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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIA HUMANAS

CÁSSIO SILVEIRA

IRACEMA E A GRACIOSA ARÁ:


AS METÁFORAS E COMPARAÇÕES ENTRE PERSONAGENS
E NATUREZA EM “IRACEMA”

SÃO PAULO

2009
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CÁSSIO SILVEIRA

Iracema e a graciosa ará:


As metáforas e comparações entre personagens
e natureza em “Iracema”

Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo para obtenção do título de Mestre em
Literatura Brasileira

Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Almeida Navarro

São Paulo

2009

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Dedico meu trabalho de dissertação à minha esposa, a meus filhos,


a meus pais e avós e a todos que me auxiliaram de alguma forma
neste caminho difícil, porém prazeroso.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores das matérias que fiz durante o Mestrado, Prof. Eduardo
Vieira Martins, Prof. José Antônio Pasta, que me ajudaram no processo da dissertação,
além da Profa. Cilaine Alves Cunha, cujas aulas frequentei como aluno especial.

Agradeço à dedicação do Prof. Eduardo de Almeida Navarro, que ofereceu vários


conselhos durante os trabalhos.

Agradeço também a tantos professores do curso de Graduação, que, de uma forma ou


de outra, deixaram seus ensinamentos como base para que eu chegasse a esta dissertação.

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RESUMO

Neste trabalho, são analisadas as relações de comparação e metáfora entre os


personagens de “Iracema” e a natureza, cenário do romance. O intuito, porém, não foi
apenas fazer uma listagem dos pontos do romance em que essas relações ocorrem, mas
fazer a ligação entre elas e o contexto literário, político e social da época em que o romance
foi produzido. Analisando a união dos grupos da natureza utilizados com seu personagem
correspondente, podemos perceber que a escolha das metáforas não é gratuita, mas possui
profunda correspondência com os objetivos e idéias tanto do autor como de toda uma
geração. Assim, a personagem Iracema é normalmente relacionada a um conjunto de seres
da natureza, enquanto Martim é normalmente relacionado a outro conjunto, o que nos
permite interpretar o “status” relacionado a cada personagem e por que. Logo, a partir
dessas detalhes, podemos verificar aspectos literários, sociais e políticos importantes da
época. Creio que o trabalho, com esse enfoque, não seja estéril, porém, muito pelo
contrário, seja útil para compreendermos melhor as obras de uma época (no caso, o Brasil
Império) e sua ligação com o contexto em que foram criadas.

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ABSTRACT

Here, we analyze the relations of comparison and metaphor between the characters in
"Iracema" and nature, the scene of the novel. The intention, however, was not just making a
list of points of the novel in which these relationships occur, but make the connection
between them and the literary, political and social context of the era in which the novel was
produced. Looking at the union of the groups used unaltered with its corresponding
character, we can see that the choice of metaphors is not free, but has profound relevance to
the wishes and ideas of the writer and of the generation. Thus, the character Iracema is
usually related to a set of the nature, while Martin is usually related to another set, what
allows us to interpret the status related to each character and why. Therefore, from these
details, we can verify aspects of literary, social and political importance of the time. I
believe that working, with this approach, it is not sterile, but on the contrary, will be useful
to better understand the works of an era (in this case, the Brazil Empire) and its link with
the context in which they were created.

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ÍNDICE

Introdução 9
Parte I - O selvagem no Romantismo brasileiro 10
Cap. I - O aspecto nacionalista 11
Cap. II - O Indianismo: Alencar e Gonçalves Dias 17
Cap. III - Les indiens: parlent-ils français ? 24
Parte II – A natureza “exótica” 26
Parte III - Sociedade imperial 36
Parte IV - Relação personagem-natureza em “Iracema” 43
Cap. I - Os personagens na obra de Alencar 45
Cap. II - Iracema, a grande nação tabajara e a graciosa ará 51
A ará e as demais aves da virgem 53
A flor mais bela do jardim tabajara 58
Outros pontos de comparação de Iracema 68
A doce Iracema 77
Iracema e a jandaia fiel 84
Cap. III - Martim e seu processo de indianização 90
Martim duro como uma rocha 92
O rijo tronco Martim 97
Outras relações de Martim 101
O fiel cachorro Japi 109
Cap. IV – Ações e avisos: comunicação com outros personagens do romance 111
O ambiente e o místico Araquém 112
O sábio Batuireté 117
Andirá e Irapuã: a audácia e a prudência 120
O sempre alerta Caubi 134
O líder Poti Felipe Camarão 135

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A guerra: brios e emoções no limite extremo 142


Linguagem de Alencar e gramática tupi 146
Parte V - Conclusão 152

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INTRODUÇÃO

Quando se tem a oportunidade de reler “Iracema”, percebe-se mais claramente a


enorme quantidade de ligações, comparações e metáforas existentes dos personagens, tendo
como referência os aspectos da natureza. Ao mesmo tempo, verifica-se que os grupos da
natureza utilizados como metáfora não são à-toa, mas inteiramente relacionados com as
características de cada personagem. Assim, cada comparação, cada fusão entre fator
humano e fator natural no romance acarreta um juízo ou objetivo, mesmo que seja
inconsciente, por parte do autor.
Em sua obra sobre José de Alencar, comparando as obras indianista do escritor
cearense com obras de Chateaubriand, Maria Cecília Moraes diz que Alencar utiliza a
natureza de três maneiras: como retrato, querendo representar toda a beleza de nossas
terras, o esplendor dos recantos selvagens, com intenção notadamente nacionalista; como
marcação de tempo, como o aparecimento de uma estrela, a passagem de um pássaro,
demonstrando os costumes dos silvícolas; e como comparação, servindo os elementos da
Natureza como base para metáforas, unindo assim personagens e elementos naturais, o que
reforçou os dados que obtivera até o momento. Em “Iracema”, por exemplo, há a
predominância do último tipo, enquanto em “O guarani”, o que impera é a primeira forma.
É sobre o aspecto comparativo que será abordada a relação entre personagens e
Natureza em “Iracema”: de que forma são essas comparações, quais grupos semânticos
estão envolvidos e relacioná-los com os personagens que servem de justificativa para a
comparação, além de analisar todas essas relações, envolvendo o texto como um todo e as
condições em que ele foi formulado.
Poderemos, então, verificar como se desenvolve cada personagem, que valores estão
implícitos na obra, compreendendo melhor a obra de Alencar e a própria ideologia
romântica indianista. Além disso, há a questão linguística envolvida, pois as metáforas e
comparações são frequentes nas línguas indígenas. Haverá, durante o trabalho, uma parte
especialmente sobre isso.

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Parte I – O selvagem1 no romantismo Brasileiro

Quando se fala em literatura indianista ou nacionalista desse período, vêm logo à


lembrança as imagens não só de Alencar como de Gonçalves Dias. Um enfocado na prosa;
o outro na poesia. Sabemos muito bem da importância que um teve não só com “Iracema”,
mas também com “Ubirajara” e “O guarani”. Do outro lado, reconhecemos o quanto
Gonçalves Dias foi primordial em poemas como “Marabá”, “Leito das folhas verdes”, além
de “I Juca Pirama” e “Os timbiras”. Isso não significa, obviamente, que a obra desses dois
escritores está baseada somente na exaltação do índio, mas, muito pelo contrário, ambos
possuem obras importantíssimas com outros temas bem diversos. Porém não podemos
negar, em relação a esses dois autores, que eles foram responsáveis por uma busca do
caráter nacional da Literatura, a partir de características específicas, como a descrição do
próprio ambiente natural, a utilização de uma gramática e de termos mais próximos de
nossa realidade e também pelo chamado “indianismo”, fato que, para alguns, é exclusivo
dessa época, o que é polêmico. Era, obviamente, um sinal da época. Afinal, o Brasil, que já
possuía sua autonomia política, exigia uma autonomia literária, mesmo sabendo que
estávamos num país em condições sofríveis para a Literatura, como o baixo número de
leitores, dificuldades para a impressão da obras, etc. Afinal, que parte da população era
alfabetizada lá pelos idos de 1850 ? E, nesse grupo, quem estava interessado na Literatura
nacional ?
Não se deve menosprezar também que ele foram os mais importantes, mas não os
primeiros a salientar uma independência literária do Brasil. Voltando uma pouco mais no
tempo, chegamos à geração da revista “Niterói”, dos autores Gonçalves de Magalhães,
Torres Homem e Porto-Alegre. É claro que eles estavam bem distantes da qualidade
literária de José de Alencar e Gonçalves Dias, mas foram eles realmente os “inauguradores”
de nosso engajamento literário. No discurso, havia o intuito nacional, mas não podemos

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Neste trabalho, o termo “selvagem” não possui qualquer intenção laudatória ou depreciativa, querendo
ilustrar apenas os habitantes e/ou aquilo que é originário do ambiente de natureza praticamente inalterada do
início da colonização do Brasil.

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esquecer que a literatura e o pensamento dos chamados países centrais, principalmente a


França, seriam a base para essa independência, o que parece (e é) um enorme paradoxo.
Isso ocorreu pois não tínhamos uma tradição nesse particular e devíamos formá-la a partir
de uma referência.
Tanto é que os primeiros elogios da terra americana como o novo cenário literário
vieram do outro lado do oceano. Ferdinand Denis impulsionou e muito o Romantismo
brasileiro e era francês. Até mesmo autores de nossa antiga metrópole, como Almeida
Garrett, exaltam a capacidade do escritor brasileiro, usando como inspiração a “Terra
Brasilis”. Além disso, pensamentos mais distantes, como os de Rousseau, acerca do bon
sauvage, ainda encontravam espaço nas idéias do século XIX, mesmo tendo sido gerados
pelo pensamento pré-Revolução.

Capítulo I - o aspecto nacionalista

A geração de “Niterói”
Sabe-se muito bem que o índio não foi escolhido por acaso como um personagem-
símbolo do Romantismo brasileiro, da mesma forma como tudo o que está relacionado a
ele, seus costumes, sua língua, o ambiente em que vivia. Não foi por acaso também que ele
é considerado (principalmente nas obras de José de Alencar) um verdadeiro herói, ser sem
mácula e sem malícia, na mais pura e perfeita inocência. Tudo isso está obviamente
relacionado ao período histórico que o envolve. Trataremos da questão da inocência
indígena e do ambiente edênico em que ele vive um pouco mais tarde, quando retratarmos
as idéias de alguns filósofos e como elas repercutiram no Romantismo europeu e brasileiro,
pois, no momento, falaremos sobre as causas dessa representação.
Na metade do século XIX, o Brasil já se havia desvencilhado politicamente dos
portugueses. A sensação de ufanismo se infiltra em cada um e nas artes não poderia ter sido
diferente. Já havia passado a hora, o momento de formar uma literatura mais próxima de
nossas características, de nossos costumes, de nossos heróis (?), uma literatura
genuinamente brasileira. Apesar de termos uma formação política monárquica e escravista,
bem diferente do liberalismo da Europa, origem do movimento romântico, foi este que

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gerou vários frutos em nosso país, formando uma situação, na melhor das hipóteses,
curiosa: um país escravista e de monarquia centralizada tomava como fonte literária o
continente europeu, berço de idéias liberais, querendo tornar-se, assim, uma terra de
literatura “grande”.

É importante lembrar que se almejava formar um país novo, com olhar para o
progresso, que queria ser moderno e mostrar o potencial gigantesco que possuía, o que era
demonstrado pelo esplendor de sua natureza e de seus elementos naturais. Recebíamos o
movimento artístico do continente europeu na época das grandes revoluções, porém ainda
baseávamos nossa economia e sociedade em modelos atrasados como a escravidão e o
consequente patriarcalismo. Queríamos ser um país avançado, mas nossas superstições nos
prendiam aos modelos mais atrasados.

“Que se entendia por semelhante coisa ? Para uns era a celebração da Pátria, para
outros o indianismo, para outros, enfim, algo indefinível, mas que nos exprimisse.”
(CÂNDIDO, 1975, pág. 10)

Não podemos ignorar, obviamente, que o nacionalismo foi aspecto básico de todas as
manifestações românticas, tanto na Europa como na América. As características, os
anseios, os valores exclusivos de cada nação eram colocados em realce. O caráter
individualista não se aplicava apenas ao ser, mas também aos povos, com a valorização do
que é específico, não do que é comum, do que é geral. Basta verificarmos os estudos de
Guinzburg em “O Romantismo”, para percebermos que a passagem do valor do geral para
o individual, provocou uma reação em cadeia, que chegou ao tratamento da História e das
particularidades de cada nação. Não podemos nos esquecer, ao mesmo tempo, que no caso
do Brasil (e de toda a América Latina), há um detalhe especial, o fato de o Romantismo
estar vinculado à Independência dessas nações, à conquista da autonomia política. O
Romantismo tardio, portanto, intensificou a procura pela identidade desses chamados
“países novos”, e a literatura brasileira deveria se esforçar para representar esse papel: a

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procura pela brasilidade. Sentimento de “brasilidade” que era completamente desconhecida


na época da colonização, principalmente da elite agrária, mas que, no momento, logo após a
Independência, era uma questão de honra, não apenas política, mas econômica e cultural.

Coube a alguns jovens escritores brasileiros essa responsabilidade. As primeiras


demonstrações de uma nova literatura (ao menos teoricamente) vieram com o grupo
formado por Torres Homem, Conde de Porto Alegre e o cabeça Domingos Gonçalves de
Magalhães. O autor de “Suspiros poéticos e saudades”, junto com seus companheiros,
pleiteava a representação de nossos valores nacionais e nossa poesia. A união desses jovens
gerou também a revista “Niterói” - uma revista do Brasil e para o Brasil - , cujas duas
únicas edições foram mais do que suficientes para servir de base para não só uma nova
literatura, mas também para uma nova linha de pensamento, relacionando a ciência, o
conhecimento e também as Artes ao progresso de uma nação, pois na revista havia não
somente ensaios de Arte e História, como também de Economia e Cosmografia. Nessa
mesma revista, os ensaios que, talvez, mais interessem sejam os ensaios sobre literatura,
escritos pelo próprio Gonçalves de Magalhães. Neles, o poeta não se cansa de citar a
importância ou, melhor dizendo, até mesmo a necessidade de se realizar uma literatura
afastada dos ditames clássicos, para que “a musa brasileira não se refresque mais sob os
monumentos das artes grega e romana, mas embaixo das bananeiras” (MAGALHÃES in
Nitheroy: revista brasiliense,1978, pág. 147 ). Segundo ele, é inadmissível que nossos
poetas se inspirem num ambiente, numa realidade que não é a nossa. Era fundamental que
houvesse uma mudança urgente nos rumos da Literatura nacional, para que ela fosse
verdadeiramente uma literatura brasileira. A idéia de criação de uma grande nação pela
Literatura, num caráter quase didático em relação ao povo, conforme os ensinamentos de
Madame de Stäel, o Idealismo alemão e a educação cristã também é recorrente nos dois
ensaios. A idéia da formação de um povo, de uma nação a partir de avanços científicos,
tecnológicos, artístico-literários, ou seja, sempre baseada no aspecto racional, é o eixo
central não apenas dos textos de Magalhães, como de boa parte dos ensaios de “Niterói”.
Dessa forma, Magalhães

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“concentrou todo o seu esforço reflexivo na definição e na interpretação do que hoje


denominaríamos a problemática da história da literatura brasileira. E nesse sentido
começou por definir um conceito de literatura que resultou, por influência entre outros de
Madame de Stäel (...) a literatura abrangia grande parte de todos os conhecimentos e “só
ela é filha e representante moral de uma civilização.” (AMORA, 1966, pág. 114)

“Desta maneira, também se legitimava a missão intelectual dos homens de letras


que, através de uma função pedagógica e moralizante, estariam destinados a influir na
marcha dos acontecimentos da comunidade nacional.” (SCHAPOCHINIK (tese de
doutoramento), 1992, pág. 21)

Notou-se, então, a urgência de criar a literatura brasileira e, ao mesmo tempo, por


consequência, fundar o Brasil. O Brasil de verdade seria fundado agora; o símbolo da
grandeza de uma nação está em sua literatura, suas ciências, sua arte. Porém, é claro que,
hoje sabemos, esse Brasil “de verdade” possui muito de ficção, pois o Brasil de verdade
fornecido pelos primeiros escritores nacionalistas era o Brasil esplendoroso, de matas, rios
e céus incomparáveis, cujo clima agradável parecia abençoar as pessoas que viviam unidas
e felizes, pois habitavam uma espécie de novo Jardim do Éden na Terra, gigante e
encantador pela própria natureza (!) . Era um Brasil criado, segundo a forma pela qual esses
primeiros escritores românticos enxergavam (ou queriam enxergar e que os outros
enxergassem) o nosso país.
A intenção era majestosa, mas o resultado é um pouco decepcionante. Por mais que
quisessem formar uma literatura próxima do Brasil, eles deveriam, sem dúvida alguma,
possuir uma base. Mas não podemos utilizar como base a nossa literatura, pois ela não
possui em si uma tradição, visto que nossas demonstrações literárias na Colônia eram
esporádicas e fortemente influenciadas pelo elemento lusitano. Sendo assim, numa grande
ironia, não só esse grupo, mas vários outros escritores, para formarem uma literatura
nacional, tiveram como base uma literatura estrangeira, mais precisamente a francesa.
Tanto é que “Suspiros poéticos e saudades”, texto que, teoricamente, marca o início de
nosso Romantismo, foi editado em Paris (!!). As intenções do grupo eram de mudança,

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porém, na prática, muitas características arcaicas prosseguiam, como vemos no exemplo da


“Confederação dos Tamoios”, de Gonçalves de Magalhães, e que comentaremos um pouco
mais tarde.

