos, cuja qualidade pode ser questio-
CF)?”107 nada em juízo.
Para tanto, parece ser necessária uma A existência da lei da ação civil pública
“mescla do nosso sistema legalis- leva necessariamente a uma maior compe-
ta com ingredientes do juízo dis- tência ao lado do Poder Judiciário no
cricionário da eqüidade, para controle das políticas públicas. Muitas
transformar o Terceiro Poder em medidas, que na Alemanha estariam
grande instrumento de evolução cobertas pela discricionariedade adminis-
frente às disposições constitucio- trativa e portanto não-sindicáveis, no Bra-
nais programáticas” 108. sil podem ser controladas pelos tribunais,
Por fim, ousamos afirmar que o sistema por se tratar de questões envolvidas com
jurídico brasileiro já está desenvolvendo “interesses difusos” da sociedade112.
uma nova visão do princípio da separação
dos poderes, ainda que uma boa parte dos 10. Normas programáticas sobre
seus operadores ainda não se deram conta direitos sociais: mero “simbolismo”?
desse fato. Com efeito, pergunta Bobbio se um
O ponto central dessa mudança é a direito ainda pode ser chamado de
crescente utilização da ação civil pública “direito” quando o seu reconhecimento e
(Lei nº 7.347/85) por parte do Ministério sua efetiva proteção são adiados sine die,
Público e da sociedade civil para defesa dos além de confiados à vontade de sujeitos
chamados direitos difusos, que são também cuja obrigação de executar um “progra-
ligados à implementação dos direitos ma” é apenas uma obrigação moral ou, no
sociais pelo Estado, direitos básicos estes máximo, política113. A Constituição, no di-
que compõem o arcabouço da cidadania109. zer de Hesse, não configura apenas expres-
254 Revista de Informação Legislativa
são de um ser, mas também de um dever nhando, assim, uma função preponderan-
ser; ela significa mais do que o simples re- temente ideológica em constituir uma for-
flexo das condições fáticas de sua vigên- ma de manipulação ou de ilusão que imu-
cia, particularmente as forças sociais e po- niza o sistema político contra outras alter-
líticas, procurando imprimir ordem e con- nativas119. Para E. Grau, os direitos econô-
formação à realidade política e social114. micos e sociais programáticos são capazes
Limitar normas constitucionais a ex- de funcionar como
pressar a realidade de fato seria a sua ne- “anteparo às expansões da sociedade,
gação. Mas o direito tem seus próprios li- amortecida naquilo que seria expres-
mites e por isso não deve normatizar o são de sua ânsia de buscar a realização
inalcançável; ele se forma com elementos de aspirações econômicas e sociais”,
colhidos na realidade que precisam de res- criando, assim, “mitos modernos para o
sonância no sentimento social. O equilí- povo” e assumindo o papel de “instru-
brio entre esses dois extremos é que con- mentos de dominação ideológica”120.
duz a um ordenamento jurídico eficaz115. Sem querer denegar a procedência
Na Alemanha, como no Brasil, reconhece- desses pontos de vista, queremos ressal-
se que promessas constitucionais exagera- tar que os direitos fundamentais sociais
das mediante direitos fundamentais soci- programáticos da Carta de 1988 exercem
ais sem a possibilidade real da sua reali- um importante papel, cumprindo, ao lado
zação são capazes de levar a uma “frus- de sua função jurídico-normativa, uma
tração constitucional”, o que desacredita função sugestiva, apelativa, educativa e
a própria instituição da Constituição conscientizadora121. Em muitos dispositi-
como sistema de normas legais vigentes e vos, há uma exacerbação intencional do
pode abalar a confiança dos cidadãos na preceito normativo além do limite da sua
ordem jurídica como um todo116. exeqüibilidade racionalmente possível122.
Segundo a classificação famosa de Karl Sua supressão do texto constitucional
Löwenstein, a Carta brasileira representaria enfraqueceria a posição dos integrantes da
uma constituição nominal, cujas normas sociedade civil organizada na reivindicação
ainda não estão sendo acompanhadas por desses direitos junto aos governos federal,
parte do processo político dinâmico. No estaduais e municipais. Nessa mesma
entanto, a desarmonia entre a pretensão linha, J. A. da Silva vê a relevância das
jurídico-constitucional e as condições sócio- normas programáticas no sentido teleoló-
econômicas existentes pode ser sanada no gico de modo que apontam para fins futuros
decorrer do tempo por meio do processo e servem de pauta de valores para movi-
esperado de maturação e desenvolvi- mentos que as queiram ver aplicadas e
mento117. Segundo essa visão, promessas cumpridas123. Uma concepção material de
exageradas em normas constitucionais de Constituição dá valor também aos efeitos
cunho social significam, acima de tudo, políticos e culturais da Carta mediante
um estímulo para os detentores do poder inclusão de princípios programáticos que
para a sua realização e uma fonte de espe- necessitam de uma concretização
rança para os formalmente beneficiados118. posterior.
