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Música em Contexto

http://periodicos.unb.br/index.php/Musica

Dramaturgia Musical: Variações em Torno de sua Redefinição

Marcus Mota
Universidade de Brasília
ORCID: https://orcid.org/
marcusmotaunb@gmail.com

Mota, Marcus. 2019. “Dramaturgia Musical: Variações em Torno de sua Redefinição”.


Música em Contexto 13, no. 2: 01-26. Disponível em http://periodicos.unb.br/.

ISSN: 1980-5802
DOI:

Recebido: 11 de novembro, 2019.


Aceite: 29 de novembro, 2019.
Publicado: 30 de dezembro, 2019.
Dramaturgia Musical: Variações em Torno de sua Redefinição 1

Marcus Mota

Resumo: Historicamente a atração por espetáculos multimidiáticos e sua efetividade multitarefa tem se constituído
em impulso para realizações estéticas. Das performances de épicas da Mesopotâmia às instalações de hoje, pode-se
bem ouvir e visualizar a concretização do fascínio em torno de diversificados e integrados atos de representação.
Dentro da longa tradição de obras dramático-musicais, há uma tradição outra que se apropriou da atividade de
propor para uma audiência in situ determinado espetáculo que incide justamente sobre os limites e possibilidades
de sua elaboração. Esta outra tradição reflexivo-operacional nos propicia um privilegiado campo de observações
para se acompanhar e discutir as dificuldades de integrar som e imagem em uma amplitude multimídia.

Palavras-chave: Dramaturgia Musical. Artes em contato. Ópera.

Musical Dramaturgy: variations on its redefinition

Abstract: Historically the attraction for multimedia events and their multitasking effectiveness has been an impetus
for aesthetic achievements. From Mesopotamian epic performances to today's installations, one can well hear and
visualize the realization of fascination around diverse and integrated acts of representation. Within the long
tradition of dramatic-musical works, there is another tradition that has appropriated the activity of proposing to an
in situ audience a particular spectacle that focuses precisely on the limits and possibilities of its elaboration. This
other reflexive-operational tradition provides us with a privileged field of observation to follow and discuss the
difficulties of integrating sound and image in a multimedia range.

Keyword: Musical Dramaturgy. Arts in Contact. Opera.

Dramaturgia musical: variaciones en torno a su redefinición

Resumen: Históricamente, la atracción por los espectáculos multimedia y su efectividad multitarea ha sido un
impulso para los logros estéticos. Desde las representaciones de las epopeyas mesopotámicas hasta las
instalaciones de hoy en día, uno puede escuchar y visualizar la realización de la fascinación que rodea a los actos de
representación diversos e integrados. Dentro de la larga tradición de las obras dramático-musicales, existe otra
tradición que se apropió de la actividad de proponer cierto espectáculo a un público in situ que se enfoca
precisamente en los límites y las posibilidades de su elaboración. Esta otra tradición reflexiva-operativa nos
proporciona un campo privilegiado de observaciones para acompañar y discutir las dificultades de integrar sonido e
imagen en un rango multimedia.

Palabras-clave: Dramaturgia musical. Artes en contacto. Opera

1 Reelaboração de texto de escrito entre 2006 e 2008 sobre o contexto das pesquisas realizados pelo Laboratório
de Dramaturgia da Universidade de Brasília no período (ver Mota 2019). Este artigo integra as celebrações dos
20 anos do Laboratório de Dramaturgia (LADI-UnB), da Universidade de Brasília.

Música em Contexto | ISSN: 2595-0169 | Vol. 13 | N. 2 | dezembro 2019 | p. 01-26


Marcus Mota Dramaturgia Musical

Preliminares Mas, para a compreensão desses


pressupostos, torna-se necessário que o
O objeto ‘obra dramático-musical’ parece intérprete reordene suas próprias
uma evidência que em si mesma não pressuposições. Assim como o intérprete
justificaria diversificado questionamento. possui seus pressupostos de leitura, as obras
Concebido muitas vezes como subgênero ou possuem pressupostos, sua definição de
caso especial do teatro falado ou ainda espetáculo. Dessa forma, a nossa atividade
resumido ao estoque de formas dos musicais de interrogar a especificidade do processo
da Broadway, a obra dramático-musical de criativo de obras dramático-musicais nos
certa forma se difunde independentemente instala na hermeneutização dessa atividade,
do horizonte de questões mais pontuais. na problematização mesma das estratégias
Contudo, também independentemente da de interpretação (Gadamer 1998).
massiva imagem que hoje se tenha desse Então, aquilo que parecia uma evidência vai
objeto, há tanto uma imensa bibliografia adquirindo os contornos de um
quanto uma variedade de autores, obras e reposicionamento de opções e práticas
formas que enfrentaram a obra dramático- interpretativas. Uma discussão e análise mais
musical como uma possibilidade, como uma detidas sobre obras dramático-musicais
provocação que a explora e a configura em dentro de uma tradição que problematiza o
termos de uma situação extrema de próprio campo que efetivam, enfatiza
representação. duplamente a focalização da definição de
Há, pois, uma produtiva desproporção entre espetáculo como meta a ser atingida. O
estratégias de recepção da definição de uma exame das obras não se reduz a sua
obra dramático-musical e sua tradição. explicação ou inserção em uma abstrata
seriação informativa de obras-autores mas
Diante disso, mais que um mapeamento amplia-se na discussão mesma dos
exaustivo (e impossível) das formas ou procedimentos encontrados e na interação
tendências das obras dramático-musicais, é entre esses procedimentos.
imprescindível o esforço de uma
aproximação aos parâmetros do processo Com isso, ratifica-se a continuidade de um
criativo de tais obras para que a interrogação conjunto de procedimentos e de variações
de sua tradição não se normalize em um rol de procedimentos que esclarecem a
ou sequência de obras, autores e atividade mesma de realizar ficções
movimentos2. audiovisuais e não somente explicam uma
obra ou um conjunto de obras.
Ou seja, as obras dramático-musicais
postulam pressupostos de sua definição de Ou seja, ultrapassa-se tanto a instância do
espetáculo. Elas exibem em suas escolhas um texto como unidade fechada e recorrente de
conjunto de atividades correlativas à sua autoapresentação, quanto a sua implicada e
composição, realização e recepção. decorrente instância interpretativa que se
baseia em métodos de análise de obras
2 Exemplos recentes desses mapeamentos: McMillin isoladas. O estudo de obras dramático-
(2006); Sternfeld (2006); Lacombe (2007); Salzman musicais reivindica uma concepção mais
e Desi (2008).