“Along with the tendency to set up the Indian as the true representative of Brazil´s
past, there appeared an inclination to look more and more to France for cultural
guidance.” (DRIVER, [1943], pág. 42)2

Segundo o próprio Magalhães,

“Hoje o Brasil é filho da civilização Franceza; e como Nação é filho desta revolução
famosa,” (in Ensaio sobre a história da literatura no Brasil, In: Niterói: revista braziliense,
1978, pág. 149)

Portanto,

“O projeto literário de nosso romantismo estaria, assim, predestinado a ser


malcuidado, (...) na forma de um romantismo em excesso, resultado de uma absorção
pouco crítica das influências externas.” (BOECHAT, 2003, pág. 48)

Um grande exemplo da influência da literatura francesa no Brasil do Século XIX está


nos romances de folhetim editados pela imprensa no então Brasil Império. Grande parte dos
romances de folhetim da época, se não vindos totalmente de textos da literatura francesa,
foram adaptados de romances franceses. Vários assinantes, leitores dos jornais,
aproveitavam o descanso no final de semana para ler as obras publicadas no rodapé dos
jornais, seja sozinhos, ou em voz alta, para que toda a família, ou até mesmo desconhecidos
na rua, improvisando uma roda, ouvissem as histórias publicadas semanalmente.
A influência francesa não esteve apenas na nossa literatura, obviamente, mas em
vários outros países, inclusive em Portugal, nossa fonte durante o período colonial. Os

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Trad.: “Ao lado da tendência de colocar o índio como o verdadeiro representante do passado do Brasil, eles
iniciam uma inclinação a utilizar cada vez mais a França como referência cultural.”

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franceses, com seus ideais progressistas, de liberdade e igualdade, berço da civilização


moderna, se tornaram ponto de referência:

“It is not surprising that Alencar thought of the novel only em terms of its French and
British exponents. At that time, dozens of pirated translations of European novels were
serialized in Brazilian newspapers, and local publishing houses turned out their own
unauthorized versions of foreign best sellers.” (HABERLY, 1983, pág. 37)

Assim,

“a França dominava todas as nações com o seu progresso e a sua inteligência.


Portugal, também, intelectualmente, era súdito da França. O Brasil passa de um a outro
soberano.” (LOPES, 1978, pág. 204)

A geração de “Niterói” teorizou e impulsionou o Romantismo em nosso país, porém,


por outro lado, as qualidades literárias desse grupo de jovens não estava à altura de seus
intentos. Muitos críticos dizem, por exemplo, que alguns poemas de Magalhães são
praticamente indigestos nos dias atuais (“Se Gonçalves de Magalhães foi também um
teórico, não foi, contudo, um executor à altura das idéias que propugnava”, (CASTELLO,
1953, pág. XXII). A obra desses primeiros românticos é bem frágil, mas não podemos
negar que sua teoria impulsionou o movimento romântico e suas principais características.
A partir daquele momento, por exemplo, um personagem teve lugar cativo: o elemento
indígena.

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Capítulo II - O Indianismo: Alencar e Gonçalves Dias

A partir do elemento europeu, estava-se tentando formar uma literatura nacional, com
características brasileiras, impulsionada pelo clima de independência ainda vigente. O índio
possui papel fundamental nesse processo, pois, basicamente, nosso país é formado por três
grandes etnias: os brancos, os negros e os indígenas. Os brancos não poderiam ser
considerados como símbolo de identidade nacional, de forma alguma, pois provêm do
europeu, o português, sendo, portanto, hipótese mais do que descartada; por outro lado, o
negro também estava longe de ser considerado, pois genuíno da África, de outro continente,
e (principalmente) por ser o elemento escravo de nossa sociedade. Não ficava bem para a
sociedade brasileira ser representada pelo elemento escravo, muito menos após a nossa
libertação política. O índio, logo, foi perfeitamente colocado como símbolo de nosso país,
não simplesmente por exclusão das demais alternativas, mas principalmente por se encaixar
no mito do brasileiro original, natural, puro.
Além disso, o ideal de liberdade, que era ligado à jovem nação recém-desligada do
jugo português, tinha no índio a sua representação. Como podemos perceber num dos
poemas de Gonçalves Dias, o índio não se entrega à escravidão, resiste, não se deixa
submeter: “seus filhos não geram escravos”. No Século XIX, inclusive, muitos indígenas e
descendentes de indígenas faziam questão de se diferenciar do elemento negro, tanto em
suas vestes, como em seu porte, pois não queriam entrar no mesmo grupo dos cativos.
Mesmo não sendo brancos europeus, o serem chamados de “negros” para eles, assim como
para os europeus, era grande afronta. Passado glorioso, raça genuinamente brasileira (lê-se
“sem influência do europeu”), caráter, força, liberdade, humildade, defesa de seus
interesses e de seu povo. Tudo isso e muito mais levou vários literatos e até mesmo a
população em geral a relacionar o elemento indígena ao nosso país, como uma coisa óbvia,
clara, sem necessitar esforço.

Assim,

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“A estética do romantismo brasileiro tentava justamente definir, para seu público, o


amor à liberdade, o apego à terra e a valores individuais. (...)O tipo foi o índio, o momento
a pré-história de nossa verdadeira História.” (PINTO, 1995, pág. 24)

“exemplo interessante é o indianismo, que constitui elaboração ideológica do grupo


intelectual em resposta a solicitações do momento histórico e, desenvolvendo-se na direção
referida, satisfez às expectativas gerais do público disponível, mas graças ao seu
dinamismo como sistema simbólico, atuou ativamente sobre ele, criando o seu público
próprio.” (CANDIDO, 1976, pág. 82)

Percebe-se, então, que a procura por uma literatura nacional acarretava também a
busca por vários outros elementos que simbolizassem a jovem nação, como o caráter racial,
o ambiente, o caráter linguístico, como veremos depois.
Pode-se perguntar, também, se não seria mais realista utilizar o elemento mestiço, a
miscigenação. Ora, essa não era a saída eficaz, pois a miscigenação acarreta a junção
exatamente com os elementos negro ou branco. A utilização exaustiva do elemento
indígena para simbolizar nosso povo não é mais realista, mas a intenção era formar um
modelo, um ideal, não representar o real.

“Se o problema principal para os brasileiros depois da independência é se pensarem


como brasileiros e não mais como portugueses (...), o índio ou, ao menos, a idéia que se
decide fazer dele, lhes oferece, para isso, múltiplas possibilidades.” (RICUPERO, 2004,
pág. 153)

Mas não foi apenas a nossa autonomia política, a criação de uma nova literatura que
impulsionou a busca pelo índio e pelos seus valores. Em outros países, principalmente na
Europa, o movimento romântico já estava muito bem desenvolvido e uma de suas
características primordiais era a rejeição dos modelos clássicos, a repulsa pelo ambiente
civilizado, europeizante que se fazia até então. Os prados verdejantes, os ambientes
bucólicos, os ares que apresentam serenidade e harmonia já não satisfaziam o artista pós-

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Revolução Francesa. Com a ascensão da classe burguesa ao poder e o mal-estar provocado,


era necessária uma nova concepção de arte, um novo jeito de olhar o mundo, era necessária
uma fuga em relação a tudo aquilo que representava a ilusão iluminista. Ora, o Novo
Mundo que se mostrava de braços abertos com os movimentos de independência servia
muito bem de acolhida àqueles que queriam se distanciar dos modelos. A abertura de uma
nova literatura, refugiada no natural e no original, coincidira com a abertura do novo
continente. Europeus como Ferdinand Denis demonstravam seu fascínio pelo ambiente
americano com notável entusiasmo. A grande Literatura não poderia se desenvolver em
qualquer outro território a não ser na imensa América, pois a Europa já saturara e era a vez
de o Novo Mundo abrir suas portas: eis a idéia de muitos deles. Assim, o orgulho nacional
não vinha só de dentro, mas tinha a influência também de autores e teóricos estrangeiros.
Até mesmo os representantes da antiga metrópole, como Almeida Garrett e Alexandre
Herculano, apóiam o desenvolvimento da nossa literatura:

“(...)Se essa natureza da América é mais esplendorosa que a da Europa, que terão,
portanto, de inferior aos heróis dos tempos fabulosos da Grécia esses homens de quem não
se podia arrancar um só lamento, em meio a suplícios, e que pediam novos tormentos a
seus inimigos, porque os tormentos tornam a glória maior ?” (DÉNIS, Ferdinand. In:
CÉSAR, 1978, pág. 37)

Segundo Garrett,

“quisera eu que em vez de nos debuxar no Brasil cenas da Arcádia, quadros


inteiramente europeus, pintasse os seus painéis com as cores do país onde os situou. Oh ! e
quanto não perdeu a poesia nesse fatal erro !” (GARRETT, Almeida. In: CÉSAR, 1978,
pág. 91)

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“Deus o fade bem, para que os poetas, em vez de imitarem o que lêem, se inspirem
da poesia que brota com tanta profusão do seio de nosso paiz.” (VARNHAGEN, 1946,
pág. 15)

Não podemos esquecer, porém, que os próprios personagens de nossos românticos


não deixaram de ter seu veio neoclássico, apesar de se ufanarem aqueles do seu estilo novo,
da aproximação com as coisas que são verdadeiramente do nosso país, pois tanto na forma,
como nas idéias, autores como Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto-Alegre e até mesmo
Gonçalves Dias (com alguns poemas tão próximos da forma clássica) e José de Alencar
(principalmente em suas idéias conservadoras) estão ligados à estrutura racionalista e
formal dos clássicos.
Podemos perceber resquícios clássicos não só em autores brasileiros, mas também
em vários teóricos do que podemos chamar de "estética romântica". Em Schiller, a fusão da
emoção com a razão (elemento clássico por excelência) para poder atingir o elemento
artístico, e na estética de Hegel percebemos em vários pontos a influência do racionalismo
como fundamental para o processo artístico: “Uma vez mais: ao homem importa que esta
oposição [razão e emoção] desapareça, que ela ceda lugar a uma conciliação, que se
descubra um ponto de encontro, um princípio, mais elevado, mais profundo.” (HEGEL,
2000, pág. 57).

Mesmo assim, sob esse pano de fundo, não demorou muito para que as primeiras
representações do índio e do ambiente ditos como tipicamente brasileiros começassem a
invadir a nossa literatura. Começando com o próprio Magalhães, na sua Confederação dos
Tamoios, obra central da grande polêmica travada entre Alencar e o então respeitadíssimo
poeta. Para Alencar, a escrita utilizada na Confederação estava ainda muito próxima da
clássica; além disso, a utilização de termos da língua tupi é feita a esmo, como se as
palavras fossem jogadas nos versos, sem a preocupação de fazer a devida relação entre o
termo e o conteúdo que estão sendo passados. Ocorreram ainda diversos equívocos de estilo
e gramática, além de falhas nas descrições, como a incapacidade de retratar alguns
ambientes, falhas que poderiam ter como base uma distância tanto afetiva, como intelectual
e artística em relação ao seu país (conforme retratou João Compato Júnior), pois ao mesmo

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tempo que não tinha o preparo para descrever de forma razoável o ambiente brasileiro, o
autor ficou, por bom tempo, distante do país. Uma das mais fortes críticas de Alencar à
obra de Gonçalves de Magalhães é o olhar de civilizado que teve o poeta diante das
imagens do ambiente e do homem selvagem. Para Alencar, o poeta deveria observar com a
visão e os sentimentos do indígena, “colocar-se nu” diante da selva, dos animais, das
plantas e dos homens da mata, para conseguir retratar com fidelidade e sensibilidade o
artístico que emana das origens de nosso país, nossa história e nosso povo.
Assim,

“Magalhães não podia deixar de filiar-se à poesia tradicional, não só porque o


gênero ainda estava sendo banido pelo Romantismo, como também porque o seu autor
nunca se libertou completamente da herança clássica.” (CASTELLO, 1953, pág. XV)

Além disso,

“na própria peça em que diz adeus às ficções de Homero, ahi mesmo nos deixa ouvir
distinctamente os sons da flauta pastoril dos árcades.” (REVISTA DA ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS, 1929)

Alencar, aliás, sentiu na própria pele a dificuldade em transportar os nossos costumes


e características para os versos, em forma de epopeia, como tentou Gonçalves de
Magalhães, apesar de ter declarado, em plena polêmica sobre a “Confederação dos
Tamoios”, que a epopeia não era a forma literária essencial para descrever as riquezas do
novo país, pois é uma forma literária ligada a uma visão de mundo já perdida (ponto de
vista que foi acompanhado por outros mestres, como Alexandre Herculano).
Por outro lado, a tentativa de Alencar, com a epopeia “Os filhos de Tupã” também
não esteve entre as mais frutíferas, não por Alencar ter extrapolado a utilização da língua
indígena, mas na própria dificuldade em usar a forma versificada.
Sendo assim, decidiu demonstrar a formação de nossa população na interação entre o
branco europeu e o índio no romance “Iracema”, como apontam muitos críticos, pois estava
convencido de que o romance era a melhor forma para ilustrar a história e a formação do

21
22

povo brasileiro. Portanto, como ele supôs, tentou fazer um romance de formação de nosso
povo, mas não o fez em versos, como almejava:

“Digo-o por mim: se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e suas
bellezas, se quizesse compor um poema nacional, pederia a Deus que me fizesse esquecer
por um momento as minhas idéias de homem civilizado.” (ALENCAR, Primeira carta. In:
CASTELLO, 1953, pág. 5)

Assim,

“Alencar deve ter chegado à conclusão de que a poesia épica era coisa do passado, e
que o século XIX era o século do romance.” (SCHWANBORN, 1990, pág. 19)

Apenas com o próprio Alencar e com Gonçalves Dias podemos dizer que tivemos um
indianismo à altura de seus objetivos, que demonstrava de forma consciente a sua
importância no momento pelo qual a nossa História passava. Mas há, é claro, várias
diferenças entre os dois autores.
De forma bem resumida, enquanto em Gonçalves Dias o índio parece estar atado ao
ambiente, não se separa dele, não há uma identidade, em Alencar, o índio já possui uma
identidade formada, mesmo que seja a sua opção sacrificar sua mesma identidade pela do
companheiro. Veja-se o exemplo de Peri e de Iracema. Mas isso não quer dizer que, nos
romances alencarianos, o índio vá-se desvencilhar do cenário, mas, muito pelo contrário,
agora é o cenário que se une ao personagem indígena.
Como vemos,

“[Gonçalves Dias] ele procura nos comunicar uma visão geral do índio (...). Já
Alencar, romancista, procura transformá-lo em personagem.” (CÂNDIDO, 1975 (vol. II),
pág. 83)

22
23

É digno de discussão, também, a questão da origem do indianismo, pois não são


poucos os que dizem que ela não se encontra no Romantismo, mas está lá no Arcadismo,
movimento anterior, graças às poesias de Santa-Rita Durão e Basílio da Gama. Poderíamos
considerar as obras de movimentos anteriores como indianistas ? Para Driver, tanto Durão
como Gama tiveram uma temática indianista, mas suas obras não podem ser classificadas
como obras indianistas pois, em suas obras, não foi a estrutura que se adaptou ao tema
indianista, como em Alencar e Gonçalves Dias, mas o índio que teve de se acoplar à
estrutura neoclássica, absoluta na época. Segundo Machado de Assis, “as mesmas obras de
Basílio e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a
literatura brasileira.” (MACHADO DE ASSIS, 1986).