Essa visão está sendo rechaçada por M. Dessa forma, a Constituição deixa de
Neves, que afirma que muitas normas servir somente como ordem jurídica de
constitucionais programáticas sobre direi- procedimento para o poder estatal, mas
tos sociais, por não possuírem um mínimo assume também a função de um documen-
de condições para sua efetivação, servem to para a integração da comunidade para
como álibi para criar a imagem de um Es- a formação de consciência política124.
tado que responde normativamente aos Para Häberle, a Constituição de um
problemas reais da sociedade, desempe- Estado é não somente texto jurídico ou
Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 255
regulamento normativo, mas também de especialização e conhecimentos pro-
expressão do desenvolvimento cultural de fundos em questões filosóficas e sociais.
um Estado, meio de auto-afirmação Na área dos direitos fundamentais
cultural de um povo e fundamento de sociais, a aplicação progressiva e coe-
suas esperanças125. rente das normas constitucionais depen-
No entanto, é importante que aqueles que de também de uma evolução da ética
aceitam e até apreciam um certo conteúdo profissional da magistratura e da redu-
utópico de um texto constitucional não se ção da sua dependência em relação ao
esqueçam de que o seu “poder de integra-
Poder Executivo.
ção” (R. Smend) depende decisivamente da
Partes da doutrina brasileira moderna
sua realização e concretização na vida
já defendem teorias alternativas e inova-
diária, o que pressupõe um mínimo de
exeqüibilidade jurídica. doras sobre a função do Judiciário peran-
te os graves problemas sociais e as falhas
funcionais dos outros Poderes, especialmente
11. Conclusão o Executivo hipertrofiado, no cumprimen-
A doutrina e jurisprudência constitu- to da ordem jurídica constitucional.
cional brasileira encontra-se numa fase de Em face dos problemas sociais candentes
transição entre um tratamento tradicional de um país periférico como o Brasil, o
lógico-formal das normas sobre direitos
princípio tradicional da separação dos
fundamentais e a aplicação de métodos
poderes deve ser entendido sob parâme-
modernos de uma interpretação material-
tros e dimensões novas e diferentes dos das
valorativa.
nações centrais ricas. Ainda não foram
Uma década depois do estabelecimen-
aproveitadas as potencialidades dos mo-
to formal dos catálogos monumentais de
direitos fundamentais na Carta de 1988, dernos instrumentos processuais do Direi-
essas normas ainda não lograram causar to brasileiro para a correição judicial das
os efeitos desejados na realidade jurídica omissões dos Poderes Executivo e Legislativo
do país, sobretudo na área dos direitos so- na área das políticas públicas (ação civil
ciais. pública, ação de inconstitucionalidade por
A doutrina jurídica brasileira, no omissão, mandado de injunção).
passado, sempre foi aberta a discutir mo- Exige-se, cada vez mais, a influência do
delos e propostas provindas do exterior. Terceiro Poder na implementação das polí-
Nesse contexto, a doutrina constitucional ticas sociais e no controle da qualidade das
prestações dos serviços básicos, com ênfase
alemã e a jurisprudência da sua Corte
no novo papel – também político – dos juízes
Constitucional exercem papel de desta-
como criadores ativos das condições sociais
que. No entanto, as teorias desenvolvidas
na comunidade que já não combina mais
na Alemanha sobre a interpretação dos di-
com as regras tradicionais do formalismo.
reitos sociais não podem ser facilmente
transferidas para a realidade brasileira
sem as devidas adaptações. Notas
Parte dos operadores jurídicos não
Cf. SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Os direitos fun-
parece estar devidamente preparada para damentais sociais na Constituição de 1988. In: O Direi-
aplicar os direitos fundamentais duma to Público em Tempos de Crise (Estudos em homenagem
maneira dogmaticamente correta e ainda a Ruy R. Ruschel). P. Alegre : Livraria do Advogado,
não se encontra “à altura” do texto cons- 1999. p. 130.
