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Segunda edição do Fórum “Forinho: o Brincar, a Improvisação, a

Dança”

Projeto contemplado pelo X Programa de Fomento à Dança da Secretaria Municipal


de Cultura de São Paulo.

Fórum realizado no Itaú Cultural no dia 25/10/2011.

Mediação:
Georgia Lengos, diretora e fundadora da Balangandança Cia.

Participação:
Renata Meirelles, educadora e cineasta. Autora do livro Giramundo e Outros Brinquedos e
Brincadeiras dos Meninos do Brasil, terceiro colocado no prêmio Jabuti de 2008.

Helena Katz, crítica de dança do jornal O Estado de São Paulo e professora de comunicação das
artes do corpo e no Programa em Comunicação e Semiótica na PUC/SP.

Lenira Rengel - doutora em comunicação e semiótica pela PUC/SP e mestre em artes/dança


pela Unicamp e bacharel em direção teatral pela USP.

Abertura do Forinho:

Georgia Lengos:

Eu sou a Georgia Lengos, diretora da Balangandança Companhia. Esse Forinho pra


gente é uma alegria, fazer o segundo e a gente espera fazer muitos mais. A gente está muito
feliz de estar aqui e poder compartilhar essa mesa, que eu vou apresentar daqui a pouco, que
é muito especial. Primeiramente, gostaria de agradecer o Itaú Cultural e esse acolhimento
tanto do ano passado quando deste. Pensar em dança para criança é uma questão que a gente
está trazendo. Esse projeto faz parte de um núcleo maior que chama “Gira-gira –
Balangandança em Movimento” e aqui no Itaú Cultural a gente está fazendo o Forinho e as
oficinas, esse é um braço do “Gira-gira”. O outro é o espetáculo “Dança em jogo – exercícios
cênicos”, que está em cartaz no Sesc Bom Retiro, que a gente está tendo apoio do Sesc
também e em escolas e ONGs, que a gente está fazendo doze apresentações em São Paulo, em
diversos lugares. E o outro ainda é o blog que é o dancaemjogo.wordpress.com, que é um
espaço pra gente refletir dança, trocar idéias e registrar o trabalho da companhia. Aqui a
Balangandança está toda presente, estão a Dafne Micheleps, Anderson Gouveia, Allan Scherk,
Maristela Estrela, Alexandre Medeiros, Coré Valente e Clara Gouveia. Na produção, Mariana
Delgado e Anderson do Lago Leite. O “Gira-gira” vem como um projeto de circulação do nosso
trabalho que vem acontecendo há dois anos que é o Dança em Jogo, o Forinho, as oficinas e o
blog e ele recebeu o prêmio do 10º. Programa de Fomento à Dança da Secretaria de Cultura do
Município de São Paulo. A idéia dele é exatamente circular e fazer pipocar as discussões, o ver,
o pensar, o ouvir, debater a questão tanto do brincar quanto da improvisação quanto da dança
pra crianças.

Para nós da Balangandança, essas são questões que se juntam e a gente vem
pesquisando isso há anos, a Balangandança tem catorze anos e sempre teve um pouco de
improvisação e o brincar como premissa dentro da nossa pesquisa. Durante esses anos, a
gente veio trilhando um caminho e, em 2009, a gente resolveu fazer uma pesquisa do olhar da
criança para o movimento, essa pesquisa foi feita junto com as crianças para a gente ver se o
movimento e a improvisação comunicavam e se tornou uma apresentação que a gente chama
de “Dança em Jogo – exercícios cênicos” porque para a gente não é um espetáculo, mas
porque a gente acredita e está questionando que o brincar e a improvisação convergem em
alguns pontos e que o procedimento da improvisação é o que mais se aproxima do brincar da
criança. Então a comunicação viria daí, dessa dinâmica tanto no corpo quanto no cênico. Neste
ano, a gente quer cada vez mais ter mais pessoas que pensem sobre essas coisas, mesmo que
independentemente, e para nós todos podermos linkar ou deslinkar essas coisas, ver o que
tem de semelhança e o que tem de diferença porque são temas que têm pontos de vista muito
diferentes tanto no meio educacional quanto no meio da dança. Fala-se de improvisação, mas
que improvisação é essa? Fala-se de brincar, mas o que é isso? A gente queria trazer essa
discussão pra nós, pra nos alimentar na Balangandança e dividir isso com o público pra ficar
mais rico e mais gostoso. Então eu tenho aqui estas pessoas, com muito prazer e
agradecimento a elas de estarem aqui. A Renata Meirelles vai falar sobre o brincar, depois a
Helena Katz vai falar sobre improvisação e depois a Lenira Rengel vai falar sobre dança para
crianças.

Renata Meirelles é educadora, autora do Livro “Giramundo e outros brinquedos e


brincadeiras dos meninos do Brasil” (vencedor do Prêmio Jabuti) e diretora de filmes sobre a
criança brasileira. É uma pesquisadora do brincar, uma superbrincante e vocês vão ter o prazer
de ouvi-la.

Renata Meirelles:

É um prazer estar aqui dividindo aquilo que me dá muito prazer em fazer, que é estar
perto das crianças e conhecer o que elas fazem, como elas fazem, o que é importante no
brincar das crianças. É um prazer estar perto da Georgia, que tenta levar adiante esse brincar,
essa espontaneidade, esse corpo solto, que faz um trabalho tão bacana também. Eu hoje
resolvi na verdade falar muito pouco e deixar que as crianças falem mais do que eu. Optei por
essa forma porque, na minha trajetória de pesquisa nas brincadeiras, eu sou uma grande
aprendiza das crianças, eu vou onde elas estão, eu vejo o que elas fazem e tento apreender
com elas o que existe não no gesto só, não naquele jogo, naquela brincadeira em si, mas o que
existe por trás disso tudo também.

É uma caminhada sem fim, é uma jornada bastante intensa, profunda, que eu tenho o
prazer de fazer junto do meu marido, que é documentarista, e vocês vão ver uns filmes que
foram feitos por ele também, a gente trabalha junto nessa jornada. A gente empresta o nosso
olhar para que as crianças possam falar. E aí quando eu pensei “Pô, turma de dança, por onde
eu começo?”. É tanta coisa que a gente vê, são tantos “brincares” que eu resolvi começar de
algo que é um princípio, que é o brincar com o chão. É a paixão que a criança tem em brincar
no chão. Quando eu estava na Amazônia em 2001, uma menina me perguntou assim: “Renata,
como é o chão da sua cidade?” Foi um pouco difícil responder, mas a partir dessa pergunta, eu
me despertei muito para entender como é o chão para as crianças e como elas se relacionam
por aí.

Enfim, essas são inúmeras das perguntas que eu faço a partir das perguntas das
crianças e eu achei que seria apropriado para uma turma de dança a gente conversar sobre
isso. Quero dizer dessa paixão, desse menino que consegue entender a intimidade com que
ele se relaciona com aquilo que vai fazer dele um ser íntimo dessa anatomia que o chão lhe
oferece. É claro que nas brincadeiras a gente vê uma conversa muito explícita e óbvia. Quando
a gente vê esses jogos que são riscados, como por exemplo esse caracol, e como essas
brincadeiras se repetem de região para região. Se elas se repetem, é porque elas têm uma
recorrência na infância. Quando elas vêm de diferentes formas, de diferentes chãos, de
diferentes texturas, de diferentes buscas das crianças, fica explícito que tem um imaginário
que é próprio das crianças e que se faz presente a partir de determinados brinquedos, de
determinadas brincadeiras. É como se a criança na verdade existisse antes da cultura, num
lugar ainda mais profundo onde todos vão beber da mesma fonte. Num espaço um pouco mais
subterrâneo que é a própria cultura, essas coisas se afloram com coloridos diferentes, com
sotaques diferentes, com gestos diferentes, com regras diferentes, mas é quase que
imprescindível para a criança fazer brincadeiras dessa forma. De norte a sul, a gente vai vendo
essa relação desse riscar traços no chão e pular de diferentes formas independentemente do
espaço que ela se propõe a isso. Eu vi umas brincadeiras onde as crianças fazem com as suas
tampinhas um percurso de caminhos onde eu quero na verdade percorrer e me mostrar
percorrendo. Eu gosto muito destas oficinas no chão, onde o chão é esse espaço cúmplice do
meu fazer, onde eu trabalho em cima dele, onde eu converso com ele, onde ele me devolve
relações absolutamente importantes e aí eu transformo isso no meu brinquedo, seja lá ele
como for, e brinco com ele de diferentes aspectos.