Assim,

“Não há, propriamente, sentimento nacional nos dois trabalhos: o Uraguai é


inclusive simpático à Coroa Lusitana, retratando os padres da Companhia de Jesus como
vilões principais, enquanto o Caramuru (...) pretende, à maneira de Camões, glorificar as
obras dos portugueses na América.” (RICUPERO, 2004, pág. 34)

Isso não quer dizer, obviamente, que apenas no Romantismo houve movimento
indianista (longe disso), mas devemos compreender que foi no Romantismo em que o
movimento indianista se desenvolveu, tendo seus melhores resultados. Não devemos,
também, de forma alguma, desprezar as obras dos árcades, pois mesmo que não seja como
justificativa principal, como o centro das atenções, alguns de seus autores foram pioneiros
em colocar o índio no “status” de personagem literário.

23
24

Capítulo III - Les indiens: Parlent-ils français ?

Sabe-se que há grande influência do elemento europeu na formação de nosso


Romantismo. Assim, nem mesmo na representação de nossas características nacionais, ele
foi desprezado. Inicialmente, o ambiente exótico do Novo Continente formou admiradores
vários em países como a França, a Inglaterra e até mesmo em Portugal. Além disso, muitos
personagens têm muito a ver com os personagens de romances do outro lado do mundo.
Por exemplo, segundo Schwarz (2000), nos romances urbanos de Alencar percebem-se
figuras que não devem nada às de um romance francês, principalmente seus personagens
marginais. Nos romances indígenas, isso também acontece. Tanto que são incontáveis os
comentários do caráter medieval do índio Peri e como Iracema parece mesmo uma espécie
de Diana selvagem. Alguns críticos como Franklin Távora (1872) também se exasperaram
com “Iracema”, entre outras coisas, pela suposta cópia que se fazia do romance “Atala” de
Chateaubriand, de os personagens indígenas de Alencar terem os personagens de
Chateaubriand como modelos. Vários anos depois, percebeu-se, como fez Soares Amora3,
que “Iracema” não foi absolutamente cópia de “Atala” pois, apesar de pontos muito
próximos no enredo dos dois romances, possuem eles desenvolvimentos, peripécias bem
diferentes:

“A filiação à idéia de Rousseau é muito maior em Chateaubriand do que em Alencar.


O francez confessa que quis fazer uma epopéia do homem da natureza, embora
accrescentando não ter, como aquelle philosopho, o culto do selvagem.” (REVISTA DA
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 1929)

Afinal, o próprio Alencar (1955) informou, na sua espécie de autobiografia literária,


que Chateaubriand foi uma de suas fontes de inspiração - o que vai, inclusive, de encontro
com o mito do “gênio”, da “inspiração”, tão caro ao Romantismo, mas que, nos dias
atuais, é largamente revisto - , porém aquilo que deu verdadeiro impulso para os seus

3
AMORA, Antonio Soares. Iracema e Atala. REVISTA DE LETRAS, Assis: Ed. UNESP, 1962.

24
25

romances foi a natureza deslumbrante do interior brasileiro. Assim, “a questão da cópia


não é falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto de vista estético e político, e
liberta da mitológica exigência da criação a partir do nada.” (SCHWARZ, 2002)

Sendo assim, a formação de uma literatura de cunho nacional não ocorre de uma hora
para outra, mas denota esforço em, ao mesmo tempo, não serem desprezadas outras fontes
de inspiração.
Mas, como era de se esperar, o indianismo perdeu fôlego no decorrer do século XIX.
Seu enfraquecimento não tem um motivo definido, mas vários motivos possíveis, como
pelo próprio “cansaço” do indianismo, pois a natureza e o índio pareciam não mais
representar os anseios da nossa população, que estava já às portas da República, além do
cansaço natural de qualquer escola literária e a mudança de ponto de vista de nossa
sociedade, já pendente para o desenvolvimento urbano, a Abolição, o cientificismo trazido
de outros países, entre outros fatores. É verdade, também, que a fantasia, a inocência que se
criou ao redor do elemento indígena começava a se desvanecer e isso já se verifica em
autores da época. Para Álvares de Azevedo, por exemplo, os autores gostavam de colocar o
índio e a natureza nos mais altos patamares, mas jamais tinham ido a uma tribo, ignorando
a ferocidade que se esconde em cada canto de uma selva.

Assim,

“Álvares de Azevedo encarou com reserva o nacionalismo estético que triunfava em


seu tempo e concebeu a literatura como espaço sem fronteira,” (CÂNDIDO, 2004, pág. 50)

Segundo Proença (1966),

“humilde Peri (...) tem mais de anjo das florestas do que o antropófago descrito por
Hans Staden e Léry.” (PROENÇA, pág. 160)

25
26

O indianismo, assim, foi um movimento artificial. Para Driver,

“It was born out of the influences of the early writers and the French literature that
had its chief figure in Chateaubriand by the ardent nationalist desire to avoid being
Portuguese.”4 (DRIVER, [1943], pág. 172)

Por consequência, junto com o indianismo, a identidade nacional pregada pelos


românticos perdia força no final do século XIX, demonstrando a mudança de visão dos
brasileiros.

Parte II - A natureza “exótica”

Como nós já dissemos, o ambiente do Novo Continente seduziu autores e teóricos


de toda a Europa, convencidos de que o cenário europeu estava obsoleto, fora de questão ,
graças à queda que havia sofrido o estilo clássico, exigindo novas formas, novas idéias e
novos locais de inspiração. Porém, essa admiração pela América não se inicia em pleno
século XVIII, mas vem de muito antes, e pode-se até dizer que começa antes mesmo do
descobrimento da América. Isso é percebido já nos textos que narram os temores em
relação às primeiras explorações no oceano. A hipótese de terem as embarcações afundadas
ou engolidas por peixes voadores gigantes e outros monstros dos mares ou a hipótese de,
em vez de descobrirem novas terras, chegarem a uma espécie de grande cachoeira sem fim,
espécie de fim do mundo, onde o resultado seria a morte, ou então, mesmo se chegassem a
novas terras, encontrarem seres gigantes que se alimentassem dos tripulantes invasores.
Todas essas lendas eram frequentes no imaginário europeu e o que para nós causa até
estranhamento era levado muito a sério.
O que parece mais absurdo é que, mesmo depois do descobrimento de várias terras
do Novo Mundo, essas lendas continuavam e até com maior intensidade.
Como informa Arinos (1937) em brilhante livro, parte dos viajantes, quando faziam
obras, colocando suas “experiências” de viagem para o público, ou por pura ingenuidade,

26
27

ou por oportunismo, reforçavam essas lendas e até criavam novas. Quando isso chegava à
Europa, seu povo, que já possuía na imaginação monstros ferozes desse mundo
desconhecido, viam ali apenas a confirmação do que imaginavam. Não são poucos os
relatos de povos acéfalos, que possuíam um olho na barriga, ou de índios gigantes, que
ultrapassavam três metros de altura, ou de animais monstruosos, que abundavam na terra ou
no mar.

“os seres phantasticos com que a imaginação européia povoava as terras ignotas
foram localizados no Brasil, depois do descobrimento deste.” (ARINOS, 1937, pág. 22)

Não podemos confundir, porém, esses comentários com os de alguns viajantes como
Léry e Staden, que utilizavam partes de corpos de animais conhecidos pelos europeus para
descrever animais americanos que lhes eram completamente novos. Aqui há uma espécie
de comparação, enquanto no outro caso temos a mais pura e completa ilusão.
Mas nenhuma espécie surpreendeu tanto os europeus como uma espécie já bem
conhecida e descrita, muitas vezes, com fidelidade pelos viajantes: o legítimo homo
sapiens, na forma de índio do continente americano. Muitos até mesmo duvidavam de que,
tão distante, houvesse outros seres humanos e tão diferentes, e essa diferença, esse caráter
exótico foi a maior surpresa para os descobridores, gerando até mesmo a discussão sobre se
os seres encontrados no Novo Mundo poderiam ou não ser considerados seres humanos.
Observando a índole, o comportamento desses indígenas, suas tradições, os viajantes
perceberam detalhes muito interessantes. Não ficavam, de forma alguma, envergonhados
por andarem praticamente nus, não tinham qualquer espécie de curiosidade por bens
materiais e possuíam uma organização social, pelo visto, sem diferenciações complexas.
Tudo isso provocou, além da curiosidade, a admiração de várias pessoas. Muitos desses
indígenas foram levados para as cortes européias, principalmente à França, que se
admiraram da simplicidade, inocência e franqueza dos silvícolas. Começava-se a formar
um mito, o homem natural, o homem puro, o homem sem malícia.
Tudo isso era reforçado por filósofos e historiadores, como Thomas Morus e
Montaigne, que chegou a entrar em contato direto com alguns dos indígenas. Em seu curto

4
Trad.: “Nasceu das influências dos escritores anteriores e da literatura francesa, que teve sua figura mestra

27
28

ensaio Dos canibais, o filósofo francês elogia abertamente a índole dos habitantes das
Américas, sem titubear em afirmar que eles são, em muitos aspectos, muito superiores em
relação à chamada sociedade civilizada do Velho Mundo, exatamente por alguns fatos que
nós já enumeramos: sua inocência, sua lealdade, sua simplicidade:

“nada há de bárbaro nos silvícolas sul-americanos; errada, sim, é a pretensão do


europeu que julga bárbaro tudo o que se afasta de seus costumes.” (MONTAIGNE, apud
PROENÇA, 1966, pág. 36)

Como se vê,

“já aqui Montaigne collabora na narrativa, introduzindo uma pitada de louvor ao


“bom selvagem”, que bem mostra o processo malicioso da escola humanista, quando
altera os dados reaes em proveito do mytho philosophico. Foram estas e outras manobras
que prepararam a theoria da bondade natural, do século dezoito.” (ARINOS, 1937, pág.
187)

Essa admiração vai se estender por bastante tempo ainda, adquirindo seu ponto mais
alto poucos séculos depois, com a criação do mito do “bom selvagem”, graças à teoria de
Jean-Jacques Rousseau. Para entendermos melhor a eficiência dessa teoria, precisamos
lembrar que estávamos em plena fase do Iluminismo francês, que negava o despotismo
escancarado dos monarcas europeus, já que o Absolutismo se baseava na superioridade de
classe, no “direito divino” como justificativa para condições de vida muito melhores do que
a plebe que estava ao seu redor, como os planetas em relação ao Sol.

“as penas sem cuenta que em todos os estados se sentem e que perpetualmente roem
as almas, são então as funestas garantias de que a maioria de nossos males são o fruto de
nossa própria obra.” (ROUSSEAU, 1989, pág. 43)

Portanto,

em Chateaubriand, pelo ardente desejo nacionalista contra o elemento português.”

28
29

“A teoria do bom selvagem (...) vinha dar um sentido teórico mais consciente aos
confusos sentimentos do individualismo revolucionário.” (ARINOS, 1937, pág. 30)

Logo, o discurso feito por Rousseau, referindo-se a um estágio inicial, puro do seres
humanos, em que eles desconheciam completamente qualquer tipo de hierarquia,
competição ou opressão era muito sedutor aos ideais liberais que havia então. Logo, seria
fundamental que retornássemos a esse estado primitivo e o povo mais próximo desse estão
de inocência primitiva era exatamente o índio americano. Sendo assim, fatores sócio-
políticos do continente europeu, entre outros fatores, como o filosófico, tornaram o nosso
aborígine o centro das atenções, o ser humano mais próximo da perfeição, a fonte de
inspiração.
Não foi surpresa alguma, então, que essa idealização do índio tivesse chegado ao
nosso Romantismo, movimento que, aliás, estava tão relacionado às questões entre
absolutismo e liberalismo, entre o antes e o depois da Revolução Francesa. Logo, o homem
indígena e tudo o que está relacionado a ele é fonte repleta de inspiração tanto para
europeus como para brasileiros durante o século XIX:

“O indianismo dos românticos, porém, preocupou-se sobremaneira em equipará-lo


qualitativamente ao conquistador.” (CÂNDIDO, 1975 (vol. II), pág. 20)

Depois de o mito do “bom selvagem” atravessar o Século das Luzes, o indianismo se


espraiou em terrenos românticos, principalmente nas literaturas americanas. Os artistas do
Novo Mundo que se abria não deveriam (e não queriam) ficar distantes desse ser humano
tão diferente das convenções do mundo civilizado: de línguas diferentes, idéias diferentes,
estruturas sociais diferentes, em resumo um “exótico”.

“Na retomada desses discursos, o índio passa a ser valorizado positivamente, porque
receberá as mesmas qualidades dos brancos – sendo visto, portanto, como o “bom
selvagem”, e a natureza, por sua vez, continua esplendorosa, mas então compreendida por
aquele que a descreve.” (MARTINS (tese de doutoramento), 2005, pág. 23)

29
30

Não foram poucos os que, durante o século XIX, reforçavam o índio como modelo,
tanto socialmente como culturalmente. A idéia de Rousseau se desenvolvia para todos os
cantos. Havia também, por outro lado, alguns que discordavam da importância exagerada
que se dava ao elemento indígena, colocando-o, inclusive, numa posição inferior em
relação ao branco. O historiador Varnhagen foi grande exemplo. Só para se ter uma idéia,
ele acreditava que a escravidão e a opressão que havia em relação aos indígenas não são
algo que deva ser rechaçado, como fizeram os jesuítas, mas algo que deva ser admirado,
pois a partir da força e da disciplina, os aborígines compreenderiam e reconheceriam mais
facilmente a superioridade do mundo civilizado e cristão. Os índios não possuíam fé: o que
era algo até admirado por filósofos dos séculos XVI e XVIII. Isso para Varnhagen apenas
demonstra o atraso de sua sociedade. O inconformismo de Varnhagen em relação à falta de
uma estrutura mais apurada das sociedades indígenas ocorrera também alguns séculos
antes, na obra de Magalhães Gândavo, descrevendo que o indígena não possui em seu
idioma nem F, nem L, nem R, o que não causaria surpresa pois os indígenas vivem sem Fé,
nem Lei, nem Rei, decretando que o indígena não tinha nem contato com Deus, nem
respeito a regras, nem um governante que centralizasse e determinasse deveres e direitos,
três fatos que tornariam evidente a inferioridade do americano em relação ao europeu.
Segundo Varnhagen,

“não sabemos como haja ainda poetas, e até filósofos, que vejam no estado selvagem
a maior felicidade do homem;” (op.cit., pág. 44)

“Foi a experiência e não o arbítrio nem a tirania, quem ensinou o verdadeiro modo
de levar os bárbaros, impondo-lhes à força a necessária cautela,” (ibidem, pág. 71)

Segundo Driver ([1943]),

30
31

“He frequently represents the Indians as an obstacle that must be removed from the
path of civilization by assimilation or by destruction.”5 (pág. 141)

Isso não ocorria, que fique bem claro, apenas em relação aos índios, mas também em
relação aos negros africanos, que, com seu “atraso e ignorância”, segundo o ponto de vista
de Varnhagen, prejudicariam o desenvolvimento do novo país. Assim, sua repulsa era por
todo e qualquer elemento que, em seu ponto de vista, pudesse atrapalhar os planos de
civilização cristã trazidos pelo colonizador europeu.