2
NEVES, Marcelo. Symbolische konstitutiona-
titucional complexo. O sistema brasileiro
lisierung und faktische entkonstitutionalisierung. In:
do controle difuso da constitucionalidade Verfassung und Recht in Übersee (VRÜ), 3. Quartal,
de normas e atos leva a uma necessidade Baden-Baden : Nomos Verlag, 1996. S. 314s.

256 Revista de Informação Legislativa


3
Cf. FIORANELLI JÚNIOR, Adelmo. Desenvolvi- 19
Os problemas do Serviço Único de Saúde (SUS)
mento e efetividade dos direitos sociais. In: Revista da têm as suas principais causas na falta de controle ope-
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. [s.l. : s.n.], jun. racional e abusos por parte dos seus integrantes (ad-
1994. p. 24ss. ministradores, médicos, hospitais, laboratórios, fabri-
4
Cf. ALVARENGA, Lúcia B. Freitas de. Direitos hu- cantes de remédios). A má prestação dos serviços pre-
manos, dignidade e erradicação da pobreza: uma dimensão ventivos e curativos por parte de muitos municípios e
hermenêutica para a realização constitucional. [s.l.] : estados não constitui um argumento válido para pôr
Brasília Jurídica, 1998, p. 29ss. em dúvida a própria natureza do direito fundamental
5
CID, Benito de Castro. Los derechos económicos, so- à saúde.
ciales y culturales. Leon : Universidad de Leon, Secreta- 20
FREITAS, Juarez. Do princípio da probidade ad-
riado de Publicaciones, 1993. p. 87ss. ministrativa e sua máxima efetivação. In: Revista
6
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. de Direito Administrativo. [s.l. : s.n.] n. 204, 1996.
Comentários à Constituição Federal de 1969. Tomo I. p. 77s.
São Paulo : Revista dos Tribunais, 1970. p. 127. 21
Cf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação po-
7
Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das pular. 3. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1998.
normas constitucionais. 3. ed., São Paulo : Malheiros, p. 89ss.
1998. p. 115. 22
Cf. CLÈVE, Clemerson M. op. cit. nota 17, p. 231.
8
Cf. CID, Benito de C. op. cit. nota 5, p. 168. 23
Achamos regulamentações semelhantes nas Car-
9
SILVA, José Afonso da. op. cit. nota 7, p. 84. tas de Portugal (art. 18/1) e da Alemanha (art. 1,
10
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Porto III), que “inspiraram” o constituinte nacional.
Alegre : Sérgio Fabris, 1993. p. 39. 24
Assim, é inimaginável uma lei que definiria o
11
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito conceito da liberdade da expressão artística ou
Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo : Malheiros, política, o exercício de uma religião ou o conceito de
1998. p. 288., com essa técnica, segundo ele, “o intimidade, honra ou locomoção. José Afonso da Silva
constituinte não atendeu aos melhores critérios meto- classifica esses direitos clássicos como “direitos de efi-
dológicos”. cácia contida, porém restringíveis por lei”; enquanto
12
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos essa lei não é promulgada, eles valem sem restrições.
fundamentais. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 25
MIRANDA, Jorge. op. cit. nota 14, p. 276ss.
1998. p. 199s. 26
BARROSO, Luís R. op. cit. nota 16, p. 82s.
13
BASTOS, Celso Ribeiro. Direitos e garantias 27
Essas últimas estão sendo subdivididas em
individuais. In: A Constituição Brasileira de 1988 : “normas declamatórias de princípios institutos ou
Interpretações. Rio de Janeiro : [s.n.], 1988. p. 21ss. organizativos e de princípios programáticos”; cf.
14
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitu- Aplicabilidade das Normas Constitucionais (nota 7),
cional. 2. ed. Tomo IV: Direitos Fundamentais. [s.l.] p. 16ss., 65s. Esse sistema representa até hoje o
: Ed. Coimbra, 1993. p. 105s., 348ss. mais aceito por parte dos tribunais brasileiros.