Numa escola em São Paulo, no Butantã, onde eu fiquei um ano trabalhando, eu


consegui acompanhar uma conversa no chão muito peculiar, que foi muito interessante. As
crianças, no final do período, ficam num espaço embaixo de uma árvore de carambola
esperando os pais chegarem, é um momento absolutamente livre, elas ficam lá absortas no
que interessa a elas. E eu sinto que é um dos momentos mais vivos da escola, é um dos
espaços mais poderosos e aí eu fiquei encafifada com o que elas ficaram fazendo durante um
período muito longo, que era cavoucar. Cavar o chão e descobrir ali pedras, caquinhos. Ali o
discurso deles era que eles estavam em busca de um dinossauro. Uma vez um disse que eles
estavam vendo se iam achar alguma coisa da construção do metrô. Por muito tempo eles
queriam desvendar esse espaço oculto, esse espaço interno que você cavouca com a unha,
com uma pedra, sem pá nenhuma, é um exercício de um desejo tão verdadeiro que ninguém
precisa pedir para eles fazerem. Eles fazem porque eles precisam. Na verdade, eles precisam
porque é absolutamente interno e dentro de um imaginário que não tem como escapar. Você
vai vendo essa recorrência dessa brincadeira dia após dia e aí eles vão tirando essas pedras,
eles vão desvendando esses mistérios, a anatomia toda do chão e eles dão aquele suspiro:
“Olha o que eu achei!” com aquele mistério que eu consegui desvendar, que eu trouxe à tona,
que eu saí de algo do mais profundo e conquistei ele. Passado um tempo, passado um inverno,
as pedras saíram do chão e elas se transformaram então agora num trabalho também árduo,
só que elas se transformaram agora numa fábrica, que é a fábrica de giz. Então agora eles
passaram a usar as pedras grandes pra quebrar as pedras pequenas e quebrar em vários
caquinhos e aquilo virou um giz. Eles vendiam esse giz porque eles entenderam esse trabalho
fabril, essa coisa do homem-fábrica que consegue de fato transformar algo em algo, não
importa o quê. Então eles já tinham isso dentro deles e eles transformam essa fábrica e,
quando eu fui perceber, era muito mais do universo do menino, era um grupo muito mais de
meninos. Eu pensei: “O que será que as meninas estão fazendo?” As meninas estavam na
cozinha. No mesmo lugar, na mesma árvore de carambola, elas estavam se utilizando dos
mesmos recursos, mas elas também estavam nesse fazer de transformar uma matéria-prima
em outra, que é o cozinhar, é o transpor as sementes, as folhas, as pedras em elaboradíssimos
pratos e todos os dias também ali, elas iam entrando nessa relação muito apropriada com os
seus materiais, apropriada também com os seus gestos. O gesto ao chão é aquele gesto íntimo
porque você está curvado a algo, você está com a sua própria intimidade, você está se
reverenciando ao chão, ou seja, sou eu comigo mesmo no meu pequeno grupo ali. Não é um
gesto expansivo, é um gesto absoluto, pequeno. Então as coisas ficam absolutas, elas ficam
desse jeito, elas organizam os seus próprios gestos, elas organizam os seus próprios fazeres. E
quando os meninos resolvem se juntar com as meninas, o que é que se transforma? Numa
casa. É incrível, quando os dois resolvem se unir, a casa se forma. É uma casa de insetos, sejam
lá vivos ou mortos. Eles resolvem juntar tudo o que eles tinham, todos os elementos, as
pedras, as folhas, os galhos e dia após dia eles foram se juntando e, a cada dia, vem uma
elaboração mais rica com histórias, com conceitos, com quartos. Aqui eles começaram até a
escrever com os nomes, denominar as pedras e foram então fazendo uma construção
conjunta. Demorou um ano para chegar nessa resolução.

Essa relação que se organizou dessa forma com as pedras, foi numa viagem pro Ceará,
numa pesquisa do Mapa do Brincar, um projeto da Folha de S. Paulo, do qual eu fui consultora,
que pesquisou brincadeiras pelo Brasil todo e, no sertão do Ceará, a gente encontrou um
grupo de meninos que falou assim: “A gente aqui tem uma brincadeira com pedras” e eles
transformaram as pedras num casamento rural. O casamento rural normalmente é um grande
churrasco onde matam uns três bois, assam aqueles bois e aí esses meninos do sertão do
Ceará conversam com as pedras igualmente como os meninos da escola de São Paulo.
Colocando uma vida, dizendo com uma ressonância do que essas pedras dizem pra eles.

(((Renata mostra o vídeo “Boi de Pedra”)))

Mas por que eu estou falando de pedras? É porque às vezes é preciso sair um pouco
desse gesto do brincar já roteirizado demais. A gente às vezes esquece de enxergar certas
simplicidades que eu me permiti trazer aqui, coisas que deixam o olhar um pouco mais
apurado. Essa foi a intenção. Para a gente não esquecer daquilo que está no mais plano
mesmo. Agora eu vou apresentar um último filme. Esse filme traz outros gestos um pouco
mais reconhecidos talvez nesse roteiro que a gente enxerga nesse brincar que são brincadeiras
populares: pular elástico, amarelinha, enfim, coisas de um cotidiano. Eu temo achar que nós
estamos usufruindo desses brinquedos e dessas brincadeiras mais para um discurso e menos
para algo que é de fato da criança. Eu digo principalmente da área de educação e eu ouço
muito das pessoas: “Ai, e se a gente fizesse quinze amarelinhas aqui?”. É como se fosse uma
pílula, um remédio que eu dou para o meu aluno, ele sabe quinze tipos de amarelinha e a vida
dele vai ser absolutamente mais rica. Então eu peco às vezes por voltar atrás, mas para a gente
de fato caber dentro dos nossos olhares para a criança para o sutil, o simples, o que na
verdade todos nós sabemos e conhecemos. Eu vou apresentar para vocês o filme “Natureza
Brincante” que também é um produto dessa parceria com a Folha de S. Paulo através do
projeto Mapa do Brincar.

(((Renata mostra o vídeo “Natureza Brincante)))

Eu acho que essa pesquisa vem tentando se aproximar da criança, através do nosso
próprio corpo, então eu e o meu marido, a gente faz junto, a gente brinca junto, a gente
aprende fazendo junto com as crianças e queria aproveitar para já convidar vocês porque a
partir do ano que vem a gente vai voltar para a estrada e vamos ficar dois anos viajando pelo
Brasil com o projeto “Territórios do Brincar” e vocês poderão acompanhar a nossa trajetória
pelo nosso site. O site ainda não está pronto, mas o endereço é
www.territoriodobrincar.com.br. A gente vai trazer a voz das crianças de diferentes regiões do
Brasil e vai devolver isso para elas próprias.

Georgia Lengos:

A Helena Katz é professora do curso de artes do corpo e do programa de Comunicação


e Semiótica da PUC-SP e crítica de dança do jornal O Estado de São Paulo. É uma
superpensadora da dança aqui no Brasil e a gente a admira bastante.

Helena Katz:

As perguntas são as seguintes: o que acontece com o corpo quando ele improvisa?
Para responder essa pergunta, a proposta vai ser pensar sobre quais são as ignições que fazem
o corpo misturar o que ele já conhece com o que ele ainda não conhece. Em duas situações.
Primeira situação: formação de hábitos. Segunda situação: propondo a dança como um
pensamento do corpo. Improvisação, dança e criança parece uma combinação muito natural,
mas quando se trata da estrutura de um espetáculo, a coisa complica. Talvez porque nesse
caso quando a gente junta improvisação, dança e criança pensando em espetáculo, a
improvisação passa a ocupar papeis diferentes. Por quê? Porque ela vai conduzir a atuação do
bailarino em cena e esse bailarino geralmente não é uma criança. Essa ação vai ser assistida
por criança e por quem leva a criança, que não é criança. E depois, possivelmente, porque ela
vai ser tratada como linguagem, como parte da linguagem daquela obra. Na obra e da obra. A
improvisação fica ali.

A gente pode tentar lembrar, para começar a falar sobre os hábitos, daquele programa
infantil, os Teletubbies. Ele surgiu em 1997, lá na BBC de Londres, e foi uma grande polêmica
porque foi um imenso sucesso, durou muito tempo, foi exportado pra muitos países, aqui para
o Brasil também, e lá na Inglaterra durou de 1997 a 2001, e são 365 episódios e eles foram
escritos por um cara chamado David Davenport e quem inventou os Teletubbies foi uma moça
chamada Annie Wood. Foram eles que trouxeram essa conversa de quais eras as habilidades
cognitivas desse público que eles queriam atingir, que eram bebês e crianças em idade pré-
escolar. Como é que era uma linguagem de televisão que conversasse com as habilidades
cognitivas de quem eles queriam atingir? Isso resultou naquela idéia de repetição com poucas
falas. Esse entendimento de que precisa pensar em quais são as habilidades cognitivas que
tem aquele com quem você quer falar no seu espetáculo, é por aí que eu quero seguir.

Essas habilidades cognitivas, quando você fala criança, é um nome grande demais.
Porque cabe muita gente debaixo desse nome “criança”. Dentro dessa população grande, se a
gente quiser trabalhar habilidades cognitivas, vai precisar segmentar um pouco porque ao
longo do tempo, da vida da criança, as habilidades cognitivas são diferentes. Quando se fala
em improvisação, isso é um negócio bem sério, saber exatamente as habilidades cognitivas,
para quem é, para quem faz, para quem assiste, esse “bololô” em torno do que chama
espetáculo. Se a gente vai para a dança profissional, ou seja, quem vive de dança, quem se
interessa por esse segmento, essa dança que se dedica às crianças sendo feita por adultos,
essa ação do improvisar vai conversar com essa outra ação que é a ação do treinamento. O
corpo que dança já desenvolveu hábitos motores, por isso que ele está dançando. Por quê?
Porque ele fez aulas, porque ele fez algum tipo de treinamento, porque ele faz algumas
repetições e isso vai produzindo hábitos motores, é um jeito de se mexer. Então essa escolha
de um treinamento que antecede a escolha de fazer uma dança de um determinado jeito, ela
antecede, mas ela não fica lá nesse momento do anteceder, ela vem junto para esse momento
do fazer.

A escolha do que é que compõe um treinamento é absolutamente decisiva para quem


está interessado em improvisar. Por quê? Por causa dos hábitos cognitivos, por causa dessas
habilidades motoras. Isso acontece porque o corpo não tem condição de recusar uma
informação com a qual ele entra muito em contato. A cada vez que o corpo encontra uma
informação, de qualquer natureza, agora por exemplo nós estamos aqui, nós estamos
encontrando uma certa temperatura, uma certa luz, a minha voz, ruídos, interferências, tudo
isso que a gente está encontrando são informações. O nosso corpo não recusa. Se nós
ficarmos aqui muito tempo, daqui a pouco com essa luz meio mortiça, a gente vai ficar meio
cansado. Por quê? Porque o corpo não recusou essa informação, ele não tem essa habilidade
de recusar. Aquela informação que o corpo lê do mundo, ele não recusa. Então imagine uma
informação que o corpo se dispõe a fazer, como uma aula que escolhe para fazer e repete,
muitas vezes ao longo de meses, ao longo de anos, todos os dias, seja por quanto tempo for. O
corpo não recusa as informações com as quais ele consegue entrar em contato. Não são todas
as informações que existem no mundo que o nosso corpo lê, entra em contato, porque
existem mais sons no mundo do que a gente consegue ouvir, o espectro de luz também a
gente não consegue ver tudo, porque nós humanos temos uma percepção mais limitada,
nosso tato é mais limitado do que o das cobras, coisas que a gente não percebe, a gente não
enxerga igual a um urubu de noite... Mas o que o corpo humano consegue ler do mundo, ele
não consegue recusar. Isso significa que, ao não recusar uma informação, essa informação faz
alguma coisa com o seu corpo e esse alguma coisa que a informação faz é que é interessante
pensar. Porque você pode pensar de duas maneiras. A maneira mais habitual: meu corpo entra
em contato com as informações e aí essas informações passam a fazer parte do conteúdo do
meu corpo. Ou seja, eu tenho uma porção de coisas aqui dentro e essas coisas aqui dentro são
as informações que fazem parte da Helena, elas são meu conteúdo. Quando a gente pensa
assim, mesmo sem querer, a gente já está usando a noção de “corpo-cointêiner”. Esse corpo
que é uma embalagem onde você vai colocando uma porção de coisas nele.