“Sua preocupação é sobretudo evitar a miscigenação. A presença do africano


ameaçava o projeto de uma nação “branca e européia”, única que tinha por digna de
participar da civilização.” (PUNTONI, Luiz. “O Sr. Varnhagen e o patriotismo”)

Outros críticos, como foi o caso de Ferdinand Dénis, tentavam, de certa forma, fazer
uma espécie de justificativa do historiador teuto-brasileiro em sua ira contra o elemento
indígena. Sendo assim, para o francês, “as palavras enérgicas de ódio e, por vezes, de
horror que se podem notar em diversas passagens do livro, não foram proferidas por
Varnhagen contra uma raça, elas se aplicam [antes] ao estado selvagem.” (PUNTONI,
Luiz “O Sr. Varnhagen e o patriotismo”, pág. 673). Dénis tentou interpretar os termos de
Varnhagen de um forma menos radical, mas não se deve esquecer de que, pelo simples fato
de se tirarem os povos primitivos de sua condição original, ele não será mais exatamente
um índio ou um negro, mas será, no final de contas, mais um branco, mais um ser tornado
“civilizado”, jogando fora totalmente suas origens. Esse processo de "melhoramento" pela
civilização não está apenas em Varnhagen ou de forma mais implícita em Dénis, mas é um
pensamento que se espalha por toda a sociedade, tanto no Brasil como no exterior, durante
o século XIX.

Porém, em geral, os índios eram vistos de forma bem diferente, principalmente pelos
artistas. Não como um bárbaro, mas como um poeta nato, um guerreiro nobre, livre e
honrado. Para compreendermos isso, devemos voltar um pouco à teoria do Romantismo. O

5
Trad.: “Ele frequentemente representa os índios como um obstáculo que deve ser removido do esquema de

31
32

romântico é, antes de tudo, aquele que se afasta, aquele que repele o mundo civilizado em
que está inserido, já que é o mundo que o engana, que o ilude. O que ele mais quer é estar
distante desse mundo, dessa sociedade que o prende. Esse seu grito de angústia, de
liberdade, de desespero (ou tudo isso ao mesmo tempo) é dado de várias formas. É por isso,
inclusive, que o movimento romântico possui vertentes aparentemente tão distantes.

A natureza é uma fonte de afastamento. O poeta está distante do mundo, seu encontro
agora é com os animais, a floresta, rios, cachoeiras, tempestades, etc. É lá que ele encontra
um esconderijo para dar vazão ao seu gênio, para demonstrar a sua poesia. É lá onde o
poeta entra em conjunção com o Absoluto. É o pensamento de que, quanto mais longe dos
homens, mais perto de Deus. Então, a natureza não é para o romântico apenas um lugar de
fuga, é, mais do que isso, uma religião. Como diz Guinsburg, “A natureza se torna uma
teofania”6.

Assim,

“assemelha-se também a todos os povos o caminho da cultura, pois sem distinção


tiveram de abandonar a natureza através da sofisticação, antes de poderem retornar a ela
pela razão.” (SCHILLER, 1995, pág. 39)

Por consequência, o aborígine, o homem que vive nas florestas, por estar em
conjunção com essa natureza, torna-se um ideal, um personagem que traduz os anseios do
romântico.
É óbvio que os motivos do indianismo no Brasil não se resumem ao escapismo, pois
tem origem (principalmente) no nacionalismo, no momento histórico que atravessávamos.
Da mesma forma, é óbvio que o caráter indígena não é formado apenas pelas idéias de
lealdade, obediência, sinceridade, inocência, vigor físico, como se pode fazer pensar, mas
foi esse o símbolo que ficou para os autores românticos.

civilização por assimilação ou pela destruição.”

32
33

No Romantismo brasileiro, a natureza possui certas particularidades, graças às


características políticas da época. Assim, a natureza é descrita com toda a sua imponência,
sua grandeza, não primeiramente pelo escapismo, mas para mostrar grandeza de nossa
pátria, de seus costumes e seu povo. Ela, então, é retratada em seu esplendor, mas com a
intenção obviamente nacionalista e era exatamente a hora de mostrar a identidade do novo
país. Os caracteres de refúgio e até certo misticismo vão apenas complementar esse
objetivo principal.
Portanto, é o momento de olharmos para as origens de nossa população. Recriarmos
os índios, nossos ancestrais, morador indômito das selvas indômitas, seus ambientes,
mesmo que, para isso, seja necessário criar, fundar uma paisagem, representando-a como
símbolo do novo país:

“A mitologia indianista era uma resposta à nossa necessidade de Origem,


ansiosamente sentida pelo país em formação nacional. E uma psicanálise do indianismo
romântico, na perspectiva esboçada por Augusto Meyer, mostra que a sua ambiguidade
fundamental estava em querer celebrar nossas raízes, nossa peculiaridade como povo,
dentro de uma ótica que denunciava, em si mesma, o nosso “transoceanismo”(...). Pois
índios e paisagens tropicais nunca nos haviam faltado, mas só com o impacto do
romantismo europeu – somente sob a influência de Chateaubriand – é que nos voltamos
para o tupi e suas matas.” (MERQUIOR, 1977, pág. 80)

Assim,

“Para nós (...) o nosso sentimento da natureza era menos individualista e mais de
afirmação nacional.” (ALENCAR, in: COUTINHO (org.), 2003, pág. 309)

Segundo Boechat (2003),

“a representação romântica da realidade brasileira não nos remete a uma “natureza


autêntica”, mas a uma convenção, ou a uma imagem ficcional.” (pág. 106)

6
GUINSBURG, J. O Romantismo. SP: Perspectiva, 1978.

33
34

A título de comparação, vamos verificar como natureza é tratada pelas fases


anteriores de nossa literatura. As obras dos cronistas se preocupam em mostrar nossas
características naturais para o colonizador, como fizeram Léry e Gândavo, enquanto o
colonizador as observa do ponto de vista puramente econômico pois, afinal, é um
explorador, mas isso não é o mais comum entre os árcades. Os poetas árcades utilizam
também o ambiente natural em suas obras, há algumas descrições, inclusive, mas os
objetivos são completamente diferentes. Observa-se mais a natureza como simples cenário,
ou seja, o ambiente é descrito, mas não possui participação relevante na história. É um
detalhe como uma rima, uma métrica, ao contrário do romântico, para o qual o fator natural
é mais que indispensável, quase insubstituível. Assim, para o romântico, a natureza chega a
obter um caráter vivo, é como um novo personagem em alguns casos. É, como resume
Flávia Carvalho (2005), “a humanização do animal, selvagem ou não, e a comunicação
com o animal como elemento principal da valorização intelectual e moral do homem.”

Portanto,

“A partir de então, a imagem da pátria será exaustivamente explorada, seja pela


descrição eloquente da imensidão sublime da paisagem tropical e da coloração cintilante
de sua luz e pela representação sentimental do exílio e da saudade, tomados como um
traço positivo do caráter brasileiro.” (CUNHA, (tese de doutoramento), 2000, pág. 21)

Como se vê,

“O sentimento da natureza, um dos caracteres essenciais do Romantismo, traduziu-


se na literatura brasileira de maneira exaltada, transformando-se quase numa religião.”
(COUTINHO (org.), 2003, pág. 26)

Assim,

34
35

“altera-se o conceito de natureza; em vez de ser, como para os neoclássicos, um


princípio (...) ,é para os românticos, o mundo, o cosmos, a natureza física cheia de graça e
imprecisão,” (CÂNDIDO, 1975, vol. II, pág. 24)

Portanto, enquanto a natureza do árcade brasileiro é um acessório, não é muitas vezes


o centro do poema, para o romântico é mais do que o centro da obra, é quase o centro de
todo um pensamento, por consequência também do ideário indianista. O índio, os bichos,
os vegetais, o clima são provas indubitáveis da majestade de nosso país, é o nacionalismo
simbolizado. Como disse Bosi, “a natureza romântica é expressiva, ao contrário da
natureza árcade, decorativa. Ela sigifica e revela”7. Enquanto, para o árcade, a natureza é o
prado verdejante, o céu límpido azul, as árvores frondosas, os cordeiros, tudo aquilo que
está sob a voz da Razão; para o romântico, a natureza deve ser o indomável, a tempestade,
o céu imenso, o mar imenso, o trovão, é a demonstração do sublime, aquilo sobre o qual
não temos controle. A natureza árcade o poeta vê, desdenhoso, de cima para baixo,
enquanto a natureza romântica é vista de forma embasbacada, extática, de baixo para cima.
A natureza romântica é, portanto, um espaço de fuga e até mesmo uma religião.
Mostrando toda a sua potência, todo o seu esplendor, o seu caráter indomável, o seu
sublime, a natureza revela a grandeza de Deus e como o nosso mundo é mesquinho diante
do Absoluto. O principal problema, agora, é saber como essa natureza sublime, indomável,
será representada pelo escritor, como ele vai transportar a natureza (no caso do escritor ou
poeta) para as folhas de papel, pois estamos diante de um problema que não era exclusivo
dos indianistas, mas era próprio do artista romântico em geral, a saber, a incapacidade de
transportar todas as sensações para a palavra, amiga e inimiga do poeta, recordando a
máxima segundo a qual “Quando a alma fala, já não fala a alma”. Hegel, em sua
“Estética”, fala sobre isso: “A verdade da arte não é, pois, a da exatidão pura e simples a
que se reduz a chamada imitação da natureza, para ser verdadeira, deve a arte realizar o
acordo entre o exterior e o interior, estando este de acordo consigo mesmo e como
condição que torna possível a revelação exterior.” (HEGEL, 2000, pág. 173) Percebemos
aqui, então, a profunda diferença entre a representação da natureza romântica e a clássica,

7
- BOSI, Alfredo. “História concisa da Literatura Brasileira”

35
36

pois, se a arte é puramente imitação para o clássico, no romântico, a imitação não é o


principal, mas a ligação do aspecto exterior com o aspecto interior.
A partir de agora, será analisada a forma como essa natureza entra em contato com os
personagens e lhes serve de referência na literatura brasileira pós-Independência,
abrangendo o caso de Iracema.

Parte III - Sociedade Imperial

É importante analisar também as questões básicas do funcionamento da sociedade do


Brasil Império, como ela estava estruturada, pois isso possui reflexo direto nas obras não só
de Alencar como de qualquer outro escritor do período. As observações aqui colocadas
podem até parecer dissonantes no primeiro momento, mas não podemos desprezar a relação
entre obra e público, principalmente nas boas obras literárias.
Inicialmente, temos a questão do patriarcalismo, do domínio da família e dos
negócios nas mãos do homem, chefe da família, que fica, nesse caso, ao seu redor, acatando
suas decisões, sejam eles a esposa, os filhos ou os escravos. A sociedade concentrada nas
mãos do patriarca tem origem no período colonial e o desenvolvimento do setor agrícola no
Brasil Império fez com que o sistema se estendesse por tempo considerável. Pode-se
imaginar que o sistema patriarcal, dessa forma, se resumiu ao engenho, ao cafezal, ao
espaço rural, mas ele conseguiu se adentrar também nas grandes capitais, até mesmo na
Corte. Portanto, o domínio de vida e morte do senhor sobre os demais membros da família
se estendia por todo o nosso território, tanto na cidade como no campo.
O sistema patriarcal teve várias consequências, como a política do coronelismo, mas
o presente trabalho terá como o foco a estrutura familiar, começando pela relação mais
clara com quem está do lado de fora da família: a relação dos senhores com os escravos.
Os senhores possuíam autonomia geral sobre os cativos, como se fossem uma mercadoria
(afinal, assim eram tratados), porém havia um conjunto de regras não escritas que não
poderiam ser menosprezadas, pois eram mais do que uma mercadoria, uma mercadoria
especial, pois, mesmo que “inferior”, “bestializado”, era, apesar de tudo, como pensava boa
parte da população branca, algo próximo de um ser humano.

36
37

Porém, fique bem claro que o cativo deve ficar em seu devido lugar. Os negros, por
exemplo, não possuíam qualquer autorização para usarem sapatos, o que era privilégio
apenas de pessoas livres, e fazia-se questão de separar a linguagem do branco e a do negro.
Nas escolas, uma das funções principais era a de tirar do aluno branco qualquer sinal da
linguagem “poluída” pela influência do cativo. Daí, percebe-se, inclusive, a preocupação
da família em controlar o contato dos negros da casa com as crianças, verificar o que é
ensinado a eles, espionar as ações dos escravos, etc.
A relação que nos interessa mais ainda é a posição da mulher nesse tipo de
sociedade. Já sabemos que, primordialmente, a função da esposa é a procriação e cuidar dos
filhos e da casa (ou melhor, nesse caso, policiar como as amas estão cuidando dos filhos e
as escravas domésticas estão cuidando da casa), além de completar um determinado
“status”, pois o adulto casado impõe respeito muito maior do que um solteiro, mesmo que,
na prática, o senso de responsabilidade não tenha relação direta com seu estado civil. O
homem ou a mulher casada é uma pessoa séria, condizente com o modelo familiar pregado
pela religião, enquanto os solteiros ficam à margem e, para a mulher solteira, então, o fato
era ainda pior. Se essa separação de “status” entre solteiros e casados existe até os dias
atuais, muito maior era há cerca de um século e meio. Não devemos nos esquecer, também,
que o chamado casamento por amor é algo relativamente novo, pois a grande maioria dos
matrimônios, principalmente nas classes mais ricas, onde se encontra a figura do patriarca,
tanto no campo como na cidade, transforma o casamento em um assunto comercial.
Portanto, o matrimônio no século XIX é, muito mais, uma conveniência, uma representação
de família feliz, conforme a lei de ordem e moral, do que um fato propriamente dito.
A esposa, nesse quadro, funciona muito mais como um esteio , um apoio para as
atividades do elemento masculino adulto, o marido – que não por acaso é considerado
oficialmente como o chefe da casa - , para o qual reza certa obediência surpreendente para
os dias atuais e seu círculo social é extremamente reduzido, tendo, na média, relação com
as servas domésticas, os filhos, as mulheres da família do marido, no ambiente rural,
enquanto, na melhor das hipóteses, ela possui contato com outras iaiás e casais, que fazem
parte também do círculo social do marido, que era encontrado no teatro, nos bailes, nas
missas, quando faz parte do ambiente urbano, pois, como sabemos, as senhoras não tinham