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ampla de texto, uma textualidade espetacular, distinguem o que julgamos ser ‘dramaturgia
uma escritura para espetáculos vista como musical’.
roteiro de representação.
Dessa maneira, a interrogação das obras
Crítica esparsa
dramático-musicais a partir de seu roteiro de
representação é a interrogação mesma de A utilização de ‘dramaturgia’ para assinalar o
seu processo criativo. L. Pareyson (1984; conjunto de questões e procedimentos
1993) defende uma estética operativa, relacionados com as diversas etapas do
pensada a partir do fazer, das dificuldades processo criativo para a cena incorpora
mesmas das várias etapas de sua feitura em hodierna ampliação do conceito. Enfim, a
contraposição a uma estética baseada na dramaturgia não é apenas atividade de se
aplicação de um esquema de composição. escrever para a cena, como vimos na
Assim, o processo criativo é o que determina apresentação deste livro. P. Pavis em parte
a definição do espetáculo. Ao invés da capta essa mudança do escopo da
unidade fechada e orgânica, na qual as dramaturgia ao afirmar que “a dramaturgia
partes constituintes atualizam um todo em seu sentido mais recente tende a
previamente determinado, as obras ultrapassar o estudo do texto dramático para
dramático-musicais exibem na englobar texto e realização cênica (Pavis
heterogeneidade de realização mediática 1998, 147-50).”
justamente as operações que possibilitaram Dessa maneira, a dramaturgia comparece
a integração de meios diversos em uma como uma atividade de integração através
unidade de representação, e não a da qual propor sons e imagens para uma
atualização completa de um esquema audiência amplia-se não só em virtude da
composicional. heterogeneidade de sua materialidade mas
Em razão disso, não há o apagamento ou também diante das amplas implicações de
cancelamento das marcas de sua elaboração seus procedimentos estéticos.
durante a realização. A performance Em decorrência disso, para a compreensão
demonstra a amplitude do processo criativo, da especificidade de um campo de
que não só se baseia que questões atividades em torno de obras dramático-
composicionais, mas registra e expões musicais e de sua tradição temos como
decisões e problemas realizacionais e ferramenta a ‘dramaturgia musical’, aqui
recepcionais. definida como integração de diferenciados
Assim, um primeiro passo seria o de se atos de composição, realização e recepção de
assumir que o processo criativo de obras um espetáculo.
dramático-musicais para a cena, em suas Já que a heterogeneidade material de um
questões e procedimentos, é orientado por espetáculo multimidiático se unifica em
uma atividade específica denominada função de sua situação de representação, a
‘dramaturgia musical’. Procuraremos realidade multitarefa do processo criativo de
caracterizar em que as obras e autores obras dramático-musicais adquire, então, sua
escolhidos para nossa investigação melhor unidade em uma dramaturgia musical. Logo,
a dramaturgia musical é o enfrentamento das

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amplas dimensões e dificuldades que um amplitude, opta-se por reduzi-la a um de


espetáculo dramático-musical postula. seus ‘componentes’.
Por isso, abordagens que se ocupam de Da mesma forma, um recente grupo de
componentes isolados das obras dramático- pesquisadores denominou ‘Estudos da
musicais renovam a parcialidade de seus Palavra e Música’ (Word and Music Studies,
pressupostos. Análises que suprimem o Bernhart 1999) um intercampo de pesquisas
espetáculo em função do texto ou que que procura integrar discussões que parte
suprimem o espetáculo em função do tanto da analogia entre literatura e música
puramente musical prolongam uma abstrata quanto da apropriação de conceitos de teoria
dicotomia entre música/texto ou entre da literatura. A constatação de analogias,
música/espetáculo ao optarem pelo não sobreposições, apropriações entre obras e
enfrentamento da definição de espetáculo estudos literários e musicais, demonstrada
global que fundamenta uma dramaturgia pela motivação interdisciplinar desse grupo,
musical. pressupõe a consideração de eventos
multimidiáticos a partir da separação de seus
Por exemplo: Pirotta (1992), a partir do
materiais. Mas a constatação de analogias
estudo das formas da tragédia grega, drama
não determina a apreensão global da
litúrgico medieval, opera, teatro épico de
correlação e interação entre mídias diversas,
Brecht, opereta, teatro de revista e musical
diferença não neutralizada por sua
americano, concentra-se em elencar tipos da
simultânea presença. Não há a interrogação
relação texto-música como de integração,
acerca daquilo que engloba estes materiais
interação ou simples ocorrência incidental. A
diversos. Há uma confusão entre medium e
longa tradição daquilo que Pirotta chama
mídias. A busca de clarificação terminológica
‘Melos dramático’ é analisada e classificada a
desses autores separa conceitos de processos
partir de uma oposição entre texto e música,
criativos bem delineados, de forma que há,
sem a menção à situação de representação
mesmo em uma abordagem mais
que justamente possibilita a elaboração e
problematizadora, a reprodução de uma
execução do drama musical. A oposição e
dicotomia que sinaliza a parcialidade da
dicotomia texto-música reproduz uma
forma de compreensão do objeto ‘drama
hierarquia presente em métodos que
musical’.
pressupõem um teatro baseado em
textualidade, teatro que define seu Tal fato só confirma a inadiável conclusão:
espetáculo a partir da centralidade da quando se trabalha eventos performativos é
palavra falada. Assim, em vez de trabalhar preciso definir qual o ‘pressuposto de
com a heterogeneidade material da obra- espetáculo’ com o qual se trabalha, pois,
dramático musical, a classificação exclui frente a um campo de atividades que se
referências e procedimentos que não são relaciona a um processo criativo, os conceitos
circunscritos pela definição do espetáculo que se relacionam a procedimentos são
que fundamenta tal abordagem. Na verdade conceitos operatórios.
essa dicotomia vem dos métodos utilizados
De outro lado, Cook (1998), mesmo sem se
para estudar um objeto plural: no lugar de
referir a uma dramaturgia musical,
compreender a dramaturgia musical em sua
argumenta que os materiais se definem em

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função de seu contexto de produção. É este Por que tanto objeto quanto a atividade
contexto que modifica e reestrutura os parecem resistir a abordagens que não levem
materiais diversos utilizados, explorando em conta a amplitude e globalidade de seu
suas diferenças de referências e resistências. contexto produtivo?
Dessa maneira nem há a total anulação nem
total oposição entre os materiais. As relações
são efetivadas pelo uso desses materiais. Pluralismo Histórico
Justamente a obra dramático-musical, ou o
musical multimídia, é a contextualização do Retomando nossas considerações na
uso e proposição de novas relações de abertura desse capítulo, Há uma longa
materiais heterogêneos. Estes materiais são história sobre as relações entre teatro e
dispostos e propostos por seu contexto, são música. Pensando de outra maneira, um
reunidos e englobados pela unidade de sua teatro centrado na palavra falada, ou uma
situação de representação mas evidenciam cena unidimensional, é coisa bem recente.
sua diversidade midiática. Essa redução, na verdade, é uma réplica
estética de uma abstração filológica: na
E qual materialidade/diversidade midiática é transmissão de grandes textos do passado,
essa que desponta em uma obra dramático- houve a contínua separação entre conteúdo
musical, ultrapassando dicotomias registrado e contexto performativo.
texto/música, herdeira da dicotomia
texto/espetáculo? Som e imagem – é para a Prova disso são as várias dramaturgias
diferença entre as bandas visuais e sonoras multissensoriais em diversas culturas como
que a dramaturgia musical melhor se as encenações de mitos nos festivais antigos
esclarece. A globalidade de questões e egípcios e a tragédia pré-colombina Quiché
procedimentos de uma dramaturgia musical Vinak, que integram canto, dança, ação e
melhor se apresenta quando há a palavra3.
interrogação em torno de sua amplitude O caso do “Teatro grego antigo”, tido como
midiática, na qual a correlação som/imagem ponto zero da dramaturgia ocidental, é bem
é efetivamente enfrentada. esclarecedor. Como os teatros Egípcio e Maia
Contudo, os métodos de análise que supracitados, e em comum como o teatro
pressupõem as oposições texto/espetáculo e
3 Sobre textos da dramaturgia egípcia antiga, vide o
texto/música têm fundamentado a
livro Escrito para a Eternidade, de Emanuel Araújo
interpretação da dramaturgia musical. Há um (2000), discípulo de Eudoro de Sousa, meu
hiato entre processos criativos e seu orientador no doutorado até seu falecimento. O
famoso “Papiro dramático de Ramesseum” contém
conhecimento, pois a observância dessas texto e ilustrações (storyboard) de cerimônia
abstratas oposições promove a não palaciana de coroação, bem analisados ainda por
consideração da amplitude e das distinções E. Araújo em sua tese Papiro dramático de
Ramesseum (Araújo 1974), e por David Lorand
de uma dramaturgia musical. Assim, a que, em seu trabalho Le papyrus dramatique du
evidência inquestionada do objeto ‘obra Ramesseum: Études des structures de la composition
(2009), defende que o documento é um texto
dramático-musical’ é duplicada pelo vazio propaganda real do faraó Sesóstris I. Além dessas
historiográfico em torno da especificidade cenas dramáticas, temos os textos com
em torno da atividade representacional personagens, rubricas, diálogos em volta do ciclo
de Hórus, que se aproximam das "passion plays"
‘dramaturgia musical.’ medievais. Sobre o tema, ver Gillam (2006).

