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MEMORIAL DESCRITIVO

Memorial apresentado por José Tarisson Costa da Silva, indígena do povo Nawa
(Mâncio Lima/AC) como requisito para o processo seletivo do PPGAS/MN/UFRJ –
2019.

20 de maio de 2019 – Recife, PE


Pensar a escrita de um memorial envolve limites e desafios para quem o escreve.
Na medida em que redijo o texto, reconheço as barreiras em rememorar ações e atos que
considerei importantes para o contexto presente. Por isso, é um grande desafio juntar
fragmentos coesos em um roteiro organizado que descreva as vivências e experiências,
reconhecendo-as sempre como parte de um grupo ao qual sou vinculado: o povo Nawa.
Ora aproximado, ora distante do vínculo étnico, hoje entendo a ancoragem das
1
memórias sobre as quais escrevo. O austríaco Michel Pollak (1992) evidenciava a
memória como um aspecto constituinte do sentimento de identidade, em constante
processo de mudanças garantindo o sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo.
Quando escrevi este memorial, não elaborei apenas uma trajetória enfeixada de
José Tarisson Costa da Silva, mas, sobretudo, um percurso comum a muitos dos meus
parentes Nawa ─ percurso de migrações que tenho interesse em compreender e cuja
complexidade pretendo analisar, a partir deste processo de seleção. Divido este
memorial em dois momentos: (1) trajetória de escolarização e o distanciamento das
relações com meu povo; e, por fim, (2) o percurso acadêmico e aproximação com o
povo Nawa a partir da minha inserção no contexto universitário.
2
Nascido em 14 maio de ​1996, na cidade de Mâncio Lima/AC , sou Nawa, povo
3
habitante no Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD) , em Mâncio Lima, Acre -
Brasil. Minha trajetória acadêmica até Recife ─ lugar onde atualmente resido para
finalizar a graduação em Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco ─ é um
percurso dos objetivos do meu avô, Francisco de Assis Souza (Chico Peba), cuja
história de vida no período do seringal (década de 1980) o levou a sair do território em
busca de melhores condições de vida.
Migração motivada em grande parte pelas ameaças dos donos dos seringais, que
cobravam altos impostos para a permanência das famílias indígenas trabalhadoras
habitando na região, meu avô viu a cidade como válvula de escape para os filhos e para
as gerações futuras – um das quais faço parte. O deslocamento para a cidade aconteceu,
também, na busca de melhores condições educacionais que nos contemplassem. A
migração, assim, provocou o início do distanciamento dos ​vínculos afetivos, identitários
4
e políticos com o povo .
Somente em 1999, após meu avô ter saído da região onde as famílias indígenas
trabalhavam, os meus parentes Nawa se reorganizaram e reivindicaram reconhecimento
junto às autoridades indigenistas, contrapondo-se à perspectiva historiográfica na região

1
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. ​Revista Estudos Históricos​, v. 5, n. 10, p. 200-215,
1992.
2
Município do Acre distante aproximadamente 674 Km de Rio Branco, Mâncio Lima é é o município
mais ocidental do Brasil, ​localizado no ponto extremo Oeste do território brasileiro na nascente do ​rio
Moa​, situada na fronteira com o ​Peru​. ​Na região habitam mais três povos indígenas: Puyanawa e Nukini,
quem em conjunto com o povo Nawa e outros povos formam o chamado “Caminho das Aldeias”, de
acordo com o Plano Plurianual (2016-2019) do Acre.
3
O ​Parque Nacional da Serra do Divisor ​(PNSD) é uma ​unidade de conservação de proteção integral da
Natureza localizada no ​Acre​, na fronteira com o ​Peru​, com a área territorial ​abrangendo os ​municípios de
Cruzeiro do Sul​, ​Mâncio Lima​, ​Marechal Thaumaturgo​, ​Porto Walter e ​Rodrigues Alves​. A administração
do Parque, atualmente, é responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), uma ​autarquia​ vinculada ao ​Ministério do Meio Ambiente​.
