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200 exemplares
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Hilário Fracalanza - n. 5 Campinas - SP
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Gi!denir Carolina Santos - CRB-8'/5447

0568 As diferentes faces do racismo e suas implicações na escola 1 Sílvio


Gallo (organizador). - Campinas. SP: Edições Leitura Crítica;
ALB.2014.
150 p. (Hilário Fracalanza ; n. 5)

ISBN: 978-85-64440-15-9

1. Discriminação na educação. 2. Racismo e educação. 3. Es-


colas - Aspectos socais. l. Gallo, Sílvio. 11. Série.

14-0001 20'CDD - 370.19342

Impresso no Brasil
I' edição - Abril- 2014
ISBN: 978-85-64440-15-9

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o racismo camuflado no Brasil
e seus guetos simbólicos

Ãngela Soligo

Estudar relações racializadas em um país que se decla-


ra e considera uma democracia racial não é tarefa fácil. Até
o final dos anos 80, quando se comemorava o centenário da
Abolição no Brasil, pouco se discutia sobre o preconceito
racial e o racismo em nosso país; imperava um incômodo
silêncio nas ciências brasileiras, em particular na Psicolo-
gia e no campo da Educação, embora alguns autores como
Hasenbalg, Valle e Silva (1990) e Munanga (1996) viessem
mostrando as profundas desigualdades existentes no Brasil,
produzidas não somente pelas condições de classe inerentes
ao capitalismo, mas aprofundadas pela presença e dinâmica
do preconceito e do racismo em nossa sociedade. Também
os movimentos negros organizados, naquele momento,
manifestavam-se no sentido de denunciar os preconceitos
contra os negros e evidenciar as suas experiências de dis-
criminação.
Emprego aqui o termo 'racializadas' e não raciais
porque considero que o racismo não é decorrência de raças
biologicamente definidas, e sim que o conceito científico de
raças, cunhado na modernidade, é decorrência do racismo.
Sendo assim, as relações marcadas pelo preconceito não são
decorrentes da raça, mas do racismo.
A pergunta que eu me fazia, na época, era por que, mente nas universidades públicas, e também nos cursos de
diante dessa realidade, pouco se discutia sobre o racismo maior prestígio social (QUEIROZ, 2004).
no campo das Ciências Humanas. Essa indagação levou-me Além dos dados quantitativos, pesquisas de âmbito
a compreender a dinâmica do mito da democracia racial, nacional e regional colocam em evidência as inúmeras si-
que se funda na crença de que somos um país racialmente tuações de discriminação e humilhação social a que estão
democrático porque brancos e negros vivem em aparente expostas as pessoas negras, sejam elas adultos ou crianças
harmonia, porque não tivemos a experiência do apartheid (CAVALCANTI, 1999; OLIVEIRA, 2002; VALENTE, 2005;
e não manifestamos diretamente os nossos preconceitos. TEIXEIRA,2010).
Atrelado a esse sistema de crenças, alimentamos a ideia de Um interessante estudo realizado por Feitosa (2012)
que vivemos uma conjuntura democrática porque temos, com crianças negras que cursam o ensino fundamental em
supostamente, oportunidades iguais para todos, e que os escolas públicas evidenciou as muitas vivências de precon-
melhores irão sobressair-se nessa sociedade das oportu- ceito e discriminação relatadas pelas crianças negras, sob o
nidades, regida pela ideologia da meritocracia. Junte-se a olhar silencioso das professoras e gestoras.
isso a perspectiva positivista de ciência neutra, que não se O conjunto da produção nacional sobre as relações
implica nas questões da história, da sociedade, da cultura. racializadas Brasil desvela a presença e dinâmica do racis-
O incômodo com o silêncio da ciência psicológica e mo na sociedade brasileira, oculto em meio ao silêncio e à
dos estudos no campo da educação foi então o motor de aparente cordialidade de nossa população.
meus primeiros estudos. O ponto de partida: as condições
desiguais entre brancos e negros na sociedade brasileira e A pesquisa com adjetivos e contextos
as experiências de discriminação das crianças negras em
A partir da perspectiva da Psicologia Social, busquei
nossas escolas.
compreender como opera a dinâmica das relações raciali-
Os indicadores estatísticos de referência no Brasil zadas no Brasil em uma pesquisa de âmbito nacional, em 7
têm recorrentemente apontado as profundas desigualdades estados brasileiros - São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato
entre brancos e negros em nosso país, no que diz respeito à Grosso do Sul, Bahia, Sergipe e Paraíba, utilizando um ins-