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Sanscrítico e o Nô, a dramaturgia ateniense transmissão e recepção dos fósseis da Cultura


integrava diversas artes, habilidades, Performativa da Antiguidade (Mousiké), nos
tradições performativas. A sua transmissão deparamos com situações opostas e
textual e a recepção dessa transmissão complementares: a centralidade da palavra,
favoreceram uma imagem que é a que temos tendo como margens o silêncio e a música; e
hoje quando vamos a uma livraria ou a superabundância da música, tendo como
biblioteca e consultamos apenas o libreto, o margens o gesto e o controle rítmico-tonal
roteiro com a ordem das cenas e o conjunto da fala.
das falas.
Além dessas tensões, há diversos casos em
O incrível é que, se um ramo da recepção que os encontros entre reduções e excessos
dessa dramaturgia desembocou no teatro se fazem presentes. O caso de Shakespeare é
literário da centralidade da palavra falada em sintomático. Suas últimas produções são
cena, como se vê no Classicismo francês, contemporâneas da criação da Ópera 6. Ao
outro fez irromper a Ópera4. É porque nesses mesmo tempo, é perceptível nessas
libretos da dramaturgia ateniense, nesses produções finais, um maior uso de
fósseis de uma ampla e generalizada cultura sonoridades, de fantasia, de efeitos
performativa, temos, como vimos na sinestéticos. Não é em vão que muitas dessas
primeira parte deste livro, marcas de mudanças estão intimamente relacionadas
produção de ações sonoramente orientadas, com um maior diálogo de Shakespeare com
como cantos, danças e contracenações experimentos escriturais de recepção da
ritmizadas5. Cultura Grega – os chamados “Romances
gregos”, que transitavam entre drama e
O desenvolvimento da Ópera foi uma
narrativa –, e a aquisição do Teatro
interpretação compensatória desses fosséis:
Blackfriars, um antigo mosteiro com maiores
transformou o silêncio do texto escrito em
possibilidades acústicas que o The Globe 7. O
superabundância musical. Assim, a partir da
que temos aqui é uma dramaturgia que,

4 As discussões da Camerata Florentina, a partir do 6 Como Timon de Atenas (1606), Péricles (1607-1608),
terceiro quarto do século XVI, desemboram nos Conto de Inverno (1609),Cimbelino (1610) e A
experimentos de Jacopo Peri (Dafne, em 1597; tempestade (1611).
Euridice, em 1600) e de Monteverdi (Orfeo 1607). 7 Sobre Shakesapeare e a tradição clássica, ver Cobb
Para a Camerata Florentina, ver a obra organizada (2010), Gesner (2014), Mowat (1976). Sobre o
por Claude Palisca The Florentine Camerata: papel do teatro Blackfriars na “musificação” do
Documentary Studies and Translations (Palisca teatro Shakesperiano, ver Lindley (2006). A
1989). Ver ainda Pirrota e Polovedo (1982). Sobre o questão é ampla: passa não apenas pela
Classicismo francês, temos em mente autores publicação das partituras das canções das obras
como Corneille (1606-1684) e Racine (1639-1699). de Shakespeare, como na coletânea de Ross
Tanto quanto as obras, é importante a Duffin (2004), que teve sua réplica nacional de
racionalização da herança aristotélica, nem tão Zwilling (2010). Além do esforço compilatório de
sistemática quanto se pensa, como bem fontes – presente também em Henze (2017) –, é
demonstra J. D. Lyons (1999). A partir de sua preciso também discutir questões da renovação
tradição, Florence Dupont nos oferece uma ácida da tradição dramático-musical, as tensões entre
critica desse aristotelismo autoritário, centrado da teatro e música, e os contextos de novas
palavra plena e não na espetacularidade explorações dessas tensões. Na obra supracitada
multidimensional da dramaturgia ateniense no de David Lindley e no Music in Shakespeare: A
livro Aristote ou el vampire du théâtre occidental Dictionary, de Christopher Wilson (2014), assim
(Dupont 2007). como noutra obra deste mesmo autor,
5 É imensa a bibliografia sobre o tema (Scott 1984; Shakespeare’s Musical Imagery (Wilson 2011), há
Mota 2008; Scott 1996; Pereira, 2001). subsídios para tais ampliações temáticas.

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mesmo não atravessada por cenas cantadas de Brecht a partir de o debate com a Ópera
ou por acompanhamentos instrumentais, de seu tempo9.
está diretamente relacionada com a
Por outro lado, em plano paralelo, vemos
exploração de experiências e parâmetros
mutações no campo operístico, desde as
psicoacústicos. Isso nos projeta o seguinte
ideias e as obras de Wagner, passando por
paradoxo: podemos ter dramaturgia musical
experimentos que se seguiram à Segunda
em “obras que não são musicais”
Grande Guerra tanto na realização de
propriamente ditas. Uma obra pode não ter
espetáculos que se valem das ampliações
“música”, mas se organizar a partir de obras
estéticas do teatro, da dança e das novas
da tradição dramático-musical. Pois, já que
tecnologias, quanto na remontagem e
não desligamos nossos sentidos,
reprocessamento de obras do cânone
participamos globalmente tanto de uma
operístico.
pantomima, quanto de uma ópera, o que nos
leva a explorar de jogos multissensoriais na Digno de nota é, entre tantos
forma como a obra é performada e empreedimentos, a discussão produzida pela
organizada em sua sucessão de cenas e organização Opera America em 1983, em
referências. busca de alternativas na época para a
estagnação das montagens de óperas nos
Creio que tal discussão além dos gêneros,
Estados Unidos. Entre compositores,
presente na dramaturgia tardia de
diretores, produtores consultados, foi
Shakespeare, projeta o deslocamento da
apontada a necessidade de produção de
necessidade de se identificar a música da
novos espetáculos e de estratégias para que
peça para a percepção de seus sons, de sua
essas novas obras enfrentassem suas diversas
“musicalidade”8.
etapas e atividades de composição,
Dessa forma, a questão da dramaturgia realização, recepção, e produção10.
musical ou da musicalidade das obras nos
Enfim, a partir do horizonte e amplitude que
impulsiona para conceber a amplitude da
as relações entre som e cena nos colocam,
experiência cênica, a complexidade de seus
temos muitas questões abertas.
meios, efeitos e possibilidades.
O teatro moderno e contemporâneo,
9 Muitos desses autores e questões são discutidos
reagindo contra o logofonocentrismo cênico, por David Roesner em seu livro seminal Musicality
explode em interfaces com a música e com a in Theatre: Music as Model, Method and Metaphor in
Theatre-Making (Roesner 2014). Consultar ainda o
dramaturgia ateniense. Vemos a
volume coletivo Musique et Dramaturgie.
musicalidade como modelo para Esthétique de la Représentation ao Xxe. Siècle,
interpretação nos escritos de Stanislávsky – organizado por Laurent Feneyrou (2003); e o outro
volume coletivo, organizado por Giordano Ferrari,
ele mesmo no fim de sua vida criando La Musique et la Scène. L’Écriture Musicale et Son
Estúdios ou oficinas específicas de Expression: Scénique au XXe. Siècle (Ferrari 2006).
interpretação para cantores –, a dramaturgia Ver ainda Martins (2015).
10 A obra coletiva denomina-se Perspectives: Creating
multissensorial de Meyerhold, e as propostas and Producing Contemporary Opera and Musical
Theater (Opera America 1983). A estagnação do
repertório operístico a partir da frequência pela
qual as mesmas óperas são encendas, foi
8 Veja-se a discussão em torno de Beckett (Bailes e estudada por Hervé Lacombe em Géographie de
Till 2014). l’Opera au Xxe. Siècle (2007).

