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Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra

Seminário 1

O que é a práxis?

Gamader começa por afirmar que o conceito de práxis é


actualmente definido por oposição à teoria. O próprio conceito de
teoria é visto num sentido diferente, converteu-se num conceito
instrumental dentro da investigação da verdade e aquisição de novos
instrumentos (pag.41).
Para o que Gadamer denomina de consciência geral a práxis é nada
mais que a aplicação da ciência e falamos em ciência sempre que
seja necessário justificar um caminho para avançar no sentido de
alcançar o que ainda está por dominar. Todo este progresso não
poderia ser bem sucedido sem uma renúncia básica, por exemplo,
podemos afirmar que o que realmente nos fascinou na descoberta de
Galileu, que ousou desenvolver as leis da queda no vazio, foi o facto
de esta ousadia ser exactamente um acto de antecipação intelectual.
Assim, diz-nos o autor, que a ciência converteu-se noutro tipo de
atitude. Ao afastar-se do nosso mundo, do que nos é familiar, a
ciência torna-se num conhecimento de contextos domináveis. É
através desta ciência experimental que nos chega a hora da prática.
É a investigação isolada que torna a antiga concepção do que era
criado segundo o modelo da natureza, num ideal da construção de
uma natureza totalmente artificial. Isto influenciou, claramente, a
civilização em que vivemos – um ideal de construção que estava no
conceito de ciência acabou por crescer e transformou-se num
prolongamento do braço humano.
Este ideal de fabricação técnica revela-se de duas maneiras:
1 – Uma enorme diferença no comando do mercado. Enquanto
no mundo medieval quem tinha um papel decisivo era o consumidor,
no nosso tempo que é progressivamente técnico e artificial, é a oferta
que comanda o mercado – como se despertasse novas necessidades.
2 – Técnica gera mais técnica – quem se familiariza de mais
com a técnica perde liberdade, pois deixa de deter o seu poder-
actuar e entrega-se pelo facilitismo e comodidade.
Neste ponto, surge-nos a questão até que ponto os rendimentos da
técnica estão ao serviço da vida? Este é o problema da razão social –
parece haver uma inversão de papéis, pois nós é que nos
encontramos ao serviço da técnica. O domínio da natureza, e todo o
objectivo de rentabilidade económica são características da crise da
civilização e do séc. XX.
Podemos dizer que o grande problema com que nos deparamos é a
influência da conformação técnica da nossa sociedade; há uma
tentativa de tecnificar a opinião.

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Toda esta técnica é também de informação, pois criou possibilidades


que necessitam de uma selecção dessa mesma informação, diz
Gadamer que quem selecciona retém – esta é a técnica da
comunicação que conduz inevitavelmente a uma manipulação. Isto
torna possível influenciar a opinião pública para que se tomem
determinadas decisões.
Tudo isto leva ao bloqueio de uma importante característica do
sistema democrático – o esforço para estabelecer o equilíbrio e
controlo na organização dos meios públicos de informação. O
consumidor está dominado por esta informação e encontramos uma
apatia da sociedade em relação às suas próprias escolhas. O aumento
de informação não se traduz no fortalecimento da razão social e aqui
reside o verdadeiro problema: a perda de identidade do homem.
Quando o indivíduo se sente, na sociedade dependente e impotente
face às formas de vida que lhe são proporcionadas tecnicamente,
torna-se incapaz de conseguir a sua identificação. (pág. 45)
Numa civilização técnica, uma sociedade de especialistas é uma
sociedade de funcionários, estes concentram-se apenas na
administração da sua função. Assim, cada vez menos se encontram
pessoas que tomam decisões. Porque a sociedade moderna está
submetida a esta coacção, conduz-nos à decadência da práxis na
técnica e da razão social.
Aqui surge a pergunta pela reflexão filosófica da práxis. O homem
como ser cujo instinto foi tão alterado que possui uma peculiaridade
que não é diminuída pelo estudo das sociedades animais: as formas
de comunicação, de solidariedade e agressão. Trata-se do pensar do
homem sobre a sua vida no mundo que se relaciona com o
pensamento sobre a morte. Este é um fenómeno básico de
humanização; o funeral tem um significado, não é apenas um enterro
– é, pelo contrário, um desprendimento de entrega que se traduz no
objectivo de assegurar a permanência da morte entre os vivos. Isto
não é algo de carácter religioso apenas, é parte da constituição
fundamental do homem e daí podermos afirmar, da qual se deriva o
sentido especial da práxis humana (pág. 46). – É um comportamento
vital, que não pertence aos instintos de ordem natural. Os animais
lidam com a morte de outra maneira, com uma certa indiferença.
A partir da observação deste fenómeno, de que o ser humano
começou a voltar-se contra o instinto natural, torna-se possível
conhecer traços essenciais da práxis humana.
Neste ponto Gadamer introduz a questão do trabalho e recorre a
Hegel para mostrar o que de renúncia podemos encontra – quem
trabalha não persegue de maneira imediata a satisfação das suas
necessidades (pág. 46). O produto do trabalho não pertence