Não é desse jeito que eu estou propondo que a gente pense. O corpo entra em
contato com uma informação. Isso é o que é entrar em contato: acontece alguma coisa. Mas
essa alguma coisa não acontece n como se a informação entrasse num contêiner e ficasse lá
com outros conteúdos que lá já estavam. Quando o corpo entra em contato com uma
informação, essa informação se transforma em corpo. Isso é muito diferente de pensar que o
corpo é um contêiner. Ele é uma montanha de informações que está o tempo inteiro entrando
em contato com outras. Quando está entrando em contato, essa informação que acaba de
chegar já se modifica porque ela vai ter conviver num ambiente onde já existem outras
informações. Então, o meu corpo já se modificou, ele fica diferente no ambiente. Não é um
conteúdo. É o contrário. O corpo fica sendo um estado. É um estado dessa coleção de
informações. O tempo inteiro está mudando porque o tempo inteiro ele continua entrando em
contato com as informações. Você está dormindo, mas você está entrando em contato com
um monte de informações: o que você está sonhando, o que você está respirando, se tem
algum barulho na sua casa, se você mora na avenida Paulista, se você mora no interior, se o
colchão é duro, se você tomou banho, etc. Tudo isso são informações o tempo inteiro. É uma
idéia de troca, mas não é uma troca no sentido de “trocar de roupa”. Não é isso. É troca no
sentido de um fluxo de contaminações. Por que está trocando? Está só modificando. É essa
idéia de troca no sentido de modificação. Está aí o corpo, que não recusa informação, que está
trocando, modificando o meio, modificando a si mesmo. Ele não é um contêiner, ele é só um
estado. Esse corpo está aprendendo alguma coisa. Se ele está aprendendo alguma coisa, isso
significa que ele está repetindo um montão de vezes, ele está repetindo aquela informação.
Essa informação que ele está repetindo muitas vezes tem mais chance de ficar mais nítida do
que uma que ele não está repetindo. Você vai lembrar por acaso de todas as pessoas que você
viu na rua hoje? Nenhum de nós é capaz. Mas todas as pessoas que você viu na rua hoje
fizeram alguma coisa aí em você. Mas com certeza todas as aulas que você está fazendo ficam
de maneira diferente do que cada uma das pessoas que você viu hoje na rua. Por quê? Porque
as pessoas você só viu uma vez e a aula você fica repetindo. As informações que a gente
repete tendem a ficar mais estáveis no corpo porque você está repetindo. Esse fluxo de trocas
significa que alguma coisa vai trocando sempre, a mesma coisa vai trocando sempre, então
isso vai deixando algum traço aí nessa sua coleção, nesse seu estado. É isso o que o
treinamento faz com a gente. Se é uma coisa que você distende muito, fica mais presente. Se é
uma coisa que você distende menos, fica menos presente. Se essas informações tendem a
virar corpo e essas que se repetem tendem a virar corpo mais ainda, o que interessa é como
isso acontece. Como é que essa informação vai virando corpo? Com esse corpo em que a
informação foi sendo repetida vai virando corpo significa que ela vai consolidando alguns
hábitos motores. Algum jeito de se mexer, de ocupar o espaço, de olhar... Porque isso
depende muito do que você está acostumado a trocar nos seus ambientes.

Como a gente é um corpo só, é com esse corpo que você dança. Imagine esse
entendimento de corpo que está sempre mudando, que é um estado, mas que treina e que
tem alguns traços desse treinamento, e que isso significa que já tem alguns hábitos motores
um pouco mais mapeados. De tanto repetir, vai ficando mais fácil. Treinar é isso, é só você ir
adquirindo mais habilidade. Então a improvisação, que é também algo que se precisa aprender
a fazer, vai ser repetida num eixo um pouco diferente do treinamento, que não é o
treinamento da improvisação. Porque o treinamento que não é da improvisação, quando você
está querendo aprender a dançar, é o treinamento de certos padrões que já estão prontos e
você vai lá tentando chegar cada vez mais perto do padrão de excelência de realização da
técnica da qual você está a fim. Isso é um determinado tipo de treinamento. Nós temos essa
habilidade de chegar no padrão, a excelência do padrão já se tem e estudar faz parte disso. E
aqui, que não é essa habilidade? Que é a habilidade de recombinar criativamente e é a aptidão
de continuar recombinando criativamente. Então isso aqui é um treinamento? Sim, é um
treinamento. E isso daqui o que faz com o corpo? A mesma coisa. Isso aqui vai garantindo
alguns padrões também. De outra maneira, porque são os padrões dessas habilidades.
Dependendo de quais informações que o corpo está a repetir por mais tempo ao longo da sua
vida, mais presentes elas se tornam nesse corpo, que é o corpo que vai improvisar. Esse
improvisar vai acontecer nesse desenvolvimento dessa habilidade de recombinar esses
saberes sensório-motores do corpo. Isso é preciso aprender a fazer. Também de trata de
treinamento e também tenderá a estabilizar algo. Mas é um algo diferente. O que esse
treinamento desenvolve é essa capacidade de recombinação criativa de padrões que já estão
assentados. Pode parecer que é um jogo entre o conhecido e o desconhecido, mas talvez se
assemelhe mais com um aprender a desarticular automatismos.

Existe um complicador nessa equação porque nós humanos somos hábeis


conservadores de hábitos. A tarefa do improvisar fica um pouco mais difícil por conta disso e
por isso essa é uma tarefa que precisa ser construída no tempo. Ela não pode parar de ser
construída. Se entendermos que a improvisação é essa aptidão transformada em habilidade
pelo treinamento, que precisa continuar no tempo, e se nós lembrarmos que as informações
que se repetem tendem a se estabilizar como corpo, vai ser possível chegar ao segundo
objetivo que eu mostrei para vocês quando comecei a falar. Quando a gente diz que uma
informação se torna corpo, significa dizer que ela se modificou um pouquinho quando ela era
fora do corpo. Ela chegou no corpo e encontrou novas informações, ela se modificou um
pouquinho, modificou todas as informações que lá estavam e lá vai ela nesse fluxo de trocas.
Essa coleção, portanto, nunca fica pronta. Então não dá para a gente dizer que a gente tem um
corpo. Porque essa coleção nunca fica pronta. Ela não para de ser o tempo inteiro modificada.
Está o tempo inteiro em transformação. Só que algumas informações ficam mais estáveis do
que outras porque elas são as mais repetidas e elas vão ficando mais estáveis. Mesmo assim
elas vão se transformando. Nesse quadro de entendimento do corpo desse jeito, eu acho que
a gente já pode entender que a dança é um determinado tipo de habilidade cognitiva. Essa
coleção de informações, quando faz certa coisa, a gente diz que o corpo está dançando. Se a
gente chamar essa certa coisa que o corpo está dançando de dança, de uma habilidade
cognitiva, vai acontecer a mesma coisa que com a criança. É um nome grande demais para
caber só uma habilidade cognitiva que é o corpo dançando.

Que tipo de habilidade cognitiva é essa que pode juntar todos os tipos de dança, que
são tantos e tão diferentes? Essa é a segunda parte. A primeira parte é: o que acontece com o
corpo quando ele está improvisando? O que acontece é que ele está desenvolvendo uma
habilidade cognitiva que é o articular e o desarticular. Não é só um jogo entre o conhecido e o
desconhecido. É um articular e um desarticular de habilidades cognitivas: as mais mapeadas e
as menos mapeadas. A segunda parte é: essa dança que o corpo está fazendo, que chama
improvisação, é igual às outras? Ela é diferente das outras? Por que a gente dá esse nome
comum a tanta coisa diferente? Essa é a segunda parte desse eixo que eu quero articular para
a gente debater. A única característica que une todas as diferentes danças é que o seu
movimento não tem finalidade outra que seja a de juntar com um outro movimento de dança.
Não tem a funcionalidade do movimento fora do contexto da dança. Esse movimento que é
dessa mesma habilidade cognitiva, na dança ele se desfuncionaliza e passa a não servir para
nada a não ser para dançar, que é grudar uma coisa na outra e na outra só para continuar
dançando.

No corpo, há um outro tipo de habilidade cognitiva que também funciona como mapas
neuronais parecidos com esse, que é o pensamento. A gente pensa que o pensamento é para
explicar. Não, isso aí são as semânticas do pensamento, é o verbal do pensamento. O
pensamento do qual eu estou falando aqui é como é que o corpo pensa? Os mapas neuronais
do pensamento são muito parecidos com os mapas desse tipo de movimento que é o
movimento de dança. Eles também não servem para outra coisa que não seja um pensamento
que formula um pensamento, que formula outro pensamento, que formula outro
pensamento. Esse fluxo de mapas neuronais do pensamento é muito semelhante ao fluxo dos
mapas neuronais do movimento de dança. Com essa hipótese, é possível dizer que a dança é o
pensamento do corpo. Quando o corpo dança é tal qual quando ele está pensando. Quando eu
digo que a dança é o pensamento do corpo não é que, enquanto você dança, você está
pensando em alguma coisa. Não é o pensamento conteudista porque não é também o
moimento conteudista. Porque também não é o corpo conteudista. É esse entendimento de
fluxos incessantes. Eu estou falando da estrutura do funcionamento, não estou falando a que
se refere esse funcionamento, ou seja, qual é o conteúdo dele. Se é assim, então a gente pode
dizer que a dança é o pensamento do corpo porque é de um mapa neuronal muito parecido.
Do pensamento e da dança. Se assim é, essa é a única coisa que junta todas as danças. Mas a
gente vai precisar especificar um pouco para a gente poder entender como é que é então o
mapa neuronal de cada uma delas e como é que é o mapa neuronal da improvisação para a
gente saber o que está de fato acontecendo. Mas isso é claro a gente vai precisar de uma outra
conversa porque senão a gente não termina a nossa função aqui hoje. Mas a idéia é que a
gente fique com isso na nossa intenção: de a gente conversar. A proposta é pensar a
improvisação como uma espécie de treinamento que é de natureza diferente do outro
treinamento. Quando o corpo faz esse tipo de treinamento que chama dança, há uma
natureza específica do movimento, embora as danças sejam muito diferentes. A dança tem
uma natureza de mapa neuronal parecida com a natureza de mapa neuronal do pensamento.
Por isso a gente pode associar uma coisa com a outra.

