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A Ciência Médica

no Antigo Egito

dicos, obedecendo sempre a descrição de


Com Champollion e seu árduo trabalho casos patológicos a uma seqüência lógica:
de decifrar, para o nosso mundo, os primei- título, apresentação de sinais e sintomas,
ros hieróglifos egípcios, nasceu a assim cha- diagnóstico, tratamento e prognóstico - a
mada egiptologia. O Egito - com seus fa- mesma seqüência empregada nos modernos
raós e sacerdotes mumificados, seus monu- escritos. médicos.
mentos sagrados, seus mistérios, sua magia Isto faz que os egípcios sejam unanime-
- apresentou-se como um objetivo suficien- mente considerados os precursores dessa
temente atrativo para a inquietação e a ân- ciência, os primeiros a organizá-Ia e
sia cognoscitiva dos últimos séculos, dando discipliná-Ia, sendo a ela dedicados os seis
margem à criação da nova ciência. A partir últimos capítulos do tratado hermético.
daí, uma ininterrupta série de descobertas Afirma-se que Hipócrates, o pai da
têm provocado as mais distintas e variadas medicina, foi iniciado na sua arte em terras
interpretações, mas, além disso, tem-nos re- do Egito, pois muitas das prescrições hipo-
velado muito sobre a forma de vida dos cráticas coincidem com as encontradas em
egípcios, suas concepções sobre o mundo, papiros médicos, chegando essa coincidên-
sobre a vida e a morte, sobre a divindade, cia ao máximo entre o texto de Hipócrates
etc. No concernente à medicina, foi-nos sobre a esterilidade feminina e aquele en-
dado ver que os egípcios a exerciam em ní- contrado no "papiro médico de Berlim"
vel bem desenvolvido, seguindo normas e (XIX Dinastia, cerca de 1.250 a.C.). Assim,
.procedimentos em muito semelhantes aos a denominação o pai da medicina talves de-
atuais. vesse ser transferida para algum desconhe-
Evidentemente, em todas as culturas e cido sacerdote-médico das cortes faraôni-
em todas as épocas devem ter-se realizado cas, de longínqüa data, e cujos ensinamen-
práticas curativas, pois sempre foi e conti- tos a tradição encarregou-se de conservar e
nuará sendo uma preocupação do ser hu- transmitir às sucessivas gerações. Mas esse
mano a mitigação do sofrimento e o prolon- mesmo sacerdote seguramente recusaria tal
gamento de sua existência física. Mas o que título, porque - ele nos diria - a sua sabe-
causa espanto e admiração na ars curandi doria teria vindo dos próprios deuses, do
dos faraós é a minuciosidade e o rigor meto- próprio Thot, o pai não só da medicina, mas
dológico empregados em seus tratados mé- de todas as ciências.
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Os tecidos mumificados cidos mumificados, desde que submetidos a
circunstâncias favoráveis. Ele realizou seus
estudos em múmias de índios pré-incaicos e
múmias egípcias da I Dinastia, conseguindo
Um dos mais eloqüentes documentos da que houvesse crescimento celular em am-
sapiência egípcia no campo da medicina são bos os casos. Que força maravilhosa -
essas múmias, hoje espalhadas por diversos indagava-se, abismado, o pesquisador ar-
museus do mundo, que atingem, em alguns gentino - obriga as moléculas a se diferencia-
casos, 5.000 anos de idade. O simples fato rem e a se ordenarem em núcleos e células?
de se conservarem por tanto tempo já seria Nenhum tóxico, nenhuma irritação, nem o pró-
de chamar a atenção; no entanto, o que re- prio tempo consegue aniquilar essas forças la-
almente causou admiração entre os cientis- tentes, essas células adormecidas, que, por ou-
tas do mundo inteiro foram os resultados tro lado, não se desenvolvem em nenhuma SQ-
dos exames histológicos, físico-químicos e lução nutritiva artificial, nem mesmo o próprio
serológicos realizados em tecidos mumifica-
soro, exigindo para isso o plasma ou a linfa de
dos, que se revelaram dotados ainda de al- organismos vivos e normais.
gumas propriedades biológicas dos organis- Aqui, certamente, nos encontramos
mos vivos. Esses estudos, pode-se dizer, fo- diante de mais uma faceta deste grande mis-
ram iniciados por Sir Marc Armand Ruffer, tério que vem desafiando OS homens de to-
cirurgião francês, nascido em 1.859. Este dos os tempos: o mistério da própria vida. E
cientista começou a praticar cortes micros- também diante de mais uma faceta deste
cópicos em lesões de múmias, apresentando outro mistério, o das culturas antigas em ge-
seus trabalhos à Sociedade Científica do ral e da egípcia em particular: desde os tem-
Cairo e publicando-os no Britisb Medical pos de Champollion o homem contemporâ-
Journal, dando imensa contribuição à nas-
neo vem descobrindo mais e mais a respeito
cente ciência chamada oaleopatologia: do Egito Antigo, surpreendendo-se a cada
