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O que importa é ser feliz?


Frederico de Mello Brandão Tavares

S er feliz hoje: reflexões sobre o imperativo


da felicidade cumpre um duplo e inte-
ressante movimento. Num primeiro eixo, rea-
liza uma ação acadêmica diferente. Reunindo
quatorze textos de autores de diversas áreas
do conhecimento, a coletânea registra edito-
rialmente uma série de discussões levantadas
durante um Seminário Internacional – de Ser feliz hoje:
mesmo nome do livro – realizado no Rio de reflexões sobre o
Janeiro em agosto deste ano. No entanto, mais imperativo da
que isso, coloca a Comunicação Social como felicidade
lugar de origem para a reflexão de um tema João Freire Filho
que perpassa vários campos do saber e que (Org.)
já habita, há muito, narrativas cotidianas das Rio de Janeiro:
mais variadas: a felicidade. Nesse sentido, vale FGV, 2010. 296 p.
dizer, não se trata de um livro comunicacio-
nal, mas de uma obra que, na contramão do da arena midiática” (p. 22). Ou seja, “não se
que comumente faz “nossa ciência” – leia-se ir trata de buscar reconstituir o que o referente
até os outros campos do conhecimento –, traz felicidade poderia ser em sua forma ou esta-
os outros campos até nós. do fundamental” (p. 22). O que se pretende,
Fomentado por um projeto de pesqui- diz o professor, é “examinar os impactos na
sa em desenvolvimento pelo organizador configuração da subjetividade e da sociedade
(professor do PPG em Comunicação Social gerados por investimentos maciços em ver-
da UFRJ), Ser feliz hoje tem o propósito de sões específicas da vida feliz, em detrimento
pensar sobre o imperativo da felicidade que se de outros itinerários propostos no passado
espraia na sociedade contemporânea. Com ou aventados, sem grande ressonância, na
isso, não advoga para o nosso campo o per- atualidade” (p. 22). Com esse intuito, um
tencimento da reflexão sobre o assunto, mas foco de “desconfiança” parece atuar como fio
aponta para o quanto, atualmente, as pesqui- invisível, costurando os textos e trabalhando
sas em nossa área encontram-se em diálogo a favor de uma rica tessitura de fontes biblio-
e situam-se entre aquelas que olham de ma- gráficas e empíricas.
neira complexa para os fenômenos sociais. Uma visada pelas referências comuns
Assim, num segundo eixo, mais geral, a trazidas pelos autores indica: uma “sinto-
obra propõe um atravessamento disciplinar nia filosófica”, com o resgate, por exemplo,
e orienta-se, como aponta Freire Filho na In- do pensamento crítico de Kant, da dialéti-
trodução, sob duas perspectivas. “A proposta ca de Adorno e Horkheimer e das reflexões
do livro não é promover um esforço concen- de Foucault sobre a sexualidade, o poder e
trado para desvelar, enfim, a verdadeira feli- o conhecimento, além de contribuições que
cidade, presumivelmente ofuscada por pres- passam por Descartes, Heidegger, Nietzsche,
crições e relatos oriundos do campo psi ou Wittgenstein e outros nomes de peso; um
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compartilhamento com os fundamentos da a fragmentada e “suspeitável” presença da ci-


