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TEXTOS CLÁSSICOS
Carl R. Rogers
University of Chicago
(1957)
Resumo: O ser humano é considerado como essencialmente natureza básica do indivíduo de formas muito diferentes
“...positivo, voltado para o movimento, construtivo, realista, e que, portanto, considerações muito diferentes fluem a
confiável”. O ser humano não é, basicamente, “hostil, anti- partir desses pontos de vista diferentes, na medida em
-social, destrutivo, ou mal”; nem é totalmente maleável. O ho-
que a psicoterapia está em questão. Ele conclui que, uma
mem não é “...essencialmente um ser perfeito, lamentavelmen-
te deformado e corrompido pela sociedade”. Esses pontos de vez que os clínicos inclinam-se em direção à filosofia de
vista são elaborados e contrastados com a concepção do ho- Freud, os teóricos da personalidade que tem uma visão
mem de Freud. neutra do homem, e eu que tenho essa visão rousseau-
niana, cabe a todos nós pensar neste problema. Snyder e
Li com interesse o artigo de Walker (9) no qual ele com- os outros oferecem vários comentários valiosos e discri-
para a perspectiva de Freud sobre a natureza humana com minados sobre a apresentação de Walker.
a minha própria, e também fui instruído pelas discussões Sinto-me satisfeito que tal discussão chame a atenção
adicionais de Snyder (9), German (3), Walker (10) e Nosal para a orientação de valor, para o substrato filosófico, de
(4) sobre essa questão. Uma vez que os meus próprios pon- cada forma de psicoterapia. Uma pessoa não pode se en-
tos de vista são uma parte considerável do tema deste de- volver com psicoterapia sem dar provas operacionais de
bate, vou me permitir algumas palavras de comentários. uma orientação de valor subjacente e uma visão da na-
A tese de Walker pode ser muito brevemente resumi- tureza humana. É definitivamente preferível, na minha
da. Ele afirma que “Freud herda a tradição de Agostinho opinião, que tais pontos de vista subjacentes estejam
em sua crença de que o homem é básica e fundamental- abertos e explícitos, ao invés de encobertos e implícitos.
mente hostil, anti-social e carnal”. Por outro lado, “Carl Aprecio a ênfase que é dada nesta discussão à diferença
Rogers, na mesma direção, é o sucessor de Rousseau (que acentuada nas visões filosóficas entre a orientação freu-
observa) que todo homem vem da mão de seu Criador diana e a centrada no cliente. Eu mesmo tentei chamar
como um ser perfeito. Este esplendor primordial é cor- a atenção para isto (6, p. 56-57; 7, p. 207).
rompido, disse Rousseau, por uma sociedade imperfeita” Quanto aos “predecessores” do pensamento de Freud e
(9, p. 89). Walker passa a apontar que Freud e eu vemos a do meu próprio, tenho algumas questões. Eu sou um tanto
cético quanto à validade de se colocar pessoas muito di-
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Título do original: A Note on the “Nature of Man”, publicado no Journal ferentes no mesmo escaninho. Eu acredito que possa ser
of Counseling Psychology, 4(3), 199-203, 1957 (DOI:10.1037/h0048308).
O texto original tem seu copyright ligado à APA (American Psycholo-
de maior valor olhar separadamente para Agostinho ou
gical Association), a quem agradecemos a permissão para tradução. Freud ou Rousseau ou a mim mesmo, ao invés de agru-
Para a presente edição, mantivemos o formato original do texto, com par quaisquer dois deles juntos. Entretanto, para o que
suas citações da maneira que o autor apresentou (Nota do Editor). vale a pena, eu acredito que se poderá encontrar maior
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O editor levantou uma questão com o autor com relação ao uso fre-
quente do pronome pessoal no manuscrito e recebeu uma resposta similaridade filosófica entre Freud e Calvino que entre
que merece citação. “O fato de que ele está em forma muito pessoal, Freud e Agostinho. Uma mulher muito perspicaz que ti-
não é por acaso, nem com a intenção de torná-lo uma carta. Nos nha sido muito ajudada por seu psicanalista me contou
últimos anos, tenho experimentado com uma forma cada vez mais
pessoal de escrever, e que acredito que colocar um artigo numa que ela nunca tinha compreendido ou assimilado plena-
mente sua análise até que ela compreendeu a visão fun-
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Carl R. Rogers
mesmo como sendo em qualquer sentido um seguidor de – transformará o rato em leão, ou vice-versa, apesar de
Rousseau. Posso testemunhar que, pelo menos, não houve um amplo grau de mudança ser possível. Há um subs-
influência direta. Meu único contato pessoal com a obra trato básico de características da espécie que seria ade-
de Rousseau foi a leitura obrigatória de uma parte de sua quado aceitarmos.
