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CENSURA ATRAVÉS DA ICONOCLASTIA: reflexões sobre o Estado Islâmico

JAIR JOSE GAUNA QUIROZ

RESUMO
Esse artigo contrasta três casos de destruição iconoclasta a patrimônio arqueológico
declarado pela UNESCO: Budas de Bamiyan –Afeganistão–, Cirene –Líbia– e Hatra –
Iraque– que aconteceram em períodos e regiões diferentes baixo o domínio do Estado
Islâmico e conflitos bélicos com outras nações. A pesquisa documental se desenvolve em
torno ao patrimônio como alvo dentro da rede de poder que flutua entre instituições e
sociedade, para atingir a necessidade da gestão de patrimônio arqueológico. Além disso,
explora o significado do fato censor desde diferentes perspectivas que vão além das
motivações manifestadas pelos censores, reconhecendo a destruição não só como
apagamento histórico e ideológico, mas também como ação de propaganda para divulgar
os valores morais que exercem influência sobre a estética e os modos de vida.
Palavras-chave: censura, iconoclastia, patrimônio, arqueologia, poder.

ABSTRACT

This article contrasts three cases of iconoclast destruction to archaeological heritage


declared by UNESCO: Buddhas of Bamiyan –Afghanistan–, Cyrene –Lybia– and Hatra –
Iraq– that happened in different times and places under governance of the Islamic State and
war conflict with foreign nations. The documentary research is developed around heritage
as target within a power network that drifts between institutions and society, to reach the
necessity of archaeological heritage management. Furthermore, it explores the meaning of
censorship actions from different perspectives that go beyond the censors' expressed
motivations, acknowledging destruction not only as a historical and ideological obliteration,
but also as a propaganda performance to promote the moral values that influence over
aesthetics and lifestyles.

Keywords: censorship, iconoclasm, heritage, archaeology, power.


INTRODUÇÃO
A proibição e o silencio são os sinônimos mais comuns quando se pensa no conceito
tradicional de censura, porém uma imagem censurada acha seu equivalente como imagem
apagada, destruída. Tal como menciona Freedberg (2016), a destruição da imagem está
relacionada com o poder do objeto que transcende a materialidade e o conceito dele,
convertendo aquela ação em um ato iconoclasta, ou seja, o poder do objeto é temido pelo
observador e a censura é só uma consequência devastadora para a sociedade. É assim
como Baets (2008) explica que aquela consequência não é apenas uma imagem menos no
mundo mas a violação dos direitos fundamentais da humanidade, já que o censor ou
destrutor estaria transgredindo a liberdade de informação e expressão, mutilando a verdade
histórica e as perspectivas alheias numa sociedade diversa. Por isso, Smith (2000 apud
Fonseca 2017) estabelece que a censura consegue perpetuar a ignorância do povo carente
de memórias e patrimônios, quem agora seriam vulneráveis frente qualquer intenção
alienante.
Por outro lado, o propósito de apagar imagens, objetos, heranças, nunca passaria
despercebido já que segundo Freedberg (1992), a censura falha porque existem outros
problemas sociais que ajudam a evidenciar o ato censor, porém os censores tentariam de
qualquer jeito porque eles sentem-se obrigados a exercer uma ordem hegemônica social e
moral sobre a sociedade. É assim como Prats (1998) menciona que "o símbolo tem a
capacidade de transformar concepções e crenças em emoções, encarnar, condensar e
torná-las, portanto, muito mais intensas... pode ser sobre a intensidade de um determinado
parâmetro... ou a combinação de parâmetros diferentes" (p. 120). Se reconhece assim que
o bem patrimonial vai além da materialidade, influindo na arte e história do presente,
configurando a percepção emocional da comunidade.
De tal forma, existem instrumentos jurídicos para proteger a integridade dos bens
culturais, especialmente aqueles que sejam considerados em situação de risco devido aos
intentos de apagamentos dentro da dinâmica social. Soares (2009) explica que tal
preservação deve involucrar parcerias dos órgãos internacionais e regionais, as instituições
educativas, os centros culturais, os profissionais do direito e patrimônio cultural, assim como
outras organizações que enriqueçam as ações interdisciplinares de conservação e
restauração. Só para ilustrar, o tombamento é um instrumento técnico e jurídico usado pelo
Estado, para declarar bens oficialmente e assim resguardar a integridade dos elementos
descritos, pelo que pode-se considerar uma ação de conservação.
Mas não existem as ações jurídicas somente, também há técnicas das ciências
exatas que permitem o análise apropriado para determinar o estado de conservação e as
possíveis intervenções, através de técnicas e métodos científicos. De acordo com Gamboni
(1997) tais processos de preservação e restituição existem porque a criação e destruição
de objetos fazem parte do cotidiano, e as representações de imagens, sejam obras de arte
ou artefatos arqueológicos, às vezes não conseguem sobreviver as mudanças das
sociedades, por isso se pensa os territórios em conflitos como espaços de mudanças
drásticas que têm a desvantagem de perda da herança material.
Para explorar o fenômeno da censura em concordância com a legislação do
patrimônio e a conservação preventiva. Se analisarão três casos relacionados com
iconoclastia contemporânea, ou seja, apagamentos de materialidade com representações
simbólicas denominados patrimônio pela maior organização declarante de patrimônio,
UNESCO. O primeiro caso é dos Budas de Bamiyan que pertenceram ao Vale de Bamiyan,
na província e distrito do mesmo nome, Afeganistão, inscrita em 2003 como Patrimônio
Mundial da UNESCO através dos critérios I, II, III, IV y VI. O curioso do caso é que segundo
Francioni e Lenzerini (2003), a destruição dos budas aconteceu em 2001, pelo que a
organização achou oportuno usar a categoria de patrimônio como medida preventiva que
protegesse a paisagem cultural do Vale devido as evidencias arqueológicas estrangeiras
em solo afegão.
Figura 1: Um dos Budas de Bamiyan, antes e após a destruição dele.