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Aporias Este papel exorbitante, transgressor e


extremo do som mobiliza a performance
As dificuldades intelectuais em se procurar para uma redefinição de sua recepção (Said
entender eventos multissensoriais levaram 1992). Mas, historicamente, a cultura
estudiosos a estranhas e desesperadas ocidental tem refratado por diversos meios
atitudes. Tal irredutibilidade de obras este horizonte transgressivo de atos aurais. R.
dramático-musicais tem sido denominada de M. Schafer tem chamado a atenção para a
“problema da ópera”. A. Einstein (1971, 167) mudança de perspectiva de nossa “paisagem
traduz nesses termos o problema: musical”, com o predomínio de estratégias
visuais sobre as sonoras (Schafer 1997).
A ópera tem sido chamada de uma forma A não consideração da sonoridade em
arte impossível por causa do conflito entre
palavra e música (tone), entre música e situação de representação e de uma
drama, entre o impulso contínuo (urge dramaturgia musical, ou melhor, a exclusão
forward) da ação dramática e a tendência das referências sonoras na elaboração de um
retardante da música, essencialmente
espetáculo ratifica pressupostos que excluem
inconciliáveis.
a compreensão mais global do ato de se
Já J. Kerman (1990, 83) assim coloca o propor e realizar um conjunto integrado de
mesmo problema: referências e orientações para uma
audiência. O uso de e o recurso a materiais
sonoros em uma ficção audiovisual não é um
O modo fundamental de apresentação no
drama é a ação, e no drama musical o meio mero adendo. A produção de nexos entre
de articulação da imaginação é a música. cena e plateia amplia-se e adquire forma a
Inevitavelmente, o relacionamento ou a partir de sua audiovisualidade. E como o som
interação entre as duas, ação e música, é o
é um fator de transformação de contextos,
problema central perene da dramaturgia
operística. localização e sinalização, procedimentos
aurais explicitam os atos de se desenvolver
Note-se que a música em situação de tanto uma memória do espetáculo quanto
representação ou o controle da sonoridade contextos locais de cena.
em uma atividade representacional destaca-
Recentemente tem havido um esforço em
se como o fator de instabilidade que justifica
pensar um design sonoro da cena, mesmo
o “problema da ópera.” A música ou a banda
que ainda sob a influência de processos
sonora e audível do espetáculo foge aos
criativos sem mediação personativa ou
procedimentos de composição estritamente
baseados no design visual11. Havia uma
literários, instituindo uma instância
escassez de trabalho sobre o design sonoro
perturbadora do espetáculo. A banda sonora
cênico. Por exemplo, Parker e Wolf (1990)
produz determinadas referências e
orientações da recepção que se distinguem 11 Sobre a recente tendência de se enfocar a
dos atos visualmente expostos. O conflito dimensão aural das artes cênicas, ver Kendrick e
Roesner (2011), Di Benedetto (2010), Ovadija
entre o que é mostrado e o que é ouvido (2013), Roesner (2014), Home-Crock (2015),
divide a representação, efetivando níveis de Kendrick (2017), Thomas (2018), Mosse (2018).
Não esquecer do “pioneiro” Wichmann (1991). A
referências diversos e simultâneos. Revista Dramaturgias tem publicado regulamente
artigos e dossiês sobre o tema, como em seus
números 2/3, e 5.

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dedicam 40 de suas 612 páginas (pág. 322- Dessa maneira, os procedimentos de


61) para comentar o design sonoro de composição de uma dramaturgia musical
espetáculos, realçando restritas funções de não se furtam da inteligibilidade de sua
evocar referências e contextos, reforçar a situação de representação: a performance
ação e comentar o que se representa. em cena é a contextualização de uma
experiência de audiência. A obra dramático-
Já Bracewell (1990), Lebrecht e Kaye (1999), e
musical é o provimento de uma estrutura de
Leonard (2001) são estudos particulares
correlação cena/platéia. O espetáculo é um
sobre design sonoro para o teatro. Mas
englobante auditorium.
discorrem sobre realizações principalmente
do século XX e detêm-se na descrição de
equipamentos e seus recursos. As questões
Atos recepcionais
quanto à correlação entre som e imagem ou
os diferenciados usos de som e canções em Outra questão relevante é audiência, o que
cena não é remetida a uma longa tradição de nos aproxima de algumas inquietações
realizações. Quando há referências a relacionadas com a mudança do conceito de
produções mais antigas, não há a discussão e texto que a Estética da Recepção procura
análise mais pontual tanto das condições de realçar. Ambas as dicotomias texto-
performance desses produções, quanto da espetáculo e texto-música, obstáculos para a
relação entre obras e essas condições. No compreensão do objeto “obra dramático-
mais, há conselhos, princípios, esboços de musical” e atividade “dramaturgia musical”,
história tudo em termos de uma acústica do reeviam-nos para a abertura e amplitude de
espetáculo. A fisicidade torna-se um análises e questionamentos decorrentes da
universal sem referência a decisões estéticas. ampliação do conceito de texto.
Ora, no campo mesmo da acústica, H. R. Jauss (1982, 76-109), seguindo o
principalmente a partir de Brauert (1996), pressuposto da historicidade da
seguido por Gilkey e Anderson (1997) e compreensão de Gadamer, havia
Warren (1999), observa-se a substituição de questionado a legitimidade de estudos
paradigmas atomizadores por paradigmas históricos de obras literárias baseada em
interacionistas, onde a audição é uma esquemas apriorísticos tais como “gênero”.
atividade complexa que manipula e gera Em vez de ver cada ocorrência verbal como
padrões a partir de distinções espaciais e uma atualização de um modelo abstrato de
temporais, um verdadeiro instrumento de composição, Jauss defende que cada
compreensão e localização. Assim, a audição ocorrência, cada “variante”, tem o estatuto de
orienta e situa o sujeito e seu entorno em obra. É desde já uma instância produtiva de
seus contínuos reposicionamentos. Tal novas apropriações, gerando uma
dinâmica auditiva é exibida mais abundância de formas e possibilidades de
enfaticamente em ambientes virtuais de realizações12. Assim, uma obra deixa de ser
recepção, e em nosso caso, em obras estudada como explicação ou aplicação de
audiovisuais vistas como diversificação de
uma atividade de audiência. 12 Argumento que depois será decisivo na proposta
Hutcheon (2013), na qual no lugar da oposição
entre original e cópia, vê-se que uma obra gera
outra, é ao mesmo tempo produto e produção.

