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PROF. DR. SÉRGIO PAULO ADOLFO


Universidade Paranaense – UMUARAMA-PR

MITOS E RITOS - A LITERATURA DE


CANDOMBLÉ EM LONDRINA

Abstract Na realidade, contradizendo versões oficiais, a cida-


de apresenta numerosas Roças. Segundo a Mãe Oju
This comunication intends to present the par- Omin, Presidente da Federação Espírita Umbanda
tial results about the Jeje-Nagô and Angola Alfa-Ômega do Paraná, são seus filiados cerca de 270
Candomblé temples oral literature, in Londrina, Pr. Centros de Umbanda e Candomblé. Entre os freqüen-
We’ve been working with the theories and the studies tadores das seitas afro-brasileiras locais, utilizando-se
about orality and text analyse, from the special point de seus serviços religiosos e freqüentando as festas,
of view of the production and the reception for these encontramos pessoas de várias classes sociais:
stories and mythe have a deep religious meaning. biscateiros, autônomos, profissionais liberais, pro-
fessores universitários, políticos, artistas, etc.
Palavras-chave: Candomblé, Mito, narrativa. O Candomblé parece ter presença segura em
Londrina, como atividade organizada, desde a déca-
da de 50, sendo provável, no entanto, que pessoas
O presente trabalho faz parte de um projeto ligadas a esta atividade religiosa a praticavam, de ma-
de pesquisa “Mitos e Ritos: as palavras mal ditas no neira informal, já desde muitos anos antes. Os pri-
Candomblé de Londrina” que tem como um dos meiros sacerdotes seriam Pai João que realizava um
objetivos coletar, cotejar e publicar narrativas míticas, cerimonial pendular entre Umbanda e Candomblé
histórias verdadeiras e poemas, relativos ao cotidiano num local afastado onde hoje se localiza o Jardim
do Povo-de-Santo de Londrina. Tóquio, e Mãe Jacinta que mantinha uma Casa na
Londrina, cidade de mais de 700.000 habitan- Vila do Grilo, hoje Vila da Fraternidade. Essas pessoas
tes, localizada na região norte do Paraná, é o segundo já não existem, sendo, no entanto, lembradas pelos
pólo urbano do Estado, superado apenas por Curitiba, atuais Zeladores.
a capital. Trata-se de um centro urbano jovem, de Dessa forma, configuram-se em Londrina dois
pouco mais de 60 anos, caracterizado pelo rápido modelos rituais: um ritual que se reconhece como
crescimento e por ostentar a intenção de um alto pa- Angola se espelhando na severidade do falecido Tata
drão de qualidade de vida, tendo como slogan muni- Meluango e um ritual que se diz Keto com maior
cipal : “Londrina: Aqui se vive melhor”. permeabilidade e flexibilidade ritual. Da mesma for-
É uma cidade que sempre se orgulhou de seus ma que esses dois modelos, enquanto tal se confron-
fundadores ingleses - em homenagem aos quais rece- tam, na concretude do campo podemos perceber uma
beu o nome - vendo neles e nos europeus de outras interpenetração no que diz respeito as práticas rituais
nacionalidades o elemento principal de sua represen- e as concepções religiosas, acentuada pela constante
tação enquanto “sociedade civilizada”. No entanto, troca de Zeladores uma das indiosincrasias do Can-
segundo Sônia Adum (1991), além desses pioneiros domblé de Londrina.
ingleses, alemães, franceses, italianos, participaram Aliado a esses fatores gostaríamos de destacar
da construção de Londrina uma multidão de operários, mais um último mas não conclusivo fenômeno, que é
roceiros, índios, negros, fugidos ou libertos, que eram a questão dos mitos cosmogônicos e de origem,
vistos como vadios, desocupados, prostitutas, joga- estruturadores do candomblé banto ou nagô. Sabe-
dores, pobres, mendigos e macumbeiros. mos que todas as religiões fundam-se e sustentam sua
Dessa população, da qual a história oficial não prática ritual num discurso fundador, mitológico,
Revista
dá conta, faz parte o segmento do “Povo-de-Santo”, multiarticulado, presente na memória coletiva e que
compreendido pelos fiéis ou simpatizantes que lhe dá sustentação teológica interna, ao mesmo tempo do GELNE
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freqüentam os cultos afro-brasileiros, especificamente que lhe permite jogar com outras instâncias sociais.