Fonte: http://lennonwall.aauni.edu/
De acordo com Blänsdorf e Petzet (2015) o segundo critério da declaração do Vale
de Bamiyan é que o espaço foi parte da Rota da Seda, que contêm evidencias de influencias
romanas, gregas, indianas e persas através de obras artísticas que logo foram intervindas
pelos muçulmanos. O autor descreve que as duas esculturas gigantes de Buda
provavelmente datam entre os séculos VI e VII d.C., com uma distância de 800 m entre
eles. O penhasco que conforma os monumentos tem cerca de 700 cavernas usadas como
mosteiros e santuários pelos peregrinos e monges budistas. Além disso, as esculturas
estavam em pé, vestindo uma peça que cobria os ombros e caia em sulcos, revelando a
anatomia dos corpos. Mas outros detalhes não chegaram a ser registradas, como o rosto
dos budas; "o fato peculiar de ambos os rostos serem cortados acima da boca levantou
muitas especulações. Hoje, a opinião predominante é que os rostos foram cortados desde
o início e que a parte superior pode ter sido modelada como uma máscara de madeira"
(Blänsdorf e Petzet, 2015, p. 18), pelo que alguns historiadores poderiam pensar em atos
iconoclastas antes da destruição do Estado Islâmico.
Um artigo do The New York Times por Nordland (2019) narra que em 2001, o grupo
talibã ordenado pelo Estado Islâmico, disparou contra as estátuas de 181 pés e 125 pés de
altura, consideradas os maiores budas do planeta. Logo de 18 anos, a comunidade
internacional continua debatendo o que fazer para estabelecer um plano de conservação
que poderia garantir a proteção do vale. Enquanto que alguns países do mundo
consideraram que o governo censor era ilegítimo, Francioni e Lenzerini (2003) mencionam
que Arábia Saudita reconhecia a milícia do Taleban, assim como o Estado Islâmico tinha
um assento na ONU como representante afegão, o que carrega um problema no caso duma
nação que atenta contra seu próprio patrimônio.
Outro caso a considerar é Cirene, no distrito Ghebel Akhdar, na Líbia. Foi inscrito em
1982 pelo UNESCO, sob os critérios II, III e VI. Driver (2013) descreve que é uma colônia
grega que existe desde 631 a.C., afetada no passado pela revolta judaica em 115 d.C. e
também um terremoto no ano 365 d.C., o que piorou sua estabilidade material e apagou
muitas das imagens que se integraram com a arquitetura. Os templos mais importantes
desde o ponto de vista patrimonial foram os de Deméter e Perséfone, porém os arqueólogos
ainda não sabem como interpretar a destruição neles, seja por causas naturais do terremoto
ou vandalismo iconoclasta.
Figura 2: Ruinas romanas e helénicas de Cirene.