15
ANDRADE, José Carlos Vieira de. A Consti- 28
Vale lembrar que a aplicação dessa teoria da
tuição Portuguesa de 1976. Coimbra : Almedina, “proibição do retrocesso” levaria a uma proteção
1987. p. 141., a propósito, o autor segue “fielmente” maior dos direitos fundamentais sociais do que dos
a doutrina alemã a respeito. de liberdade, em que uma diminuição dos direitos
16
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Consti- do indivíduo – para defender interesses públicos
tuição Dirigente e Vinculação do Legislador. [s.l.] : urgentes (ex.: segurança) – não é, por si, proibida.
Coimbra Editora, 1982. p. 374., BARROSO, Luís 29
SARAIVA, Paulo Lopo. Garantia constitucional
Roberto. O direito constitucional e a efetividade das dos direitos sociais no Brasil. Rio de Janeiro : Forense,
suas normas, Rio de Janeiro : Renovar, 1996. p. 117s. 1983. p. 63. Ele lamenta que “a omissão reiterada
17
Cf. CLÈVE, Clemerson Merlin. O problema do Estado obriga os indivíduos a descrerem do
da legitimação do Poder Judiciário e das decisões ordenamento jurídico, em face de sua inoperância
judiciais no Estado Democrático de Direito. In: (...) Sente-se a falta de identidade entre o texto
Anais do seminário: democracia e justiça: o poder normativo e a realidade vivida pela nação”.
judiciário na construção do estado de direito. P. Alegre: 30
Cf. ADEODATO, João Maurício L. Vorstudien
TJERS, 1998. p. 231. Exemplo: um hospital público re- zu einer emanzipatorischen legitimationstheorie für
cusa-se a internar uma pessoa doente, apesar de vagas unterentwickelte Länder. In: Rechtstheorie. Berlin:
existentes, ou não quer fornecer um determinado me- Duncker & Humblot, n. 22, 1991. S. 108 ff., 125.
dicamento, por ser considerado caro demais (caso do 31
DANTAS, Ivo. O valor da constituição. Rio de
“coquetel contra AIDS”). Janeiro : Renovar, 1996. p. 68. “Os condiciona-
18
LOPES, José Reinaldo de Lima. “O dilema do mentos sociais, políticos, lingüísticos e geográficos
judiciário no Estado Social de Direito”. In: FARIA, José que configuram cada modelo de sociedade são o
Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justi- indicador que não permitirá que se conclua no
ça. São Paulo : Malheiros, 1994. p. 125. sentido de uma passividade da norma constitucional

Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 257


posta, pelo simples fato de que, enquanto, por um lado, 45
CANOTILHO, J. J. Gomes, MOREIRA, Vital. Fun-
esta sofre as influências dos fatores mencionados, por damentos da Constituição, [s.l.] : Coimbra Editora, 1991.
outro e ao mesmo tempo atua sobre eles, quer para p. 131.
mantê-los, quer para provocar sua modificação”. 46
SARLET, Ingo W. op. cit. nota 1, p. 152.
32
Este fato se deve também à tradução de várias 47
Segundo a Corte Constitucional, esses direitos
obras de constitucionalistas deste país para o português a prestações positivas (Teilhaberechte) “estão
e o espanhol (Konrad Hesse, Peter Häberle, Robert Ale- sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo
xy, Ernst-Wolfgang Böckenförde, Otto Bachof, Carl Sch- que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar
mitt, Rudolf Smend, entre outros). da sociedade”; BVerfGE nº 33, S. 333. Essa teoria im-
33
KAUFMANN, Franz-Xaver. Diskurse über possibilita exigências acima de um certo limite social
Staatsaufgaben. I n : GRIMM, Dieter (Hrsg.). básico; a Corte recusou a tese de que o Estado seria
Staatsaufgaben, Baden-Baden : Suhrkamp Verlags- obrigado a criar suficientemente vagas nas universi-
gesellschaft, 1994. S. 28s. dades públicas para atender todos os candidatos.