psicanálise, com grande menção aos escritos ência e do poder na formalização da gestão
de Freud; um “olhar social”, com referência da felicidade no mundo contemporâneo.
a sociólogos e antropólogos, como Geertz, Complementando tal viés, Joel Birman,
Simmel, Schütz e Weber; além de outras con- Paulo Vaz, Luiz Fernando Dias Duarte e Gil-
tribuições mais contemporâneas, que per- berto Velho abordam a variação paradigmá-
passam estes campos e que, principalmen- tica, temporal e cultural existente nos mode-
te, refletem sobre a sociedade e suas “atuais los subjetivos e sociais de felicidade. Bianca
condições” (Bauman, Giddens, Harvey, Las- Freire-Medeiros e Luiz Eduardo Soares con-
ch, Lyotard, Sennett); bem como alusões ao textualizam um olhar sobre a felicidade a par-
contexto literário e seu “fôlego” – já antigo tir de duas experiências específicas, respecti-
– no tratamento do tema da existência e da vamente: a visão do turista estrangeiro sobre
felicidade humanas (Clarice Lispector, Fer- as favelas do Rio de Janeiro e a “proposta” de
nando Pessoa, Fiódor Dostoievski, Machado felicidade, na década de 1970, do grupo teatral
de Assis, Mário de Andrade, Victor Hugo). carioca “Asdrúbal Trouxe o Trombone”.
Na trama reflexiva que se forma do cru- Tais grupos de artigos estão compostos por
zamento desses saberes, questões concretas escritos de professores da Comunicação Social,
aparecem problematizadas e se oferecem da Psiquiatria e Psicanálise, das Ciências So-
como objetos de análise que entrelaçam os ciais e Humanas. Em todos eles, encontram-se
conceitos e teorias trabalhados. ótimos e diferentes tipos de “estado da arte” so-
Os meios de comunicação e sua profusão bre o conceito de felicidade, oferecendo bases
histórica de mensagens sobre o ser feliz, for- autorais e construções teóricas elaboradas para
matando e legitimando modelos de compor- a discussão sobre a temática. Tal “fundamenta-
tamento e bem-estar, bem como a literatura ção partilhada” possibilita o tom de dúvida que
de autoajuda e um sem número de manuais marca os textos, sustentando uma consistente
terapêuticos são talvez os principais repre- problematização sobre os mecanismos e estra-
sentantes dessa empiria que serve de hori- tégias atuais – às vezes pouco táteis e outras to-
zonte analítico para os textos de Christian talmente explícitas – de privatização da felici-
Ferrer, Paula Sibilia, Vera França e Denise dade e da transformação de sua “durabilidade”.
Bernuzzi de Sant’Anna. Nestes artigos, a mí- Em suma, pode-se dizer que em Ser fe-
dia, seus “personagens” e o culto à beleza e à liz hoje, a “obrigação moral” de ser e estar
boa-forma na “sociedade do espetáculo” são sempre feliz se vê, portanto, questionada. E
questionados de forma reveladora. mesmo que ao final da leitura não se alcan-
Somam-se a essas reflexões, visadas sobre ce qual o “segredo” da felicidade (o que não
as políticas públicas voltadas para o incre- era, como já dito, o objetivo da obra), a pro-
mento e realização da satisfação individual e posital transversalidade disciplinar do livro
coletiva; as diversas terapias alternativas e as deixa, sem qualquer caráter manualista, uma
“novas psicologias” – pretensamente científi- “dica” investigativa e crítica: para se “alcan-
cas; e a atuação marcante da indústria farma- çar” a felicidade (ou, em verdade, qualquer
cêutica voltada para as patologias da mente outra temática contemporânea), o impor-
(depressão, síndrome do pânico, transtornos tante é saber perguntar sobre ela.
compulsivos), para as doenças crônicas (co- (resenha recebida out.2010/aprovada nov.2010)
lesterol, diabetes e outras), para as doenças
sexualmente transmissíveis e, em outra ver- Frederico de Mello Brandão Tavares, dou-
tente, para a ”indústria da beleza” (cosméti- torando em Ciências da Comunicação pela
cos, cirurgias plásticas). É o caso dos textos Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mes-
de João Freire Filho, Sam Binkley, Toby Mil- tre e jornalista pela Universidade Federal de
ler e Benilton Bezerra Jr., que refletem sobre Minas Gerais.

Líbero – São Paulo – v. 13, n. 26, p. 155-156, dez. de 2010


Frederico de Mello Brandão Tavares, Ser feliz hoje: reflexões sobre imperativo da felicidade – João Freire Filho

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