Fonte: https://www.voanews.com/
O terceiro caso para complementar as perspectivas de iconoclastia e poder das
imagens, é aquele de Hatra em Iraque. UNESCO (2020) considerou sua inscrição em 1985
e a descreve como a capital do primeiro Reino Árabe, protegida por muros e torres. Hatra
destaca pela arquitetura helenística e romana que também tem influência oriental, pelo que
corresponde aos critérios II, III, IV e VI. Westcott (2017) comenta que foi restaurado antes
de 2003 por Saddam Hussein, quem deixou seu nome inscrito nas pedras usadas na
restauração, imitando ao rei babilônico Nabucodonosor II. Além disso, após 2003 o Estado
Islâmico converteu Hatra em sede já que sabiam que os militares estrangeiros nunca
arriscariam atacar o patrimônio cultural.
Deustche Welle (2017) narra que Hatra sofreu mutilações em 2015, quando foi
publicado um vídeo do Estado Islâmico quebrando estatuas de valor inestimável e antigas
muralhas com rifles de assalto. Foi assim como o EI demostrou seu domínio ideológico
sobre a região de Iraque e Síria, provocando protestos internacionais que só causaram
mais atos de censura ao patrimônio pré-islâmico.
Figura 3: Hatra.

Fonte: https://whc.unesco.org

O passado iconoclasta

Antes da criação de UNESCO e outras organizações que trabalham pela conservação


do patrimônio material, a Humanidade criava objetos, os utilizava até o deterioro mais
evidente e logo os jogava ao lixo. Segundo Prats (1998), apenas alguns desses objetos
sobreviveram até nossa contemporaneidade já que a sociedade os percebia como
prezados, em concordância com o sistema de critérios estéticos e sociais que ainda hoje
dá relevância a determinados materiais e usos.
Os objetos religiosos na época pré-islâmica dos territórios mencionados –
Afeganistão, Líbia e Iraque– pertencentes às religiões mediterrâneas e asiáticas, eram
feitos para transcender o sentido simbólico e se converter em deuses na terra. Gamboni
(1997) menciona que os devotos interatuavam com as representações, através de beijos e
contato, para assim sentir uma relação mais perto deles, o que começou mudar com os
diferentes ataques iconoclastas no mundo.
É interessante também refletir que a iconoclastia não atacava unicamente o fato de
adoração à materialidade, mas também os objetos como símbolo da "riqueza e o poder que
sua produção e exploração concederam à Igreja, e particularmente aos monges" (Gamboni,
1997, p. 4). O que significa que aquilo que começou como atos de intolerância religiosa,
virou em uma luta política para mostrar o domínio estético e moral de uma sociedade sobre
outra. É assim como os templos foram queimados ou convertidos a outra crença,
aproveitando uma arquitetura alheia como ato de vitória, proibindo assim o exercício da
crença depreciada. No caso de Cirene, Driver (2013) alega que os incêndios causados
pelos iconoclastas foram ritualísticos e pelo tanto, intencionais. As estátuas foram levadas
a lugares onde ninguém as adoraria, enquanto que outras, como a estátua da ninfa Kurana
foi destruída totalmente, o que também pode estudar-se de ponto de vista político, já que
Kurana foi a divindade fundadora de Cirene.
Por outro lado, os arqueólogos observaram evidencias de reparações de alguns
estatuas do culto. "O reparo dessas estátuas à vista do público certamente sugere que seu
conserto foi sancionado municipalmente, ou pelo menos não se opôs" (Drive, 2013, p. 39).
O terremoto do ano 365 d.C. serve para criar a hipótese sobre os possíveis danos da
estatuaria nos templos de Serapis e Ísis, assim como o porquê eles deram prioridade à
preservação de alguns deuses e outros não.