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38

o costume de sair da própria residência. Dessa forma, a submissão à qual a mulher é


colocada em relação ao homem é confirmada por ela mesma como a coisa mais natural do
mundo. Dentro das obras de Alencar, para dar um exemplo da posição da mulher na época,
para qualquer erro de uma personagem feminina, como em Lucíola ou As asas de um anjo,
não há desculpa, não há perdão, para a personagem que se recusou a aceitar seu papel
considerado correto diante da sociedade 8: ser orientada por uma família, respeitar seu pai,
para poder formar uma nova família, ao lado dos filhos, respeitando (e agradecendo a
presença de um) marido, o substituto do pai.
As diferenças entre homens e mulheres eram muito grandes e podiam ser percebidas
em vários aspectos. Até mesmo os aspectos legais da época favoreciam o lado masculino,
pois a submissão do elemento feminino era, muitas vezes, amparada pela própria lei, da
mesma forma que a lei amparava a submissão do escravo ao senhor. Para termos uma idéia,
durante muito tempo o homem foi oficialmente considerado a base da família. Devemos
nos recordar, por exemplo, que a lei permitia que o marido, sob qualquer justificativa
(normalmente suspeitas de adultério), entregasse sua esposa a um convento, claramente
sem a anuência dela. Um outro exemplo é o fato de as mulheres não poderem concluir
curso superior até meados do Império. Enquanto essa diferenciação dava ao homem amplos
direitos na sociedade, à mulher, pelo contrário, havia a obrigação do enclausuramento e da
vida dedicada a casa e filhos. Os modelos físicos da mulher, como nos dias atuais, também
determinam essa diferenciação e obrigavam as senhoras e donzelas aos sacrifícios corporais
mais absurdos, pois a mulher sempre deveria ser o belo e o frágil, enquanto o homem a
nobreza, principalmente nos meios urbanos.
Assim, a submissão da mulher em relação ao elemento masculino não estava
(infelizmente em ambos os casos, tanto para o negro escravo como para a mulher
enclausurada) muito distante da submissão do negro em relação ao senhor. O homem
usufruía de sua dominação sobre a esposa quase como propriedade privada. (COSTA,
1979, pág. 252)

Portanto, a mulher é aquela que está disposta sempre ao sacrifício, foi educada para
esse sacrifício. Despreza quaisquer desejos, a fim de se dedicar aos desejos e sonhos da

2 -
MORAES, Vera Lúcia. “Entre Narciso e Eros”

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família, principalmente aos desejos do esposo que, não à toa, também era chamado de
senhor em muitas ocasiões pela própria esposa. Chega ao ponto, inclusive, de sequer
considerar tudo isso como um sacrifício, não conseguia enxergar esse aspecto, pois o fato
de viver exclusivamente para os demais (nunca para ela mesma) era algo natural, até
mesmo óbvio, como uma consequência lógica do fato de ser mulher. Claramente, fazemos,
então, a ligação com a figura de Iracema, que deixou para trás sua família, seus costumes,
sua nação, para se aliar ao seu senhor, vendo inclusive o sangue de seus irmãos ser
esparramado pela mesma tribo que acolheu a virgem em seu novo lar. Sabia muito bem
que poderia, a qualquer momento, mesmo com o esforço feito, com tudo o que deixou para
trás, ser abandonada, sabia e achava isso tudo natural, como uma cláusula implícita do
contrato amoroso com Martim. Não contesta os pensamentos do amado, mesmo quando
ele está mais distante:

“Pelo matrimônio, a mulher devia tornar-se antes a filha dos sogros do que dos pais,
a irmã dos cunhados mais que dos irmãos. A entrada da recém-casada no grupo doméstico
representava, assim, algo de potencialmente desagregador.” (ALENCASTRO (org.), 1999,
pág. 395)

Uma das consequências de tudo isso está na idéia da mulher como leitora e das obras
dedicadas ao público feminino. A maior parte das mulheres utilizava a literatura como
simples divertimento e eram vistas pelos próprios autores também dessa forma. Como
exemplo, estão as crônicas “Ao correr da pena”, escritas pelo então jovem José de Alencar,
e cujo público-alvo é formado, entre outros, pelas mulheres do espaço da Corte. Porém,
muitos pensavam no prejuízo que os romances poderiam gerar no público feminino, pois
poderia distanciar a leitora das ideias que propunha a sociedade da época, o casamento
como negócio e a vida dedicada exclusivamente à família e ao esposo. Houve , assim, um
policiamento especial em relação ao que era lido pelas senhoras e senhoritas, para evitar a
perversão do que era considerado estável e correto. Assim, ao mesmo tempo que o romance
era considerado um lazer característico das senhoras, era também algo temido, pelos
valores que poderia concentrar em suas histórias. As mulheres, por exemplo não podiam, de

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modo algum, tentar disputar colocações destinadas ao homem, como as da vida profissional
ou intelectual. Isso seria uma grave transgressão da ordem e temia-se que os romances
motivassem as mulheres a esses objetivos. A classe conservadora exigia, portanto, um
caráter didático para os romances do público feminino, com a garantia de que as histórias
passassem a posição que a mulher deveria ocupar diante da sociedade.
Com efeito,

“Algumas raras mulheres começam a perceber a leitura como veículo de


transformação da realidade. Como difusor de ideias. E nada mais explosivo do que ideias.
A maioria, porém, mulheres jovens e casadoiras, interessam-se sobretudo pela emoção
transmitida pela poesia e os romances-folhetins,” (MACHADO, 2001, pág. 40)

Aliás, demorou muito para que a mulher começasse, ainda no Brasil Império, a ter
certa liberdade em relação ao que ocorreu na Colônia e nas primeiras décadas do século
XIX, e, mesmo assim, no espaço urbano, onde aquelas de posição econômica mais
privilegiada já tinham maior intimidade com a cultura, com as artes, com a literatura e,
principalmente, com o idioma francês.
Se o casamento é, antes de tudo, uma relação comercial e consequentemente há um
afastamento entre o marido e a esposa, pois o homem sério, com certo “status” a zelar na
sociedade, deve privilegiar seus negócios em relação à companheira, o que acontece em
relação aos filhos não é muito diferente: a distância entre pais e filhos é certamente
gigantesca dentro da sociedade patriarcal, tanto rural como urbana, mas, principalmente, no
patriarcalismo rural. Portanto, o filho está sujeito aos desígnios do pai, obedece a ele
incondicionalmente da mesma forma como acontece, na grande maioria dos casos, com a
mulher no sistema patriarcal. Tanto que existe no período patriarcal, como descreve
Gilberto Freyre, uma espécie de culto ao homem mais velho, chamado homem maduro,
sóbrio, a ponto de adolescentes e até mesmo quase crianças comportarem-se como velhos e
cultivarem (ou tentarem cultivar) barbas e bigodes, tendo acabado de entrar na puberdade.
Isso se deve, claramente, em parte, à pressão da sociedade, pois o jovem deve se comportar
como um adulto; em parte, à pela própria vontade do adolescente, uma consequência, na
verdade, da pressão social a que nos referimos há pouco. A desvalorização do elemento

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jovem só diminuiria um pouco, como já dissemos, no meio urbano, durante o governo de


Pedro II, o imperador jovem, o que fez com que, aos poucos, não sem resistência de vários
grupos, os jovens ocupassem maior espaço, deixando de ser o filho de alguém, mas
possuindo certa autonomia. Se a mulher possui, como uma de suas funções primordiais, o
encargo da reprodução, os filhos são posição lógica nessa relação, e estão aqui para ocupar
essa posição, quase como se tivessem pedido para nascer. Perpetuar a espécie é uma função
básica de qualquer indivíduo sadio, portanto os filhos devem perpetuar também seus
negócios e fazê-lo com honra, isto é, devem funcionar como ponto de referência como
foram seus parentes de gerações anteriores. Eles possuem um sobrenome a zelar, o que
explica também o fato de muitos seguirem não só por todo o século XIX, mas por boa parte
do século XX, a profissão deixada pelo pai. Sendo assim, a educação não possuía, para a
família, função tão determinante como nos dias atuais e as razões dos elevados índices de
analfabetismo não se resumem, obviamente, às condições precárias de boa parte da
população brasileira. Se for filha, a situação é ainda pior, pois, como vimos, até meados do
século XIX, mulheres não possuíam o direito de ensino superior e, quando o conquistaram,
poucas tiveram condições para fazê-lo. Em resumo, a educação das mulheres no Brasil
Império consistia em aprender a ler e escrever e desenvolver as operações matemáticas
fundamentais, e o aprendizado de uma língua estrangeira (na maioria das vezes, o francês,
graças à noção de que a França seria um modelo de modernidade e bom-gosto) para
famílias mais abastadas. Para os pais das poucas moças que estudavam, era até mesmo mais
importante acompanhar o desenvolvimento da filha nas aulas de canto ou dança no colégio
do que nas matérias regulares, como Aritmética e Química. Como foi retratado por Moraes,
a principal preocupação dos pais com a educação das moças era a “aprendizagem do que
prescreviam os manuais de civilidade, os figurinos e as revistas de moda vindas de Paris,
com cujo concurso procuraram produzir uma bela imagem de candidatas ao casamento.
Exercitavam-se, portanto para uma vida de natureza exclusivamente dependente e
doméstica.” (MORAES, 2005, pág. 18) Se for filho, o grau de ensino vai até determinados
níveis, proporcionais às condições econômicas da família, tanto que a Universidade,
fundamental para as carreiras de médico ou advogado, era um raro privilégio. Aprender o
funcionamento dos negócios de pais e avós era muito mais importante e o sacerdócio
também era opção extremamente difundida na época. Temos o exemplo marcante disso em

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nossa literatura, como em Dom Casmurro, onde vemos o status de que goza a vida
eclesiástica durante o Brasil Império

Sendo assim, sabemos que a figura do homem católico e “pai-de-família” serve como
ponto de referência, é o modelo, o astro-rei a ser seguido, ao redor do qual a figura do
escravo, da esposa e dos filhos gira, complementando sua importância. Essas figuras não
têm uma vida própria, de certa forma, mas estão dispostas aos desígnios do patriarca,
representante do correto, do honesto, cujos desígnios e exemplos devem ser seguidos. Essa
estrutura familiar centralizada era aprovada pela sociedade imperial e gerou obviamente
ecos em todas as áreas, entre elas, nossa literatura em formação.
Assim, toda a família está baseada na figura inexpugnável do homem, declarado
legalmente chefe de família, o patriarca, aquela figura que, mesmo fazendo parte do dia a
dia, é tão distante, tanto para os escravos, como os filhos e a esposa, aquele que determina e
faz cumprir as regras, punindo severamente os que as desrespeitam, sem titubear diante de
remorsos ou sentimentos. Os mais jovens, os cativos e as mulheres são mais frágeis ou
agem pela débil emoção e, por isso, não possuem autonomia nem condições que são dadas
apenas ao homem branco civilizado de governar a casa, a família e a sociedade em geral. É
nisso que tanto aqueles que ditavam como os que recebiam as regras confiavam e tudo isso
era pensado como fundamental para o bom funcionamento e progresso da sociedade
monárquica.

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Parte IV - A Relação Personagem-Natureza em “Iracema”

“Todas as comparações, todas as imagens que vão dando forma à personagem, só


podem ser decodificadas a partir da cultura indígena recuperada e reinventada pelo
escritor.”(BRAIT, in: MARTINS (tese de doutoramento), 2005, pág. 75)

Após a parte introdutória, em que foram estudados os fatos que alimentaram o ideal
indianista no nosso Romantismo, é o momento de tratar mais especificamente da obra com
a qual estamos lidando, “Iracema”. É óbvio que vários aspectos poderiam ser estudados
nessa obra-prima, porém este trabalho se concentra nas relações conotativas, de metáforas
e comparações, entre a natureza e os personagens da obra. Cremos que seja fator
importante, que venha apenas reforçar tudo aquilo que vimos até agora, ou seja, como o
indianismo está a serviço de um ideal de nacionalismo casado à teoria do Novo Mundo, a
América como berço de novos tempos. Só para dar uma pista, devemos perceber que, com
ou sem a percepção de Alencar, Iracema é um anagrama da palavra América, como já foi
percebido por inúmeros críticos, a partir de Afrânio Coutinho.
Como diz sabiamente Maria Cecília Moraes (1995), nas obras indígenas de Alencar,
a natureza pode aparecer sob três aspectos: como cenário, como marca do tempo e como
comparação. A natureza como cenário é característica não só de Alencar, como de outros
autores românticos. Afinal é na natureza majestosa, espetacular (como diz Proença (1966),
na pág. 96, onde “os líquidos são sempre lisos e polidos, enquanto as gramas dos campos
são sempre uma pelúcia”) , distante do homem, em que se encontram as mãos de Deus. A
natureza com marca do tempo é um artifício bem engenhoso em suas obras, pois, como os
índios não possuem convenções como horas, minutos e segundos, era necessário indicar o
tempo pelo dia e noite, a posição do Sol no céu, o nascer de uma estrela, o canto de um
pássaro, entre outros elementos. Há, inclusive, alguns casos de personificação, o que já é

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uma pista, um rastro da intensa ligação entre homem e natureza no ambiente indígena. A
natureza como comparação é utilizada como referência para determinar estados e ações dos
personagens.
Assim,

“a natureza, como um todo cósmico de presença e força atuante, desde a abertura,


de luz e cor, ao final, de infinitos horizontes, plasma física e psicologicamente os
protagonistas indígenas, absorve Martim, dá-lhes a todos uma maneira de ser e existir, de
atuar, de reagir e de se expressar.” (AMORA, 1966, pág. 128)

Há inclusive uma diferenciação em suas obras indígenas. Por exemplo, em O guarani


a natureza aparece mais no primeiro aspecto, como cenário, enquanto, em Iracema, a
natureza aparece basicamente como meio de comparação. A comparação pela natureza,
diga-se de passagem, foi um grande achado do escritor cearense, já que demonstra um
aspecto lingüístico importante: nos idiomas de muitas sociedade primitivas, o uso de
comparações é vasto. Não são poucas as vezes, em literaturas de viagem do século XVI,
que um autor demonstra que os indígenas caracterizam fatos ou seres por meio da metáfora,
da comparação com itens do ambiente que os cerca. Não por coincidência, é exatamente em
Iracema, obra que possui incontáveis exemplos de comparação com a natureza,
demonstração linguística importante, onde o autor parece estar ainda mais próximo dos
indígenas, dando-lhes uma espécie de “autonomia”.
Sendo assim,

“em Iracema, Alencar trabalhava a imagem, sobretudo a comparação que estabelece


analogias entre o homem e os fenômenos da vida animal, vegetal, da natureza enfim.”
(PINTO, 1995, pág. 55)

Já em "O guarani"

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“Alencar ainda não havia aderido totalmente à convenção indianista.” (PINTO,


1995, pág. 213)

Antes de iniciarmos a análise dessas questões, cremos interessante registrar dados em


relação ao funcionamento da metáfora, principalmente para a Estilística mais atual, a partir
do século XIX, período do qual faz parte Alencar e, consequentemente, seus
contemporâneos. Bem resumidamente, a metáfora seria a transposição de um objeto A num
objeto B, a partir de (e apenas de) um fator em comum, ou seja, um objeto não se sobrepõe
completamente a outro, mas apenas em relação a um fator em comum, uma intersecção.
Sendo assim, numa frase simples como “Ele é uma raposa”, o receptor percebe que o
elemento A (“Ele”) possui um fator em comum – a esperteza, por exemplo – em relação ao
elemento B (“a raposa”), ou seja: A = B (esperteza/sagacidade). Dessa forma, como
explica Jakobson, a metáfora é o processo em que o paradigma (um conjunto de termos
com uma base comum) se coloca no sintagma (a sequência de termos numa oração).
Mas não é apenas isso, pois quando definimos algo, seja na linguagem denotativa,
como conotativa (por exemplo, a linguagem metafórica), inserimos dados, um
conhecimento em relação a um objeto. Porém, enquanto na linguagem científica, por
exemplo, um objeto é definido a partir de fatores metalinguísticos, explicando
funcionamento e características básicas do objeto, na metáfora, o comparativo utilizado é
um outro objeto. Assim, não só há um novo conhecimento, uma nova visão em relação a
um objeto, mas o que temos também em relação ao outro não é uma simples substituição ou
interposição, mas é o abordamento do mundo a partir de um novo ponto de vista. Portanto,
A não se coloca sobre B (ou vice-versa), mas se tornam paralelos, transformando-se
(apenas no eixo que possibilita a relação, que fique bem claro, como a esperteza que vimos
no exemplo acima) em um só elemento.
Mas um elemento não vai omitir o outro, vai oferecer um novo rosto a ele, e quando
o receptor analisa a metáfora e a absorve, o objeto A não é mais como era antes, mas já está
modificado, alterado, pois ele volta para si mesmo trazendo consigo um pouco do outro
objeto comparado, ele se funde ao elemento B, mas sem deixar de ser o objeto A. Um
objeto se refere ao outro, voltanto a si mesmo de uma nova forma. A partir do termo que
determina a relação entre os objetos, eles se complementam.