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o Candomblé, que parece ser estranho a uma cidade Temos percebido até o momento, que o Can- 2001
com ares de Europa, mas que, entretanto, se revela domblé de Londrina apesar de se reconhecer herdeiro

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importante por um grande número de Casas-de-Santo. espiritual do Candomblé de Salvador, tanto os per-
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tencentes a vertente Congo-Angola, quanto Gege- através de si . Segundo o Prof. Antônio Cândido, “ a
nagô, que apesar dessa suposta filiação, essas casas literatura faculta uma maior inteligibilade com rela-
não tem conseguido manter a ortodoxia das casas- ção a uma determinada realidade” (CANDIDO: texto
mães, sincretizando dialogicamente rituais de várias policopiado). Sendo assim, o texto permite uma
procedências numa maleabilidade notável. interação entre o leitor e o mundo vivenciado, e atra-
No entanto, apesar da extrema polissemia dos vés do texto, o leitor pode vir a conhecer e apreender
candomblés londrinenses, sobretudo os de origem uma determinada realidade , tendo como conseqüên-
congo-angola que temos investigado, toda a prática cia compreender melhor a sua. Pensando nisso é que
litúrgica, cantigas, rezas, formas de tratamento são temos investido na coleta e na compreensão de uma
em língua de nação, provavelmente kikongo seguida literatura oral de origem africana ou de matriz africa-
de perto do kimbundo e outras línguas bantas. na, praticadas no interior dos candomblés de origem
No candomblé, há uma narrativa mítica banto em Londrina.
cosmogônica que, segundo Mircea Eliade, é inau- Há, entre poucos outros, dois autores, Anto-
guradora de um novo tempo. Através dessas narrati- nio Póvoas (1989), lingüista e Antonio Risério (1996),
vas, explica-se a existência dos homens e das coisas. literato, ambos baianos, que tem iniciado uma linha
Esses mitos, no caso presente, são aqueles que sus- de pesquisa bastante interessante sobre essa literatura
tentam a Teogonia do Candomblé e são eles que, intra-muros do mundo do candomblé brasileiro, de
ritualizados nas cerimônias públicas e privadas, dão- origem sudanesa. Póvoas analisa os falares do Povo-
lhe sentido. Essa categoria de narrativa - os funda- de-Santo, incluindo aí cantigas religiosas e poemas;
mentos, na linguagem do povo-de-Santo - suposta- enquanto Risério dedica-se ao estudo dos orikis de
mente tem origem africana. E a partir delas, o fiel orixás. Orikis são poemas de louvação, que em Áfri-
vivencia, rememorativamente, o princípio cósmico e ca sudanesa são usados para louvar as divindades, as
humano que lhe dá razão do ser e do fazer no mundo. pessoas, ou acontecimentos notáveis. No Brasil, só
Mircea Eliade ao tratar dos mitos, classifica- sobreviveram , segundo Risério e Pierre Verger, os
os em mitos cosmogônicos e mitos de origem, sendo Orikis dedicados aos orixás.