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um esquema para se tornar um espaço de teoria geral das representações13, de forma


modificação de práticas e expectativas de que a operacionalidade do texto reivindica a
produção. O texto da obra é a escritura desse consideração de escrituras especializadas de
espaço de apropriação e reinterpretação de específicas representações. Quanto mais nos
formas. A leitura e interpretação das obras afastamos de conceitos genéricos de texto e
passa a ser a compreensão dessas variações de representação, mais nos aproximamos das
como eventos historicamente efetivados. modalidades escriturais performativas.
W. Iser, por sua vez, vai procurar formalizar a A partir das considerações acima, como uma
interação texto-leitor presente na provocação, imagino como alvo
historicidade da compreensão que as obras observacional de um possível
efetivam (Iser 1996; 1999). A díade leitor-obra empreendimento intelectual o estudo e
promove a ultrapassagem de uma análise de uma tradição dramático-musical
abordagem que reduz as estratégias cujas quatro variáveis (Ésquilo, Monteverdi,
interpretativas de textos à sua invariância Wagner e Brecht) convergiriam para
modelar e consequente desconsideração do definição do escopo das atividades de uma
contexto produtivo que é instaurado durante dramaturgia musical integral. A escolha deste
sua recepção. O conceito de texto amplia-se quatro dramaturgos musicais justifica-se: em
na exibição de englobantes operações função dos pressupostos acima apresentados
presentes em sua situação de interpretação, e discutidos, que conjugam textualidade de
na interação entre texto e leitor. obras dramático-musicais com questões
audiovisuais, valho-me de um pluralismo
Básico para tal interação é sua efetividade
metodológico (Bachelard 1949) para conciliar
assimétrica. Texto e leitor aproximam-se no
atividades que poderiam ser realizadas
diferencial de suas referências, diferencial
durante a análise das obras escolhidas14.
este que nunca é anulado durante a
atividade de leitura. Assim uma obra tornar a
diversificação deste diferencial, dessa 13 Intuição que Platão defende em Íon: “deve haver
assimetria entre texto e leitor. A escritura uma teoria geral das habilidades performativas”
passa a ser compreendida como disposição (Mota 2009, 191).
14 Entre essas atividades, indico: a discussão de
de uma série de atos que exploram esta procedimentos de dramaturgia musical; discussão
assimetria. das condições de performance implicadas nas
obras; acompanhamento da situação de
Esta concepção operacional de texto como representação de cada obra a partir da sequência
de partes, agentes dramáticos, contracenações e
exploração de atos de interação revela um
programa sonoro; diálogo com a recepção crítica
caráter performativo do texto, uma não da obra, de forma a dimensionar o alcance e a
oposição entre textualidades e importância de determinados tópicos com o vazio
historiográfico em torno de outros problemas;
representação. Frente a diversidade de nexos identificação de padrões e recorrências de
possíveis para um texto performativo e representação como parâmetros de composição,
diante da diversificação do conceito de texto, realização e recepção; apresentação de gráficos,
tabelas e esquemas que explicitem padrões de
podemos concluir que é impossível haver um representação e suas transformações ao longo das
conceito unificado de texto bem como uma obras analisadas; comparação entre as diversas
singularidades de apropriação destes padrões dos
autores estudados, de forma a estabelecer tanto
as recorrências, continuidades e descontinuidades
de uma tradição de obras dramático-musicais.

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Como se vê, durante a análise das obras partir da detida análise da específica
elencadas, teríamos a discussão de recepção textualidade das obras restantes de Ésquilo15.
crítica, comparativismo e recursos gráficos
Nessas obras, em vez de nos determos na
planejados. A realidade multitarefa do
discussão de um conceito a priori de trágico,
processo criativo de ficções audiovisuais
procuramos, a partir de marcas textuais
projeta o horizonte amplo de sua análise.
relacionadas com a orientação de espetáculo,
melhor caracterizar tanto a definição de
espetáculo presente na escolha dessa marcas
Momento 1 da Fantasia: Ésquilo
quanto os procedimentos implicados para a
(525/524 a.C - 456/455 a.C.)
viabilidade de tal definição. Ora se as obras
Ao se trabalharmos com uma dramaturgia são a contextualização de sua atividade
fragmentária como a de Ésquilo, produzida recepcional, tais obras manifestam padrões e
há dois mil e quinhentos anos, sem partituras nexos de referência e orientação para a
ou documentação sobre sua realização e compreensão de seu processo criativo global.
avaliação crítica e textos teóricos do autor ou Demonstrando a complementaridade entre
de comentaristas contemporâneos, foi composição e performance, elaboração e
necessário o provimento de uma série de realização, os padrões foram identificados e
decisões metodológicas para enfrentar tal diferenciados em função em razão da
precariedade da situação interpretativa. E generalizada inteligibilidade visada por estes
creio que grande parte dessas decisões padrões.
forneceram o impulso para esclarecimento Assim, as seções cantadas do drama de
do campo de estudos em torno de uma Ésquilo, em seu confronto com as partes não
dramaturgia musical. cantadas, registravam um ritmo de
Ora, no limite figurável entre impossibilidade representação audível e inteligível,
da reconstrução da performance original e movimentado grandezas sonoras,
produtividade da distância histórica – posicionado a audiência e sua interação com
inolvidável diferença entre o intérprete e seu a cena. A diversificação e interrelação entre
“objeto” nunca redutível ao horizonte do as partes cantadas e faladas alterava o
analista (Gadamer 1998) – estendia-se um
15 Em Pavis (2001, 157) temos o seguinte esquema
arco dentro do qual a contextualização da
das mudanças epistemológicas dos últimos trinta
atividade de representação estudada anos nos ‘estudos de teatro’: “1958-1968 – uma
negocia constantemente os termos de sua concepção logocêntrica do teatro a despeito da
influência da dramaturgia de Brecht; 1968-1978 –
argumentação e o alcance de sua prática os começos da semiologia teatral; teoria do
investigativa. A alternativa que suspendia os discurso teatral e intertextualidade; 1978-1988 –
imperativos de uma reconstrução total ou de práticas significantes, desconstrução e
performance sobre a influência da teoria norte-
uma absoluta aplicação de teorias e agendas americana pós-estruturalista; daí a promoção da
críticas contemporâneas a eventos não interarte; 1988-1998 –antropologia teatral
(influenciada por Schechner e Barba);
contemporâneos, fundamentava-se na performance e interculturalismo; sociologia do
contínua interrogação da especificidade da teatro (Schevtsova); 1998-2008 – um prognóstico
atividade representacional pesquisada a otimista pode ser dado através da re-
historicização da pesquisa e da prática; escritura e
leitura de textos dramáticos de acordo com nossa
experiência da prática teatral.”