45
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A fusão entre objetos no funcionamento da metáfora pode até lembrar, de certa


forma, o que ocorre, na visão do romance, entre o colonizador e o indígena: eles se ligam,
se unem, a partir de um termo em comum, para que o colonizador continue sendo ele
mesmo, mas com a influência do aborígine e vice-versa. Não significa que Alencar
estivesse pensando nisso ao utilizar tão grande conjunto de metáforas no romance. É bem
mais lógico que a utilização das comparações e metáforas em “Iracema” tenha outros
propósitos, entre eles, o de se aproximar do que seria, ao menos convencionalmente, a
linguagem dos indígenas, mas o fato de a metáfora ter um funcionamento parecido com a
síntese ocorrente entre europeu e indígena (ao menos como coincidência) não pode ser
descartado simplesmente. Afinal, em boa parte das comparações, um personagem é
comparado a um elemento da natureza, animal ou vegetal, ou seja, é o elemento racional
(civilização) que se une ao elemento selvagem (barbárie), formando o híbrido entre o não
civilizado e o não bárbaro.

Capítulo I - Os personagens na obra de Alencar

Como o trabalho está voltado para um autor classificado como pertencente à escola
romântica, é bem provável que seus personagens tenham características muito próximas das
características gerais desse movimento. Verificando suas obras, percebemos que não há
qualquer surpresa nesse aspecto.
O escritor cearense retratou tanto os indígenas como a elite carioca, o povo sertanejo
e os gaúchos, o rural e o urbano, mas não devemos nos esquecer, de forma alguma, de uma
coisa simples: os seus personagens, sejam heróis, sejam vilões, são completos. O que
significaria, nesse caso, completo ? Significa que seus personagens não possuem um meio-
termo, eles são totalmente heróis ou são totalmente vilões, o que está bem próximo das
características dos personagens da escola romântica. É o que também podemos chamar de
personagem plana, conforme Candido (1988): “Na sua forma mais pura, são construídos
em torno de uma idéia ou qualidade; quando há mais de um fator neles, temos o começo de
uma curva em direção à esfera.”9. Vejamos o caso de Loredano, por exemplo, em O
guarani. Sob qualquer hipótese, de jeito nenhum, ele deixa de perseguir seus objetivos: ter

9
CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. SP: Perspectiva, 1988.

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Ceci e dominar o Paquequer. Do outro lado, Peri não titubeia para agradar sua amada Ceci,
não pensa sequer meia vez, seja para enfrentar uma onça, seja para descer num penhasco,
seja para beber o veneno mortal, o curare.

Passando para o caso de Iracema, sabemos que a personagem-título não abandona


seu amado Martim, mesmo sabendo que nunca mais estará junto de sua família e (pior) que
será obrigada a conviver exatamente com os pitiguaras, inimigos de sua nação. É certo que
Iracema não é tão servil quanto Peri, (como no momento em que Martim ordena que
Iracema se separe, pois estaria entrando em território potiguara, mas a heroína se negou,
mesmo sabendo que estaria em território inimigo, pois estava ligada ao português mais do
que se poderia supor, pois já estavam unidos, “casados”), mas os sentimentos e ideais
também são inabaláveis, principalmente em relação ao seu amado.
Com esses valores fixos, uma unidade de pensamento, pode-se afirmar, de certa
forma, que os personagens de Alencar possuem certo traço clássico, primeiramente por
causa dessa mesma firmeza de conceitos, de atitudes, como por representar, em algumas
situações, mais do que um simples personagem, mas uma determinada raça ou povo. Isso
ocorre principalmente nos romances indianistas e sertanista, como O guarani, O sertanejo e
até na própria Iracema. Não são apenas personagens, mas representações de um grupo
específico, resumindo todas as características que lhe são imputadas e convictos de seus
ideais.
Isso não significa, em hipótese alguma, que os personagens de Alencar não possuem
conflitos, que não ficam indecisos diante de algumas situações, mas que a base desses
personagens prossegue sempre a mesma. Para termos uma ideia, ninguém duvida da índole
de Martim, de seus valores, mas isso não evita que ele se veja num certo dilema: ficar com
Iracema ou voltar para sua terra natal. Logo, o personagem pode muito bem passar até por
um processo de modificação, mudar questões pontuais, mas sem abandonar a sua base, o
seu caráter, o que é, aliás, bem do estilo dos autores românticos, cujos personagens
possuem um conjunto de valores absolutamente fixo, mesmo que tenham de alterar
algumas de suas ações ou que a origem de seu caráter seja, de certa forma, misteriosa ou
indefinida.

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48

É interessante também notar como os personagens indígenas, muitas vezes, acarretam


valores de lealdade e humildade tão próximos do clima cavalheiresco, como se referem
alguns críticos. Podemos supor que isso se relacione ao ponto de vista do próprio autor,
pois ele mesmo não se cansa de falar sobre o caráter até mesmo superior que possui o
elemento indígena em relação a outros grupos, como o europeu. Para o próprio Alencar, o
índio seria quase como uma criança, incapaz de realizar qualquer coisa com uma dose de
malícia. É uma visão bem angelical, é claro, relacionada à imagem feita dos índios, imagem
aliás em que Alencar parece ter colocado muita fé. Mas não se deve ignorar que, ao mesmo
tempo, o escritor cearense possuía intenções patrióticas em suas obras. É inegável que as
virtudes do indígena eram dilatadas e algumas até inventadas pela literatura brasileira da
época, com o intuito de transformar o índio em nosso herói nacional, parte do projeto de
formação de nossa identidade nacional, mas, em vários aspectos, somado a isso, é de se
acreditar que o próprio Alencar tivesse fé no enorme grau de dignidade do indígena.
Depois desse pequeno desvio, voltemos ao tema. Assim, se Alencar percebe no elemento
indígena um ser puro, ingênuo, superior, ao mesmo tempo em que aplica ao indígena
algumas características como a humildade, a lealdade, não parece despropositado relacionar
as duas coisas, indicando que características como essas são aquelas que identificariam o
homem puro, o homem original. E aí está uma das grandes questões em relação às obras
indianistas de Alencar: ele acreditava realmente na nobreza do indígena ou a construiu para
conciliá-la com seu objetivo de descobrimento e exaltação de nosso país recém-
independente ?

Segundo Pereira (2000),

“Alencar vai lhe [o índio] atribuir valores heróicos e honras de cavalheiro medieval,
próprios à tradição das nações colonialistas.” (pág. 44)

Alencar tratava o índio como um ser ingênuo, tão ingênuo que não pôde escapar à
rusticidade. Sua simplicidade e humildade possuem relação direta com a falta de um
sistema tão complexo tanto de sociedade como de ideias, como o próprio autor (1981)
retratou: “Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as idéias,

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embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade; é
preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua
bárbara.” (in Iracema) Essa dificuldade, esse molde vai gerar a aproximação do autor com
os personagens indígenas e, consequentemente, com sua forma de expressão em “Iracema”,
pois o autor terá de usar a língua portuguesa, mas com combinações e estruturas próximas
da gramática indígena.

Alguns críticos, como Moisés (1968), indicam também que essas características,
muito próximas realmente dos personagens medievais, seriam geradas na formação literária
do jovem José de Alencar. Afinal, foi nessa época que vieram os primeiros lampejos de
inspiração, quando o cearense escreveu suas pequenas “charadas” e até romances
atualmente perdidos, como Os contrabandistas. Logo, as características dos heróis
alencarianos tiveram seu germe nos heróis de cavalaria, trazidos da cultura portuguesa.
Não se deve esquecer também de que muitos dos personagens dos romances de
Alencar possuem, conforme já vimos, o elemento europeu como fonte de inspiração. Nem
mesmo um autor tão preocupado com a formação de nossa nacionalidade, como Alencar,
pôde fugir a essa influência, que é mais bem sentida nos romances urbanos, pois os
personagens de romances como Senhora e Diva se parecem (e muito) com os personagens
de romances conhecidos da literatura francesa. Porém, não podemos nos enganar, os
romances indianistas tiveram também a influência do elemento europeu. Como já dissemos,
muito do caráter de personagens como Peri se deve às histórias medievais.
Claramente, isso está diretamente relacionado às características do romance brasileiro
no final do século XIX. Estávamos dispostos a formar uma nova literatura, algo que
pudesse representar melhor as características de nossa jovem nação, nosso clima, nossa
gente, nossos costumes. Estávamos dispostos, porém não preparados para isso, pois não
havia uma base rígida para essa tradição, já que boa parte das experiências artísticas e
literárias do Brasil Colônia foram, infelizmente, pontuais, tanto no tempo como no espaço
como no personagem, já que os colonizadores estavam mais preocupados com outros fins
mais práticos. Fomos obrigados a colher nossos frutos em terrenos alheios. Sem que os

49
50

nossos escritores percebessem (e mesmo que eles até o negassem), o maior desafio era
formar, a partir de uma base estrangeira, as obras trazidas da França, por exemplo, um
conjunto que estivesse também baseado na nossa realidade, nas nossas características, nos
nossos costumes, não imitando o que vem de fora, mas tranformando-o, dando a ele o
nosso molde.
Assim,

“Gonçalves Dias e Alencar seguiram, porém, outro rumo, caminhando pela estrada
aberta por Fenimore Cooper e Chateaubriand. Nem um dos dois, entretanto, perdeu a
personalidade, nem um deles caiu na enrediça em que, geralmente, ficam presos os
imitadores de segunda ordem.” (CARVALHO, 1937, pág. 263)

É curioso perceber, também, como os heróis principalmente estão centrados num


modelo, num ponto de vista característico das elites da época. É um conjunto de valores
baseado no ideal católico, de obediência, de respeito, de estabilidade. Isso não é exclusivo
dos personagens urbanos, ocorre também nos personagens indígenas, por exemplo, cuja
origem está bem longe da ideologia cristã. O caso de Iracema é característico, submissa a
Martim e representante do elemento emotivo (índia e mulher). Nela resplandece a calma até
mesmo em momentos mais críticos, e mesmo quando se rende às lágrimas, ela o faz de
maneira discreta, sem extravagâncias. As próprias histórias demonstram essa cristianização
do índio. Peri foi batizado no final de O guarani, da mesma forma que Poti foi batizado no
final de Iracema. E esses batismos ocorreram no final dos romances não à toa, mas
serviram como uma espécie de “gran finale”, a conclusão do processo que se desenrola
durante todo o romance, processo que veremos melhor na última parte deste trabalho. Uma
fala que ilustra bem o que acontece é d’O guarani: “É um índio, mas com a alma de um
português.”
Em momento algum, nas obras de Alencar, refere-se a ações como o canibalismo ou
a libertinagem sexual, tantas vezes descritas em cartas de vários viajantes (como em
Gabriel Soares ou Hans Staden, por exemplo). Para Alencar, o índio era dotado de uma
inocência ímpar e o que se dizia sobre ele muitas vezes não passava de absurdas calúnias. E
Alencar criticou veementemente vários historiadores, vários viajantes que não davam aos

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51

indígenas representações tão inocentes assim. Para ele, o indígena era basicamente um
ideal, tanto de patriotismo (pois é o homem brasileiro por excelência), como de ética (sendo
que aí, claramente, as questões éticas e patrióticas estão relacionadas).
Ocorria no século XIX, pós –Independência, fenômeno interessante, pois as crônicas
que difamavam nossos costumes ou características naturais eram totalmente desprezadas,
ao passo que crônicas que nos apoiassem, principalmente sob o ponto de vista cultural,
eram mostradas como modelos. O que se falava sobre o Brasil, país novo, era usado como
critério para demonstrarmos juízo de valor em relação aos textos dos cronistas10.

“No Guarani, escreveu, o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar,


despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas,” (SODRÉ, 2002, pág.
327)

Os índios, assim,

“não são creaturas reaes, dizem; mas o romantismo não era a esthetica do mundo
real; fantasiava um mundo, que lhe parecia mais interessante, embora o fabricasse com
sarrafos e as engrenagens da realidade.” (BEVILAQUA, In: “Revista da Academia
Brasileira de Letras”, maio/1929, pág. 63)

Segundo Driver,

“In his preface to “Ubirajara”, he condemns the early writer “calumniers” against
the indians, evidently refering, among other, to Abbeville and D´Évreux.”11 ([1943], pág.
20)

Sendo assim, exaltando o índio, negando fatos e características que o afastariam das
características do civilizado, muitas coisas, principalmente para alguns críticos, eram
forçadas demais ou simplesmente falsas: os heróis indígenas eram sempre bondosos, o

10
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. SP: Companhia das Letras, 2006.
11
Trad.: “Em seu prefácio a Ubirajara, ele condena os escritores anteriores que caluniaram em relação aos
índios, evidentemente se referindo, entre outros, a Abbeville e D’Évreux.”

51
52

ambiente era sempre belo e majestoso, eles possuíam uma força sobrenatural, realizavam
coisas impossíveis, salvavam-se em condições improváveis e de formas improváveis, eram
possuidores de uma lealdade e honestidade quase teologais, expressavam-se em certos
momentos em português com facilidade incomum. É claro que os críticos estavam corretos
em muitos aspectos, inclusive em relação às obras de Alencar, ilustrando alguns fatos que
qualquer pessoa de senso não deixaria passar.

Mas não podemos esquecer do que vimos há pouco: era um projeto, devería-se
transformar o índio em herói, portador de identidade nacional. Ele deveria ter uma força
além da natural, tanto física como moralmente, ilustrando a grandeza tanto desta terra como
de seus habitantes, mostrando a força e a importância do país recém-independente. Alguns
autores sabiam muito bem que realizavam alguns exageros, mas não recuariam, de jeito
nenhum, nas caracterizações de seus personagens, pois havia ali muito mais do que um
romance ou um personagem, mas um projeto audacioso a cumprir, e oferecer ao índio
virtudes e defeitos de uma pessoa comum seria quase como desprezar nosso próprio país.
Os autores indianistas viam no país que atravessava o Segundo Reinado e começava a ter
contato com o capitalismo industrial, - mesmo que, anacronica e infelizmente, mantivesse
o regime escravocrata, - a necessidade de construir um herói totalmente nacional, ainda que
seus personagens, suas histórias tivessem divergências em relação ao real.

