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RESUMO
Esse artigo contrasta três casos de destruição iconoclasta a patrimônio arqueológico
declarado pela UNESCO: Budas de Bamiyan –Afeganistão–, Cirene –Líbia– e Hatra –
Iraque– que aconteceram em períodos e regiões diferentes baixo o domínio do Estado
Islâmico e conflitos bélicos com outras nações. A pesquisa documental se desenvolve em
torno ao patrimônio como alvo dentro da rede de poder que flutua entre instituições e
sociedade, para atingir a necessidade da gestão de patrimônio arqueológico. Além disso,
explora o significado do fato censor desde diferentes perspectivas que vão além das
motivações manifestadas pelos censores, reconhecendo a destruição não só como
apagamento histórico e ideológico, mas também como ação de propaganda para divulgar
os valores morais que exercem influência sobre a estética e os modos de vida.
Palavras-chave: censura, iconoclastia, patrimônio, arqueologia, poder.
ABSTRACT
Fonte: http://lennonwall.aauni.edu/
De acordo com Blänsdorf e Petzet (2015) o segundo critério da declaração do Vale
de Bamiyan é que o espaço foi parte da Rota da Seda, que contêm evidencias de influencias
romanas, gregas, indianas e persas através de obras artísticas que logo foram intervindas
pelos muçulmanos. O autor descreve que as duas esculturas gigantes de Buda
provavelmente datam entre os séculos VI e VII d.C., com uma distância de 800 m entre
eles. O penhasco que conforma os monumentos tem cerca de 700 cavernas usadas como
mosteiros e santuários pelos peregrinos e monges budistas. Além disso, as esculturas
estavam em pé, vestindo uma peça que cobria os ombros e caia em sulcos, revelando a
anatomia dos corpos. Mas outros detalhes não chegaram a ser registradas, como o rosto
dos budas; "o fato peculiar de ambos os rostos serem cortados acima da boca levantou
muitas especulações. Hoje, a opinião predominante é que os rostos foram cortados desde
o início e que a parte superior pode ter sido modelada como uma máscara de madeira"
(Blänsdorf e Petzet, 2015, p. 18), pelo que alguns historiadores poderiam pensar em atos
iconoclastas antes da destruição do Estado Islâmico.
Um artigo do The New York Times por Nordland (2019) narra que em 2001, o grupo
talibã ordenado pelo Estado Islâmico, disparou contra as estátuas de 181 pés e 125 pés de
altura, consideradas os maiores budas do planeta. Logo de 18 anos, a comunidade
internacional continua debatendo o que fazer para estabelecer um plano de conservação
que poderia garantir a proteção do vale. Enquanto que alguns países do mundo
consideraram que o governo censor era ilegítimo, Francioni e Lenzerini (2003) mencionam
que Arábia Saudita reconhecia a milícia do Taleban, assim como o Estado Islâmico tinha
um assento na ONU como representante afegão, o que carrega um problema no caso duma
nação que atenta contra seu próprio patrimônio.
Outro caso a considerar é Cirene, no distrito Ghebel Akhdar, na Líbia. Foi inscrito em
1982 pelo UNESCO, sob os critérios II, III e VI. Driver (2013) descreve que é uma colônia
grega que existe desde 631 a.C., afetada no passado pela revolta judaica em 115 d.C. e
também um terremoto no ano 365 d.C., o que piorou sua estabilidade material e apagou
muitas das imagens que se integraram com a arquitetura. Os templos mais importantes
desde o ponto de vista patrimonial foram os de Deméter e Perséfone, porém os arqueólogos
ainda não sabem como interpretar a destruição neles, seja por causas naturais do terremoto
ou vandalismo iconoclasta.
Figura 2: Ruinas romanas e helénicas de Cirene.
Fonte: https://www.voanews.com/
O terceiro caso para complementar as perspectivas de iconoclastia e poder das
imagens, é aquele de Hatra em Iraque. UNESCO (2020) considerou sua inscrição em 1985
e a descreve como a capital do primeiro Reino Árabe, protegida por muros e torres. Hatra
destaca pela arquitetura helenística e romana que também tem influência oriental, pelo que
corresponde aos critérios II, III, IV e VI. Westcott (2017) comenta que foi restaurado antes
de 2003 por Saddam Hussein, quem deixou seu nome inscrito nas pedras usadas na
restauração, imitando ao rei babilônico Nabucodonosor II. Além disso, após 2003 o Estado
Islâmico converteu Hatra em sede já que sabiam que os militares estrangeiros nunca
arriscariam atacar o patrimônio cultural.
Deustche Welle (2017) narra que Hatra sofreu mutilações em 2015, quando foi
publicado um vídeo do Estado Islâmico quebrando estatuas de valor inestimável e antigas
muralhas com rifles de assalto. Foi assim como o EI demostrou seu domínio ideológico
sobre a região de Iraque e Síria, provocando protestos internacionais que só causaram
mais atos de censura ao patrimônio pré-islâmico.
Figura 3: Hatra.
Fonte: https://whc.unesco.org
O passado iconoclasta
Fonte: https://www.researchgate.net
Cirene se tornou em um lugar impossível para o turismo, quando em 2013 foi
aprovada uma lei que permitia recuperar terras confiscadas sob governo de Kadafi. Voice
of America (2018) explica que aquilo significa que hoje existe mais de um proprietário no
solo que conforma a cidade antiga, sendo um verdadeiro desafio para que a sociedade
líbica reconheça e lute para proteger o valor patrimonial do monumento; ou seja, a guerra
só permite refletir que não existia um programa educativo eficaz para que os cidadãos
fizeram um uso correto do patrimônio.
A percepção do patrimônio naqueles territórios também mudou consideravelmente
já que o Estado Islâmico visibilizou os próprios atos de censura, privando à sociedade da
história pré-islâmica e criminalizando a quem estivesse contra os atos iconoclastas. De
acordo com Ristoldo (2017) os vídeos do EI trabalham o aspecto psicológico para gerar
impotência e temor a diferentes níveis. A destruição de patrimônio cultural não só rejeita
outras crenças religiosas, mas também nega o passado pagão e estabelece o
fundamentalismo religioso como única forma de conviver pacificamente sob domínio deles.
Destruição e mídia
Fonte: https://whc.unesco.org
Fonte: https://www.dw.com/
No início do ano, o jornalista Hoffman (2020) publicou na revista Vanity Fair sobre os
tweets polémico do presidente americano Donald Trump como resposta às ameaças
iranianas. "Se o Irã atingir qualquer americano... teremos como alvo 52 sites iranianos...
alguns em um nível muito alto e importante para o Irã e a cultura iraniana..." (p. 1) Muitas
personalidades espalhadas pelo mundo refletiram naquela rede social sobre o risco de
perda de patrimônio insubstituível, e também lembrando ao presidente sobre as
convenções que criminalizam a obliteração de patrimônio declarado no Irã, tais como a
Persépolis e o Santuário do Xeque Safi al-Din.
CONCLUSÃO
Fonte: https://news.artnet.com
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