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exclusivamente ao indivíduo, pois este mundo (o do trabalho) está


organizado segundo a sua divisão, o que faz com o produto pertença
à sociedade.
No entanto, o que se forma (em primeiro lugar) numa sociedade é a
linguagem; como referiu Aristóteles, o ser que possui linguagem é
caracterizado por um distanciamento em relação ao presente. Ao
manter presente fins remotos, longínquos, pode chegar-se à opção de
actuar, de escolher os meios para determinados fins.
Este é, segundo Gadamer, um importante passo na direcção da
práxis. Para o ser humano em que os fins são tão complexos e até
contraditórios, torna-se importante uma escolha reflexiva, uma
antecipação e tentativa de ordenação sob os fins comuns; ex: as
sociedades primitivas e as conquistas comunitárias. Diz Gadamer,
que a maior conquista é a estabilização das normas de acção, pois o
ser humano é instável e mesmo. Esta característica está presente no
fenómeno da guerra – é uma propriedade de transtorno humano e
que revela uma contradição da sua natureza, pois estamos a falar de
um ser que tem possibilidades, escolhas e que se volta contra si
mesmo, capaz de eliminar o seu semelhante.
Toda esta tensão entre o culto da morte, do direito e da guerra,
torna-se importante para compreender o sentido da práxis.
A sociedade humana, tem em conta (na sua organização) uma
ordem vital e que cada indivíduo reconhece (ou deveria reconhecer)
como comum. É, então, a super abundância daquilo que é necessário
para a vida, o que caracteriza a acção do homem como ser humano.
Tudo aquilo que está para além da utilidade e finalidade ganha uma
característica própria que pertence apenas ao reino da humanidade.
Isto está no conceito de Kalon, as criações artísticas e de culto que
se encontram para além do necessário e tudo aquilo que pode ser
qualificado como desejável e sem que haja uma justificação (pelo
menos a nível necessário) para a sua desejabilidade – esta definição
engloba o conceito grego de theoria que por sua vez se relaciona com
o conceito de razão, um a forma de saber: quanto mais algo se
apresenta para todos como convenientemente desejável, tanto mais
os homens tem liberdade – verdadeira identidade com o que é
comum (pág. 48)
O caminho percorrido até aqui, leva-nos agora à questão sobre a
realidade em que actualmente nos encontramos. A linguagem que é o
verdadeiramente comum e comunicativo, poderia estar deformada
pelos interesses da dominação e isto conduz a uma perda de
identidade.
O autor ressalta a importância da reflexão emancipadora capaz de
tornar o homem consciente e habilitado a superar a entrave que

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impede o verdadeiro fluxo de comunicação de uma sociedade para