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horizonte das atuações produzindo uma apresentar a argumentação presente na


série de distinções e gestos reconhecíveis disposição dos procedimentos estudados.
que assinalavam a inserção do contexto de
Todavia, em nossa pesquisa de doutorado
cena na globalidade do espetáculo.
sobre Ésquilo, inventariamos e
O recurso à trilogia patenteava o programa correlacionamos estes procedimentos e os
aural da representação e a manipulação das parâmetros implicados, mas nos detivemos
distinções, gestos e grandezas sonoras, mais nessa instância analítico-descritiva. Em
produzindo cenas onde o contraste entre alguns momentos, efetuamos comparações
localidade da cena e amplitude trilógica da com Monteverdi, Wagner ou práticas
representação possibilita a simultânea cinematográficas17. Há poucos esquemas,
presença de música e atos não gráficos e tabelas nas 708 páginas que
imediatamente vinculados. A tensão entre escrevemos. Enfim, levantamos um conjunto
localidade da cena e a amplitude trilógica do de hipóteses e questionamentos junto com
espetáculo efetivou um campo de as análises que exigiriam um posterior
experimentos, procedimentos e realizações desenvolvimento18. As necessárias conexões
que exibiam a existência de parâmetros entre dramaturgias e os refinamentos
observáveis de uma dramaturgia musicais e a conceituais das análises constituem-se novas
possibilidade tanto de conhecê-los e quanto metas frente a novos problemas e métodos.
trabalhar com seus limites e perspectivas.
Ou seja, a escassez de informações sobre o
Se Ésquilo conheceu tais parâmetros fazendo espetáculo de Ésquilo – escassez essa
espetáculos dramático-musicais em uma quando comparada a obras mais recentes –,
carreira que se estende por orientou-se a nos concentrar em um tipo de
aproximadamente 50 anos e noventa peças metodologia que garantiu o exame atento de
(499 a 456 a.C.), tais obras não são apenas distinções audiovisuais a partir de uma
monumentos estéticos, mas uma cultura reconceitualização do texto restante da
material para provocante arqueologia: a tradição e suas marcas metareferenciais. A
interrogação de uma competência necessária interrogação de uma nova
sonológica a partir de uma competência dramaturgia incorpora a metodologia
realizacional16. adotada em Ésquilo completando-a e
diversificando-a em virtude das informações
Ora, o renovado diálogo com obras do
sobre condições de performance e recepção
passado a partir desse limite de
crítica.
pressuposições e consequente deslocamento
para o tempo lento da análise favoreceu a 17 Esbocei uma comparação entre dramaturgias
abertura da prática investigava, abertura musicais no apêndice II de minha tese intitulado
“A dramaturgia de Monteverdi em Orfeo e a forma
esta, disposta na complementaridade entre analítica de representação”. (Mota 2008, 487-496).
descrição e discussão de procedimentos e 18 Posteriormente, com o recursos do edital CNPq
sua interligação, de modo a se poder 2009, na pesquisa “Teatro, música e metro:
simulações audiovisuais, a partir de padrões
métricos a tragédia Grega” e edital CNPq 2010
“Tragédia e Hipertexto: Desenvolvimento de
16 Para as datas de Ésquilo ver Wartelle (1971). Para o Edição online de Obras Dramáticas Clássicas”
termo “competência sonológica”, ou transcrições em arquivos sonoros e visuais de
conhecimento das formações sonoras, ver Schafer trechos de obras de Ésquilo foram produzidos.
(1997). Vide Mota (2012).

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Daí o segundo nome: Claudio Monteverdi. musical. Mas temos justamente o contrário,
como se pode acompanhar pela tradição
crítica19. Com a presença de uma
Momento 2 da Fantasia: Monteverdi textualidade mais dimensionada e
(1567-1643) explicitada, inaugura-se, ao contrário, o rol de
antinomias que observamos na discussão
A dramaturgia de Ésquilo e a de Monteverdi dos pressupostos. A presença de um controle
se aproximam no sentido de complementar a escritural maior do espetáculo parece
tradição de obras dramático-musicais que trabalhar contra o escopo da atividade
pesquisamos. Há uma rede de dados e representacional que é articulada por essa
procedimentos que torna a correlação entre escritura.
as duas dramaturgias uma operação
coerente e necessária (Mota 2018, 223-233). A. T. Chafe assim comenta a recepção crítica
Ambos, Ésquilo e Monteverdi, tiveram uma das obras de Monteverdi:
grande produção de obras, no entanto,
somente uma parcela pequena sobreviveu. O Embora a obra de Monteverdi tenha sido
que legitima a adoção da opção descrita e analisada em uma variedade de
modos, as análises se dividiam entre teoria e
metodológica da análise atenta do material análise de um lado, e história e crítica de
restante e interrogação do processo criativo outro. Meu objetivo é unir estas duas o
implicado. quanto for possível, em uma abordagem que
demande fundamentar suas premissas
Contudo, em alguns pontos as dramaturgias teóricas no avanço da análise das obras.
musicais se diferenciam: (Chafe 1992, prefácio)

1. A partitura e as rubricas, ausentes em A antinomia entre texto e performance,


Ésquilo, estão presentes em mesmo em obras partiturizadas, fez
Monteverdi; reverberar metodologias e julgamentos
2. Ainda, há textos como cartas e antinômicos. Vemos como a discussão
prefácios, nos quais Monteverdi metodológica vincula-se a pressupostos, à
expõe parte de seu processo criativo e definições de espetáculo.
alguns procedimentos. Assim, frente à Não é em vão que P. Kivy (1999, 93), a partir
metaliguagem interna, presente nas de pressupostos textualistas estritos, afirma
obras, temos a presença de uma que “Orfeo propõe o ‘problema da ópera’, mas
metalinguagem externa, em outros não o resolve. Como uma ópera, Orfeo falha
textos além dos dramas-musicais, o (magnificamente) em dar uma forma musical
que só confirma a complexidade da ao drama; falha em fazer do drama, música.”
atividade de se propor ficções Kivy baseia o pretenso fracasso de Orfeu na
audiovisuais para a cena em virtude falta de unidade formal da obra como
do amplo espectro de questões demonstração da impossibilidade de a
representacionais correlatas. música representar algo além dela própria.
Ora, a presença da partitura e de uma maior Assim temos uma dupla tensão:
documentação serviria para fundamentar
uma maior compreensão da dramaturgia
19 Exceção feita ao recente e excelente Carter (2015).

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em nível micro, há o problema de dar a cada fábula em música. Comum a estes dois
parte “atômica” da obra – nesse caso as dramaturgos musicais é a ampliação do
seções individuais do stile rappresentativo,
arioso, ária, partes corais e prelúdio escopo de obras dramático-musicais. Por
instrumental – uma forma viável. Em nível isso, ambos instituem uma tradição dentro
macro, reunir esses átomos juntos em uma da tradição, ao demonstrarem a exploração
obra artisticamente integrada o que, no dos limites e possibilidades da atividade
começo no século XVII, deve ter sido visto
como uma tarefa impossível (Kivy 1999, 65). representacional. Espacialização, marcação
emocional, programa sonoro, entre outros
Note-se como preso apenas a categorias de procedimentos, tornam-se mais focalizados
composição, sem referir-se a realização e pelos agentes dramáticos que a
recepção, Kivy concebe a dramaturgia em concretização/reprodução de um mundo. Os
Orfeu como antimodelo de uma composição agentes dramáticos exibem o processo
puramente musical. A tensão entre drama- criativo mesmo do espetáculo.
música implica a existência de uma hieraquia
de mídias, sem interrogar sobre o
relacionamento de mídias em situação de Momento 3 da Fantasia: Richard
representação. De maneira que a Wagner(1813-1883)
documentação maior proclama o fetiche do
texto concebido como uma estrutura O terceiro autor que integra essa
autônoma e autocentrada, estrutura esta que metatradição dramático-musical é Richard
passa muitas vezes se ser modelo Wagner. Mas em Wagner reside um paradoxo
composicional. O processo criativo assim muito bem apontado por A. Apia, paradoxo
compreendido passa a ser a aplicação de este extremamente revelador da erudição
uma forma de apresentação independente entre torno da representação e as próprias
dos fatores complicadores de sua execução. representações: o paradoxo da
O espetáculo é igualado ao texto desprovido inteligibilidade dramática. Apia, em sua
de um horizonte performativo. análise das obras de Wagner, havia
demonstrado como há uma tensão entre a
Contra isso, a dramaturgia musical de composição e sua encenação20.
Monteverdi, retomando a ausência de
esquemas prévios da Mousikê helênica, Os vários ensaios e textos ensaísticos de
comparece como um documento mais Wagner e a longa elaboração da tetralogia
explícito de determinados procedimentos Anel providenciaram uma massa de dados e
distintos, integrais e correlacionados de informações que se tornaram lendárias. Mas
ficções audiovisuais para a cena. Apia bem percebeu além dos projetos e
planos compositivos, que a proposta de
É dentro desta tradição que exibe não só um encenação de Wagner para suas obras não
espetáculo mas o processo criativo de acompanhava a dinâmica aural teorizada e
espetáculos dramático-musicais que partiturizada.
Monteverdi se insere. Ésquilo renovou a
dramaturgia grega através das trilogias Assim, as distinções e formulações de
(tetralogias) de obras conectadas, Wagner cada vez mais se centram na
Monteverdi ampliou a música como
20 Ver Appia (1981; 1997). Ver, ainda, Mota (2018, 51-
espetáculo e representação através de seu 59).