4
No processo de organização sociopolítica do território, minha família foi convidada a voltar à Terra
Indígena. Entretanto, temendo as tensões na região meus familiares decidiram permanecer na zona rural
de Mâncio Lima, lugar onde habitam na atualidade.
de que o povo Nawa havia desaparecido em 1904, com a morte da “última índia Nawa”:
minha tataravó Mariruni, conhecida pelo nome em português de Mariana.
Nasci na zona rural de Mâncio Lima, na estrada da Aldeia Barão (povo
5
Puyanawa ). Aos 6 anos de idade, necessitava de educação escolarizada, mas o contexto
do campo não possibilitava a escolarização regular. A situação levou minha família
nuclear a buscar o contexto urbano como possibilidade de favorecer o meu acesso aos
estudos. Nesse percurso, fui introduzido ao contexto educacional na Escola Joaquim
Generoso de Oliveira, no bairro Iracema, onde atualmente habita a maior parte da
população Nawa em contexto urbano. Tive formação escolar inicial por uma tia Nawa,
que me ensinou no ano pré-escolar (2003). Ainda na mesma cidade, mudei para a
Escola Francisco Freire de Carvalho, no bairro Colônia São Francisco, onde fiquei até o
4º ano, quando, debilitado após a sétima malária, fui levado para fazer tratament​o na
capital Rio Branco​. Os problemas de saúde me impossibilitaram de estudar durante
2005, o que provocou a minha reprovação. Comecei a refazer a série perdida,
entretanto, ao identificar excelência nos rendimentos, a escola na qual eu estava
estudando resolveu mudar minha matrícula para outro ano/série, mantendo o fluxo
regular para a minha idade.
Naquela época, a separação dos meus pais havia ocorrido e influenciou
diretamente minha formação básica. As mudanças constantes de endereços me colocava
o desafio da distância para continuar os estudos. Ora morando com uma das minhas
avós na cidade, num contexto rígido de dedicação escolar sob o qual fui posto, ora na
zona rural diante do desafio da distância até a escola, nunca desisti de manter a
perspectiva que meus avós indígenas tiveram quando saíram do seringal. Estudar era um
meio de superação da vivência desafiadora de todos os dias. Nesse contexto, uma
bicicleta foi o que me garantiu sair do campo, sob o sol forte, para estudar na cidade e
retornar à noite, numa região cuja iluminação era feita à base de lamparinas ─ ou
porongas,​ como chamamos no Acre.
Em 2008, mudei-me definitivamente para ​Rio Branco, motivado,
principalmente, pelas possibilidades de ampliação das oportunidades para os estudos
que a pequena cidade onde eu nasci não me proporcionava. Continuei minha formação
em escolas em bairros periféricos até em 2012, quando fui contratado para trabalhar em
uma rede de supermercados. O regime de 4 horas de trabalho possibilitou aprendizagens
e responsabilidades, entre as quais destaco a financeira, que me possibilitou comprar os
materiais do curso de Inglês no Núcleo de Estudos de Línguas, livros que minha família
não podia adquirir. Estudava com canetas e marcadores na frente do ponto de ônibus,
antes de entrar no trabalho. Após o expediente, à tarde, era o meu horário de aula no
Ensino Médio; à noite, o curso de Inglês.
Durante dois anos vivenciei esse ritmo. Sem tempo para realizar cursinhos
preparatórios para ingressar na universidade, estudava onde podia. Por morar na zona
rural de Rio Branco ficava na rua durante todo o dia para dar conta de todas as
atividades: trabalho, escola e curso. A rotina foi exaustiva, mas garanti a compra dos
materiais de estudo, o transporte e independência parcial em casa, tendo em vista que
ainda morava com minha família.