Georgia Lengos:

Como é que será que é o mapa neuronal do brincar?

Agora eu vou passar a palavra para a Lenira, que vai falar sobre dança para crianças. A
Lenira Rengel é especialista na arte de movimento de Rudolph Laban, é professora do curso de
dança da Universidade Federal da Bahia, doutora em Comunicação e Semiótica da PUC-SP,
mestre em artes de dança pela Unicamp e bacharel em direção teatral pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Lenira Rengel:

É muito incrível morar na Bahia, num lugar que é um outro pedaço do Brasil, que é
muito diferente, mas que também é muito parecido. Mas às vezes até você nem entende o
que uma criança fala porque é um outro jeito de articular, é um outro aprendizado. Tem
palavras que são usadas de outra maneira. O aluno fala: “Rebola aí”, e eu achei que era
rebolar, mas não era, era jogar ali o papel. Rebolar lá é jogar uma coisa fora. E eu rebolei, né?
(risos)

O chão na dança. Eu aprendi isso com Maria Duschenes e depois fui estudar para ter
um pouquinho mais de conhecimento. Dona Maria falou pra mim assim: “Lenira, criança
pequena é chão. É no chão! Todas as ações possíveis de chão.” Então é rolar, é engatinhar, é
rastejar e aí você pode inventar uma maneira de rastejar, rasteja como uma cobra, rasteja
quando alguém está assim ou rasteja de um jeito de um bicho que você inventa, rasteja com
medo, rasteja fugindo. Por quê? Porque a criança está perto do chão.

Quantos problemas de coluna e de postura ereta que a gente vai tendo ao longo da
vida porque a postura ereta é muito complicada? A gente vem de pequenininho, se a gente
pensar em desenvolvimento da pessoa e na evolução da espécie, a gente vai ficando de pé. É
muito claro o chão para a criança. É muito óbvio. A beleza nisso é como elas desenvolvem as
brincadeiras e de como nós adultos vamos ajudá-las a criar no chão. Mas tem muito a ver
mesmo com o desenvolvimento. Às vezes a gente começa a fazer dança já colocando-as na
posição ereta. Aliás, eu vou fazer um parêntese que é uma coisa muito óbvia, que a gente fala
para a criança ficar reta e não é reta porque a coluna não é reta e nunca foi. Reto é um cabo de
vassoura. Então, por favor, vamos todos aqui nos lembrar que, inclusive como adultos, nós nos
sentamos eretos e não retos. Podemos criar uma metáfora de ficar reto, de fazer uma linha
com uma agulha mais leve ou mais firme ou como seja, mas isso é só uma idéia. Nós não
somos assim.

A criançada precisa ir para o chão. Isso eu estou dizendo até essas crianças dessa idade
que provavelmente a Renata Meirelles mostrou, uns doze anos, ainda pré-adolescente. É o
que a gente chama de criança e meninos e meninas. As crianças, em geral, na nomenclatura
oficial vão até uns sete, oito anos, e aí a gente começa a chamar de meninos e meninas para
até uns doze, treze anos. O improvisar do qual a Helena estava falando, a gente aprende
mesmo. E as crianças também. Eu tive o privilégio de improvisar 25 anos treinando com a
Maria Duschenes e continuo já tem uns 40 anos a improvisar e como um hábito mesmo. Eu
começo a ficar muito aflita quando não há aquele espaço de improvisar. A gente tinha aulas
regulares, eram trabalhos de improvisação. E, com a criança, é tanta coisa mesmo, é tão
grande a criança, que eu escolhi algumas coisas mesmo para tentar falar e tentar que a gente
se conecte mesmo porque isso é tão importante.

Acho que cada um aqui é tão engajado e sabe o quão importante é cada palavrinha
que a gente fala para uma criança ou cada gesto que a gente faz. A importância do que a gente
está fazendo aqui e agora, que a gente fala uma besteira e isso fica marcado para todo o
sempre. Em improvisação com as crianças, uma coisa que eu sempre tentei fazer, eu dou aula
para crianças há muitos e muitos anos, é nunca tentar diferenciar a técnica do que é o
improvisar. Porque aí vira uma coisa pejorativa do brincar e do improvisar. Então jamais numa
aula ou num espetáculo diferenciar a improvisação da aula de balé. Ou se eu vou dar capoeira,
ou se vou dar ioga, ou se vou dar exercícios de abertura. Tudo tem a mesma importância. E
tem mesmo. Porque é um pensamento, é uma ação cognitiva, as crianças aprendem e
produzem um conhecimento e a gente só está ali orientando. O que é que é a gente estar ali
para orientar? Que é quando eu fico pensando quando a Georgia falou desse “para a criança”.
Eu fiquei pensando que tem que ter mais preposição nesse “para a criança”. Tem que ter o
“com as crianças” e o “das crianças”. Então é uma dança para as crianças, com as crianças e
das crianças, feita pelas crianças. Só que é claro que tem o “para as crianças”. Porque não é
uma separação, não tem uma cisão desse mundo adulto e desse mundo infantil, dessa coisa
bem grandona que a gente está chamando de “crianças”.

Se a gente está ali educando, seja dançando, seja na sala de aula, então tem um lugar
ali da criança que está lá para aprender e um lugar daquele professor que está ali para ensinar.
É a gente entendendo que eu aprendo e ensino e que a criança ensina e aprende. Mas está
tudo bem: ela é a criança e eu sou o professor. Por mais que de fato essas fronteiras se
borrem, não dá também para a gente esquecer e ter uma atitude ingênua. Eu sou uma
professora, eu sou uma adulta e eu tenho uma responsabilidade. Porque essa criança é uma
esponjinha. Não é um conteúdo óbvio, não é isso. É justamente o entender que ela pode ser
uma esponja, que eu posso magoá-la, que eu posso afetá-la, é entendê-la como um corpo que
tem sua história, aprende. A gente convive com criança de A a Z, com crianças que não têm
pai, com crianças com pais separados, com crianças cujas mães são prostitutas, com crianças
cujos pais são alcoólatras, com crianças que chegam com motorista para a sala de aula. Outro
dia veio uma aluna com um passarinho morto na mão, tinha acabado de morrer o passarinho
dela e eu comecei a aula enterrando o passarinho. A gente foi para fora e foi enterrar o
passarinho porque não tinha como começar a aula fingindo que estava tudo bem. É uma
atitude que eu chamaria, se a gente for perigosamente nomear alguma coisa, de uma atitude
contemporânea para a educação da dança, não importa qual dança, não importa se você dá
aula de balé. Eu digo balé porque é uma coisa muito forte para todos nós. Eu faço balé, fiz
anos de balé com o Stagium. Não importa o tipo de dança. Uma aula de capoeira pode ser uma
aula extremamente conservadora, extremamente autoritária; uma aula de dança
contemporânea pode ser assim também. Então, a questão é como você vai lidar com o acaso,
acontece alguma coisa e você: “Não posso, tenho que fazer a aula assim”. A criança está vindo
numa diagonal, na diagonal da sala, não é a diagonal dela, e a criança ainda não tem noção das
diametrais. Ela não tem que ter essa noção. Quando eu digo que a criança não tem noção de
uma diagonal, de uma diametral, eu estou comparando comigo. Isso é extremamente
autoritário porque a gente começa assim: “Ela não tem maturidade para isso. Ela não
consegue ainda dar uma cambalhota, ela não consegue andar para trás.” Não é não consegue.
Ela naquela idade faz aquilo. Uma criança de três anos ainda está nesse eixo sagital. Veja o
filhinho da Georgia andar para trás. Pode até ir, claro, há exceções. Mas não dá, esse eixo
sagital, a linha do tempo, é muito inseguro ainda. Vai com a mãozinha, então você vai fazer
jogos. Você não pode dizer: “Ele não consegue andar para trás”. Ele anda aquilo que ele anda,
ele pula aquilo que ele faz.

O nosso jeito de olhar para a criança é um outro assunto que eu elenquei. Por mais
boa vontade que a gente tenha, na maioria das vezes é um olhar do adulto. Eu como adulta
tenho que ficar todo o tempo atenta a isso. A gente idealiza a criança, a gente olha para a
criança com a saudade da nossa infância. Eu quero fazer a brincadeira que eu fazia na infância,
eu quero fazer a dança que eu acho que aquela criança vai gostar. Tem criança que é muito
difícil de improvisar. Porque ela não tem vocabulário, você chega para ela e fala: “Dança!”. Põe
uma música e ela sai dançando. Aí, tadinha, ela fica apavorada! Apavorada! Porque você
precisa ver as ações, com quais ações você faz, o que é ir para a frente, o que é ir para trás, as
dimensões... tem um monte de fecha-e-abre-e-anda. Por exemplo, você pega e fala: “Vamos
fazer agora uma anta”. A criança nunca viu uma anta! Tem que ir ao zoológico, tem que pegar
uma foto, inclusive para não ficar uma metáfora toda caricata. Quantos de nós somos
absolutamente traumatizados porque um dia foi uma árvore na escola? E as crianças podem
fazer belíssimas árvores. A gente vai do cachorrinho para a cobra para o “abre a perna assim”
para uma criança de três anos, “levanta a perninha aqui, esta perna”. É óbvio que você não vai
falar: “Levanta a perna direita” e a gente ouve isso direto, lateralidade em geral só aos cinco
ou seis anos. Aí a professora começa: “A direita! A direita!”. Por isso que tão cedo realmente o
balé clássico e outros treinamentos com excesso de lateralidade não funcionam. É “do lado
dessa parede, do lado da janela, de costas para lá”. Quantas palavras e direções espaciais para
você fazer uma dança com as crianças e das crianças! É tão difícil porque muda tanto, a gente
muda todo dia!