Patrimônio como alvo político

O patrimônio não é uma manifestação espontânea das comunidades, se não uma


construção que agrupa autenticidade, história e estética; pelo que é uma invenção feita
entre sociedade e instituições. Prats (1998) lembra que o objeto cultural para virar em
patrimônio precisa da autoridade que exerce o poder através de um discurso que explora
critérios e significados. Os países do mundo criaram organizações mundiais para refletir na
universalidade dos bens que hoje existem em todas as culturas e territórios, assim foi como
objetos prezados viraram em coleções e lugares representativos em monumentos.
Portanto, pensar o patrimônio como algo que pode ser apagado em qualquer
momento constitui um risco relevante que transcende a região onde acontece a censura.
Assim se pensa no acesso à cultura e ao patrimônio comum como direitos que permitem
preservar a História através dos seus vestígios. Egido (2017) concorda, explicando que a
conservação do patrimônio tem que acontecer no contexto público, involucrando
comunidade, pesquisadores, cientistas e autoridades de governo, através de pactos,
planejamento e gestão. "Numa perspectiva de gestão do patrimônio, é necessário um plano
de manejo e conservação, visando à determinação de ações que venham salvaguardar
monumentos arqueológicos." (Guimarães et al., 2018, p. 74).
Logo que a censura já aconteceu, é difícil restituir os monumentos sem tomar em
conta as funções originais que agora estão sendo alteradas. Gamboni (1997) questiona o
posicionamento da arte, nesse caso, dos objetos estéticos com valores artísticos, sob o
olhar do universalismo que apenas naturalizou as desigualdades, sendo a destruição do
patrimônio uma reação violenta de quem não dá valor a aquela materialidade declarada, e
portanto, protegida. Devido a que a perda de patrimônio causa um impacto tão grande no
mundo, o autor menciona que antes da existência do Estado Islâmico, outras sociedades
usaram o patrimônio para contextualizar a guerra contra outras nações, só para ilustrar, "os
italianos forjaram evidências falsas de danos à arte feitos pelos aliados em Cirene, e
estilizaram a campanha de Libertação em seu país como uma Guerra contra a arte"
(Gamboni, 1997, p. 16), o que logo traz como consequência a Convenção da Haia em 1954.
De esta maneira, a Apostila da Convenção da Haia permite que o patrimônio não seja
atingido pelas forças militares dos estados signatários, protegendo assim os monumentos
históricos e lugares de ciência e arte. Por outro lado, alguns políticos consideram que
"responder a eventos patrimoniais quando vidas estão sendo perdidas, é insensível"
(Cunliffe e Curini, 2018, p. 1096), o que poderia se considerar um pensamento relacionado
com o combate contra o terrorismo que ainda promovem países de Europa e América, sem
reconhecer que o patrimônio no Oriente Médio é herança comum da humanidade.
No caso dos Budas de Bamiyan, Blänsdorf e Petzet (2015) mencionam que a decisão
da UNESCO de reconhecer o vale como paisagem cultural e restos arqueológicos foi
acertada como estratégia que obriga ao Estado de Afeganistão a contribuir à reintegração
e conservação do patrimônio que eles mesmos destruíram. Porém, historicamente as