Em 2014, consegui a aprovação na Universidade Federal do Acre (UFAC), sob o
regime de cotas, no Curso de Jornalismo. Nesse período sentia a grande necessidade de
uma formação para além daquela que a UFAC ofertava. O mercado de trabalho pouco

5
Os povos Nawa, Nukini e os Puyanawa habitam a cidade de Mâncio Lima, estabelecendo relações
interétnicas.
promissor na região me fez pensar no deslocamento para sair do estado e a
pós-graduação tornou-se o objetivo motivador para estudar fora do Acre. Mesmo sem
condições financeiras, economizei e tive o apoio de familiares, que possibilitou a
garantia dos estudos na ​Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Recife​.
Consegui aprovação no Curso de Comunicação Social/Jornalismo nesta universidade
em 2016. Escolhi-a especificamente por se tratar da referência na área nos estudos de
comunicação no Nordeste e porque pensava nas possibilidades de cursar o Mestrado.
Quando ingressei na UFPE, iniciei o vínculo na extensão universitária, o que provocou
uma reviravolta na minha vida pessoal e acadêmica.
Os deslocamentos, as novas rotinas de vida e as responsabilidades de viver na
cidade não me mantinham tão vinculado coletivamente ao povo Nawa. As vivências na
cidade provocavam outros desafios a serem enfrentados. A identidade étnica e
compreensão sociopolítica foram bastante afetadas​: reconhecia minhas origens
indígenas, tendo o primo como Cacique, mas não me afirmava como índio.
Preconceitos, racismos e estereótipos eram os principais motivadores desse receio em se
reconhecer e afirma-se como Nawa no contexto em que vivia.
Mesmo sabendo das origens étnicas da minha família, nunca tinha contribuído
com a atuação política junto à coletividade Nawa. Isso mudou a partir de 2017, quando
fiz o primeiro programa na Rádio Universitária (99,9 FM), em Recife. Na ocasião, o
professor Edson Silva (UFPE) foi meu entrevistado quando tratamos sobre ​Povos
indígenas no Nordeste: movimento, lutas e resistência6.
O programa de rádio foi o divisor de águas para a afirmação da identidade
omitida. A partir das discussões provocadas pela entrevista com o professor citado,
percebi que a comunicação tinha sido uma boa escolha para o que em seguida eu
realizaria quando afirmei minha identidade étnica. Interpelado na primeira conversa
com o professor Edson, fui questionado: filho de peixe é jacaré? O docente questionou o
discurso da “descendência indígena” que eu enfatizava pela falta de melhor
compreensão do contexto e situações que vivenciava. O posicionamento do professor
provocou reflexões sobre meu lugar e papel como indígena e, consequentemente, me
motivou à dedicação e ao esforço incansável ─ e que se mantém na atualidade ─ em
buscar compreender a história do meu povo e as relações com a história da minha
família.
Cursar Jornalismo passou a fazer muito sentido: acreditei que a escrita também
era uma forma política e que a comunicação hegemônica não contempla os indígenas ─
motivando meu empenho maior para fomentar a visibilidade dos meus parentes na
região onde habitam. Nesse sentido, da mesma forma como vejo a comunicação
enquanto mecanismo de poder, acredito que o Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social (PPGAS-MN/UFRJ) possibilitará condições para contribuir com
meu povo, atuando politicamente no ​fortalecimento e visibilidade da situação e contexto
em que vive na medida em que escrevo sobre os Nawa.
Em 2017, após o primeiro programa de rádio, dediquei-me à temática indígena
em todas as produções acadêmicas, sobretudo no Jornalismo. Por estar residindo
Nordeste, eu reconhecia e continuo reconhecendo o contexto geográfico quando me
refiro aos meus parentes indígenas. Por essa razão, meus esforços são na perspectiva de
favorecer a visibilidade aos parentes no Nordeste, buscando superar a ideia que somente
existe índio no Norte e no Xingu. Produzi e mediei entrevistas no programa Jornalismo

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todos os quatro programas podem ser acessados pelo link:
https://www.mixcloud.com/revistajornalismoecidadania/
& Cidadania na Rádio Universitária/UFPE, tratando sobre mobilização indígena
nacional e regional, ensino da temática indígena e as implicações de grandes
empreendimentos em terras indígenas. A partir dessas discussões, escrevi artigos de
opinião para a revista homóloga ao citado programa de rádio, onde tratei sobre
estereótipos, folclorização das imagens sobre os índios e a presença indígena na
universidade.