Outro dia alguém me perguntou: “Mas muda tanto?”. Muda tanto e muda muito
porque a gente pode fazer um círculo e fazer vários movimentos. E aí de repente pode manter
esses vários movimentos porque a gente resolveu que essa seqüência será guardada, mas a
inversão do círculo é numa diagonal. É quando a gente começa a abrir essa coisa da roda.
Como pode mudar uma mesma coisa que se transforma já de tantas maneiras! E como falar
com elas, como dizer para elas e entender que elas são uma outra coisa que não a gente? Elas
fazem uma outra dança que não é a nossa. Mesmo voltando a uma técnica codificada como o
balé, como dar um balé para crianças, das crianças, sem ser o balé que eu sei? Como eu digo
que aquilo é um código, como entender aquilo, como contextualizar aquilo, ou com a
capoeira? Porque é possível em uma hora de aula você dar uma contextualizada. De onde
vem, o que é, isso faz a criança saber que ela pensa, isso não faz a criança pensar. É claro que
ela pensa, que ela sente, mas como fazê-la entender que a dança é uma ação cognitiva, não é
uma brincadeirinha, no péssimo sentido da palavra, não é entretenimento? É claro que eu
posso fazer uma dança recreativa, a gente pode fazer uma grande roda numa praça e isso tem
várias nomeações: dança recreativa, dança educativa e há instâncias em que isso se mistura.
Também não é o caso de a gente ficar aqui nomeando as danças que se faz. Eu estou falando
mais no contexto da sala de aula para pensar de novo esse para, esse com e esse das crianças.
Eu entendo que esse nosso olhar é para as crianças, tentando que não seja uma coisa como a
gente vê na televisão uma menininha de três anos dançando axé e tudo bem. Não, não é tudo
bem! De biquíni fio dental na televisão! Não é tudo bem. É isso que eu digo que é esponja
porque vê, faz e repete. Dizer que essa informação não entra é impossível. Uma menininha de
oito anos dublando Calipso ou então a música “Vem dormir comigo” ou “O calor das minhas
coxas”. Como não entende? O gesto, a voz, o tom, a movimentação. Esse é um “para crianças”
completamente nefasto porque é um “para”: joga ali e acha que isso é para a criança. Não é da
criança, aquela dança não é dela. Ela vai até fazer aquilo, repetir muito bem. É por isso que eu
volto para todas essas preposições para quando a gente olha para essa dança.
A gente faz uma ação artístico-pedagógica em sala de aula porque a gente está
fazendo uma pedagogia com dança, mas é artístico porque a gente está ensinando arte. E,
nesse caso, a gente está ensinando dança. Então não somos educadores, professores
quaisquer, mas nós somos professores de arte. Isso já muda a gente de figura, a gente não é
professor de matemática. Podemos muito bem fazer uma relação, alguma coisa
interdisciplinar, mas a gente é professor de arte. Como fazer com que aquela dança não sirva
para algo apenas educativo? Eu vou ensinar as crianças a escovar os dentes. Eu vou ensinar as
crianças a respeitar o amiguinho. Como fazer isso de uma maneira, a meu ver, elaborada? Com
o aprendizado de arte, com o aprendizado de dança. Como colocar isso na cena e não ficar
uma aula? Se vai haver alguma aula, algum ensinamento, alguma história, algo que eu queira
dizer. Porque você pode querer algo – dizer abstrato é impossível, está lá um corpo ali
fazendo, tem um conceito – mas eu posso querer contar uma história para a criança. Não tem
problema. Eu posso querer fazer um espetáculo que fale de cores, de bolas, de jogos, posso
fazer várias expressões artísticas. Mas como fazer uma narrativa, se eu quero falar de escovar
dente, quero falar de amor ao próximo, quero falar do ambiente? A arte faz isso, ela vai
movendo muito o mundo em cima dessas questões que ela traz. “Olha a tragédia que a gente
está aprontando, olha o que a gente está fazendo!” Mas isso tem que ser artisticamente
também. Isso é uma coisa que, claro, a Balangandança Cia. faz. Onde a gente olha num
trabalho de dança para crianças na cena, com signos de dança e ações que você não tem que
toda hora explicar por que fez aquilo, por que aconteceu aquilo. Uma vez eu vi um jovem saído
da adolescência, lá de Moçambique, e ele disse: “Olha, eu não quero ficar dançando para dizer
que a gente tem que ter cuidado com a AIDS. Eu acho isso maravilhoso, ótimo, mas não é essa
a dança que eu quero fazer. Eu não quero dançar os bichos da África. Acho ótimo, tudo bem,
mas eu nunca vi um animal desses na minha frente! Eu sou um menino que mora na cidade.”
Como entender cada contexto? É claro que esse menino pode um dia querer conhecer um
bicho. E um menino daqui entende que o brincar dele é brincar num tablet. Essas coisas
também são trazidas para a cena. É claro que tem que fazer esses dois contextos
conversarem, mas tem também que entender essas crianças. E não idealizar a criança como eu
acho que ela tem quem ser.

É claro que como adultos a gente tem uma noção e a gente tenta fazer e tenta acertar
e tenta dizer de relações, de que dança fazer, de como olhar para a criança, o corpo que ela é,
noções de não-competitividade. Eu faço uma diferença entre competição e competitividade.
Tem uma meninada que acha uma delícia o jogo, a brincadeira, e quem não fez aquilo cai fora.
É aquela coisa tão dura que a gente ouve: “É da natureza humana”. O Richard Dawkins diz que
o compartilhar é o competir junto. Acabem com essas dicotomias todas, joguem fora, tira isso
das nossas relações com as crianças. Quando eu estou nesse jogo e alguém vai sair, tem um
time todo comigo, tem gente que torce para eu fazer isso. Vocês entendem como a gente
compartilha e compete nesse sentido mais lúdico? E não a competitividade. Do melhor corpo,
de quem faz melhor, mesmo que seja na improvisação.

Georgia Lengos:
A gente fica experimentando e querendo quebrar os padrões na improvisação e isso
vira um treinamento, eles também estão lá quebrando um padrão e vai virando brincadeira,
outras brincadeiras, elas se repetem, eles conseguem recuperar, mas os caminhos são sempre
diferentes. Estou falando do que eu consigo perceber para lançar as perguntas das pessoas,
essa história de que a gente tem uma coisa antes que está na gente para a gente poder usar e
combinar e recombinar. Isso é conhecimento, isso é cognição, mesmo que ela seja menor
dependendo da idade. Ela é menor em termos de quantidade, por exemplo, com um ano e três
meses ele tem menos vivência. Então eu não sei como isso acontece na cognição e também
não sei exatamente até onde a criança aprende, como Piaget, Wallon, essas pessoas que
dividiram as fases da cognição, eu não sei até quanto isso vale para todos. Isso são linhas
gerais, mas, diante da cultura a que a pessoa se dispõe, o contato com a natureza, do que ela
tem acesso à criação, eu acho que isso vai também mudando muito até poder andar para trás
com um ano e três meses. Eu acho que é muito bacana porque realmente cada fala cria várias
questões para mim e a ideia aqui é lançar agora para vocês fazerem as perguntas e para
possíveis relações que a gente possa fazer dentro dos repertórios pessoais, dos conhecimentos
de cada um.

Pergunta 1 - Maristela:

Eu sou a Maristela, eu sou da Balangandança Cia. Na verdade eu vou lançar uma


pergunta para a Helena, que na verdade é uma curiosidade e, para além dessa curiosidade, é
uma questão que eu tenho tido em relação aos meus parceiros na Balangandança Cia. Eu
queria primeiro saber do que você gostava de brincar quando você era criança.

Helena Katz:

Eu fui criança nos anos 50. Então era uma outra vida de criança, brincava na rua. Eu era
muito terrível, eu tinha um irmão, então eu brincava só com os meninos. Minha mãe era muito
preocupada com isso, então ela me colocou para ter aula de etiqueta para eu ficar uma pessoa
um pouco mais delicada. Aí eu fui aprender balé.

Pergunta 2 - Maristela:

Eu também queria saber do que você gosta de brincar hoje, se você encontra espaço
para o brincar na sua vida.

Helena Katz:

Eu tenho três netos, você já imaginou que delícia? A gente joga muito futebol, eu sou
péssima goleira. Meu neto Lucas, eu tenho uma superconvivência com ele, então eu estava
sempre arrumada para sair depois de estar com ele, e uma vez ele me disse assim: “Mas você
não está se atirando! Você não está dando o sangue, vó!”. Mas eu precisava ir para o teatro
depois! E ele fala: “Não importa, não importa!” Então, eu estou sempre brincando, subindo em
árvore! É uma grande oportunidade.

Pergunta 3 – Maristela:
Para fechar, o que você pensa desse espaço do brincar construindo o seu pensar sobre
dança: esse espaço do brincar na sua infância, esse espaço do brincar que você ainda encontra,
como esse espaço do brincar, esses diferentes mapas neuronais, como eles constroem o seu
pensar sobre dança?

Helena Katz:

Como o pensar sobre dança veio acontecer numa fase da minha vida muito depois da
fase do brincar, esse tipo de informação teve um hiato, voltou à minha vida com os meus
netos nos últimos quinze anos. Como eu tenho 61 anos, teve um buracão aí sem brincadeiras,
sem brincadeiras mesmo, essas brincadeiras de brincar de verdade, de subir em árvore. Nesse
tempo, a informação do brincar teve menos repetição na minha vida do que outras. É claro
que ela faz parte de uma coleção, agora muito mais reacendida pelas repetições, mas durante
um bom tempo ela teve menos pela falta de repetição.

Pergunta 4 - Nanci:

Como você vê o brincar – e mais especificamente o dançar – com o objetivo de uma


produção final na educação infantil, que é o meu caso porque eu trabalho com crianças de três
a seis anos?

Lenira Rangel:

A escola te faz ter essa produção, né? Eu vou falar da minha experiência. Se a gente
está na escola, é claro que tem mil contingências e é muito difícil dizer isso assim: “Para esse
lugar eu não vou”. Acho que para alguns lugares a gente consegue se negar a ir, mas a gente
precisa sobreviver, então é muito difícil negar trabalho, eu sei como é isso, talvez alguns que
peguem muito fundo a gente consiga negar. Então se a gente está lá, a gente vai ter que tentar
conviver com isso. Eu já convivi com isso muitas vezes, com muitos professores, durante
muitos anos e até hoje ainda. Eu estou desde 1990 trabalhando com a rede pública. Temos
que tentar que as crianças se engajem nesse projeto de fim de ano, que isso vire prazeroso
para as crianças também. Essa é a primeira coisa ao meu ver. É bacana ter uma meta, não
essa meta do produto final, essa coisa que a gente vai construindo um processo para um
trabalho que é para a gente mesmo, e que algumas pessoas vão ver. O pai vai ver, a mãe vai
ver, a professora vai ver. Mas que elas mesmo estão vendo. É claro que eu tenho um monte de
opiniões sobre como fazer isso. Mas a primeira coisa é que isso seja legal para as crianças e
para você. Alguma motivação, alguma coisa interessante. Vá mostrando para eles, tome isso
da escola, pegue isso que está tão distante, que vira uma ordem. Se aproprie dela, agarre ela e
faça. É muito bacana. Eu fazia numa escola em que eu tinha o maior prazer de trabalhar, lá a
gente fazia várias apresentações porque a gente gostava de fazer. É claro que os pais gostavam
de ver e tudo o mais, mas em primeiro lugar é porque a gente queria fazer.