aquilo que é comum – segundo Gadamer, este é o objectivo da crítica
da ideologia: como modelo do que promete realizar, faz-se referência
à psicanálise, isto é, à superação psicanalítica deste tipo de perda de
perda de identidade.
No entanto, o modelo da psicanálise não abrange tudo como
pretende a critica da ideologia. Então, a crítica da ideologia tem uma
estrutura dialéctica – apenas se refere a determinadas condições
sociais. O modelo da psicanálise aponta essencialmente para o
restabelecimento do que foi perturbado, pressupõe a reflexão da
doença por parte do paciente – este modelo só é eficaz na medida em
que se trata da recuperação das condições perturbadas da
comunicação em comunidade. E por mais que a possua uma
capacidade técnico-cientifica, terá sempre presente um elemento da
práxis, pois pressupõe uma decisão: o objectivo é que o paciente,
através da sua reflexão (que ultrapassa qualquer processo técnico)
caminhe no sentido da sua cura de maneira livre e espontânea.
Neste ponto, Gamader apresenta-nos outro exemplo: na utopia
também encontramos referência indirecta ao conceito de práxis.
A utopia não trata de um objectivo de acção: que a caracteriza é
exactamente o que nos conduz até ao momento da acção (Pág.50)
Pode ser um projecto de acção mas é uma crítica ao presente.
Platão apresenta-nos a utopia com a principal intenção de tornar
clara a distinção dos conceitos de desejar e escolher. O desejo é
definido por deixar presente a mediação com o factível. (pág. 51)
É próprio do homem criar desejos e procurar respostas para a sua
satisfação e no entanto, este desejar não é o mesmo que querer, não
é práxis pelo facto de não ter mediação, não engloba uma escolha ou
uma decisão de algo em detrimento de outras possibilidades. Esta
decisão é do domínio da reflexão prática. Em termos aristotélicos: a
conclusão desta reflexão é a decisão: esta traça o caminho do que se
quer até ao fazer, como uma concretização que é resultado de uma
decisão ponderada.
O que interessa à razão prática é o que se distingue da
racionalidade técnica, pois o fim mesmo, aquilo que é ‘geral’ obtém a
sua determinação através do individual (Pág.51). Temos experiência
disto, através do direito: aplicar o direito é pensar o caso (que é do
domínio particular) e a lei (que é geral). Só desta maneira se
concretiza o direito. A lei geral não é tão importante como as
sentenças que são aplicadas aos casos, que por sua vez são únicos: o
sentido de algo geral, de uma norma só pode ser justificado e
determinado realmente na concretização.

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O ciclo vicioso do progresso técnico, aparece para alguns como


caminho para aniquilação humana e, no entanto, pode levar também
a consciencialização dos limites do poder – fazer que estão ao alcance
do conhecimento comum. Temos o exemplo da manipulação genética
e da lavagem cerebral que ainda assustou o interesse comum.
Podemos falar de consciência ética?
Hoje suspeitamos que a tendência universal ao conformismo parece
ser a causa natural da possibilidade de transformar convicções
enraizadas (pág.53). Aqui o autor apresenta-nos outros dois
exemplos. O primeiro diz respeito à democracia que parece depender
da imagem dos candidatos à presidência, o facto de isto ser uma das
condições sem a qual não se chega a presidente, leva-nos a
questionar o sentido prático-político da democracia. O segundo
exemplo, que Gadamer considera um terrível problema do mundo
técnico: o prolongamento do sofrimento. Um médico que tem nas
suas mãos a decisão de ‘deixar’ de alguém morra ou prolongar um
estado vegetativo de um organismo apoiado mecanicamente.
Além destes exemplos, o autor refere uma experiencia a nível geral
– relacionada com a razão prática ao tornar conscientes os limites da
racionalidade técnica: A crise ecológica.
A consciência de que a permanência neste caminho preocupado
com o crescimento económico e técnico nos provocará a
impossibilidade de viver na terra, deve-se também à ciência – através
da qual conseguimos esta reflexão fundamental, através do
esclarecimento cientifico do nosso tempo, começamos a aprender
que existem condições e situações de equilíbrio cuja conservação
importa. Esta reflexão está agora limitada a aspectos parciais e
reduzidos da nossa existência (…) (pág. 54).
Gadamer defende que nos encontramos ainda longe de ter
alcançado uma consciência comum. Ao longo de crises não
conseguimos encontrar uma nova solidariedade e apesar de não
sabermos quanto tempo nos resta, nunca é tarde para a razão.
Mesmo que se dê por necessidade, a primeira consciência de
solidariedade é importante porque pode despertar outras e através
desta, Gadamer admite que poderia surgir uma nova humanidade
que se entendia como humanidade, ou seja, entender que está
vinculada no seu progresso e ao mesmo tempo na sua decadência e
solucionasse o problema da sua vida e sobrevivência.
O autor acredita na futura sociedade que experienciará esta nova
solidariedade e será resistente à febre industrial de ganhos, assim
como admite a fé de que o que ficou da herança antiga e cristã como
modelo da humanidade possa voltar à auto consciência, mais do que
aquilo que acreditamos hoje – como uma espécie de resposta ao que

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é a práxis. Conclui dizendo que a práxis é actuar em solidariedade


que é a condição decisiva e a base de toda a razão social. Há uma
frase de Heraclito ‘o logos é comum a todos, porém os homens
comportam-se como se cada um tivesse a sua razão particular.

Joana Cordeiro

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