que os primeiros referem-se ao nascimento do mundo,
dos deuses e das coisas e os segundos ao nascimento “ o oriki nasce no interior da rica malha de
das linhagens e das famílias. As sociedades tradicio- jogos verbais, de ludilinguae, que se enrama
nais, ainda segundo Eliade, re-constróem o mundo no cotidiano iorubá. Concordo com o ponto
sagrado através da reatualização dos mitos cosmo- de vista de Bolandé Awè sobre o assunto. O
gônicos. Temos sentido que os praticantes e sacerdo- historiador acredita que o oriki-poema é uma
tes de Londrina, tem em certa medida, “esquecido” extensão ou um desdobramento do oriki-nome
tanto os mitos cosmogônicos, quanto os mitos de origem, (oriki-sòkí, oriki-palavra) ou nome atribuitivo,
daí o seu distanciamento das casas-mães enquanto espécie de apelido poético, digamos assim,
raiz e a maleabilidade ritual por conta do esqueci- que é um dos três nomes que o recém-nascido
mento dos mitos cosmogônicos, transformando muitas iorubano pode receber.(RISÉRIO:1996, pg. 35)
vezes os rituais em meros aparatos gestuais vazios de
sentido narrativo. Risério em seu estudo aponta ainda a influên-
No Brasil, essa literatura de Candomblé, é cia dos orikis na produção poética brasileira, tanto
desconhecida do grande público porque restrita a ligada a literatura escrita quanto a produção da músi-
alguns espaços privilegiados, é uma literatura neo- ca popular brasileira. Cita alguns exemplos como a
africana, centrada no campo da oralidade, ligada a música de Caymmi “ Oração à Mãe Menininha” ou a
religiosidade dos descendentes de africanos no Brasil. de Vinícius de Moraes, “Canto de Ossanhe”, assim
Estamos falando de uma literatura mítica vinda em como assinala essa mesma influência em romances
parte da África nos porões dos navios negreiros, mas de Jorge Amado, como Teresa Batista Cansada de
também reformulada e plasmada no recinto das ca- guerra, sendo que na música de Caymmi e no roman-
sas religiosas. Estamos usando o termo literaturas neo- ce de Jorge Amado temos orikis de nomes, enquanto
africanas num sentido diferente de J. Jans (1971) que na música de Vinícius teríamos um oriki de Orixá.
chama toda a produção literária da diáspora de lite- Inúmeros são os exemplos de como essa forma poé-
ratura neo-africana. Para nós, só é literatura neo-afri- tica legitimamente africana tem influenciado a litera-
cana aquela ligada aos fenômenos africanos propria- tura brasileira, mas não cabe no espaço restrito desse
mente ditos, como fenômenos religiosos e culturais trabalho. Só resta ainda assinalar que o oriki é uma
produzidos a partir de uma matriz africana. Esta lite- forma poética sudanesa, e que os terreiros de can-
ratura, parte em kikongo ou kibundo, línguas bantas, domblé de origem bantu também possuem suas for-
ou iorubá, língua do grupo sudanês, parte em portu- mas poéticas africanas que ainda não foram
Revista
guês, constituída de pontos de Umbanda e outras lou- investigadas, acrescidos dos pontos de Umbanda e
do GELNE vações, tem sua existência e perpetuação assegura- Quimbanda, se não de origem banto, mantêm a
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não foi ainda pesquisada com o labor necessário. preender essa produção estética é necessário com-
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Sabemos que a literatura tem, entre outras fun- preender o mundo simbólico africano, que possue

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ções, aquela de dar o mundo e o homem a conhecer-se outras leis que não as do universo judaico-cristão.
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O mundo criado pelos portugueses na América ou na tendem a desaparecer em função da hegemonia dos
África, tem também outros falares para além da lín- nagôs. Apesar de sua acuidade e de sua convivência
gua lusitana. Esses outros falares deverão ser expos- dentro dos candomblés mais prestigiosos e faustosos
tos ao público brasileiro. da Bahia, não percebeu muito claramente que mes-
Sem o conhecimento desse mundo simbólico mo entre os nagôs existiam e existem algumas dife-
africano é difícil o leitor e a crítica entenderem a lite- renças muito peculiares.
ratura neo-africana, segundo o conceito de J.Jans, Ao tratar das casas de culto de procedência
(1971) produzida no Brasil. Cruz e Souza, o exem- banto, Edson Carneiro as vê apenas como uma cópia
plo mais clássico, ainda é um autor desconhecido, com débeis modificações, diga-se mal feitas, do mo-
mal compreendido, assim como inúmeros outros de delo original. Percebe que essas contribuições se dão
origem africana, inclusive nosso mais famoso sobretudo no campo linguístico,como se fossem me-
ficcionista, Jorge Amado. O instrumental e conheci- ras adaptações do panteão de deuses, nomes de ervas
mento meramente ocidental são insuficientes para co- e cantigas,ou melhor, apenas uma tradução dos no-
nhecermos e analisarmos a obra destes autores afro- mes dos orixás e das práticas ritualísticas dos nagôs.