Pergunta 5 – Clélia:

Renata, fiquei encantada com o seu trabalho, parabéns! Eu queria que você falasse um
pouquinho mais sobre ele, por que você decidiu fazer essa pesquisa e, aproveitando um pouco
da sua fala, que você explicasse um pouco mais a frase que você falou: “Sair do gesto do
brincar roteirizado”.
Renata Meirelles:

Assim como a Helena também colocou aqui a infância dela, eu me permiti permanecer
nesse estado de brincar continuamente que tanto me atrai. Eu quando criança chorava para o
meu pai, eu falava: “Pai, eu não quero crescer, não quero!”. Ele foi me mostrando: “Não,
calma, tudo tem as suas coisas positivas.” Eu sempre quis estar perto da criança minha, então
acho que isso foi só um jeitinho de estar perto das crianças para não perder a minha criança
mesmo. Eu encontrei um parceiro que topou essa parada também bem brincante, então deu
certo esse casamento. Eu de fato me encanto por aquilo que vem da criança.

Eu digo brincar não-roteirizado porque eu sinto, como a Lenira falou também, o adulto
dizendo muito o que é bom, como ela faz, como ela sabe fazer. Dizendo muito e ouvindo
menos. Não deixando de ouvir, claro, mas ouvindo menos, escutando pouco o que vem da
criança. E a criança não se roteiriza nunca. Como eu faço filmes, as pessoas me pedem um
roteiro e eu falo: “Não consigo!”. Num documentário sobre criança, não me peçam um roteiro
porque não é possível. Eu vou ouvir, eu vou seguir, eu vou tentar ver o que aquilo vai me
chamar. Transpondo isso para um olhar de um educador, a gente roteirizou tudo antes! Sem
saber o que vinha, sem ouvir mais, sem suavizar o nosso próprio olhar e escutar como chega.
Foi como a Lenira disse, a criança chega com um pássaro morto, mas também com uma carga
de um monte de coisas. O pássaro é só um objeto ali, você imagina o corpo duro de medo,
enfim, tantas coisas que devem ter passado pela cabeça dela. Enfim, eu sinto que a gente vai
muito planejado e, como a gente está falando de improviso – e eu não sou da dança – eu
pensei muito nessa relação do improviso porque a criança não improvisa. Os gestos dela não
são aleatórios, não são do nada, ela não tem uma finalidade planejada, sem dúvida ela não
está fazendo uma coisa pensando já com algo planejado, mas existe uma necessidade anterior,
que ela faz o gesto para dar conta daquela necessidade, seja lá como for. Às vezes, ela
simplesmente sai correndo aqui, ela entra por essa escada aqui porque isso chama para
alguma coisa, um espaço para cima chama para ela, mas eu não sei se isso chama improviso,
eu fico com dúvidas. Se eu roteirizo demais a criança, se eu digo para ela como fazer, me
escapa o que vem dela mesma.

Pergunta 6:

Eu queria parabenizá-las pelo trabalho e pesquisa. Eu sou pedagoga, não sou da dança,
porém eu sou pesquisadora e acredito em tudo o que foi falado aqui nessa concepção que foi
construída. Eu gostaria de perguntar para a Renata - porque eu acredito no protagonismo
infantil - como oportunizar o construir, desconstruir e o reconstruir do brincar nesse processo
que é de suma importância para o mapa neuronal do brincar no espaço/tempo do território da
educação infantil com a nossa rotina?

Renata Meirelles:

Não entenda que eu estou falando de um brincar em que não haja a participação
fundamental do adulto. Não entenda que a brincadeira é própria da criança e que ela não
precisa de adulto algum ao lado dela. Eu não desconstruo a escola nem a educação, mas o que
eu apresento aqui em momentos espontâneos é com o objetivo de a gente realmente focar
naquilo que vem da criança. Agora qual é o papel do educador ou de alguém da dança? É
aquela pessoa que está lá junto fazendo, acompanhando passo a passo o que é isso que já vem
da criança. Eu só não pus o educador aqui nos meus filmes porque eu achei que ainda não era
o momento, mas ele tem sim uma carga de experiência corporal, uma carga de experiência
vivida e ele tem sim a contribuição dessa troca, da qual eu acho que a Helena fala muito bem,
essa troca de fluxos, que eu acho incrível.

É daquilo que você é que a criança quer saber. O que a criança quer beber em você é
aquilo que você é. Se você faz coisas que não são você, aquilo passa de relance para ela. Agora
quando você faz aquilo que é você, ela bebe isso e fica nela. Cada vez que ela encontra
pessoas que fazem o que são, ela vai beber aqui, vai beber ali, vai beber ali, e essa repetição da
qual a Helena falou eu acho incrível e fundamental, tomara que as crianças estejam presentes
ao lado de pessoas que sejam verdadeiras consigo. Porque se eu fico dançando com as
crianças, coitadas delas! Não que eu não dance com elas, eu faço do meu jeito, eu canto
também da minha forma, com a minha verdade, com o meu gesto, com a minha relação, mas
é essa troca que o educador precisa ter e fazer ao lado dela, e não aquele educador que só
enxerta. Dá um papel e vamos lá! Ele vai enxertando coisas nelas, sejam gestos, seja
conhecimento cognitivo, seja o que for. Ninguém é um pote vazio para ser acumulado com
nada. Ela já está preenchida de coisas que ela vai intercambiar com o que está ao lado dela,
inclusive outras crianças, principalmente também crianças de diferentes faixas etárias.
Normalmente a gente faz: um ano aqui, dois anos ali, três anos aqui. E é essa relação viva e
orgânica, essa referência gestual que tem do um ao doze se fosse possível, ela se perdeu. A
gente só separou e ela não trocou. Então qual é a única referência diferente ali naquele grupo?
É o professor, seja ele da idade que for. A criança não conversou com as diferentes referências
porque ali do um ao dezoito você costura. Por que aquele de cinco consegue e eu ainda não?
O de cinco ajuda o seu gesto porque o de um ano não está conseguindo. Falando com o meu
filho sobre a escola, eu falei: “Meu filho, você acredita que tem escola que não tem planta, que
não tem árvores?”. Ele falou: “Puxa, mamãe, mas escola que não tem planta não tem vida. E
aí, mamãe, como fica uma escola que não tem vida?”. Eu até anotei no meu caderninho de
frases dos filhos! Então eu convido a ter plantas e não só isso, mas de fato ter vida dentro da
gente para a gente poder trocar, senão não dá, fica tudo seco.

Pergunta 7 :

Eu trago essa questão porque eu acredito muito no que foi vivenciado e experienciado
com a natureza. Um grande esquema problemático para a educação infantil é a questão da
rotina porque a rotina tem que ter a sua novidade, mas ela também tem que ter uma
seqüencia por conta das responsabilidades e compromissos dos educadores. Eu falo
especificamente da educação infantil. Tem a hora de dormir, tem a hora de comer, tem a hora
de ir para o parque, que é o momento em que a gente está mais voltado para essa criação e
para essa olhar atento às improvisações da criança. No filme da Renata eu vi os meninos
juntando pedrinha por pedrinha, vendo se cabia areia, se cabia água, precisa de folha, trazem
mais, eles vêm se ajudar. Só que ali naquele espaço que está tão organizado, que tem aquela
estrutura neuronal, para eles tudo é desfeito porque vem a outra turma, vem o funcionário
responsável pela limpeza e desmancha tudo. E todo esse processo, essa riqueza dessa
construção cognitiva é desfeita todos os dias por outros, não por seu protagonista. Eu queria
trazer essa problemática, de como oportunizar essa construção, como garantir isso num
espaço tão curto de dez horas que eles estão dentro da escola e daqui a pouco vai vir alguém e
vai tirar tudo?

Georgia Lengos:

Instituições, rotinas, aí me lembra até um pouco o que a Helena falou sobre o


treinamento, a gente voltar todo o dia a fazer a mesma coisa faz parte de estruturar a gente,
estabilizar algumas coisas que ficam. Com certeza acho que as crianças acabam aprendendo
isso. Eu não sei se isso é improviso da criança, mas eu sei que a criança incita a gente a
improvisar e acho que a gente vive num mundo contemporâneo que precisa de improvisação.
Para a gente recombinar as coisas às vezes fica tão difícil, de a gente ter essa habilidade de
recombinação que não que não leve a nada, é uma recombinação que constrói de um outro
jeito. Quando a Renata fala da necessidade da criança de sair ali correndo pela escada, me vem
muito a necessidade do cinético, que é forte. Eu acho que o dançarino guarda isso, a criança
do dançarino guarda isso, essa necessidade de ir para o espaço, essa necessidade de se mover.
Essa é uma necessidade. É um movimento que leva a outro, mas sem finalidade. É uma
necessidade, não tem essa finalidade de beber água porque eu estou com sede, mas eu tenho
que me mover porque isso é preciso. Isso eu acho muito parecido do dançarino com a criança
e também entendo que esse brincar do qual a gente fala está imbuído dessa necessidade de
movimento e do pensar junto, que o bailarino também tem.

Lenira Rengel:

Esse tempo dessa escola que a Renata mostrou não é o tempo em que ninguém vai
chegar lá e vai desmanchar tudo. Eu já fui a muitas creches e realmente não tem muito espaço.
Tem que tentar um outro tempo. É um outro tempo. Ainda mais com essas crianças pequenas
com a noção de tempo, na verdade você pode também ensinar como lidar com o tempo do
relógio. Isso é extremamente útil, mas um pouco exagerado. Talvez você possa criar jogos que
tenham a permanência daquele dia. Talvez você possa repetir algo que continue no dia
seguinte, como um desenho. Ou talvez você possa pedir para não tirarem de hoje para
amanhã. Talvez seja impossível mesmo pedir para que aquilo fique um mês parado ali. A gente
já fez um trabalho com jornal e chegou um cara lá e achou que era tudo um monte de lixo. É
outro lugar. Claro que não é para a gente se adaptar a tudo, mas precisa também, senão a
gente vai ficar sempre naquela coisa do ideal. Reivindicar um espaço, você deve fazer isso, sem
dúvida, mas você também precisa trabalhar com o que tem.