Na mesma época, fui contemplado com uma bolsa de Iniciação Científica para
tratar da diversidade no Jornalismo, as implicações para a formação da opinião pública e
a ​continuidade ou transformação das desigualdades sociais através da formação de
sentidos e identidades​. Além de analisar no jornalismo regional (Diário de Pernambuco)
e nacional (O Globo) questões éticas, de gênero, políticas e econômicas, minha
preocupação também esteve em torno de questões étnico-raciais. O projeto foi
financiado pelo CNPq e, a partir dele, pude apresentar resultados de pesquisa em
eventos promovidos pela SBPJor (Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo)
e pela INTERCOM (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação).
Esses primeiros estudos apresentados foram fundamentais para pensar minhas
relações com meu povo de forma mais aprofundada e começar a estreitar laços mais
firmes com a organização sociopolítica dos meus parentes habitando no Acre. Enquanto
essas relações eram estabelecidas à distância, fui convidado para ​atuar ​junto ao Núcleo
de Estudos Afro-brasileiro e Indígena (NEABI) da Universidade Católica de
Pernambuco (Unicap) no Recife, onde contribui durante um ano em intervenções sobre
as duas temáticas que compreendiam o núcleo ─ étnicas e raciais ─, culminando no
evento ​Agosto da resistência​, no qual tratamos das mobilizações dos indígenas nos
espaços acadêmicos. Ainda nesse período, cumpri atividades de extensão universitária
no Museu da Abolição (Recife), sobre História Afro-brasileira e Indígena, o que
complementou minha participação no NEABI/Unicap.
Alguns eventos dos quais participei como convidado foram fundamentais para
que eu refletisse sobre questões teóricas acerca da temática indígena, como: “A
influência da cultura indígena no cotidiano”, realizado na Faculdade Estácio do Recife;
a oficina “​Povos indígenas, inclusão social e discussão das imagens e discursos na
escola”, ​que ministrei ​no Colégio de Aplicação da UFPE; “Entre lanças e contos e a
resistência dos povos negros e indígenas nas Artes”, oficina ministrada por mim na
exposição do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), em Recife; e a
discussão sobre “O mito da democracia racial no Brasil” na roda de debates do Núcleo
de Relações Étnico-Raciais e de Gênero, na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda
(FACHO). Além destes eventos, estive presente em outros espaços de diálogos, como
feiras e semanas acadêmicas. Minha participação nesses espaços tornou mais coerente
meu compromisso com os estudos sobre a temática indígena.
A experiência no Curso de Jornalismo na UFPE me proporcionou, a partir de
pesquisas para a escrita de textos jornalísticos ─ reportagens, entrevistas, artigos de
opinião, ensaios fotográficos, crônicas e resenhas ─, a produção de trabalhos como: a
entrevista “Identidades negadas, povos invisibilizados: indígenas em contexto
universitário”; as reportagens especiais “A agricultura como expressão da identidade
Xukuru do Ororubá”; ​“Sexualidades fora do padrão nas aldeias do Nordeste: indígenas
gays e bissexuais”; “O indígena na univers(c)idade: situações, vivência e desafios”; “A
força do maracá: a resistência indígena ao medo”; “Vivência – ​experiência de
adolescente indígena na aldeia” e o ensaio fotográfico “No passo do Ororubá”, sobre a
7
festa das crianças no povo Xukuru do Ororubá .
A experiência de estágio na Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE), no Recife, suscitou-me uma preocupação ainda maior com a minha
8
contribuição com os povos indígenas, na medida em que fiquei responsável por cobrir a
maior parte dos eventos sobre indígenas na instituição, a exemplo da “Mostra de
Cinema Indígena”, que ocorre anualmente em Serra Talhada, cidade no interior de
Pernambuco. Na ocasião, escrevi e acompanhei o evento.