Émile, para meu exame doutoral de língua francesa, e eu Podemos dar uma olhada em algumas dessas carac-
quase foi reprovado no exame! terísticas. Uma vez que o leão tem a reputação mais pro-
O principal ponto em que eu posso esclarecer com nunciada por ser uma “besta voraz”, vamos escolhê-lo.
respeito a toda esta discussão, no entanto, é um esforço Quais são as características de sua natureza comum, sua
por afirmar o que eu penso sobre as características bá- natureza básica? Ele mata um antílope quando está com
sicas do organismo humano. Para ter certeza da mudan- fome, mas ele não entra numa fúria selvagem de matar.
ça e desenvolvimento de meus próprios pontos de vista, Ele come sua presa após matá-la, mas não há leões obe-
têm sido apresentados de forma parcial em uma série de sos na estepe. Ele é desamparado e dependente em sua
referências (6, especialmente pp 56-57; 5, especialmente fase de filhote, mas ele não se apega à relação de depen-
pp 56-64, 522-524; 8), mas uma formulação atual poderá dência. Ele torna-se cada vez mais independente e autô-
estar em curso. nomo. No estado infantil, ele é completamente egoísta e
Meu ponto de vista sobre as características mais bá- egocêntrico, mas à medida que amadurece, ele mostra,
sicas do ser humano tem sido formadas pela minha ex- além de tais impulsos, um grau razoável de cooperati-
periência em psicoterapia. Incluem algumas observações vismo na caça. A leoa alimenta, cuida, protege e parece
sobre o que o homem não é, assim como alguma descri- gostar de seus filhotes. Leões satisfazem suas necessida-
ção do que, na minha experiência, ele é. Deixe-me dizer des sexuais, mas isso não significa que eles entram em
isso de forma muito breve e, em seguida, me esforçar para orgias selvagens e lascivas. Suas várias tendências e ím-
esclarecer meus significados. petos trazem um equilíbrio constante de mudanças nele
Eu não percebo o ser humano, em sua natureza básica, mesmo, e nesse sentido ele é muito satisfatoriamente
como sendo caracterizado por termos como fundamental- auto-controlado e auto-regulado. Ele é, de várias manei-
mente hostil, anti-social, destrutivo, maligno. ras, um membro construtivo, confiável da espécie Felis
Eu não percebo o ser humano como sendo, em sua leo. Suas tendências fundamentais estão na direção do
natureza básica, completamente sem uma natureza, uma desenvolvimento, diferenciação, independência, auto-
tabula rasa em que qualquer coisa pode ser escrita, nem -responsabilidade, cooperação, maturidade. Em geral, a
como uma massa maleável que pode ser moldado em expressão de sua natureza básica torna-se a continuação
qualquer forma. e aperfeiçoamento de si mesmo e sua espécie.
Eu não percebo o homem como sendo um ser essen- Com as variações adequadas, o mesmo tipo de afir-
cialmente perfeito, lamentavelmente deformado e cor- mações poderiam ser feitas sobre o cão, a ovelha, o rato.