Quando a criança vê essa escada, ela não está improvisando. Se a gente começa a vir
para cá, jogar uma bola, jogar uma fita, aí talvez a gente comece a improvisar. Pode não ser a
improvisação que vai para o palco com a criança. Claro, é o espaço, é o eixo sagital, é a escada,
é isso que a Georgia diz, o que chama fazendo. Na verdade às vezes não é nem antes, é junto.
Eu vejo isso e vou. Nós vamos crescendo e isso vai diminuindo um pouco pelo próprio
conviver. Mas a improvisação vai começar a hora em que a criança mesmo vai ver uma
coisinha e ela começa, a partir daquilo que aconteceu. É diferente mesmo o brincar do
improvisar. É claro que eles podem sim se entremear, sem dúvida, por isso a gente está aqui
conversando sobre isso, mas é diferente.

Georgia Lengos:
Acho que é legal deixar claro também que quando a gente fala assim sobre improvisar,
é claro que a gente improvisa o tempo inteiro, eu não sei o que eu vou fazer agora, por
exemplo. Mas uma outra coisa é pensar a improvisação dentro da dança e eu ainda acho que
também é diferente pensar na improvisação na dança para criança, ou numa aula, ou numa
cena. Então, acho que cada coisa é um pouco diferente.

Pergunta 8:

Disso que a gente está falando agora, se há diferença entre o brincar e o improvisar,
nós temos anos-luz de vantagem em relação ao professor de matemática. A criança quer se
mover ao invés de ficar sentada conhecendo números. Nós estamos aqui para deixá-los sair
correndo por essa escada. Como a experiência de vocês em sala de aula pode nos falar para eu
não me sentir culpada – é uma culpa que me leva muitas vezes – quando essa criança não quer
improvisar? Eu sei que muitas vezes ela não tem alguns signos ou algumas coisas que deveria
ter pela faixa etária, por exemplo. Mas como eu faço para não me sentir culpada porque fui eu
que demonstrei, que fui eu que empurrei, que fui eu que a coloquei naquela seqüência,
naquele pensamento? Era o meu pensamento? Era a minha dança? Onde eu estou certa e
onde estou errada nessa linha de condução? Falo isso nessa realidade paulistana, de salas de
aula pequenas, que com certeza é diferente da realidade de crianças que moram na praia, no
campo, que deve ser muito mais fácil.

Lenira Rengel:

Eu não concordo, acho que não é mais fácil. Acho que às vezes pode ser até mais difícil
para quem sobe em árvores, essa criança não vai saber improvisar de muitas outras maneiras.
Essas realidades são diferentes mesmo. Claro, que beleza que é uma criança! Mas há tantas
tristezas nas crianças também. Há tantas repressões, tantos medos, tantas coisas em que os
adultos colaboram, na cidade ou no interior. Ela não tem esse paraíso perdido que a gente
acha que tem na infância. Infelizmente. Porque às vezes essas crianças também têm aquele
momentinho ali de brincadeira e no resto do dia têm que trabalhar na roça. É tão, tão difícil!

Eu já me senti culpada várias vezes. Às vezes chegava e: “Ai, meu Deus, amanhã não
quero ver a cara das crianças porque acho que eu dei uma bronca!” Até hoje, até com os meus
alunos adultos, eu às vezes fico preocupada com alguma coisa que eu falei. Eu realmente tento
tirar essa coisa da culpa, mas às vezes eu fico preocupada, a gente está aqui e erra também.
Com as crianças, é claro que eu fico muito pior. É muito mais difícil dar uma aula para criança
do eu dar uma aula para adulto. Não tem nem comparação. Eu prefiro dar uma aula no
doutorado. Para dar aula para criança, você tem que ter muitas cartas na manga, o tempo é
outro. Eu não concordo quando você diz “ela não consegue”. A de cinco consegue isso, a de
um ano consegue aquilo. Claro que a de cinco anos vai ajudar a criança menor a conviver
naquele espaço. Mas se você olhar para a criança de um ano, ela consegue aquilo. Eu digo isso
até para mim: Ela não consegue dar esse pulinho”. Dá a mãozinha para ela e dá esse pulinho
que ela dá. Esse é o pulo dela, isso é ela. Lide mesmo com isso que você está chamando de
culpa e vá errando junto e fazendo junto. Você é uma professora que está aprendendo. Por
isso é que você está dizendo que tem culpa. Se você fosse uma professora que achasse que
sabe tudo e fosse autoritária, você jamais ia dizer isso. É como fala o maravilhoso Paulo Freire,
a educação é até morrer. Improvisar é até morrer também. Quando você vai improvisar, é
como conhecer uma palavra. O que é que o corpo faz? Senta, levanta, vira, corre, abaixa, sobe,
vai para frente, vai para trás. É esse material que vai fazer a criança começar a improvisar. E
tem criança que é código. Não vai fazer? Não faça, vá fazer outra coisa. Ajude na luz, no
figurino, no desenho, ela vai indo, devagarinho ela vai. Dá o tempo dela. De novo é a história
da carta na manga. É nossa obrigação. Se não vai assim, então como é que vai? É essa a grande
responsabilidade de olhar para uma dança que não é para a criança. Como é a dança com a
criança? Se eu falo para sentar ali e não deu certo, onde ela pode sentar? Pode tudo mesmo,
pode muita coisa. É muito complexo. Pode não improvisar naquela aula. E você não ficar
cobrando isso dela. Esse é o tempo dela.

Georgia Lengos:

Para complementar o que a Lenira falou, acho que, além de complexo, improvisar é
difícil mesmo. Não é fácil. Não é aquela coisa de espontaneidade. Não é aquela coisa que você
vai fazendo qualquer coisa, apenas o que você está sentindo. Eu acho que essa improvisação
da qual a Balangandança fala é de estar envolvendo outras cognições além disso. No “Dança
em Jogo”, a gente fazia a pesquisa do olhar da criança, então a gente apresentava sem figurino
sem nada para as crianças falarem o que elas viam, para ver se a improvisação comunicava ou
se era só o movimento pelo movimento. A gente conversava com as crianças e fazia uma
dinâmica. Uma vez a gente perguntou: “O que para vocês é improvisação?” e aí um menino
falou: “Improvisar é tentar”. Eu fiquei pensando nisso: improvisar é tentar? Não é conseguir, é
tentar. E eu fiquei lembrando depois que ele fez essa pergunta, a gente foi fazer uma
brincadeira e rolou uma superdança improvisada. Lembrei também de uma outra menina,
depois do espetáculo, a gente falou só quando acabou que era improvisado, e ela falou: “Isso é
improvisar? Porque a minha mãe me falou que quando a gente improvisa, não dá certo”. E aí
perguntei para ela se ela achou que deu certo, e ela falou que achava que tinha dado certo,
mas que não parecia que era improvisado. Acho que improvisar também entra em algumas
questões que são grandes e profundas. Não só da criança, mas ao que você se propõe, de
como você cria. Eu acho muito difícil.

Lenira Rengel:

Tem uma informação que eu acho que pode ajudar que eu aprendi com a Maria
Duschenes e, quando eu fui estudando mais dança e cognições, vi que ela tinha absoluta razão.
Ela dizia assim: “Não vá contra, Lenira, nunca vá contra. Vá a favor”. A criança tem um
movimento leve, muito mais lento, e aí você já chega querendo fazer firme e rápido. Ao
contrário! Você dá o que ela tem, o eu ela sabe. Criativamente. Então é leve assim, é leve para
baixo, é leve para trás, para frente, andando. Tudo como se ela fosse quase esgotar tudo
aquilo que ela tem. Eu chego numa sala de aula, com marmanjos a mil, gritando, berrando, é
claro que não é uma turminha com a qual eu estou junto. Eu faço ficar muito mais acelerado,
corre para cima, corre para baixo, eu mato eles! Isso claro não é uma regra, mas é a favor
corpo, não contra quando você está criando. É claro que na dança a gente vai fazer o que
quiser, mas vá a favor na improvisação, principalmente no processo pedagógico. Se vai para a
cena, é outro papo, mas vá a favor.

Pergunta 9 – Dafne
Meu nome é Dafne, eu sou da Balangandança também e eu faço esse trabalho muito
paralelo porque eu dou aula na escola e faço o trabalho cênico. É muito complicado ,
realmente na educação a gente vive um universo que é de controle, a escola precisa exercer
um controle, estar dentro desse relógio, tem toda uma estratégia de domínio para controlar
aquela turma que vai ficar com você 45 minutos e dali a pouco vem outro batalhão de outra
idade, com uma energia diferente. Como a gente preserva o nosso tempo de escuta para
receber o que cada aluno de cada turma tem, sendo fiel a essa humanidade, que a gente
trabalha com isso como matéria-prima, num ambiente nesse contexto? É duro demais. Eu
ando pensando como é que é isso na construção dramatúrgica, no processo de improvisação,
como é que a gente tem que ter todas essas antenas, todos esses radares abertos, ao mesmo
tempo em que vai se valer de um material que já está na nossa bagagem, que já foi repetido.
Então eu acho que o grande gancho é realmente o que a gente tem de mais verdadeiro e uma
capacidade incrível de ouvir o outro também.

Pergunta 10 – Letícia

Eu queria perguntar para a Lenira. Ela levantou uma questão de não lidar com as
diferenças, sobre técnica ou improviso. Como lidar com isso com as crianças, com os pais, com
os educadores? Porque às vezes a gente é muito questionado dentro de uma escola porque as
meninas fazem aula de balé. Mas aí você tenta fazer um trabalho com um pouco de improviso,
mas sem levantar essa diferenciação. Como lidar com isso? E a partir de qual idade você
trabalha esse improviso?

Lenira Rengel:

A partir da idade que estiver na minha frente. Eu tenho a sorte de trabalhar com gente
de 0 a 84 anos. Agora eu estou num pequeno hiato lá na escola, mas a escola está ficando
pronta, reformada fisicamente, e as crianças estarão de volta na escola de dança da
Universidade Federal da Bahia, mas também sempre tenho trabalhado com professores que
trabalham com crianças. É um trabalho muito longo, ainda mais quando você me diz que é um
trabalho com o balé. Tem que falar com a direção da escola, tem que falar com os pais, tem
que fazer aulas, tem que dizer para as crianças o por quê, como é que você vai entrando e às
vezes a improvisação talvez seja lidar com os códigos do balé de um jeito um pouquinho mais
livremente. A aula é só de balé?