34
Cf. GRIMM, Dieter. Der Wandel der Staatsaufga- 48
BARROSO, Luís R. op. cit. nota 16, p. 111; SAR-
ben und die Zukunft der Verfassung. In: GRIMM, D. LET, Ingo W. op. cit. p.273, 279., com referência a ME-
(Hrsg.). Staatsaufgaben, Baden-Baden : Suhrkamp Ver- LLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas
lagsgesellschaft, 1994. S. 626s. constitucionais sobre justiça social, In: Revista de Direi-
35
Isso explica também a desconfiança que muitos to Publico, n. 57–58, 1981. p. 245.
autores alemães guardam contra formas extensivas de 49
A Corte condenou o Estado a verificar a
participação popular direta (por ex.: plebiscitos). Es- possibilidade de aumentar as vagas nas universi-
ses instrumentos foram abusados por parte das banca-
dades para determinados cursos como conseqüência
das dos nacional-socialistas e dos comunistas na Re-
do direito fundamental à livre escolha da profissão;
pública de Weimar (1919-33) para inviabilizar várias
cf. BVerfGE nº 40, S. 133 (decisão de 1975).
medidas do governo democrático; as massas popula- 50
Assim, a Corte determinou o aumento do
res mal informadas e radicalizadas quase sempre fica-
valor da “ajuda social“ (Sozialhilfe), valor mínimo
ram do lado dos extremistas.
que o Estado está obrigado a pagar a cidadãos
36
Exceção é o direito da mãe à proteção e assistên-
carentes; BVerfGE nº 1, S. 161s. (decisão de 1951).
cia por parte da comunidade (art. 6º, IV, LF).
37
DÜRIG, Günter. Grundgesetz, 30. Aufl., München,
51
Outras decisões nesse sentido: BVerfGE nº 27,
1993. S. X; SCHOLZ, Rupert. Deutschland in guter S. 63; nº 52, p. 346; nº 82, S. 85. Igualmente decidiu
Werte-Verfassung?. In: Fikentscher, W. et alii, Wertewan- o Supremo Tribunal Administrativo (BVerwGE
del – Rechtswandel: Perspektiven auf die gefährdeten Vo- nº 1, S. 161; nº 5, S. 31); é também posição pacífica
raussetzungen unserer Demokratie, Gräfeling : Resch Ver- na doutrina. Para Robert Alexy, “existe, pelo menos,
lag, 1997. S. 53. um Direito Social Fundamental tácito”; cf. Teoria
38
BLECKMANN, Albert. Staatsrecht II – Allgemeine de los Derechos Fundamentales. Madrid : Centro de Estu-
Grundrechtslehren. 2.ed. Köln: Carl Heymanns Verlag, dios Constitucionales, 1993. p. 421ss.
1985. S. 179s.; MURSWIEK, Dietrich. “Grundrechte als
52
MURSWIEK, Dietrich, op. cit. Rnr. 98s.
Teilhaberechte, soziale Grundrechte, In: Isensee, Josef/ 53
TORRES, Ricardo Lôbo (org.). A cidadania
Kirchof, Paul (Hrsg.). Handbuch des Staatsrechts der multidimensional na era dos direitos. Teoria dos
Bundesrepublik Deutschland. Band V – Allgemeine Grun- Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro : Renovar, 1999.
drechtslehren (§ 112), Heidelberg : C. F. Müller Juristis- p. 262. Todavia, não conseguimos vislumbrar
cher Verlag, 1992, Rnr. 22. nenhuma “larga tradição desse conceito no direito
39
SARLET, Ingo W. op. cit. nota 12, p.146s., 298s. brasileiro“, de que fala o autor.
40
SARLET, Ingo W. op. cit. nota 1, p. 148s. 151. 54
Assim a maior e mais citada obra sobre a Lei
41
Cf. ABRAMOVICH, Victor, COURTIS, Christian. Fundamental, os “Comentários“ de Theodor
Hacia la exigibilidad de los derechos económicos, so- Maunz, Günter Dürig, Roman Herzog e Rupert
ciales e culturales”. In: Contextos – Revista Critica de Scholz. (Grundgesetz-Kommentar, München : Verlag
Derecho Social. Buenos Aires: Editiones del Puerto, n. 1, C.H.Beck, 1998).
1997. p. 12. É essa a linha predominante da doutrina 55
Para ele, a retórica do mínimo existencial não
constitucional alemã. minimiza os direitos sociais, mas os fortalece na sua
42
CANOTILHO, José J. Gomes. Direito Constitucio- dimensão essencial como expressão de uma “cidada-
nal. 5. ed. Coimbra : Almedina, 1991. p. 526. nia reivindicatória”; cf. op. cit. (nota 52), p. 263s.
43
Em 1994, foi inserido na Lei Fundamental 56
TORRES, Ricardo Lôbo, op. cit. nota 52, p. 282s.