Além das produções e debates, fiz parte do início de um grupo de estudos
indígenas, majoritariamente de indígenas da Região Metropolitana do Recife; e também
do Grupo de Estudos e Pesquisas Macondo: Artes, Culturas Contemporâneas e outras
epistemologias, cujas reuniões nas dependências da UFPE eram marcadas pela presença
de indígenas das universidades e faculdades do Recife. Todas essas experiências
possibilitaram participar em uma segunda pesquisa de Iniciação Científica, em 2018,
intitulada “Índios no Recife atual: mapeamento, trajetórias de vida e demandas de
políticas públicas”. ​O exercício de pesquisa foi orientado pelo professor Dr. Edson
Silva, o mesmo contribuiu com indicações de leituras e discussões para minha formação
política e afirmação identitária. Na oportunidade, o projeto foi uma proposta desafiadora
ao objetivar o mapeamento dos indígenas em contexto urbano no Recife.
Foi nessa ocasião que me aproximei de abordagens históricas e antropológicas
para compreensão sobre os indígenas ao ler textos de autores como Michael Pollak
11
(1992)9, Maurice Halbwachs (1990)10, Darcy Ribeiro (2006) , João Pacheco de Oliveira
12 13 14
(2004;2016) , Florêncio Vaz (2010) , Eduardo Soares Nunes (2010) , Maria Regina
15 16
Celestino de Almeida (2011) , Gersem Baniwa (2006) , dentre outros que tratam da
temática indígenas.
Durante o período da pesquisa citada, tomei a iniciativa de contribuir com meus
parentes Nawa, projetando as discussões realizadas na Iniciação Científica para o caso
dos Nawa no Acre. Se no percurso do Curso de Jornalismo produzi trabalhos sobre os
indígenas no Nordeste, na etapa final, passei a pensar e escrever um projeto de TCC em
formato de documentário no qual abordaria sobretudo a história e atual situação da
população Nawa na cidade. Esse trabalho somava-se a produção audiovisual realizada

7
Povo indígena habitando nos municípios de Pesqueira e Poção, em Pernambuco.
8
No jornalismo, cobrir evento é uma atividade do exercício da função jornalística responsável por
pesquisar, entrevistar, escrever e divulgar algum evento ou atividade.
9
POLLAK, Michael. ​Memória e identidade social​. Estudos Históricos, vol. 5, nº 10, 1992.
10
​HALBWACHS, M. ​A memória coletiva​. São Paulo, SP: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990.
11
RIBEIRO, Darcy. ​O Povo Brasileiro​: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
12
OLIVEIRA, João Pacheco de (​Or​ g.). ​A viagem da volta​. Etnicidade, política e reelaboração cultural no
Nordeste indígena. 2ª ed. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2004;
OLIVEIRA, J. P. de​. ​O nascimento do Brasil e outros ensaios​: “pacificação”, regime tutelar e formação
de alteridades. Rio de Janeiro, Contracapa, 2016.
13
VAZ FILHO. F. A. ​A emergência étnica dos povos indígenas do baixo Rio Tapajós, Amazônia
Salvador, UFBA, 2010 (Tese Doutorado em Ciências Sociais).
14
NUNES, Eduardo Soares. Aldeias urbanas ou cidades indígenas? Reflexões sobre índios e cidades.
Espaço Ameríndio​, Porto Alegre, v. 4, n. 1, jan./jun. 2010, p.9-30
15
ALMEIDA, Maria R. C. de. ​Os índios na História do Brasil​. Rio de Janeiro, FGV, 2011
16
BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. ​O índio brasileiro​: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/Secad/Museu Nacional/UFRJ, 2006​.
na minha primeira visita aos meus familiares habitando no território indígena que
17
resultou na elaboração de um trabalho sucinto sobre a história Nawa .