brasileiros. Sem mudarmos o ponto de vista de nossa O autor não conseguiu perceber que enquanto os
ótica crítica, dificilmente entenderemos nossa pró- nagôs cultuam os orixás que são forças da natureza,
pria literatura que, considerando ter suas raízes fun- os bantos cultuam os inkices que são ligados sobre-
dadas no modelo ocidental, possui forte influxo do tudo a ancestralidade. Não era portanto, uma mera
mundo africano. O que não nos deixa perceber o nosso tradução dos nomes de uns pelos outros, mas princi-
lado africano é exatamente a forte influência exercida palmente, a preocupação litúrgica, por se tratar de
ainda sobre nós de autores como os que acabamos de divindades diferentes.
citar. O próprio Prof. Antonio Cândido mestre incon- Em Londrina, apesar de confundirem, ou
testável de todos nós, falha ao afirmar que os outros sincretizarem, os orixás iorubás com os inkicis bantos,
povos formadores desse país nada puderam legar a toda a louvação dedicada a eles, aos inkices, é feita
nossa literatura, sendo a mesma fruto direto da Euro- em kikongo ou kimbundo, com algumas alterações
pa colonizadora, sob o influxo das novas condições fonéticas e de prosódia, alterado algumas vezes pela
americanas. A contribuição africana ou indígena não língua portuguesa. Podemos alinhar três gêneros li-
existe para os nossos estudiosos e a nossa crítica está terários diferentes: as dijinas, os ingorossis e as can-
totalmente voltada para os padrões ocidentais, preju- tigas, além das narrativas míticas, pouco expressivas
dicando, dessa forma, os autores afro-brasileiros que no meio banto.
produzem no influxo e sob as luzes da cultura africa- As dijinas, termo originado do Kimbundo
na. O orikis sudaneses e os ingorossis banto são al- (LOPES: Rio,s/d) é o nome iniciático do novo filho-
gumas das formas literárias africanas que com certe- de-santo, nome esse pelo qual ele passará a ser cha-
za muito têm influenciado nossos escritores, mas o mado a partir da iniciação. É muito comum que pes-
desconhecimento dessa realidade torna-nos alheios a soas conhecidas no meio do Candomblé pelas dijinas
determinadas formas e conteúdos poéticos por não não tenham seu nome civil lembrado mais pelos seus
corresponderem a nossa visão eurocêntrica, e fica- pares ou mesmo pelos seus conhecidos, parentes e
mos portanto sem cabedal e nem instrumental para amigos, tal a força desse novo nome que lhe é dado.
formar o nosso aparato crítico. A dijina é elaborada pelo Pai-de-Santo a partir de um
No entanto, não conhecemos nenhum traba- outro nome iniciático, recitado pelo Inkice, durante
lho de academia que tenha se debruçado sobre as os dias de reclusão do fiel, através de um estado de
manifestações poéticas dos bantos, nenhum trabalho transe infantil, ou estado de erê, momento em que o
tem sido realizado nesse sentido, e a bibliografia exis- neófito age e fala como criança. Este nome iniciático,
tente é difícil de encontrar, toda ela escrita em fran- chamado de morunkô, por influência do culto nagô é
cês ou inglês. mantido em segredo conventual, só revelado pelo
A pauperidade de pesquisas na área de estu- iniciador ao iniciado e algumas autoridades do alto
dos de textos religiosos de origem africana no Brasil, clero do terreiro. Esse nome, o morunkó (em iorubá
agrava-se em se tratando dos Bantos, pois é fato no- é orunkó) traz em sua constituição as qualidades do
tório que os estudos nesse campo se dirigiram desde inkice que está sendo preparado. Meus informantes
seu início aos povos nagôs, principalmente os iorubás. dizem que é um nome muito longo, muito complicado
Edson Carneiro(1978) tem o mérito de ser um de se falar e de se entender, todo ele em língua de
pioneiro nesses estudos apesar de tomar como ponto nação angola. Desse longo nome é tirada a Dijina,
de partida seu antecessor Nina Rodrigues (1945), e composta geralmente de uma só palavra, no máximo
tal como ele, continua elegendo como modelo de duas, contendo em sua morfologia as qualidades do
pureza ritual o rito nagô. Em que pese esse autor ser novo encantado, do novo deus. Alguns exemplos :
Revista
um dos únicos por várias gerações a preocupar-se com
Filhas das Kiandas ( encantados das águas ) Luegi, do GELNE
os africanos de outras procedências, seus estudos sem-
Kaiá Suté, Kaiá Undé, Dandaluã, Guanguanseça. Vol. 3
pre se voltaram para a legitimação do grupo nagô.