"ciência das doenças demonstráveis nos
novo achado. E de descoberta em desco-
restos humanos e animais dos antigos berta, de surpresa em surpresa, vê desfilar
tempos". diante de si um mundo maravilhoso, fe-
No que respeita à estrutura dos tecidos cundo, vibrante e, sobretudo, enigmático.
mumificados, toda ela se mantém pratica-
mente íntegra em todos os órgãos: pele,
músculos, artérias e veias, nervos e vísceras. Os Papiros Médicos
As exceções se restringem apenas aos ógãos
que eram propositadamente danificados - Os conhecimentos médicos dos egípcios
seja por exigência do próprio método de estavam condensados nos seis últimos volu-
mumificação, seja por outro motivo relacio- mes da coleção hermética. Estes seis volu-
nado ao objetivo geral da mesma - e que mes estavam assim distribuídos: o primeiro
eram tratados à parte e guardados em qua- se referia á anatomia; o segundo às molés-
tro vasos de alabastro, denominados "cano- tias em geral; o terceiro ao instrumental
pos". Entre eles, os intestinos e o fígado, médico; o quarto ás drogas e remédios; o
sendo este último particularmente "vi- quinto à oculística, e o sexto à ginecologia.
sado", mostrando quase sempre sinais de Os papiros médicos encontrados até hoje,
verdadeira depredação. Não assim com os provavelmente fragmentos do tratamento
pulmões que, em alguns casos, podem in- hermético, obedecem mais ou menos ao
clusive recuperar a elasticidade. mesmo plano, apresentando, no entanto,
O processo de conservação é bastante características particulares cada um.
simples, constando apenas de impregnar os O papiro de Ebers é o mais bem conser-
cadáveres de uma solução salina (mistura vado e apresenta um comprimento aproxi-
de carbonato, cloreto e sulfato de sódio), a mado de 20 metros, e largura de 30 centíme-
qual, em pequena concentração tem essa tros. Foi encontrado na necrópole de Tebas
propriedade de preservar os tecidos, ao e corresponde ao início da XVIII Dinastia,
passo que, se usada em grande concentra- cerca de 1.500 anos a.C. Trata, de maneira
ção, os macera. Importante notar que, além mais ou menos desordenada, de vários esta-
das características físicas, observa-se tam- dos mórbidos, incluindo afecções abdomi-
bém a preservação de certas características nais, oftalmias, retenções urinárias, parasi-
químicas e sorológicas, por exemplo acapa- toses, dores de ouvido, epilepsia, etc.
cidade de determinar reações anafiláticas O papiro de Edwin Smith apresenta-se
em outros seres vivos. mais ordenado e melhor concatenado,
Mas, sem dúvida, o achado mais interes- tendo sido redigido, acredita-se, por volta
sante foi decorrente dos trabalhos de Busse de 2.200 a.c. O texto mostra algumas ex-
Grawitz, cientista argentino que demons- pressões presumivelmente inintelíveis, pois
trou a possibilidade de proliferação dos te- com o passar do tempo, alguns comentários
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foram acrescidos pelos copistas, com o in-
tuito de melhor esclarecê-las. De qualquer
forma, este papiro é considerado um verda-
deiro tratado de patologia cirúrgica, fa-
zendo referência a um sem-número de ca-
sos de lesões traumáticas, incluindo fratu-
ras, lesões neurológicas e outras. Algo que
também chama a atenção são as referências
às cirurgias oculares. A par de uma extensa
lista de doenças oculares, conhecidas e tra-
tadas clinicamente, os textos aludem a ins-
trumentos utilizados em cirurgia oftámica;
também existem gravuras, em paredes de
tumbas, que nos mostram o cirurgião
atuando sobre o olho de um paciente. Isto
nos causa estranheza, de vez que sabemos
quão delicados e sofisticados são os intru-
mentos utilizados hoje em dia em cirurgia
ocular e quanto cuidado com a assepsia é
necessário para se evitarem infecções. E,
como se pode deduzir dos papiros médicos,
os egípcios devem ter encontrado alguma
forma de superar esses problemas, fórmula
essa que talvez nunca cheguemos a conhe-
cer. invocavam elementos da própria natureza,
Além dos já citados, são conhecidos mas ocultos para aqueles que são incapazes
ainda o papiro médico de Berlim, o papiro de percebê-los. O fato de não utilizarmos ou
médico de Londres, o papiro de Leyde, en- não conhecermos determinado processo
tre os mais importantes, Em todos eles ve- curativo não lhe tira ou acrescenta valor.
mos quase sempre a seqüência de descrição Um procedimento qualquer tem validade
do exame do doente, diagnóstico e prognós- pelo que é em si, não pelo que nós, os ho-
tico, este último com três alternativas: mens modernos, venhamos a pensar a seu
doenças que eu curo, doenças que eu com- respeito. Quanto ao primitivismo, acredita-
bato e doenças que eu não curo. O trata- mos que muito tempo haverá ainda de