Considerando minha trajetória, pretendo orientar meu olhar de pesquisa no
Curso de Mestrado pesquisando sobre o meu povo. Como fator de originalidade, a
pesquisa ocorre devido à existência de poucos estudos sobre os Nawa18 e, por essa
razão, pretendo elaborar e executar um projeto de pesquisa sobre meus parentes
vivenciando o fluxo contínuo de idas e vindas do território indígena até a cidade de
Mâncio Lima, ou seja, sobre os Nawa em contexto urbano.
Como proposta de pesquisa para o PPGAS-MN/UFRJ ​focalizo um caso fora das
grandes capitais da Amazônia. ​Pretendo, assim, estudar o povo Nawa, que, após anos de
violências coloniais, não foram extintos como declarava a historiografia sobre o Acre,
mas adaptaram-se diante do contexto de conflitos e elaboraram diversas estratégias para
enfrentar as perseguições. Muitos desses indígenas dispersaram-se e foram viver na
cidade, omitindo a identidade ou afirmando-a em contextos específicos. Em vários
bairros de Mâncio Lima, parte do povo se estabeleceu e reelaborou os modos de
existência no contexto urbano. A partir disso, buscarei na pesquisa responder: como as
situações e experiências vivenciados pelo povo Nawa contribuíram para as relações e
reinvenções desse povo indígena na cidade de Mâncio Lima/Acre?.
19
Para isso, recorrerei ao método ​etnográfico buscando analisar o processo
histórico que provocou as mudanças sociais nos Nawa que foram habitar em bairros de
20
Mâncio Lima, sobretudo o bairro Iracema. O conceito de ​situação histórica , assim, se
21
torna pertinente, para que se possa compreender a ​territorialização ​dos Nawa em
contexto urbano, após a situação de ​emergência étnica e a conformação dos indígenas
em contexto urbano​. A perspectiva abordará uma temática emergente nos estudos
antropológicos atuais ​─ ​indígenas em contexto urbano ​─ ​para entender a conformação
da identidade Nawa na atualidade.
De acordo com a etnologia disponível sobre os Nawa, os trabalhos sobre povo é
característica do que Oliveira (2012, p. 21) chamou de “etnologia das perdas”, quando,
ao se referir ao Nordeste, o pesquisador trata sobre “a problemática das emergências

17
Ver <https://www.youtube.com/watch?v=9LeEpptRltA&t=52s​>
18
As produções acadêmicas disponíveis se resume à:
MONTAGNER, Delvair. Construção da etnia Náwa. ​Revista de Estudos e Pesquisas​, v. 4, p. 33-108, 2007.
ANDRADE, Nesseilde Sousa de. Povo Nawa Da “Extinção” Ao Ressurgimento E As Lutas Do Tempo
Presente. ​Rio Branco, UFAC, 2018 (Monografia de Graduação em História).
19
Etnografia, de acordo com Alfredo Wagner, para além do significado técnico, analisa uma situação
etnográfica, a qual “enfatiza situações concretas, em que a descrição ganha corpo, referida a um plano
social de relações e atenta a fatos específicos e interações diversas” ​(OLIVEIRA, 2015, p.20). Nesse caso,
por meio da metodologia, a situação etnográfica privilegia as dinâmicas intrínsecas às relações sociais, as
quais pretendo compreender no caso Nawa.
20
A situação histórica é adequado “ao estudo das transformações históricas, possibilitando, por meio da
comparação de duas situações, uma descrição teórica (e, assim, lógica e econômica, menos que factual)
da própria mudança social, permitindo indicar com clareza as alterações nas relações políticas entre os
atores e determinar a composição de interesses que essa nova situação vem a articular” (OLIVEIRA,
2012, p. 18)
21
João Pacheco de Oliveira (2004) chamou de territorialização o processo de reorganização social.
Atribuindo elementos definidores desse processo, o autor evidenciou que o processo de reorganização
social implica a reelaboração da cultura e da relação com o passado. Essa condição remodela a ideia de
grupo étnico (BARTH, 1969), entendida como um “tipo organizacional em que uma sociedade se
utilizava de diferenças culturais para fabricar e refabricar sua individualidade diante de outras com que
estava em um processo de interação social permanente” (p.22)
étnicas e da reconstrução cultural”. Reconhecer os Nawa como produto da etnogênese é
também concordar que a política assimilacionista junto ao povo não surtiu efeito e que,
por conta disso, há uma necessidade de compreender as mudanças culturais vivenciadas
pelo povo com novas interpretações, não como perda ou esvaziamento da cultura
“autêntica”, mas em constante dinamismo, mesmo em situação de contato violência.