intervenções cientificas no vale de Bamiyan só aconteciam porque algum Estado
estrangeiro tinha intenções de entrar no campo de relações do país asiático, como foi o
caso de França, que na década de 1920 criou a Délégation Archéologique Française, com
cientistas europeus que realizaram documentação das estátuas de Buda e análise dos
murais nas cavernas.
O projeto é descrito por Blänsdorf e Petzet (2015) que citam ademais que uma
instituição indiana chamada ASI, Archaeological Survey of India, finalizou a restauração
dos budas em 1978, criando um sistema que reduzia o desgaste natural causados pela
chuva e neve. Todas aquelas intervenções se perderam com a destruição executada pelo
Estado Islâmico. Francioni e Lenzerini (2003) referem que o discurso do ato destrutivo foi
que no território islâmico não podiam existir imagens que adorassem deuses pagãos, mas
o especialista em religião islâmica Fahmi Howeidy expressa que o Islã não é intolerante de
outras crenças e que os rituais não muçulmanos podem coexistir numa sociedade
maioritariamente islâmica.
A destruição dos Budas de Bamiyan foi a desculpa perfeita para criar a imagem do
Estado Afeganistão como um governo que executa atos hostis, de um fundamentalismo
religioso com tendências à criminalidade que precisa de intervenção internacional como
contramedida. É inevitável pensar que a censura foi discriminatória, ofensiva para a
comunidade budista que pudesse viver nesse pais, além de se constituir em desafio para
organizações patrimoniais que têm origens no pensamento europeu, alheio ao sistema de
valores religiosos do Talibã.
No contexto histórico de Cirene, Driver (2013) concorda com outros autores sobre
que a cidade antiga se singulariza por ter uma paisagem alterada, já que muitos templos
foram destruídos, causando que a cidade diminuíra o tamanho, assim como os elementos
arquitetônicos dos templos na periferia foram usados para construir novas igrejas. O
processo de reutilização através dos apagamentos de memórias e materialidade alheias,
também pode pensar-se como uma ressacralização.
Na contemporaneidade, Cirene foi protegida pelos agricultores e organizações a favor
do patrimônio que moram na localidade. Abdulkariem e Benett (2014) narra que a forma de
proteger o monumento foi com rebanhos de ovelhas e outros obstáculos que o Estado
Islâmico não podia atacar sem romper leis morais. Ao nível internacional, a diretora geral
da UNESCO, Irina Bokova, pediu a ambas nações em guerra que respeitassem a
Convenção de Haia assim como os bens patrimoniais descobertos pelas missões
arqueológicas estrangerias em Líbia, uma petição razoável porque durante a guerra os
lugares de ciência e cultura não podem ser atacados.
Mas o conflito bélico piorou a condição dos sítios arqueológicos e proliferou a venda
ilegal de antiguidades, assim como o terreno de Cirene começou ser invadido para construir
moradias. As autoridades líbicas tentaram recuperar o controle sobre o patrimônio "...
apelando aos promotores, agricultores e proprietários de terras para que cumpram as leis
da Líbia que protegem sítios arqueológicos...e paisagens históricas, [mas] seus pedidos
foram atendidos com obstrução, desprezo e até ameaças de violência" (Abdulkariem e
Benett, 2014, p. 155)
Figura 4: Vivenda invadindo terreno de Cirene.