Alemã o Art. 20a, a nova “norma-fim” da “proteção 57
Op. cit. (nota 52), p. 283ss. Não procede a acusa-
dos fundamentos naturais da vida” (natürliche ção do “ideologismo” contra os defensores de uma in-
Lebensgrundlagen), isto é, a proteção ao meio ambiente. terpretação progressiva dos direitos sociais expressa-
44
HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts mente consagrados no texto constitucional.
der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg : Verlag C. F. 58
BARROSO, Luís R. op. cit. nota 16, p. 155s.
Müller, 20. Aufl. 1995. p. 91 (Rnr. 208). 59
SARLET, Ingo W. op. cit. nota 12, p. 298, 317ss.

258 Revista de Informação Legislativa


60
MURSWIEK, Dietrich. op. cit. Rnr. 37ss. 71
Essa experiência fizemos como professor da
61
A teoria da “constituição dirigente” teve ampla matéria “Direitos Fundamentais” nos Cursos de Espe-
aceitação no Brasil e influenciou fortemente o constitu- cialização em Direito da UFAL e da UFPE, de 1996 a
cionalismo brasileiro e a última Assembléia Nacional 1999 (somando mais do que 400 alunos).
Constituinte; cf. BARROSO, Luís R., Dez anos da Cons- 72
FARIA, José Eduardo. op. cit. nota 69, p. 62.
tituição de 1988. In: SARLET, Ingo W. (org.). O Direito 73
STRECK, Lênio. O controle externo, súmulas vin-
Público em Tempos de Crise (Estudos em homenagem a culantes e reforma do Judiciário como condição de
Ruy R. Ruschel), Porto Alegre : Livraria do Advogado, Democracia. In: Anais do seminário: democracia e justiça –
1999. p. 196. O Poder Judiciário na construção do Estado de Direito. P.
62
CANOTILHO, José J. Gomes. Rever ou romper Alegre : TJERS, 1998. p.174.
com a Constituição Dirigente? : Defesa de um constitu-
74
APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. Poder
cionalismo moralmente reflexivo. In: Revista dos Tribu- Judiciário: do moderno ao contemporâneo. P. Alegre :
nais – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Polí- Sérgio Fabris, 1998. p. 145s., 169.
tica, São Paulo, n. 15. 1998. p. 8ss.
75
APOSTOLOVA, Bistra S. op. cit. nota 72, p.
63
Cf. a obra recente do autor Direito Constitucional e 182s.; a autora se vale das lições de José Eduardo
Teoria da Constituição, Coimbra : Livraria Almedina, Faria e do autor português Boaventura de Souza
1998. p. 201ss. Santos.
64
Cf. “Rever ou romper com a constituição
76
Cf. ALVARENGA, Lúcia B. Freitas de. op.
dirigente?” (nota 61), p. 15ss.: “Certas formas de eficá- cit. nota 4, p. 87.
cia reflexiva ou direção indireta – subsidiariedade,
77
FARIA, José Eduardo. op. cit. nota 68, p. 19.
neocorporativismo, delegação – podem apontar para o
78
FARIA, José Eduardo. (org.) O Judiciário e os
desenvolvimento de instrumentos cooperativos que, direitos humanos e sociais: notas para uma
reforçando a eficácia, recuperem as dimensões justas avaliação da justiça brasileira”, In: Direitos
do princípio da responsabilidade apoiando e encora- Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo :
jando a dinâmica da sociedade civil. (...) A lei dirigente Malheiros, 1998. p. 111.
cede o lugar ao contrato, o espaço nacional alarga-se à
79
FARIA, José Eduardo. op. cit. nota 69, p.
transnacionalização e globalização, mas o ânimo de 56, 65.
mudanças aí está de novo nos quatro contratos globais
80
Cf. Aplicabilidade das Normas Constitucionais.
(o contrato para as necessidades globais, o contrato op. cit. p. 139, 143s., 157.
cultural, o contrato democrático e o contrato do plane-
81
Veja a distinção de BÖCKENFÖRDE, Ernst-
ta Terra)”. Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Baden-
65
TORRES, Ricardo Lôbo. op. cit. nota 52, p. 291. Baden : Nomos Verlag, 1993. S. 47ss.
No mesmo sentido: MOREIRA NETO, Diogo de Figuei-
82
Exemplos são a “Lei de Plenos Poderes”
redo. Desafios institucionais brasileiros, In: MARTINS, (Erächtigungsgesetz), de 23.3.1933, e as medidas
Ives Gandra da Silva (org.). Desafios do Século XXI. São legais discriminatórias contra cidadãos judeus.