52
53

Capítulo II - Iracema, a grande nação tabajara e a graciosa ará

Sabemos que os personagens de “Iracema” possuem profunda relação com a


natureza ao redor. São comparações, metáforas, comunicações diretas com os animais que
se espalham pelas poucas páginas do livro. Devemos observar o caso de Iracema,
personagem-título, com atenção especial, afinal possui enorme importância na história,
sendo mais que uma simples personagem, sendo um símbolo, que possui muito mais a
oferecer do que mostram as palavras.
Logo nos primeiros parágrafos do texto, o ambiente é descrito de forma primorosa
por Alencar, descrição que poderia muito bem fazer parte de um poema. Muitos críticos,
como Cavalcanti Proença12 (1966), inclusive, já informaram que possui até mesmo o ritmo
poético, podendo muito bem ser versificada.
Essa “poesia em prosa”, que inunda o início do texto é apenas mais um reflexo, mais
uma inspiração da natureza majestosa e harmônica que se apresenta diante do leitor e que
Alencar vai mostrando como se estivesse pintando um quadro. Descrição, aliás, que é uma
das características mais importantes do escritor cearense.
Assim,

“Foram, sem dúvida, os ressentimentos que levaram Alencar a buscar refúgio ou


compensação em florestas, em matas, em águas, em cascatas, em árvores; nos domínios
meio fantásticos dos brasileiros, para ele autênticos, que eram os filhos das selvas;”
(LINHARES, 1987, pág. 94)

Segundo Freyre (1962),

12
- PROENÇA, Cavalcânti. “José de Alencar na Literatura Brasileira”

53
54

“Esse é um dos pontos em que Alencar mais insiste nos seus romances de vida de
corte e vida de fazenda: a superioridade da beleza natural sobre a criada ou inventada
pela arte.” (pág. 124)

Após a introdução, temos trechos do romance em que Iracema começa a ser descrita
com todos os elogios, todo o requinte, todas as características de uma beleza majestosa,
tanto no físico como no psicológico, uma princesa tabajara. Não é difícil entender o que
acontece a partir de então. Iracema e a natureza que a cerca se igualam, tanto que elas
conseguem se comunicar perfeitamente, como se formassem, assim, uma coisa só. Da
mesma forma que descreveu a natureza ao redor, o autor descreveu Iracema, colocando-a
no mesmo plano do cenário natural, do ambiente.
Essa representação é tão forte que Iracema não só se iguala à natureza ao seu redor
em majestade, como a supera. Para se ter uma idéia, os pássaros chegam a diminuir seu
gorjeio para não atrapalhar o sono da virgem:

“os personagens alencarianos do tipo herói têm, entre os seus traços de família, que
são muitos, um domínio quase miraculoso sobre os animais.” (FREYRE, ibidem, pág. 111)

A harmonia da natureza, a tranquilidade e a beleza da virgem indígena só são


rompidas com o aparecimento de uma sombra no semblante de Iracema. A sinfonia de
Iracema com os pássaros é rompida violentamente pelo ruído estrangeiro. É a quebra da
cadência, é a chegada do colonizador. Ou (por que não dizer) é a chegada da colonização ?
É o fim do paraíso edênico dos nossos habitantes primitivos, tão cara a Alencar e a vários
outros indianistas, o paraíso indígena, nossas verdadeiras raízes, por causa da sombra da
colonização. O deslocamento é tão intenso que a reação é imediata: a seta ferindo o
lusitano recém-chegado.
Como acontece com praticamente todos os personagens do romance, a maior
demonstração da relação entre Iracema e o ambiente está nas comparações, presentes tanto
na fala do autor, como na fala da própria personagem. Devemos, porém, verificar algumas
particularidades nas comparações realizadas com Iracema.

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Elas se resumem, basicamente, a duas formas encontradas na natureza: as aves e as


flores. Num momento, Iracema é a ará, em outro, o beija-flor, noutro, ela é a flor do campo,
de uma árvore específica. Pode-se dizer que, em pelo menos metade das comparações com
Iracema, a isotopia se refere às aves e à flora..

A ará e as demais aves da virgem

Inicialmente, as aves são, como todos nós sabemos, seres que remetem à idéia de
liberdade, à tranquilidade, o que está ligado intimamente a uma das imagens que se faz do
personagem indígena na obra alencariana. O índio é um indivíduo livre, no domínio de suas
ações, respeita o mundo ao seu redor e é respeitado por ele, símbolo de uma sociedade
perfeita. Mas não devemos parar por aí, pois devemos saber, precisamente, que aves são
utilizadas para realizar as comparações, pois existem as mais diferentes aves dos mais
diferentes tipos. As aves de rapina não ocorrem, por exemplo, na maioria das vezes, para
designar pessoas doces, sensíveis. Um exemplo importante é o colibri, que Alencar não usa
apenas uma vez. Colibri é a forma indianizada do pássaro conhecido como beija-flor13 e
cujas características têm relação privilegiada com as características de Iracema: é uma ave
pequena, leve (aliás, a mais leve de todas), grácil, que consegue demonstrar sua beleza sem
qualquer estardalhaço. Em poucas palavras, numa pequena comparação foi colocada boa
parte do caráter de Iracema: a doçura, a gracilidade, a sua beleza discreta.
Verifiquemos, agora, quais são as ocasiões em que ela é comparada ao colibri. Para
ajudar seu amado, Iracema vai ao encontro de Poti, chefe dos pitiguaras, inimigos de sua
tribo e se comunica com sua voz leve, frágil, como o colibri. “A voz maviosa, débil como
sussurro de colibri, murmura” (pág. 39). Assim, a voz de Iracema é leve, suave, é um
murmúrio, é o sussurro do colibri, como deveria ser a inocente filha de Araquém. Ela é
portadora do sussurro, da voz fragilizada, tênue; é apenas um murmúrio, como barulho
quase imperceptível de folhas que se movem ao vento. Essa delicadeza chega ao nível da
fragilidade, da debilidade, afinal a voz é “débil como sussurro de colibri”. Porém, é
exatamente a sua doçura, a sua delicadeza que salva a tribo e faz a comunicação com o
inimigo.

55
56

Mais à frente, podemos ver mais uma comparação de Iracema com o colibri: “Como
o colibri borboleteando entre as flores da acácia, ela discorria as amenas campinas.” (pág.
64). É importante notar a conjunção de Iracema com a natureza, sua tranquilidade junto
dela. Percebemos também a relação entre colibri e borboleta, inseto que, como veremos
mais adiante, encanta por sua beleza e remete à liberdade, como um pássaro. Assim, o
borboletear de Iracema reforça seu caráter dócil e livre, próprio dos personagens indígenas
em Alencar, e sua é beleza de uma autêntica semideusa silvícola. O colibri se une às
campinas e à acácia, formando a conjunção da ave com as flores e plantas.
Assim,

“Para o índio a liberdade era, como diz Alencar, uma lei, um direito sagrado, mais
ainda um culto profundo, a religião selvagem de um povo indômito !” (FERREIRA, 1949,
pág. 174)

Não é apenas o colibri que serve de comparação. Há momentos em que ela é perdiz,
como no primeiro transe de Martim, com o licor de Tupã. “Cedendo à meiga pressão, a
virgem reclinou-se ao peito do guerreiro, e ficou ali trêmula e palpitante como a tímida
perdiz” (pág. 24). A índia se deixa atrair pelo guerreiro alucinado, ela quer fazer parte dos
sonhos do guerreiro, fugindo da realidade que não facilita sua união com o cristão,
tornando-se quase submissa a seu apelo. Ela foge, junto com seu amado, para o terreno do
elixir, o etéreo, o que seria para os índios a Terra Sem-Mal, onde não existem empecilhos
que bloqueiem os sonhos, escapando da realidade cruel. Da mesma forma que o guerreiro
não tem mais o controle de si, ela foi hipnotizada pelo pedido do guerreiro e pelos seus
sentimentos. Ela não é mais, somente, uma apaixonada, mas está entregue ao português
Martim, como estará toda a sua raça diante do colonizador. A partir de então, ela se
humilha.
A virgem é comparada também com a juruti, ou melhor, o ninho da juruti, quando
Martim parece sair para sempre da sua vida. Caubi volta e a iminente retirada do
estrangeiro afasta a alegria de Iracema: “A juruti, quando a árvore seca, foge do ninho em
que nasceu. Nunca mais a alegria voltará ao seio de Iracema.” (pág. 28). Ou seja, da

13
É importante saber que o termo colibri, na verdade, não pertence a língua indígena brasileira, mas a língua

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mesma forma que a juruti foge do lugar em que nasceu, a alegria foge do seio de Iracema,
como se a alegria também tivesse nascido de Iracema, como se fizesse parte dela, como se
Iracema e a alegria fossem uma coisa só (relação que vai ao encontro, inclusive, da noção
de que os indígenas são mais sentimentais, demonstram suas emoções), mas agora a árvore
secou, ou seja, aquilo que dava o sustento ao ninho da juruti (ou a Iracema) não existe mais.
A presença de Moacir, então, é o sustento da índia, da mesma forma que a água sustenta a
árvore, agora seca. Não será essa a primeira vez em que o amado é utilizado, na visão do
outro, como sustento, sobrevivência. Aliás, não podemos desprezar que, nesse trecho,
Iracema não é simplesmente a ave, mas o ninho da ave, é Iracema o lugar de aconchego da
ave, onde ela se aquece, aonde leva seu alimento, é seu lar. Assim, a identidade de Iracema
com a ave (no caso, a juruti) se intensifica, pois é sua casa.
Alguns capítulos depois, Iracema é novamente comparada à juruti: “A juruti, que
divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas e voa a
aconchegar-se ao tépido ninho” (pág. 46). Assim, a juruti voa livremente até que seja
atraída por um companheiro, da mesma forma que Iracema vivia livremente até se submeter
aos sentimentos de Martim, ou a América livre ao colonizador. Da mesma forma que
Iracema é a juruti, Martim é a ave que arrulha, atraindo a companheira. Esse pequeno
trecho parece resumir tudo o que acontece com Iracema após seu encontro com o
português.
Quando Iracema está no meio da mata, protegendo seu amado português, ela é
perseguida por Irapuã, ainda no começo do romance: “Irapuã desceu do seu ninho de águia
para seguir na várzea a garça do rio” (pág. 24). Ou seja, agora Iracema é a garça, a ave
graciosa, de rara beleza, que fica perto do rio e surpreende por sua rapidez, que, aliás, é
também uma característica de Iracema, como podemos ver em outros momentos. A heroína
possui então, além das virtudes instintivas, suas virtudes físicas, próprias do índio, a
agilidade, a rapidez, o instinto e esse lado reforça o outro ou até mesmo só existe, unindo as
descrições do narrador, ao lado do outro, unindo sua beleza física à sua agilidade e à sua
excelência espiritual. É um dos vários exemplos em que as características do animal,
moldam-se no personagem, formando uma equação ( X = Y ).

da América Central.

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Essas virtudes físicas, a destreza, a coragem são vistas também em outras


comparações, como ocorre com a nambu, enquanto Iracema passa pela mata: “As folhas
crepitavam de manso, como se por elas passasse a fragueira nambu” (pág. 40).
Esse não é o único momento em que a virgem é comparada a uma garça. Um pouco
mais adiante, quando Iracema já mora com os potiguaras, ela “caminhava para eles com o
passo altivo da garça que passeia à beira d’água” (pág. 65). Não possui apenas o passo da
garça, mas o passo altivo da garça, altivez relacionada à sua comodidade diante do
ambiente que a cerca, pois ela está feliz ao lado de seu amado.
Quando o clima de lua de mel acaba e Iracema se sente isolada, ela é novamente a
garça: “agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva, à margem do rio, chamavam
aquele sítio de Mecejana, que significava a abandonada” (pág. 72). Iracema continua
sendo a garça, mas não tem mais a mesma alegria, pois, ao contrário da comparação
anterior, agora ela é a abandonada. Sabendo que Martim, como foi visto em várias
comparações, é sua “luz do sol”(e o mesmo ocorre de Iracema para Martim), sem ele, a
heroína perde sua vida, pois só se sente completa ao lado do guerreiro branco.

Como já havia ocorrido com a perdiz e a juruti, Iracema sofre novamente uma
espécie de hipnose, é a ave que se sente atraída pelo olhar do companheiro, nesse caso
como o saí: “O cristão sorri; a virgem palpita; como o saí, fascinado pela serpente, vai
declinando o lascivo talhe” (pág. 45). Vemos que Iracema, na figura do saí, parece
fascinada pela serpente, o que é muito comum em vários casos de predatismo, inclusive
entre as serpentes, capazes de hipnotizar e paralisar sua presa, fazendo até mesmo que ela
se encaminhe em sua direção, da mesma forma que fez Martim, o guerreiro cristão, com
sua amada. Nota-se aí a clara submissão da heroína em relação ao estrangeiro. A “eterna
virgem” não teme os bichos e desafios da floresta, a ira de guerreiros como Irapuã, mas se
submete prazerosamente ao seu amado português. Ela só é capaz de desobedecer-lhe no
momento em que percebe que sua obediência traria o prejuízo ao português ou a separação
entre os dois. Iracema, a destemida e altiva heroína virgem da selva, se ajoelha apenas para
o português Martim, e a indomabilidade que era sua marca se transforma em submissão,
que é quebrada apenas quando sente o perigo, não para ela mesma, mas para seu amado.

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Ao mesmo tempo, Martim é representado por um predador respeitável, a serpente que


hipnotiza, construindo uma relação com o que houve entre as metrópoles e colônias
americanas, em que as metrópoles retiraram boa parte dos bens produzidos na colônia. Não
podemos desprezar também a comparação de Martim com uma serpente, que parece
estranha no primeiro momento, mas não podemos esquecer que a serpente, na cultura cristã,
é quem provoca a quebra do Paraíso Terrestre, é ela que tira os homens do Jardim do Éden,
o que Martim, o colonizador, faz, mesmo que involuntariamente, trazendo o pecado,
provocando o cisma no território, considerado, inclusive por cronistas, o Paraíso Terrestre:
o cenário americano.

Neste momento, temos de mirar a borboleta, que não é uma ave, mas é outro animal
que voa e é admirado pelas suas cores, sua delicadeza. Iracema é comparada à borboleta no
seguinte trecho: “Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual
borboleta que dormiu no seio do formoso cacto” (pág. 46). É interessante notar aqui a
presença do cacto, vegetal resistente e espinhento, que aparecerá várias vezes na trama, mas
não como simples cenário, mas como ponto de comparação com Iracema, ilustrando,
inclusive, a sua angústia diante das consequências do amor por Martim.
Um pouco após essa comparação, diante da perda da virgindade de Iracema, ela é
comparada genericamente com uma ave pelo narrador: “Ficou tímida e inquieta, como a
ave que pressente a borrasca no horizonte” (pág. 47). Sabendo das possíveis consequências
de seu relacionamento com o português, ela fica tímida, mas, ao mesmo tempo, inquieta.
Ela guarda, assim, toda a sua angústia para si mesma, pressentindo a borrasca, a reação de
sua tribo, o destino que lhe era reservado.
Quando Iracema já está ao lado de Martim e Poti em seu novo solo, o estrangeiro se
ausenta várias vezes para guerrear. Em sua solidão, a índia tabajara é comparada à pomba
frágil: “inquieta de ramo em ramo e arrula para que lhe responda o ausente amigo” (pág.
55).
Um pouco mais à frente, Iracema é jaçanã, observando Martim: “Iracema seguindo
com os olhos o esposo, divagava como a jaçanã em torno do lindo seio, que ali fez a terra
para receber o mar” (pág. 59). Mais uma vez, a índia é comparada com uma ave pernalta e
veloz, como aconteceu com a garça.

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Algumas páginas depois, quando toma seu banho, Iracema é acompanhada pelas suas
amigas garças e jaçanãs: “Era a hora do banho da manhã; atirava-se à água e andava com
as garças brancas e os vermelhos jaçanãs” (pág. 64). Portanto, a relação entre Iracema e
essas duas aves não fica apenas na comparação, mas ela se aproxima muito mais dessas
aves, chegando a banhar-se com elas. Isso reforça o aspecto da proximidade entre os
personagens e a natureza, principalmente no caso de Iracema, que já era, desde o início do
romance, uma representante aborígine. Assim, o personagem e a natureza se encontram no
mesmo nível.
Para demonstrar a felicidade da selvagem ao lado de Martim, ela é, agora, a
andorinha: “A filha dos sertões era feliz, como a andorinha, que abandona o ninho de seus
pais, e peregrina para fabricar novo ninho no país onde começa a estação das flores” (pág.
64). Verifiquemos como a comparação não é fortuita, pois Iracema faz exatamente o que é
descrito em relação à andorinha: sai do colo dos pais ou até mais do que isso, sai da própria
família, de sua própria tribo (o que seria uma grande família), mesmo possuindo uma
importante função dentro dela, para buscar abrigo sob novos ares. É interessante notar,
nesse ponto, que Alencar utiliza a andorinha como ponto de comparação, a mesma ave que
servira como um dos vários motivos de crítica do escritor cearense em relação a Gonçalves
de Magalhães: “pouco conhecimento da nossa história natural, cuja ornithologia apresenta
tantas maravilhas e tanta riqueza de forma e de colorido” (In: SCHWAMBORN, 1987,
pág. 269). Assim, o termo criticado por Alencar no início de sua vida literária, é usado por
ele mesmo num de seus romances de maior sucesso.
Iracema é também o sabiá, pela voz de Poti. Enquanto ela fazia sua rede, o líder
potiguara entra em sua casa: “Quando o sabiá canta, é o tempo do amor; quando emudece,
fabrica o ninho para sua prole: é o tempo do trabalho” (pág. 69). Assim, como o sabiá,
Iracema canta ou trabalha para sua prole, é como o leve e frágil sabiá, a morada da alegria e
a mãe e esposa cuidadosa.