Letícia:

No meu caso, o que aconteceu é que eu cheguei lá e a aula era de balé. Porém, eu
explico claramente para a pessoa que vai me contratar que a aula pode ser de balé, porém eu
começo um trabalho diferenciado antes por causa desse desenvolvimento de técnica diante de
algumas coisas que eu aprendi para se trabalhar com coisas mais concretas, como você dizia:
pesquisas, visitas, fotos. Não adianta dar o que não for acessível para eles.

Lenira Rengel:

Por exemplo, as fadas e as bailarinas. As pessoas às vezes ficam bravas comigo porque
eu não faço nenhuma fadinha, nenhum príncipe. O balé de repertório, por favor, coloque no
DVD para mim. Isso acabou, não dá mais! Mas essa é minha opinião. Nessas escolas quando a
gente vai é um trabalho longo, mas tem que arregaçar as mangas e fazer. A gente continua a
fazer e em muitos lugares a gente consegue ir mudando. Ao meu ver, a coisa que mais
convence é quando a gente tem propriedade. É por isso que eu sempre falo, não importa
onde, mas a gente tem que estudar mesmo, não importa como e nem o lugar. Para dizer para
essa pessoa que a coluna só ereta não dá, que tem que fazer movimentos mais firmes para o
próprio desenvolvimento muscular da criança, os movimentos que são feitos basicamente só
em uma dimensão - é claro que a gente não fica em uma dimensão só -, mas existe, essa
extrema colocação no eixo vertical. Se eu penso que é corpo e mente, mas eu não trabalho
com a criança atrás, eu não trabalho diagonais, não existe o exercício atrás, no máximo vai um
bracinho. É raro você virar para trás. Então você entende que se o corpo não vai e a mente
está aqui nele, ela não vai. É por aí que eu vou fazendo. Dou palestras, eu chamo os pais para
uma aula pública, chamo as professoras. Não é fácil.

Eu estava com 50 crianças, a gente tinha um projeto chamado “Corpos Sonoros” e as


crianças estavam lá construindo seus instrumentos. Para pegar os instrumentos, fazia som,
isso é óbvio. Aí entra a diretora na sala e fala que está fazendo muito barulho. Eu virei para ela,
muito ofendida, e falei que aquilo não era barulho, aquilo era uma experimentação sonora.
Muito ofendida! Eu queria dizer para ela: “Olha, sua burra, criança faz barulho! Se você não
quer trabalhar com criança, por favor, vá embora!”. É claro que eu jamais poderia falar isso
para ela, mas eu chamei isso de experimentação sonora. Eu mudei o nome da coisa porque
não dá para dar só balé para a criança. Ela pode vir a ser uma bailarina clássica se ela quiser e
se ela quiser agora fazer balé, subir na ponta, é bom que a gente diga que antes o pezinho tem
que estar mais fortalecido. Existem coisas espaciais maiores. Aquilo também não era um
barulho. É claro que estava um barulho, mas dali dez minutos tudo sossegou porque começou
o nosso trabalho e nem as crianças aguentam tanto barulho. Não aguenta, vocês podem ver. É
por aí, é como ir dizendo, você vai mudando, vai falando que hoje os estudos de anatomia
dizem isso e os estudos de cognição dizem que precisa de mais do que só balé, que todos os
bailarinos do mundo não fazem mais só balé e é por aí.

Pergunta 11 – Coré:

Eu sou o Coré, da Balangandança Cia., e a gente está tentando colocar a dança em


jogo, ou seja, mexer um pouco com o que se percebe da dança. A Helena disse algo sobre
escolher um treinamento e isso acaba sendo decisivo no jeito que a gente vai conseguir buscar
alguma coisa. Quando a gente vai à escola fazer o nosso trabalho, a gente percebe o quanto
isso modifica a nós e às crianças. Eu queria misturar um pouco dessa ideia, dessa busca desse
treinamento, com a ideia da Renata que estava relacionada ao patrimônio humano e
patrimônio cultural, essa mistura de coisas que nos habita, e como a gente se referencia com
esse contêiner humano. Não clareei muito a questão, mas é a busca da improvisação como
uma técnica para a gente poder se aproximar das crianças.

Georgia Lengos:

Tem uma coisa que a gente usa como uma parte do nosso treinamento que é o
brincar, é a brincadeira. A gente brinca e acha que esse corpo da brincadeira também faz parte
desse treinamento para a improvisação. A gente usa também outras coisas e cada um da
Balangandança vem com uma bagagem, mas o brincar é forte e a questão da educação
somática também. A gente brinca de pega-pega, de peteca, do rabo da lagarta. Isso gera um
corpo, uma disponibilidade. É um treinamento mesmo e também gera um “entre” de relação
que eu acredito que é necessário para comunicar à criança.

Helena Katz:

O que é treinamento? É repetição. Se vocês estão repetindo o brincar, as ações


motoras do brincar produzem certos hábitos motores porque são aquelas ações daqueles tipos
de brincar escolhidos. Se isso vai sendo repetido, isso vai se transformando em algo familiar a
cada um, familiar motoramente. Isso é uma habilidade. A escolha desse brincar, muito
possivelmente porque vocês querem chegar mais perto de um público mais jovem, é de uma
familiaridade motora de quem também está brincando. Isso acontece muito. Como nós
humanos somos muito conservadores, a gente tem muita tendência a reconhecer, e não a
conhecer. A gente só entra em contato com aquilo que a gente já conhece. É só um ato de
reconhecer, porque conhecer mesmo dá um trabalhão danado. Para conhecer você tem que
estar disposto porque o conhecer é o que você não sabe. Agora reconhecer é o que a gente
sabe fazer tranquilamente. Talvez tenha sido uma estratégica da Balangandança Cia. Escolher
algumas ações motoras que vão se transformando em hábitos que são mais fáceis de
reconhecimento por quem tem os mesmos hábitos. Motoramente a gente se aproxima por
familiaridade. A gente se aproxima por familiaridade sempre. Para o bem ou para o mal. Para o
mal porque quando a gente não tem familiaridade, a gente detona. Não presta, não gosto, não
serve para nada. Se for assim, talvez tenha sido uma estratégia interessante que esse seja um
treinamento porque as habilidades motoras que vão ficando familiares a vocês muito
possivelmente se comunicam mais aproximadamente de quem tem aquelas habilidades
motoras.

Coré:

Também na perspectiva de percepção do que é dança. Porque quando a gente brinca,


a gente transcende um pouco o que acontece ali entre a brincadeira e o movimento. Então o
reconhecimento do que é dança, eu acho que a gente vive um momento de transformação,
até pelo o que você fala, é uma sinapse meio parecida com a sinapse do corpo. As crianças
também identificam um outro dançar, não só pelo reconhecimento do meu hábito, do meu
jeito de fazer, mas também reconhecer o que é dança, dar um nome talvez.

Helena Katz:

É o reconhecer que isso é dança. Não é o reconhecer do que é dança. Porque ela
reconhece o que é dança se ela senta e assiste ao Faustão todo domingo, ela entende que
aquilo lá é dança. É reconhecer que isso aqui é dança, aquilo ali no Faustão também é dança e,
se ela for assistir a um balé de repertório, aquilo também é dança e, se ela for assistir à dança
contemporânea, aquilo também é dança. Mas começar a reconhecer o que é dança só se dá
por familiaridade. Por ir acostumando e se ambientando com isso com repetição. Agora
possibilitar que ela reconheça que isso aqui também é dança é que é um passo interessante
porque a maior parte possivelmente dos encontros dessas crianças com dança são com danças
marcadas, com coreografia, com músicas de um determinado tamanho, uma dança para uma
música que tem uma letra e gestos que se repetem de uma música para outra. Poder deixar
isso mais complexo, isso aqui é dança, mas isso aqui também é dança, mas é uma dança que
não se parece com essa porque não tem essa marcação coreográfica, não tem essa marcação
com a música que é de um passinho para cada tempo forte... Esse que é o avanço da
Balangandança Cia. É claro que existem outras companhias que estão fazendo um outro tipo
de dança para crianças com esse modelo marcado. O bacana é que a gente possa ter vários
modelos. Porque cada vez que a gente fala “criança” depende, né?

Eu estava em Salvador dando aula na semana passada e um aluno falou para mim
assim: “Sabe de uma coisa, Helena? O difícil para mim é que quando eu começo a dar aula, eu
tenho que me lembrar de que no morro onde eu dou aula dança é pagode”. Ponto final. Dança
é pagode. Para eu me comunicar com essas crianças, eu tenho que começar no pagode. Em
outubro, ele ainda estava no pagode. Porque não dá para sair. A cada vez que eu saio, tem que
dar uma voltadinha. Se você vai muito para longe, tem que dar uma voltadinha. E nós estamos
em outubro! Essa era a angustia dele. Porque essa é a criança com a qual ele trabalha. Então
você fala “criança”, é um universo grande. Então depende. No morro onde ele mora e
trabalha, o que ele vai fazer? Essa é a habilidade motora, esses são os hábitos cognitivos.
Porque é isso que a criança ouve desde que ela nasceu até hoje. Então dá para sair e ir um
pouco. É longo no tempo esse processo. E não dá para desistir.

Georgia Lengos:

Eu queria agradecer imensamente a presença da Helena Katz, da Lerina Rengel e da


Renata Meirelles, a presença do público, queria agradecer novamente ao Itaú Cultural. Esse é
o segundo forinho e só me faz pensar o quanto a gente precisa se encontrar e conversar sobre
isso porque são questões enormes, às vezes a gente fica em questões muito básicas do dia-a-a-
dia. A ideia é a gente conseguir ir além disso. Existem muitas relações aqui que foram feitas na
cabeça de vocês e não foram colocadas ou não foram feitas, mas os textos delas estão no blog
dancaemjogo.wordpess.com. São assuntos que merecem profundidade e é um assunto que
relacionando gera muita discussão. Na ideia da Balangandança Cia., essa discussão nem
chegou, tem muitas coisas que a gente troca. A gente queria convocá-los cada vez mais a
participar disso no blog e ver o nosso trabalho.

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