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audição. A visualidade exorbitante e Dessa forma, a contribuição teórica e


monumental reverbera o gigantismo das realizacional de Wagner é utilizada não só
precisas manipulações de referências para o entendimento de uma dramaturgia
sonoras. em especial ou isolada mas é reorientada
para a compreensão global de certa tradição
Contudo, apesar do menor enfrentamento da
e de determinada atividade representacional.
assincronia do som e da imagem, em prol de
Com isso, em vez de uma sucessão
uma maior sincronia e estabilidade da
progressiva de autores que gradualmente
visualidade, o esforço intelectualista de
vão ou confirmando ou refutando um
Wagner e seu diálogo com a tradição
modelo geral compositivo, passamos a ver
dramático-musical forneceu o maior número
que verticalmente as dramaturgias se
de comentário a procedimentos e conceitos
alinham e se sobrepõe em soluções de um
de uma dramaturgia musical. O
mesmo problema.
enciclopedismo de Wagner é um
mapeamento do campo de ficções A partir dessa cooperação, em função da
audiovisuais. Mesmo que haja uma saturação definição de espetáculo e não a partir da
da relação obra-ouvinte em virtude da absolutização da época das produções, há
reprodução da proposta de encenação de uma manipulação tanto flexível quanto
Wagner e sua concepção pomposa da precisa das dramaturgias estudadas. A
visualidade, novas propostas de encenação dramaturgia de Wagner pode ser utilizada
poder arrefecer esta saturação. para esclarecer a dramaturgia de Ésquilo, e
vice-versa. Metodologicamente, trata-se de,
Enfim, a obra de arte total, a melodia infinita,
como se redefiniu conceito de definição de
a extrema continuidade do espetáculo, os
texto em situações de representação,
motivos condutores, o teatro acústico de
redefinir a noção de contexto. Se o texto de
Bayreuth são soluções para obstáculos
obras audiovisuais, se a escritura de uma
representacionais de uma obra dramático-
dramaturgia musical torna premente o
musicais que, além de uma incansável
conhecimento das marcas de representação
paráfrase, precisam ser contextualizados em
presentes nessa escritura, a contextualização
função da atividade específica denominada
de obras audiovisuais também dirige-se para
dramaturgia musical. Foi Wagner quem mais
a identificação, diferenciação e interconexão
explicitou o campo da dramaturgia musical
de procedimentos específicos de uma
em suas possibilidades, limites e obstáculos.
dramaturgia.
Mas o campo não se confunde com Wagner.
Porém, deve passar por ele. Assim, bem caracterizada a contextualização
de uma dramaturgia, tal contextualização
Assim, é preciso compreender porque
não resume ao conhecimento de uma
Nicholas Cook qualifica a proposta dramática
pontual performance, pois a compreensão
de Wagner como abstrata, no sentido de não
das obras não reduz a explicar uma produção
acolher a complexidade das interações das
individual para tornar inteligível seu processo
bandas sonoras e visuais (Cook 1998, 120-21).
criativo.
A efetividade multimidiática da dramaturgia
musical engloba produções de autores e Aqui é preciso deixar clara a hermenêutica
épocas diversas. distinção entre explicar e compreender

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(Gadamer 1998, 286-306; Jauss 1982, 138- De outro lado, ratificando esse
148). As operações cognitivas para descrever contextualismo estrito, o classicista M. L. West
e classificar textualidades concebidas em bradou com veemência “Ésquilo não é
uma pretensa autonomia são diferentes de Wagner (Burzacchini 1997, 197).” Lloyd-Jones
operações cognitivas que integram (1995, 177-181) intensifica este confinamento
textualidades em situações interpretativas da dramaturgia grega ao museu literário,
mais complexas. Uma contextualização retomando sua crítica à investigação de
apenas por explicação promove a inserção Ewans, 1982, ao afirmar que a influência de
das obras analisadas em série de dados sem a Ésquilo sobre Wagner se reduz a
consideração da especificidade de sua empréstimos da concepção geral da trilogia
atividade, posto que há um predomínio de e de aspectos narrativos, o que não condiz
estratégias de atomização sobre as de com uma reflexão maior sobre a composição
integração. e realização de uma obra dramático
musical21.
Logo, como há vários tipos de textualidades,
há variados modos de contextualização, o No entanto, Ewans (1982) havia demonstrado
que nos coloca metodologicamente a que as relações entre Orestéia de Ésquilo e o
prerrogativa de uma contextualização mais Das Ring de Wagner são mais que afinidades
aproximada aos textos que investigamos. eletivas. A coerência das similitudes entre as
obras nos situa diante de questões sobre a
O caso de Wagner e sua e sua pertença à
dramaturgia, sobre a tradição de uma
metatradição de obras dramático-musicais,
dramaturgia e seus problemas
esclarece a opção metodológica de recurso a
representacionais. O diálogo entre Ésquilo e
um comparativismo compreensivo e não
Wagner não se reduz ao empréstimo mas
explicativo: em vários momentos, Wagner
produz esclarecimentos sobre as implicações
refere-se ao teatro grego como modelo de
da elaboração de ficções audiovisuais. Como
sua dramaturgia. Essas referências vão mais
a questão da existência ou não de leitmotifs
além de ideias desconexas, “idéias fora de
em Ésquilo domina a questão (Scott 1984
lugar.”
sobrevaloriza este tópico), a negação desses
J. Buller (2001), preocupado em desmistificar leitmotifs (Lloyd-Jones 1995, 179) não
a aura em torno de Wagner, procura mostrar encerra a discussão. Mesmo em Wagner a
que as pretensas inovações da obra de questão dos leitmotifs como explicação
Wagner se encontram no próprio discurso fundamental da dramaturgia musical não se
musical romântico. O contexto imediato verifica22.
explica a adoção tanto de formas musicais
Assim, há a possibilidade de se utilizar a
quanto de bizarros comportamentos.
análise dramatúrgica como ferramenta para
Reagindo contra a criação do mito Wagner, a
um comparativismo compreensivo que
contextualização transforma-se em uma
estabelece nexos entre produções realizadas
desmistificação, como se vê em Cicora (2000),
com séculos de distância mas que são
Lacoue-Labarthe (1994) e Deathridge e
aproximadas em função da atividade
Dahlhaus (1988). Preso ao seu tempo,
Wagner é domesticado. Mas não sua
21 Posições ampliadas em Ewans (2016).
dramaturgia. 22 Conferir Millington (1995, 259-260, 272-293, 475-
479).