rompido pela sociedade. Para ter certeza, cada qual se comporta de uma maneira
Na minha experiência, eu descobri que o ser huma- que a partir de algum ponto de vista específico são des-
no parece ter características que são inerentes a sua es- trutivas. Nós estremecemos ao ver o leão matar um an-
pécie, e os termos que, em diferentes momentos pare- tílope; ficamos irritados quando a ovelha come o nosso
ceram-me descritivos destas características são termos jardim; reclamamos quando um rato come o queijo que
como positivo, voltado para o movimento, construtivo, estávamos guardando para o nosso piquenique; considero
realista, confiável. o cachorro destrutivo quando ele me morde, um estranho;
Deixe-me ver se posso levar a discussão desses pon- mas com certeza nenhum destes comportamentos justi-
tos de vista até uma área nova, onde talvez tenhamos um fica o pensamento que qualquer um destes animais seja
pouco menos de ideias preconcebidas. Suponha que nos basicamente mau. Se eu me esforço a lhe explicar que se
voltemos para o mundo animal e nos perguntemos qual a “leoninidade” do leão fosse liberada, ou a “ovelhinida-
é a natureza básica do leão, ou da ovelha, ou do cão, ou de” das ovelhas, que estes animais, então, seriam impe-
do rato. Dizer que qualquer um ou todos esses sejam ba- lidos por desejos insaciáveis, agressões incontroláveis,
sicamente hostis ou anti-sociais ou carnais parece ser comportamentos sexuais selvagens e excessivos, e ten-
ridículo. Dizer que nós vemos sua natureza como neutra dências de destrutividade inata, você certamente riria de
significa que ela é neutra em termos de algum conjun- mim. Obviamente, esse ponto de vista é puro non-sense.
to indeterminado de valores, ou que suas naturezas são Eu gostaria agora de considerar novamente a natureza
todas iguais, tudo massa esperando para receber uma do homem, à luz da presente discussão sobre a natureza
Textos Clássicos
forma. Este ponto de vista parece-me igualmente ridícu- dos animais. Eu vim a conhecer mais profundamente os
lo. Afirmo que cada um tem uma natureza básica, um homens em um relacionamento caracterizado por tudo
conjunto comum de atributos geralmente característicos o que eu posso dar de segurança, ausência de ameaça, e
da espécie. Assim, a ovelha é de longe o mais gregário completa liberdade de ser e de escolher. Em tal relacio-
ou inclinado ao grupo, o rato geralmente o mais tími- namento, os homens expressam todos os tipos de senti-
do. Nenhuma quantidade de treino – terapêutico ou não mentos amargos e mortíferos, impulsos anormais, desejos
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Uma Nota sobre a “Natureza do Homem”, 1957
bizarros e anti-sociais. Mas, como eles vivem em uma re- não encontro nenhuma evidência na minha experiência
lação desse tipo, expressando e sendo mais de si mesmos, para apoiá-los. Eu mantenho uma declaração feita em
eu acho que o homem, como o leão, tem uma natureza. um artigo anterior:
Minha experiência é que ele é basicamente um membro
digno de confiança da espécie humana, cujas característi- Eu tenho pouca simpatia com o conceito bastante
cas mais intensas tendem ao desenvolvimento, à diferen- prevalente que o homem é basicamente irracional, e
ciação, às relações cooperativas; cuja vida tende funda- que seus impulsos, se não forem controlados, levarão
mentalmente a sair da dependência para a independência; à destruição dos outros e de si mesmo. O comporta-
cujos impulsos tendem naturalmente para se harmonizar mento do homem é perfeitamente racional, movendo-
em um padrão complexo e mutativo de auto-regulação; -se com a complexidade sutil e ordenada em direção
cujo caráter total é tal que tendem a preservar e melhorar aos objetivos que seu organismo está se esforçando
a si mesmo e sua espécie, e, talvez, para movê-la em dire- para conseguir. A tragédia para a maioria de nós é
ção a sua evolução. Na minha experiência, descobrir que que nossas defesas nos impedem de estar conscientes
um indivíduo é verdadeira e profundamente um membro dessa racionalidade, de modo que conscientemente
único da espécie humana não é uma descoberta para ins- estamos nos movendo em uma direção, enquanto que
pirar horror. Antes, eu estou inclinado a acreditar intei- organismicamente estamos nos movendo em outra.