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Quando estuda os outros templos, o faz sempre ten- Filhos de Nzazi ( Senhor dos Raios) Meluango,
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do como modelo de legitimidade os templos dos Luandemin.

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iorubás. Para ele, existem outras liturgias mas estas Filhos do Grande Caçador: Tauá, Tauamin, Mutakenam
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Filhos do Senhor da Criação: Lembafurum, Lembaomin. banto chegou ao Brasil em levas sucessivas do sé-
Filhos do Senhor das varíolas: Kitologi, Katule culo XVI ao XIX, trazendo pessoas de reinos os mais
Filhas da Senhora dos Ventos : iaiá Baramin, iaiá diversos. Há dessa forma muitos mitos sobrepostos e
Delci, iaiá Janan. recontados de maneiras muito variadas, considerando-se
Filhos do Senhor do Caminhos : Tumbereci, Mukumbi. que a cultura e especificamente a literatura partici-
pam de um dinamismo irreversível, mas o que se pode
Um estudo apurado desses nomes poderá re- perceber é que ao longo do corpus poético do Can-
velar a natureza diferenciada de muitos encantados domblé Congo-Angola esses nomes aparecem sinali-
que são confundidos entre si e também com os orixás zando assim uma determinada origem de acordo com
nagôs. Estudar as dijinas, assim como os morunkós o Inkice presente.
(orunkós) é poder descobrir a origem e as condições Em terceiro lugar temos as orações, os
em que muitos povos africanos chegaram ao Brasil. ingorossis, que segundo o dicionário de Nei Lopes,
Nos parece que as dijinas são uma espécie de orikis é uma palavra de origem umbundo e significa reunir-
de nomes, tal como entre os nagôs. Mas a nenhuma se, informação essa retirada de Alves, 1951. Fazem
conclusão ainda chegamos a esse respeito por falta parte dos ingorossis uma série de rezas de ronkó, de
absoluta de material de pesquisa. Faltam dicionários caráter sigiloso, aprendidas nos limites do espaço e
especializados, um maior conhecimento das línguas do tempo das iniciações, restrita portanto aos Filhos-
bantas, viagens aos países de origem, entre outros de-Santo e vedada à visitantes ou pesquisadores. O
problemas. significado, origem e estrutura poética desses
Quanto as cantigas, há uma coletânea delas ingorossis só poderemos realmente desvendar com
para cada inkice ou encantado. Nos candomblés uma vigorosa pesquisa incluindo as fontes, os países
congo-angola, tanto se usa o termo orixá (influência da África Banta, ou fontes bibliográficas também fora
da mídia e do prestígio dos nagôs, que estão na mídia) do alcance de brasileiros, por pertencerem a alguns
como encantado, e só alguns zeladores mais antigos centros de pesquisa na Europa. É pois necessário que
usam o termo inkice. Numa cerimônia de barracão, apareça para o mundo banto brasileiro um novo
festa pública, espaço em que os deuses vêm dançar Verger, que com todo o despojamento e com toda a
no meio e com os homens, é necessário que se cante coragem e vigor científico possibilitou o aclaramento
no mínimo sete cantigas para cada Santo. Pode acon- de pontos obscuros na cultura nagô transplantada e
tecer de os cantadores, os encarregados dos toques e revigorada no Brasil. Os ingorossis são, de certa ma-
cantos não saberem tantas para determinados santos, neira, os poemas mais difíceis de alcançar pela mão
e acabam improvisando algumas em português. No do pesquisador dado o seu caráter sagrado. O Povo-
entanto, quando isso acontece, há uma censura aberta de-Santo de nação Angola-Congo sempre se mostrou
e às vezes velada dependendo do prestígio do autor, muito reticente aos pesquisadores o que motivou por
sobre tal fato. parte destes um certo menosprezo pelas raízes cultu-
Essas cantigas dão a exata composição do en- rais daqueles. O caso dos ingorossis é muito
redo do inkice, e em linguagem de candomblé, a pa- esclarecedor dessa dada situação.