Fonte: https://www.researchgate.net
Cirene se tornou em um lugar impossível para o turismo, quando em 2013 foi
aprovada uma lei que permitia recuperar terras confiscadas sob governo de Kadafi. Voice
of America (2018) explica que aquilo significa que hoje existe mais de um proprietário no
solo que conforma a cidade antiga, sendo um verdadeiro desafio para que a sociedade
líbica reconheça e lute para proteger o valor patrimonial do monumento; ou seja, a guerra
só permite refletir que não existia um programa educativo eficaz para que os cidadãos
fizeram um uso correto do patrimônio.
A percepção do patrimônio naqueles territórios também mudou consideravelmente
já que o Estado Islâmico visibilizou os próprios atos de censura, privando à sociedade da
história pré-islâmica e criminalizando a quem estivesse contra os atos iconoclastas. De
acordo com Ristoldo (2017) os vídeos do EI trabalham o aspecto psicológico para gerar
impotência e temor a diferentes níveis. A destruição de patrimônio cultural não só rejeita
outras crenças religiosas, mas também nega o passado pagão e estabelece o
fundamentalismo religioso como única forma de conviver pacificamente sob domínio deles.

Destruição e mídia

A iconoclastia no Médio Oriente é ainda mais complexa já que não se limita a


episódios de guerra, Anderson (2015) comenta que muitos locais arqueológicos da Arábia
Saudita foram destruídos para construir prédios modernos, apagando por completo aqueles
vestígios que não faziam parte da história muçulmana. O fenómeno é explicado ao
mencionar que "a relação simbólica não é, por si só, preservativa: tende a fazer com que o
objeto compartilhe o destino flutuante do que simboliza, a menos que a relação venha a ser
considerada ineficaz ou marginal" (Gamboni, 1997, p. 4), é assim como uma peça pré-
islâmica representativa de alguma divindade romana não é valorizada por um cidadão no
território do Estado Islâmico, devido às contradições do sistema de crenças islâmico e a
percepção da peça como fato artístico e histórico.
Cunliffe e Curini (2018) analisaram o discurso dos vídeos na mídia social jihadista, e
chegaram à conclusão que a intenção iconoclasta é fazer uma limpeza cultural
documentada que serva como proselitismo, além de fornecer suporte aos fundamentalistas
espalhados pelo mundo que incitam conflitos e tensões políticas com frequência. Assim, a
guerra com Ocidente é perpetuada através do impacto que os incidentes patrimoniais têm
sobre o público estrangeiro, embora a narração e legendas do conteúdo do EI estão em
árabe, ou seja, o público alvo é regional.
A propaganda de intolerância religiosa e iconoclastia pelo EI provocou que os
arqueólogos se opuseram à restauração dos Budas de Bamiyan, Nordland (2019) estima
que apenas um buda precisaria US $30 milhões, enquanto que o complexo levaria a
inversão de US $1,2 bilhão. Assim, reintegrar os Budas fica numa condição impossível já
que em 2019 o governo afegão não conseguia pagar a vigilância do vale, assim como hoje
não existem projetos de restauração que deem resposta internacional aos atos do EI.
Francioni e Lenzerini (2003) consideram que "a destruição dos budas e outras
coleções significativas de arte afegã pré-islâmica ocorreu como um ato de auto-afirmação
narcísica contra a pressão do diretor-geral da UNESCO" (p. 621) além de outras
organizações internacionais que pediram ao Talibã mudar da ideia sobre a destruição
planejada para o resto do patrimônio no território asiático.
No caso de Cirene, Nordland (2019) narra que o Departamento de Antiguidades da
Líbia atribuiu os danos ao patrimônio a um bando de rapazes, ignorando que pudessem ser
atos de vandalismo pelos fundamentalistas religiosos. O povo continuava construindo casas
de blocos de cimento perto ao complexo do templo. Shand (2019) concorda, adicionando
que os saques aumentaram após a derrubada de Kadafi em 2011, o que significa um risco
alto para os tesouros arqueológicos na região. O jornalista menciona a Ahmad Hussein,
chefe do Departamento de Antiguidades, quem deu testemunho que hoje muitas das
estátuas listadas como patrimônio já não existem, e que a escassez de orçamento dificulta
a existência de um plano de conservação preventiva que contém medidas de segurança.
Hatra e Assur foram atacados em 2014 de acordo com vídeos divulgados pela
Internet. Segundo Presse (2015), Wescott (2017) e Ristoldo (2017) os objetos pré-islâmicos
budistas, romanos e helênicos atacados estavam na lista de Patrimônio Mundial da
UNESCO desde 1985. As imagens mais altas foram obliteradas a tiros, e as estatuas de
Hatra foram usadas como alvos para práticas. Tais ações dão a pensar que os ataques são
intencionais, bem planejados e gestados como estratégia que ameaça qualquer vínculo
histórico com identidades pensadas de alheias, assim como a preocupação colonialista está
relacionada com as expedições arqueológicas, assegurando que o EI não tem o mesmo
conceito de cultura que Ocidente. A resposta da comunidade internacional foi através do
Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a preservação do patrimônio cultural
como processo internacional.
Figura 5: Estatua em prédio de Hatra. Figura 6: Censor destruindo estatua da
figura 5.