faixa salarial, aos tipos de trabalho, à alocação no mercado trumento projetivo, que visava apreender as representações
de trabalho formal (SOLIGO, 2001). sociais sobre o homem e a mulher negros.
O estudo de Bonilha (2012) vem corroborar esses Trezentos e onze estudantes de nível médio e uni-
indicadores, e aponta, a partir do Censo Escolar Brasileiro, versitário participaram da pesquisa, respondendo a um
que a população negra vai paulatinamente sendo excluída questionário que pedia que indicassem 10 adjetivos que
ao longo dos anos de escolaridade, e acaba sub-representada consideravam como atributos do homem negro e 10 ad-
nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. jetivos considerados atributos da mulher negra. Para cada
Esse processo de exclusão faz com que a população adjetivo era solicitado que os participantes indicassem em
negra seja minoria nos bancos universitários, principal- que contexto se aplicava aquele atributo.
Embora a pesquisa com adjetivos, para investigar Alegre refere-se ao contexto da música, em especial
representações sociais, seja comum em estudos norte- o samba e o carnaval e ao contexto das relações entre seus
americanos (1996), estes utilizam apenas a indicação de pares (no discurso dos respondentes, seus iguais).
adjetivos, e acabam por apresentar perspectivas estáticas Ao termo inteligente vieram contextualizações como:
e meramente estereotípicas. A introdução do contexto "quando aceita a educação que o branco lhe oferece";
visava conferir sentido social e cultural a cada atribuição e "quando não questiona"; "quando sabe o seu lugar". Tais
desconstruir a ideia de características estáticas, imutáveis afirmações vêm reforçar o mito da democracia racial, como
e inerentes ao sujeito individual. já apontado por autores como Hasenbalg, Valle e Silva
Ao trazer a perspectiva das representações sociais (1990) e Munanga (1996), que se funda no assujeitamento
(MOSCOVICI, 1961), assumo que o preconceito e o racis- dos negros, em nome da harmonia e da convivência.
mo não são características inerentes aos sujeitos, mas for- Foram frequentes as indicações de lugares para os
mas de interpretação da realidade aprendidas e construídas negros relacionados à condição social: a rua, as filas, o pon-
no âmbito da cultura, nas relações entre as pessoas e grupo, to de ônibus, a favela, como se fossem os lugares naturais
nos modos de comunicação engendrados nas sociedades. reservados aos negros.
Constituintes das subjetividades, orientam o modo como Algumas indicações associaram o homem negro à
olhamos aqueles a quem chamamos diferentes, bem como condição de marginalidade social. Um respondente, entre os
as ações, e conferem sentido aos atos discriminatórios atributos, apontou advogado, o que poderia indicar um valor
contra os negros. positivo, mas associou ao seguinte contexto: "para livrar os
outros da cadeia". Tal representação apoia-se na visão cor-
Os dados que apresento a seguir foram submetidos à
rente no senso comum, que associa os negros à criminalidade.
análise de conteúdo, segundo o modelo de Bardin (1988).
Várias adjetivações indicaram aspectos negativos,
Devido à complexidade do material coletado, procedi ini-
corno burro, violento, feio. Também encontrei a associação
cialmente à análise em separado de adjetivos e contextos
do negro ao macaco.
para, em seguida, efetuar o cruzamento entre os dois com-
Com relação à mulher negra, encontrei um conjunto
ponentes do questionário.
expressivo de adjetivações relacionadas à competência,
Com relação aos adjetivos referentes ao homem negro, porém nos contextos do trabalho doméstico e da cozinha
as características atribuídas mais marcantes foram trabalha- (lugar mais associado à mulher negra) bem como ao cui-
dor, alegre, inteligente, competente. Tais características in- dado de crianças. Essas associações remetem à ideia da
dicam, aparentemente, representações positivas relativas ao antiga mucama, da criada e da fazedora de quitutes, ainda
homem negro em nossa sociedade. No entanto, ao analisar dos tempos da Casa Grande e Senzala, conforme o famoso
os contextos em que tais atributos são reconhecidos, cons- livro escrito por Gilberto Freire em 1933.
tatei que trabalhador e competente referem-se ao trabalho A expressão alegre foi também recorrente, novamen-
braçal, desqualificado e marginal. A expressão "competente" te associada ao samba, ao carnaval e também ao convívio
também veio associada aos esportes, em especial o futebol. familiar.