lavra enredo tem o mesmo significado que em teoria Quanto aos mitos, é lugar comum dizermos
literária, pois, o enredo é a história do inkice. As can- que os bantos brasileiros não possuem um corpus
tigas a ele dedicadas enumeram as suas qualidades, organizado como os iorubás. Essa ausência levou os
tecem loas aos seus feitos e às suas habilidades e nossos pesquisadores a imputarem aos bantos ausên-
vitórias. Ao traduzir esses poemas descobriremos, cia de mitos ou declararem que os mesmos possuíam
com certeza, uma riqueza poética e temática que tal- uma mitologia paupérrima, tendo por isso de utilizar
vez na própria África já em parte tenha desaparecido. os mitos nagôs. Esse corpus mitológico está no inte-
A tradução poética dessas cantigas, que também nos rior das cantigas, dijinas e ingorossis, pois se o siste-
parecem formas de oriki, pois são sempre louvações, ma adivinhatório nagô conservou um corpus mitoló-
seria um passo importante para compreender a ver- gico aparentemente coerente, o sistema adivinhatório
dadeira contribuição dos bantos na cultura brasileira, banto é de outra natureza e a própria idéia de divin-
desvendar sua mítica vigorosa e sua força poética, dade dos bantos está ligada sobretudo à ancestra-
considerada pelos africanistas brasileiros pobre e lidade, resultando dessa forma em mitos de fundação
insignificante. com heróis bem delineados. Uma das divindades do
Por outro lado, o conhecimento dessas estru- panteão banto, iaiá Matamba, erroneamente nomeada
turas poéticas poderá revelar a presença dessas for- de Oyá Matambá por assimilação com o orixá nagô
mas na literatura brasileira canônica. Muitos dos sons Iansã também nomeada de Oyá, é ninguém menos
e ritmos da literatura brasileira poderão ter suas gêne- que a legendária Rainha Nzinga, poderosa guerreira,
ses nessas formas poéticas vindas da África. rainha dos Jagas, que castigou duramente os portu-
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Essas cantigas-poemas já o dissemos, contêm gueses no século XVI. Matamba é a região no pla-
do GELNE as histórias dos Inkices, suas origens e suas princi- nalto angolano onde viveu essa rainha poderosa, que
Vol. 3 pais qualidades. Portanto, nessas cantigas há um hoje se apresenta nos Candomblés bantos exibindo a sua
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corpus mitológico do povo Banto que revelado virá força guerreira, o seu poder de ventania e tempestade.
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desmistificar muitos dos pontos de vista até agora E assim, rastreando os passos dos deuses

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sustentados pelos nossos africanistas. A mitologia bantos, através de sua literatura, ou oralitura, sem
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compará-los aos orixás iorubás, mania em que incorre- ______. Lê Roi Ivre ou L’ Origine de L’ Etat.
mos todos, desde Nina Rodrigues, é possível recupe- Paris:Gallimard s/d.
rar um corpus mitológico importante e coerente, recu- JAHN, Janheiz. Las Literaturas Neoafricanas. Madrid,
perar histórias que ainda não foram contadas por per- Guadarrama, l97l.
manecerem sob os véus da sacralidade, perceber
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formas poéticas, sonoridades e ritmos, em suma com-
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preender melhor a nossa própria cultura. Afinal, exis-
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