ramente que ser humano é entrar num processo comple- Mas em nossa pessoa que está vivendo o processo de
xo de ser uma das criaturas mais amplamente sensíveis, vida-plena, haveria uma diminuição do número de tais
responsivas, criativas e adaptáveis do planeta. barreiras, e ele seria cada vez mais participativo na
Assim, quando um freudiano, como Karl Menninger racionalidade do seu organismo. O único controle dos
me diz (como o fez, em uma discussão sobre este assunto) impulsos que existiria ou que se mostraria necessário
que ele percebe o homem como “intrinsecamente mau”, é o equilíbrio natural e interno de uma necessidade
ou mais precisamente, como “inatamente destrutivo”, em relação ao outro, e a descoberta de comportamen-
eu posso apenas balançar a cabeça de espanto. Isso me tos que seguem o vetor mais próximo aproximando à
leva a todo tipo de pergunta perplexa. Como pode ser que satisfação de todas as necessidades. A experiência de
Menninger e eu, trabalhando com um propósito tão se- extrema satisfação de uma necessidade (de agressão
melhante em tais relacionamentos íntimos com pessoas ou sexo, etc), de tal forma a fazer violência para a
em sofrimento, experienciem as pessoas de formas tão satisfação de outras necessidades (por companhia,
diferentes? Talvez, como sugere Snyder, essas profundas relações afáveis, etc) – uma experiência muito comum
diferenças não importem se o terapeuta realmente se pre- na pessoa defensivamente organizada – seria ampla-
ocupa com o seu paciente ou cliente. Mas como pode um mente diminuída. Ela participaria das atividades de
analista experienciar um cuidado positivo para com seu auto-regulação muito complexas de seu organismo
paciente, se a sua própria tendência inata é destruir? E – tanto os psicológicos, quanto os controles termostá-
mesmo que suas próprias tendências destrutivas tenham ticos fisiológicos – de tal forma a viver em crescente
sido devidamente inibidas e controladas por seu analista, harmonia consigo mesmo e com os outros (8).
quem controla a destrutividade desse analista? E assim
por diante ad infinitum. Tenho ficado perplexo quanto às razões para a gran-
Ficará claro que a minha experiência não fornece de discrepância entre a visão freudiana da natureza do
nenhuma evidência para acreditar que, se os elementos homem e aquilo que parecia justificado pela experiên-
mais intensos da natureza do homem fossem liberados cia na terapia centrada no cliente4. Tenho duas hipóteses
teríamos um Id descontrolado e destrutivo solto no mun- que eu gostaria de apresentar para consideração, embo-
do3. Para mim, isso faz tão pouco sentido quanto dizer ra possam parecer chocantes para os seguidores devotos
que a “leoninidade” do leão seria uma coisa má. Eu res- de psicanálise.
peito os homens que detêm tais pontos de vista, mas eu Primeiro, parece-me que Freud estava, compreensi-
velmente, muito empolgado com sua descoberta – uma
tremenda descoberta para o seu tempo – que, sob um ex-
Freud parece, no entanto, ter acreditado em algo assim até o fim.
3
Em seu Outline of Psychoanalysis, breve, precisa e calmamente terior convencional ou “bom”, o homem abrigou todos os
afirmou, ele ainda indica que o centro do nosso ser leva a conflitos, tipos de sentimentos agressivos e sexuais e impulsos que
até mesmo para sua própria destruição, a menos que alguns meios
sejam descobertos para o seu controle. “O núcleo do nosso ser, então,
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é formado pelo obscuro Id (...). Dentro deste Id os instintos orgânicos Talvez seja apenas uma diferença entre os primóridos do freudismo
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operam (...). O primeiro e único esforço desses instintos é na direção e a visão centrada no cliente. Tenho a impressão de que a maioria
da satisfação (...). Mas uma satisfação imediata e independente do dos psicanalistas modernos têm uma visão da natureza humana
instinto, conforme as exigências do Id, levaria frequentemente a acentuadamente diferente da de Freud, mas se eles fizeram isso de
perigosos conflitos com o mundo externo e à extinção (...). O Id forma explícita, não estou ciente. E pensadores atuais que tiveram
obedece ao inexorável princípio de prazer (...) e continua a ser uma como modelo o de Freud, continuam a manter sua perspectiva
questão da maior importância teórica e que ainda não foi respon- obscura. Assim, Ludwig von Bertalanffy em um recente artigo,
dida, quando e como é sempre possível para o princípio do prazer diz: “Parece que não podemos mudar a bête humaine: só podemos
dominar” (2, p. 108-109). esperar que o bruto no homem seja melhor controlado”.
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