mento se dividia, por um lado, no uso de transcorrer antes que se chegue a uma defi-
vários tipos de remédios, medicamentos ou nitiva conclusão acerca de quem é o verda-
não, e, por outro lado, no uso de encanta- deiro primitivo: se os antigos, com sua am-
mentos. Entre os primeiros, podem-se in-
cluir a aromoterapia e a hipnoterapia, Os
egípcios eram mestres na arte de obter es-
sências de árvores odoríferas, que depois
utilizavam em terapêutica, seguramente por
conhecerem a sua hoje amplamente aceita e
reconhecida influência no comportamento
emociorial dos indivíduos, e por acreditar
na capacidade que têm os perfumes de afas-
tar determinadas energias maléficas e po-
tenciar as benéficas. Quanto ao tratamento
pelo sono (hipnoterapia), hoje em dia tão
usado, embora sem que se saiba como se
produzem os seus efeitos benéficos, era em-
pregado com o intuito de que forças pode-
rosas penetrassem o paciente,
harmonizando-lhe e regularizando-lhe o
corpo e as forças vitais.
No que se refere aos encantamentos, os
cientistas modernos simplesmente repu-
diam as "bizarras invocações de entes so-
brenaturais" e renegam o "primitivismo"
desses procedimentos. Concordamos em
que os sacerdotes-médicos egípcios não in-
vocavam entes sobrenaturais; simplesmente
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pIa concepção do mundo, do homem e de Isto poderá parecer absurdo somente
Deus, ou se os modernos, com sua estreita para aqueles que se aferram às suas convic-
fixação pelo conhecimento tecnológico e ções materialistas porque têm medo de se
SU::l aberrante valorização dos instintos. lançar ao estudo do desconhecido. Mas não
E, no caso dos encantamentos, nunca seria assim para os que acreditam, ou melhor,
demais lembrar o poder da palavra, princi- constatam dia a dia a existência de leis natu-
palmente quando pronunciada com a cor- rais inexplicáveis para o homem comum, e
reta entonação e no momento adequado; que acreditam também que, em outras épo-
nunca demais lembrar o poder criador do cas, em outras culturas, o conhecimento
verbo, tantas vezes referido nas sagradas es- dessas leis naturais deu ensejo ao surgi-
crituras dos mais distintos povos; e nunca mento de uma verdadeira medicina sa-
demais lembrar que, no Egito, a ciência e a grada, de uma verdadeira ciência sagrada:
religião estavam intimamente relacionadas, sagrada no sentido de possibilitar aharmo-
e que os médicos eram também sacerdotes nia entre o interno e o externo, entre o mi-
que não se pretendiam autores dos encanta- crocosmos e o macrocosmos, entre .0 Ho-
mentos, preparações medicamentosas e ou- mem e o Universo.
tras técnicas curativas: eles apenas os Nesse sentido, tudo no Egito era sagrado.
aprendiam nas chamadas "Casas da Vida", Talvez nenhuma civilização tenha buscado
os templos-universidades legados pelo deus tanto essa harmonia. Talvez nenhuma civili-
Thot, o mensageiro dos deuses, encarre- zação tenha mostrado tanto ao ser humano
gado de proteger a humanidade, a quem a sua própria grandeza, indicando-lhe, ao
alude o papiro de Ebers: Eu saí de Heliopolis mesmo tempo, a adequada dimensão, o
com os Grandes dos templos, os que possuem justo limite de sua atuação dentro do vasto
proteção, os senhores da eternidade... Eu universo de Deus.
pertenço a R á. Ele disse.' "serei eu quem prote-
gerá o doente de seus inimigos. Thot será o seu
guia, o que fará falar as escrituras e é autor
dasfórmulas; dará habilidade aos sábios e aos
Bibliografia: C1audine Brelet-Rueff - As Medicinas Tradicionais Sagradas:
médicos-mágicos, seus discípulos, para curar Edições 70. Lisboa, 197 .
A. de Almeida Prado - As Doenças Através dos Séculos: Editora
da doença aqueles que Deus deseja manter vi- Anhembi, São Paulo, 1961.
Zíído Traiano
vos".

ASSIM
DEUS FALOU
AOS HOMENS
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- Mario Ferreira dos Santos -

Já haviam despertado as trevas para os la- Acordei quando soaram as trombetas do


dos do nascente. Senhor. Uma brisa suave embalava todas as
E despertei porque abri os olhos para a coisas e mansamente acariciava o meu
luz da manhã. corpo porque despertei sem sobressaltos.
O silêncio dominava todas as coisas como Eu também ressuscitava, e vi.
se elas permanecessem ainda adormecidas. E vi que o verde dos campos era mais
Na paz do campo, deveria ferir os meus aveludado. No céu, um azul muito lavado,
ouvidos a c1arinada de um galho, e um longínquo, matizado de um leve cor de rosa,
canto de pássaros não me surpreenderia. permitia aos meus olhos penetrarem distân-
Surpreendia-me o silêncio; silêncio que cias sem fim.
me penetrava e me pesava nas pálpebras. Não era mais uma cúpula empoeirada de
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