Paulo : Ed. Pioneira, p. 194ss.
83
Um bom resumo da problemática apresenta
66
BERCOVICI, Gilberto. A problemática da consti- AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e
tuição dirigente: algumas considerações sobre o caso hermenêutica jurídica. P. Alegre : Sérgio Fabris, 1989.
p. 63ss.
brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília : 84
Cf. ADOMEIT, Klaus. Rechts- und Staatsphiloso-
Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. nº
phie – Band II; Rechtsdenker der Neuzeit, Heidelberg : C. F.
142, 1999, p. 40.
Müller Verlag, 1995. S. 150ff.
67
OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcibiades de. fala de 85
Sobre a “recepção” do AI 5 pelo sistema jurídico
um “desafio hermenêutico”, cf. Os dez anos da Consti-
nacional: AZEVEDO, Plauto F. de. Crítica à Dogmática e
tuição Federal: o Poder Judiciário e a construção da
Hermenêutica Jurídica (nota 81). p. 40ss.
democracia no Brasil. In: Anais do Seminário: Democra- 86
Plauto F. de AZEVEDO afirma que Kelsen, na
cia e Justiça – O Poder Judiciário na Construção do Estado América Latina, foi “freqüentemente mal lido”, com
de Direito. P. Alegre : TJERS 1998. p. 93. ênfase exagerada nos aspectos formais-metodológicos
68
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições puristas de sua teoria, que levaram à possibilidade da
de Filosofia do Direito. São Paulo : Ed. Ícone, 1995. p. aceitação científica de regimes ditatoriais como “or-
146, 221. dens jurídicas legítimas”; cf. ob. cit. (nota 81), p. 52. O
69
FARIA, José Eduardo. (org.). O Judiciário e o de- próprio Kelsen, que foi obrigado a exilar-se nos EUA,
senvolvimento sócio-econômico. In: Direitos Humanos, depois da II Guerra foi acusado de ter ajudado – indi-
Direitos Sociais e Justiça. São Paulo : Malheiros, 1998. p. retamente – na construção do regime autoritário na
12, 24. Alemanha, por sempre ter pregado a separação rígida
70
FARIA, José Eduardo.(org.). As transformações entre a lei positivada e os aspectos materiais-valorati-
do Judiciário em face de suas responsabilidades so- vos de justiça.
ciais. In: Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, São 87
SILVA, José Afonso da. op. cit. nota 7, p. 92, 128.
Paulo : Malheiros, 1998. p. 60s. 88
Cf. SARLET, Ingo W. op. cit. nota 12, p. 274, 286, 325.
Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 259
89
MIRANDA, Jorge. op. cit. nota 14, p. 105s., 348ss. 104
COMPARATO, Fábio K. op. cit. nota 103, p. 355s.
90
FARIA, José Eduardo. op. cit. nota 68. p. 19s. 105
LOPES, José Reinaldo Lima. Direito subjetivo e di-
91
MENDES, Gilmar Ferreira. O Apelo ao Legislador – reitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Socialde
Appellentscheidung – na Praxis da Corte Constitucional Fe- Direito. In: Faria, José E. (org.). Direitos Humanos, Direitos
deral Alemã. In: Revista de Direito Administrativo. n. 188, 1992, Sociais e Justiça. São Paulo : Malheiros, 1998. p. 125ss., 133s.
p. 36ss. 106
BARROSO, Luís R. O Direito constitucional e a efetivi-
92
Uma exceção recente está em InfSTF 106, ADInMC dade de suas normas (nota 16), p. 150s.
1.753-53, Rel. Sepúlveda Pertence, de 16.4.98. 107
PEREZ, Marcos A. O Papel do Poder Judiciário
93
Veja a respeito: MELO, Maria da Graça Gurgel de A. na Efetividade dos Direitos Fundamentais. (nota 97), p.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e o mandado de 242s., 245.
injunção: leituras marginais de um Discurso. Recife, UFPE: 108
CAPPELLETTI, Mauro. apud PEREZ, Marcos A. op.
Dissertação de Mestrado, maio 1999. cit. (nota 97), p. 245.