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Encontrei também várias referências ao corpo da sociais dos negros, fora dos quais não os podemos ima-
mulher negra, associado a duas dimensões: a maternidade ginar ou atribuir-lhes significados positivos. A partir das
- o corpo reprodutivo, e a sedução - o corpo "endiabrado". referências da Teoria das Representações Sociais, podemos
Tais adjetivações remetem à ideia corrente da mulher negra entender que as representações sociais sobre as mulheres e
sedutora, lasciva, responsável pelos abusos dos homens homens negros estão ancoradas na visão de inferioridade,
desde os tempos do escravismo (DIAS FILHO, 1996). primitividade, "serviçalidade", e são objetivadas nas muitas
Não encontrei, como contexto de inserção do homem formas de discriminação que a sociedade brasileira engen-
e da mulher negros, a escola, a universidade, enfim os es- dra - nos espaços sociais, na escola, no trabalho.
paços educativos, o que pode revelar, ao mesmo tempo, É desse modo que opera, psicologicamente, o racismo
que esses grupos estão sub-representados nesse contexto, e brasileiro - racismo camuflado, mascarado por um olhar
também que esses não são reconhecidos como seus espaços falsamente generoso, aceitativo, mas que carrega nos mar-
legítimos de pertença. cadores culturais e nos nossos modos de subjetivação da
O conjunto dos dados encontrados levou-me à for- realidade a divisão Casa Grande - Senzala.
mulação de duas categorias explicativas do modo como se A realidade do racismo e das experiências escolares das
constitui o racismo no Brasil. crianças e dos jovens negros demanda da educação uma difí-
A primeira delas é a ambiguidade e sua consequente cil tarefa, a de propor contrapontos aos modos hegemônicos
ambivalência. Tendo construído os modos de compreensão de compreensão da diferença, às interpretações de mundo
da diferença a partir do mito da democracia racial, os sujei- eurocêntricas e racistas. Impõe a reflexão, a desnaturaliza-
tos relutam em expressar diretamente os seus preconceitos ção de verdades instituídas ideologicamente e legitimadas
e suas visões negativas em relação aos negros, optando por no senso comum. Impõe o pensamento crítico e respeitoso.
indicar adjetivos positivos e valorizadores. No entanto, ao Tal empreitada implica o trabalho do e com o pro-
apontarem os contextos, colocam os negros em condições fessor, demanda formação continuada de professores, uma
desvalorizadas socialmente, em contextos desqualificadores, vez que esses, formados a partir da mesma cultura racista,
que acabam por neutralizar as dimensões positivas aponta- compartilham e reproduzem preconceitos e, na maioria
das e revelam, de fato, os preconceitos que tentam ocultar. das vezes, silenciam-se diante de situações de preconceito
A segunda categoria explicativa eu denomino gue- e discriminação.
tos simbólicos. Os homens e mulheres negros somente
são representados positivamente nos lugares sociais que Referências
a sociedade hegemônica branca lhes reserva: o trabalho
desqualificado -, servindo ao branco; o futebol, o samba e BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1988.
o carnaval -, divertindo o branco. Embora não tenhamos BONILHA, T. P. O "não-lugar" do sujeito negro na educação
vivido o apartheid, nem tenhamos a realidade dos guetos brasileira. Dissertação de Mestrado. Campinas: Faculdade de
norte-americanos, construímos simbolicamente os lugares Educação da Unicamp, 2012.

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