(ALMEIDA, 2012)22
No trabalho de reconhecimento do povo Nawa (MONTAGNER, 2002)23, a
antropóloga identificou famílias Nawa moradoras na cidade de Mâncio Lima, nos
bairros São Francisco e Iracema. Dezessete anos depois da pesquisa da antropóloga,
questiona-se o que aconteceu com essas famílias e com as identidades dos indígenas
Nawa no meio urbano. Montagner (2002) acenou, em seu relatório, a possibilidade de
fragmentação étnica e, consequentemente, a possibilidade dos Nawa voltarem à
invisibilidade. Entretanto, os indígenas, nessa década, continuam afirmando sua
identidade em contexto urbano e reelaborando suas práticas através das relações
simbólicas estabelecidas na cidade
Em específico, o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS-MN/UFRJ) é um espaço de pesquisa de alto nível, a partir do qual pretendo
seguir com meu compromisso político. Trata-se, dessa forma, de uma proposta de
pesquisa baseada na ação de uma antropologia reflexiva que Cardoso de Oliveira (2004
apud OLIVEIRA, 2015, p.19)24 destacou ao falar “do exercício do diálogo com aqueles
sobre os quais atua”, isto é, um engajamento da antropologia junto ao povo pesquisado,
dando visibilidade e atuando junto às questões demandados pelo povo.
Ser ​insider,​ isto é, estudar o grupo ao qual pertenço, nesse caso, não apresenta
limites para as observações e pesquisa, tendo em vista que estranhamento e a
desnaturalização, categorias necessárias às abordagens antropológicas, serão levadas em
consideração para a realização da pesquisa.
O processo pelo qual passo ​─ ​a saber, a submissão junto ao PPGAS-MN/UFRJ
─ contribui ao contexto atual de reconhecimento dos indígenas como sujeitos dos
processos históricos, sobretudo a presença destes na academia e a tentativa de superação
da invisibilidade pela qual os indígenas passam desde o século XVIII
(ALMEIDA,2012)25. Escolhi a área de Antropologia Social por esta ser a área mais
próxima para possíveis compreensões e análises sobre a situação e contexto Nawa.
Acredito que não pertencer à área para a qual presto seleção não me causará prejuízos;
pelo contrário, potencializará minhas observações a partir de um olhar mais amplo e
uma interdisciplinaridade sob a qual também fui formado.

22
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao
protagonismo. Revista História Hoje, v. 1, n. 2, p. 21-39, 2012.
23
MONTAGNER, Delvair. ​Construção da etnia Náwa​. Brasília, ago.: 2002. Perícia antropológica sobre a
condição étnica dos moradores do Igarapé Novo Recreio, Rio Môa, AC, que se autodenomina Náwa.
24
OLIVEIRA, JP de. ​Regime tutelar e faccionalismo​. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Manaus:
UEA, 2015.
25
Maria Regina Celestino de Almeida (2012), ao fazer uma digressão das políticas indigenistas, destaca
que havia uma proposta assimilacionista lançada desde o século XVIII, com a diluição dos aldeamentos
por Marques de Pombal, e que continuou pelos políticos do Oitocentos, com a predominância da
“proposta de incorporar os índios ao Império como cidadãos civilizados” (p. 22). Segundo a historiadora,
nos dias atuais há uma reversão desse quadro, na medida em que “os índios vão, lentamente, passando
da invisibilidade construída no século XX para o protagonismo conquistado e restituído nos séculos XX e
XXI por movimentos políticos e intelectuais nos quais eles próprios têm tido intensa participação”
(ALMEIDA, 2012, p. 22)

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