94
Cf. SANTOS, Ana de Fátima Queiroz de Siqueira. 109
SANTOS, Ana de F. Q. de Siqueira. Ação civil pública:
Ação Civil Pública: função, deformação, e caminhos para uma
deformação..., (nota 94), p. 122.
jurisdição de resultados. Recife: Dissertação de Mestrado, 110
MORAIS, José L. Bolzan de. Do direito social aos inte-
UFPE, 1999.
resses transindividuais, P. Alegre : Livraria do Advogado, 1996.
95
ISENSEE, Josef. Grundrechtsvoraussetzungen und
p. 184s.
Verfassungserwartungen. In: J. Isensee/ Paul Kirchof (Hrsg.).
Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland.
111
Sobre a dificuldade da ponderação entre esses inte-
Band V – Allgemeine Grundrechtslehren (§ 115), Heidel- resses: SANTOS, Ana de F. Q. de Siqueira. Ação civil pública:
berg : C. F. Müller Verlag, 1992. Rnr. 172f. deformações... (nota 94), p. 170ss.
96
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? (nota 10),
112
Cf. KRELL. Andreas, Concretização do dano ambi-
p. 41s. Segundo ele, “na Europa continental nos últimos ental – algumas objeções à teoria do risco integral. In: Revis-
dois séculos, o ideal de uma rígida separação dos poderes, ta de Informação Legislativa, n. 139, Brasília : Subsecretaria de
ao invés de recíprocos controles e contrapesos, teve como Edições Técnicas, Senado Federal, 1998. p. 32ss.
conseqüência um Judiciário perigosamente débil e confi-
113
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Ja-
nado aos conflitos privados, o que levou à existência de neiro : Ed. Campus, 1992. p. 78.
Poderes Legislativo e Executivo praticamente não con-
114
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. P.
trolados, até a criação de sistemas de justiça adminis- Alegre : Sérgio Fabris, 1991. p. 15.
trativa”. (p. 53)
115
BARROSO, Luís R. op. cit. nota 16, p. 47.
97
CAPPELLETTI, Mauro. op. cit. nota 94, p. 67, 74ss.
116
SARAIVA, Paulo Lopo. op. cit. nota 28, p. 63ss.
98
SANTOS, Boaventura de Souza. apud Apostolova,
117
BARROSO, Luís R. op. cit. nota 16, p. 63.
Bistra S., Poder Judiciário... (nota 72), p. 39.
118
LÖWENSTEIN, Karl. Verfassungslehre. Tübingen, 3.
99
STRECK, Lênio. O controle externo, súmulas vincu- Aufl., 1975. S. 345.
lantes e reforma do Judiciário como condição de democra- 119
NEVES, Marcelo, A constitucionalização simbólica. São
cia (nota 71). p. 178-186; PEREZ, Marcos Augusto. O papel Paulo : Ed. Acadêmica, 1994. p. 37ss., 49ss, 92.
do Poder Judiciário na efetividade dos Direitos Fundamen- 120
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constitui-
tais. In: Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Constitucio- ção de 1988. 3. ed., São Paulo : Ed. Malheiros, 1997. p. 25s.
nal e Ciência Política, n. 11, 1995, p. 241ss. 121
Cf. Staatszielbestimmungen – Gesetzgebungs-aufträge,
100
CLÈVE, Clemerson M. op. cit. nota 16, p. 237s. Bericht der Sachverständigenkommission, Bonn : Deuts-
101
Cf. BERCOVICI, Gilberto. A problemática da consti- cher Bundestag, 1983. S. 35ff.
tuição dirigente... (nota 65), p. 36s. 122
JAGUARIBE, Hélio et alii. A aplicabilidade da nova
102
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do Constituição. In: Revista de Ciência Política. [s.l.] : (FGV), n. 4,
Judiciário: um enquadramento teórico. In: FARIA, José E. 1989. p. 3ss.
(org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo : 123
Aplicabilidade das Normas Constitucionais (nota
Malheiros, 1998. p. 47s. 7), p. 149.
103
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo 124
BOTHE, Michael (Hrsg.). Umweltschutz und Ver-
de constitucionalidade de políticas públicas. In: Mello, Cel- fassungsrecht in Brasilien. In: Umweltrecht in Deutschland
so Antônio Bandeira de (org.). Direito Administrativo e Cons- und Brasilien. Frankfurt/Main : Verlag Peter Lang, 1990.
titucional – Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, São Pau- S. 101.
lo : Malheiros, 1997. p. 351s. 125
Cf. HÄBERLE, Peter. op. cit. nota 114, S. 36.

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