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realizacional específica que as reúne e as audiovisuais que instauram a oposição entre


esclarece mutuamente. O comparativismo de duas dramaturgias: uma que se recusa,
mútuo esclarecimento, a partir de uma denominada “Ópera dramática”, cuja
análise da dramaturgia musical, favorece a composição baseada em uma sucessão
maior coerência da contextualização de contígua de cenas concretiza a reprodução
ficções audiovisuais. das figuras e do mundo de um enredo, de
forma orientar as expectativas e as emoções
da recepção a este enredo; outra que se
Momento 4 da Fantasia: Bertolt requer, denominada “ópera épica”, cuja
Brecht (1898-1956) composição baseada em cenas
independentes, não lineares ou sujeitas às
E enfim, como se fala tanto em paradigmas expectativas de enredo, procura expor a
críticos, o último nome da metatradição da representação enquanto representação,
dramaturgia musical é B. Brecht (Mota 2018, enfatizando os suportes de sua realização –
98-107). Brecht dirige-se diretamente contra os articuladores de cena, a música – o que
parte da herança do wagnerismo e sua obra mobiliza não só os afetos mas a cognição da
de arte total. Reagindo contra a afetação de audiência para a sobreposição de referências
um espetáculo que unifica seus efeitos de vários níveis representacionais.
recepcionais ao apagar suas marcas de
ficção, Brecht defende uma nova Note-se que tal composição desenvolve uma
dramaturgia musical, menos preocupada em performance atrativa da própria
reproduzir a ilusão de uma realidade. performance, ao invés do apagamento das
marcas de ficção. O meio audiovisual é
Como extremo da ponta de quatro autores exibido e explorado na construção do
aqui escolhidos, Brecht, como seu outro espetáculo e da audiência.
extremo – Ésquilo – comparecem
aparentemente como autores de Ainda nas notas para Mahagonny, Brecht
dramaturgias não musicais. Contudo, foi a demonstra que o fundamento para a ópera
sua experiência com a dramaturgia musical épica está no papel atribuído à música na
que possibilitou o posterior teatro épico. representação. Para tanto ele propõe um
Como veremos, as contribuições do estudo quadro que complementa o rol de
de dramaturgias musicais projetam a antinomias já citadas:
compreensão de dramaturgias não musicais,
de forma que se ultrapassa essa antinomia de Ópera dramática – Ópera épica
gêneros para se estabelecer a faticidade a música serve – ela é intermediária;
a música intensifica o texto – ela explicita o
midiática da cena teatral. texto;
Metodologicamente, a contribuição de a música afirma o texto – ela pressupõe o
texto;
Brecht se individualiza como uma crítica à a música ilustra – ela toma posição;
própria dramaturgia musical. Em suas a música pinta a situação – ela dá o
anotações para a ópera Mahagonny temos comportamento. (Brecht 1978, 17)
uma lista de características relacionadas
principalmente com questões de
Nas palavras de G. Bornheim, a proposta da
composição e de recepção de ficções ópera épica integra um grupo de reações:

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contra a marginalização da música ou a sua distanciamento, podemos alterar sua


função meramente incidental no teatro performance a partir da compreensão de
naturalista, no expressionista e, de modo
geral, no teatro dito literário, contra também suas implicações.
a onipresença da música no cinema […] e Assim, a crítica de Brecht a Wagner não
que leva com frequência a considerar a
melhor música aquela que não se ouve. invalida Wagner, mas melhor esclarece parte
(Bornheim 1992, 299). da abstração do conceito de obra total.
Segundo Brecht, em O Pequeno Organon, a
Assim, o papel perturbador e transgressivo fusão dos elementos audiovisuais só pode
da música e sua incidência direta sobre a existir se houver a redução tanto dos meios
forma de organização e inteligibilidade do quanto dos efeitos recepcionais. De outro
espetáculo transforma-se na diretriz para a lado, a busca da obra total, por parte de
proposição de um teatro que leva em conta Wagner situa a amplitude das obras
seu medium e sua situação de representação. audiovisuais.
A sonoridade vem ao encontro dos outros
A tensão entre pluralidade ou
atos em cena, estabelecendo o
homogeneidade de obras dramático-
reconhecimento dos distintos
musicais não se reduz ao debate Wagner-
procedimentos audiovisuais.
Brecht23. Na verdade temos uma discrepância
Em sua dramaturgia musical, Brecht, pois, entre a realização dessas obras e a maneira
defronta-se com a abstração presente na de nos referirmos a elas. A contribuição
obra de arte total de Wagner: o impulso de crítica de Brecht junto à herança wagneriana
totalidade dramática da obra dramático- possibilita a uma recontextualização da
musical é detido no contrário de uma dramaturgia musical a partir de um
generalizada diferenciação dos recursos enfrentamento de seus limites cognitivos,
empregados. A sincronização de imagem e aproximando discussões estéticas de
som não apaga a fisicidade específica das questões de inteligibilidade. Longe do
mídias diversas. A ficção encenada polemismo imediato, temos a abertura de
demonstra-se como manipulação dessas um campo de observações e investigações24.
diferenças e grandezas.
Enfim, os quatro autores e suas obras
Contudo, o idealismo estético de Wagner, e fornecem uma tradição de discussão e
não sua dramaturgia, é refutado elaboração dos limites e possibilidades da
completamente pelo criticismo de Brecht. dramaturgia musical.
Como se sabe, há uma descontinuidade fatal
entre os conceitos de Wagner em suas obras
teóricas e suas obras audiovisuais. Da mesma Concluindo
maneira, em Brecht, o teatro épico e a teoria
do distanciamento não se reduz ao O vasto domínio de tradições, obras e
procedimento de transpor as falas para a 3 a autores associados a “dramaturgia musical”,
pessoa, para o pretérito ou na enunciação nos impele a uma discussão conceptual que,
das rubricas de cena. Há um intervalo 23 Debate este como o de Eisenstein (1990) versus
produtivo entre a reflexão e sua realização. Adorno-Eisler (1972).
24 Sobre um modo mais integrativo de ver os
Em vez da pura invalidação do discursos e polêmicas modernistas, ver Mota
(2010).

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mais que propor definições e soluções, Araújo, E. 2000. Escrito para a Eternidade.
questiona, enfim, o próprio intérprete, as Brasília: Editora UnB.
suas estratégias de interpretação.
Bailes, S. e N. Till, org. 2014. Beckett and
A fantasia conceitual aqui executada
Musicality. Londres: Routlegde.
procurou explorar alguns aspectos desse
pulsante e multiplanar objeto. Nessa fantasia, Bernhart, W., S. P. Scher, e W. Wolf, ed. 1999.
um possível diálogo em realizações e Word and Music Studies: Defining the Field.
propostas separadas por séculos de Amsterdan: Brill Rodopi.
existência nos indica a contemporaneidade
do não contemporâneo, retomando as Bornheim, G. 1992. Brecht: A Estética do
palavras de Reinhart Koselleck: uma Teatro. São Paulo: Graal.
articulação de problemas e obstáculos que
torna possível a “dramaturgia musical” como Bracewell, John. 1993. Sound Design in the
um acontecimento25. Theatre. Nova York: Prentice-Hall College
Division.
A partir da compreensão desse jogo entre
problemas e obstáculos, tanto o estudo
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quanto a produção de obras de “dramaturgia
Psychophysics of Human Sound Localization.
musical” pode encontrar um horizonte
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hermenêutico mais efetivo. O que tem sido
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