Fonte: https://whc.unesco.org
Fonte: https://www.dw.com/

No início do ano, o jornalista Hoffman (2020) publicou na revista Vanity Fair sobre os
tweets polémico do presidente americano Donald Trump como resposta às ameaças
iranianas. "Se o Irã atingir qualquer americano... teremos como alvo 52 sites iranianos...
alguns em um nível muito alto e importante para o Irã e a cultura iraniana..." (p. 1) Muitas
personalidades espalhadas pelo mundo refletiram naquela rede social sobre o risco de
perda de patrimônio insubstituível, e também lembrando ao presidente sobre as
convenções que criminalizam a obliteração de patrimônio declarado no Irã, tais como a
Persépolis e o Santuário do Xeque Safi al-Din.
CONCLUSÃO

A gestão pública do patrimônio perde orçamento, relevância, prioridade quando inicia


um conflito bélico em qualquer região do mundo. De tal maneira, a ideia de Prats (1998)
sobre como um poder político alternativo informal poderia tomar decisões sobre a gestão
patrimonial é muito importante para que as comunidades canalizem o poder das instituições
e assim prevenir a censura sistematizada. Pelo que Guimarães et al. (2018) afirma que as
relações para criar um plano de manejo devem se estabelecer entre a comunidade, meio
ambiente e patrimônio cultural.
Além disso, no futuro as nações que ainda presentam um patrimônio eclético, diverso,
devem criar um plano de conservação preventiva que não só tenha metodologia científica
e trabalho interdisciplinar, mas também, de acordo com Gamboni (1997) e Guimarães
(2018), as ações educativas vão permitir pensar os objetos alheios além do estereotipo de
representações pagãos, desenvolvendo a gestão do patrimônio cultural através da
valorização. Hoje é muito importante que os afegãos, os líbicos e iraquianos reconheçam o
patrimônio arqueológico desde o valor artístico. UNESCO concorda com essa visão, já que
«Proteger o patrimônio exige que nos movamos além dos prédios e nos envolvamos com as
comunidades que os utilizam. Devemos procurar o significado local dos valores globais e
considerar o patrimônio não apenas da nossa própria perspectiva, mas também da
perspectiva local, árabe e islâmica» (UNESCO 2011 apud Cunliffe e Curini 2018, p. 1107)
Assim se desenvolveriam normas internacionais que lutem contra a censura como
limpeza sistemática da História dos povos. O contexto global daquele ato de violência
poderia se visualizar mais como prejuízo próprio que como estratégia para vencer a ideia
colonial do patrimônio, que chegou até aquelas terras através de expedições francesas,
americanas, britânicas. O vale de Bamiyan perdeu representações budistas essenciais,
mas ainda existe o vale como paisagem cultural, pelo que UNESCO (2020) preparará um
programa de proteção e conservação dos restos arqueológicos desde a perspectiva do
turismo sustentável, com o apoio do novo governo afegão após a invasão do Afeganistão
pelos Estados Unidos em 2003.
Nordland (2019) menciona ao casal Janson Hu e Liyan Yu, quem criaram um projeto
no vale de Bamiyan em 2015, onde foi transmitida a imagem 3D do Buda maior no nicho
danificado, feita por um artista baseada em fotografias antigas prévias à destruição. Porém
a cidade às vezes não tem energia elétrica e o projetor é de alto consumo, pelo que o
projeto precisaria de um gerador a diesel ou um campo grande de painéis solares. Por outro
lado, Gruen et al. (2012) utilizaram imagens espaciais para digitalizar o vale e assim
conhecer as proporções reais do espaço geográfico. Uma das dificuldades que eles
encontraram foi achar imagens aéreas para processar corretamente, por isso eles usaram
tecnologia DTM e fotografias dos satélites que estudaram Afeganistão no passado. O
resultado final da pesquisa deles foi um modelo de terreno detalhado que pode ser usado
para documentação, animação e visualização; sendo uma alternativa interessante para
aplicar em outras paisagens em risco de vandalismo ou desastre natural.
Tais projetos não conseguiriam se insertar num plano interdisciplinar de conservação
preventiva se os órgãos acadêmicos e governo de Afeganistão não trabalham em parceria,
criando um programa integral de gestão patrimonial com enfoque educativo. De tal maneira,
a educação pode garantir o treinamento eficaz das pessoas que vão vigiar, reintegrar,
restaurar e manter os restos que agora conformam lagoas na História pré-islâmica em Ásia.
Figura 7: Holograma no nicho danificado, Bamiyan.

Fonte: https://news.artnet.com
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