Mais tarde, Iracema é comparada, por ela mesma, dentro de sua solidão, à rola
refugiada: “Iracema é a rola que o caçador tirou do ninho” (pág. 82). Como ocorreu na
comparação com a garça, a heroína percebe a solidão; sua tristeza é a mesma da ave que se
sente no exílio, mesmo que esteja em sua própria casa, pois aquele espaço sem seu conforto

60
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(no caso, seu amado) não é nada. Iracema é a ave aflita e fraca presa pelo caçador. É
interessante observar como essa comparação permite dar a Martim o caráter de caçador,
aquele que vem predominantemente para caçar, como o explorador que vem para colonizar
o território, pois, afinal, ele é português. Então Martim, resumindo bruscamente a relação
colonizador-colonizado, é o europeu, aquele que veio basicamente para explorar o
território. Para ele, o romance com Iracema foi acidental, não estava em seus planos. E isso
gera, inclusive, sua dúvida na segunda parte do romance: partir ou ficar.

Quando é evocada uma ave para se comparar com Iracema, percebemos que temos
um grupo específico: sabiá, garça, jaçanã, colibri, e (como ainda será visto) a união com a
jandaia, etc. Podemos observar algumas características em comum dessas aves. Sabemos
que, como toda e qualquer ave, elas simbolizam a liberdade, o espaço livre, mas são aves
que, muitas vezes, surpreendem pela beleza, atraem nossos olhares pelo seu colorido, como
é o caso da jandaia. Elas atraem também pela gracilidade, os movimentos leves e
calculados, como um espetáculo de balé ao ar livre, principalmente o colibri e o sabiá. Ao
mesmo tempo, são aves frágeis, que muitas vezes precisam de proteção para sua
sobrevivência, especificamente o exemplo da rola. Portanto, Iracema condensaria essas
características básicas: a beleza física (unida, muitas vezes, à chamada “beleza espiritual”),
a gracilidade, descrita, aliás, em algumas ocasiões, e a fragilidade (que só é quebrada em
raros momentos, como para proteger Martim da ira de Irapuã), além da rapidez e agilidade,
próprias de aves como a garça e o jaçanã, e dos próprios índios, acostumados aos segredos
da natureza.

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A flor mais bela do jardim tabajara

Por outro lado, temos as flores, que remetem à beleza, à graciosidade, como as aves,
ao mesmo tempo que remetem também à fertilidade. Agora, sua beleza singela, sua
inocência se encontram simbolizadas nas flores. Porém, da mesma forma que nós fizemos
com as aves, devemos analisar quais as flores que foram utilizadas para comparar com
Iracema.
Aliás, não é surpresa que se utilize, para se definir uma personagem indígena como
Iracema, a metáfora das flores, condensando beleza e fertilidade ao mesmo tempo. Afinal,
era essa uma das várias imagens que se faziam em relação às índias, desde o início de nossa
colonização: elas possuíam a beleza física e, ao mesmo tempo, o mistério, o segredo da
sensualidade. Não possuíam um apelo erótico, muito menos vulgar, mas conseguiam atrair
a atenção pela imagem que se fazia delas, certamente por andarem nuas, sem qualquer tipo
de vergonha, o que era impossível na Europa, terra dos colonizadores. Por incrível que
pareça, mesmo nuas, as índias eram descritas por alguns viajantes como menos apelativas
do que muitas moças e senhoras com os decotes do Velho Mundo14. A própria Iracema, nas
descrições, possui beleza física respeitável – basta lembrarmos a Porangaba, local onde
Iracema se banhava e conquistava a todos por sua beleza - e o dom da fertilidade, que
tanta dor causou à heroína, que decidiu chamar a seu filho Moacir, “saído da sua dor”.
Não por coincidência, os personagens indígenas (não só Iracema) são descritos em
sua espontaneidade, em sua liberdade e sinceridade, que está obviamente vinculada às suas
características de “homem natural”, o ser humano que está em sintonia com a
espontaneidade dos animais, o ser humano que não possui os filtros, os policiamentos e as
“prisões” dos ditos homens civilizados. São praticamente retratados como seres infantis,
sem qualquer traço de malícia. São as crianças que (na visão não só de Alencar como na de
outros autores) estão no paraíso terrestre. Não é à toa, assim, que as aves e as flores se
tornaram isotopias tão características de Iracema, pois remetem não só a Iracema, mas
também a todas as características imputadas ao indígena.

14
- ABBEVILLE, Claude. “Viagem dos padres capuchinhos à ilha do Maranhão”
LËRY, Jean de. “Viagem à terra do Brasil”.

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A partir de agora, verificaremos as principais comparações que envolvem as flores. A


primeira comparação não será exatamente com uma flor, mas entre Iracema e a carnaúba,
quando desanimada com a possível despedida de Martim: “Iracema dobrou a cabeça sobre
a espádua, como a terna palma da carnaúba, quando a chuva peneira a várzea” (pág. 23).
Não podemos ignorar o fato de que a tristeza de Iracema esteja associada à figura da chuva,
pois, na chuva, as gotas d’água caem como as lágrimas provocadas pela tristeza, e a chuva
é usada várias vezes, em várias obras, como metáfora do pranto, e mesmo que Iracema não
chorasse, não mostrasse sua decepção, certamente ela chorava dentro de sua alma.
Imaginando a palma, leve e frágil, sendo castigada pelos borbotões da chuva, pode-se
reforçar ainda mais o desânimo de Iracema, maltratada não pelas pesadas gotas do
temporal, mas pela angústia em saber que seu amado se despedia.
Logo em seguida, Iracema é a flor da mata que se submete à proteção do tronco
estrangeiro: “A flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco onde se
enlace. Iracema não vive na alma de um guerreiro” (pág. 23). Essa comparação é
importante, pois demonstra como Martim é o tronco que sustenta Iracema, a índia arraigada
ao senhor. Para que Iracema viva, para que ela tenha abrigo, é necessário estar ao lado de
seu amado guerreiro. Sabemos, porém, que esse relacionamento que a faz viver, que lhe
oferece abrigo, é exatamente o seu tormento de morte, mas qualquer morte ou sacrifício
para a heroína é vida ao lado de Martim. A utilização da flor da mata que se sustenta em
outra planta para sobreviver lembra também a questão do parasitismo, tão comum no reino
vegetal. Logo, colocando-se na posição de flor da mata, ela se transforma em parasita,
coloca-se abaixo do outro, pois não possui autonomia para sobreviver. Importante, também,
é o uso da palavra enlace, pois remete ao abraço, tão característico na convenção amorosa,
unindo os dois amantes, no caso Iracema e Martim.
Um pouco depois, com a iminência da volta de Martim a seus colegas, Iracema é,
mais uma vez, comparada a uma planta, no caso a acácia. “Não tinha sorrisos, nem cores, a
virgem indiana: não tem borbulhas, nem rosas, na acácia que o sol crestou; não tem azul,
nem estrelas, na noite que enlutam os ventos” (pág. 27). O calor do sol, a tristeza, crestou a
acácia, toda a beleza de Iracema, que se animava com a possível volta do estrangeiro. A
índia, decepcionada, se secou, não tem mais rosas, não tem mais a alegria e a beleza. É
importante verificar que o Sol, usado tantas vezes de forma positiva, como a presença do

63
64

amado, aquilo que dá vida ao outro, é usado, agora, de forma negativa: representa a tristeza,
pois esse Sol é o Sol que encresta, seca, tira todo o líquido que - esse sim - oferece a vida.
Ao mesmo tempo, Iracema é a noite, período da lua, tão usada para os sentimentalismos,
que, na situação de Iracema, já não cabem mais.
A mesma tristeza é representada poucas linhas depois pela verde palma, quando
Martim pergunta o motivo de seu desânimo: “A filha do pajé estremeceu. Assim estremece
a verde palma, quando a haste frágil fica abalada” (pág. 27). Mais uma vez, a tristeza é
representada pela palma, como vimos há pouco representada na palma da carnaúba. As
folhas grandes, sustentadas muitas vezes por galhos e caules tênues, frágeis, dão a essas
palmas a impressão de tristeza, de cabeça que verga desanimada. Não é a folha imponente,
majestosa, mas a folha com um pressentimento de derrota, balançada, resignada, ao sabor
dos ventos, que pode ser quebrada a qualquer momento, e, quando se quebra, desce ao solo,
perdendo completamente a vida, pois a seiva que a nutre não lhe chega mais.
Alencar usou também, sabiamente, a expressão “flor da face” em relação ao rosto
entristecido de Iracema: “Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um pálido reflexo
para iluminar a seca flor das faces” (pág. 31). O que está seca: a flor ou a face ? São a
mesma coisa. A flor de Iracema secou, metáfora que representa sua tristeza, e sua face
também, demonstrando a palidez que lhe tira a beleza por estar tão triste. É a completa
fusão entre a “flor” (representação de Iracema) e a “face” (a identificação de Iracema),
unindo, assim, a representação à personagem, metáfora e coisa, pois o ser Iracema (sua
face) e a natureza que a cerca (flor) são uma só.
E quando o português vai com Caubi, despede-se da índia com um rápido beijo,
parecendo dois frutos gêmeos: “A boca do guerreiro pousou a boca mimosa da virgem.
Ficaram ambos assim unidos como dois frutos gêmeos do araçá, que saíram do seio da
mesma flor” (pág. 31). É interessante notar o uso dos frutos gêmeos, pois vem ao encontro
da expressão “alma gêmea”, tão usada para demonstrar o amor inviolável entre duas
pessoas, como se nascessem um para o outro, o que é reforçado pela figura do beijo, que
originalmente representa essa junção dos dois amantes em uma só pessoa, como algo
inseparável.

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Toda essa sequência de comparações ocorreu apenas para ilustrar a tristeza de


Iracema diante da despedida do guerreiro. Para representar o desânimo de Iracema, foram
usadas outras comparações com plantas e flores.

Analisemos, agora, a parte em que Martim começa a desprezar Iracema por causa das
penosos desdobramentos que poderiam ocorrer com uma relação entre os dois: “O toque de
seu corpo, doce como a açucena da mata, e macio como o ninho do beija-flor, magoou seu
coração” (pág. 44). Logo, Iracema possui a doçura da açucena, mas uma doçura que fere.
Essa comparação com algo que atrai, mas é nocivo não é novidade, pois ocorre em outros
trechos do livro, como no momento em que Iracema possui sua delicadeza comparada ao
mel da copaíba: “possui na doçura o veneno”. Ela é doce por si, por sua gracilidade, por
sua beleza, por sua simpatia, mas o fato de ser a guardiã do licor de Tupã a faz nociva para
quem quiser ser seu amante.
Aliás, essa condição “espinhenta” de Iracema está presente algumas páginas após, em
suas próprias palavras: “na vida, os lábios da virgem de Tupã amargam e doem como o
espinho da jurema” (pág. 46). Aqui é a própria Iracema que ilustra seu caráter
contraditório, entre a doçura e a perdição.
Jurema que, aliás, é a planta que gera o líquido alucinógeno guardado pela heroína,
como podemos ver na festa do elixir. Assim, Iracema inebria como o líquido da jurema, faz
com que aquele que o “beba” veja o Paraíso, a Terra-Sem-Mal, mas é o mesmo líquido que
amarga. Martim, ao beber o elixir, sente seu gosto horrível, mas, ao mesmo tempo, é ele
que leva o português de volta a suas lembranças e, principalmente, para os braços da
virgem. É o caminho para a satisfação e o sofrimento. Iracema carrega a ambiguidade entre
a vida e a morte por todo o romance.
O próprio fato de Iracema ser a portadora, guardiã dos segredos da jurema,
incumbindo-lhe um caráter religioso, aliada ao fato de ela ser a filha, a herdeira natural do
pajé da tribo, responsável pela ligação, em sua sociedade, entre os seres humanos e o
Absoluto, além de ter a responsabilidade de ficar virgem, guardar pureza por toda a sua
vida, exatamente por ser a portadora do licor alucinógeno, fazem com que a índia tabajara
tenha uma relação com a Virgem Maria, admiradíssima no contexto católico (que é,

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inclusive, do seu amado Martim), tão forte no continente europeu, principalmente nesta
época. Afinal, foram os colonizadores europeus, como Martim, que trouxeram a religião
católica para o nosso país, inicialmente com a catequese indígena. A relação Iracema-Maria
Santíssima se estabelece principalmente em sua virgindade: ambas guardam o seu corpo,
afastam o prazer sexual, pois possuem uma missão religiosa; não são seres humanos como
os demais que as rodeiam. Acontece também no tema do sacrifício, pois Maria esteve
pronta para conceber Deus-Filho, mesmo sob a desconfiança daqueles que a conheciam e
até mesmo de seu noivo José, da mesma forma que aceitou o sofrimento de seu filho Jesus
na cruz e, como Iracema, aceitou a sua morte, o seu sacrifício diante de seu amado. Ambas
possuem o caráter de mãe de todos, pois Maria é, para os católicos, assim chamada em
inúmeras ocasiões, por ter concebido a Cristo, ao mesmo tempo que Iracema gera o
primeiro cearense, o que, por extensão, corresponde ao primeiro brasileiro, por ser Iracema
o elemento indígena e Martim o elemento europeu e, como veremos mais tarde, Iracema
comparada à lua, está na posição de “mãe dos guerreiros”.
Sendo assim, tanto para os guerreiros da tribo tabajara, como para Martim, Iracema
tem a função de sacertodisa, é aquela que leva os que estão consigo ao mundo do Absoluto.
Para os guerreiros, ela faz isso no momento da festa do cauim, enquanto com Martim ela o
faz no meio da selva, sob a abóbada de árvores, provocando no europeu seu devaneio.
Como representação da natureza, Iracema realiza a passagem das outras pessoas para o
terreno do divino.
Porém, as duas virgens têm finais completamente diferentes. Nossa Senhora, segundo
a tradição católica, prosseguiu virgem por toda a sua vida, inclusive após o casamento, o
que reforça sua santidade – e também a de Jesus Cristo - perante os fiéis, garantindo a ela
um caráter privilegiado na hieraquia católica. Enquanto isso, Iracema jogou o seu “status”
de portadora do licor da jurema, ao desprezar também a sua virgindade, pelo amor por
Martim, e por consequência, em vez de permitir a salvação do mundo, como fez Maria
através de seu filho Jesus crucificado, concretizou a perdição de sua tribo, em conflito com
os potiguaras e a sua própria morte, e, por extensão, a morte de seus pares aborígines, para
que pudesse sobreviver o guerreiro europeu e o recém-nascido Moacir, gerado a partir da
dor da mãe índia. A partir de então, Iracema não terá mais o caráter de mãe dos tabajaras,
mas a mulher que provoca sua morte e sofrimento. Agora ela é Eva, que expulsa a si

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mesma e a sua tribo do Jardim do Éden. Enquanto Maria se manteve virgem pela sua
ligação com o Absoluto, por gerar o Filho de Deus, Eva, entregando-se ao pecado, fechou
as portas do Paraíso aos que estava ao seu lado. De salvadora e redentora, Iracema se fez a
geradora de nosso sofrimento, quem ofereceu o fruto do pecado ao homem.
Não deixa de ser interessante verificar como Iracema, sob esse aspecto, possui duas
representações bem diferentes: Maria e Eva. Ela é a virgem redentora, mãe de Deus-Filho e
de todos, na função de Maria, ou a que provoca a perdição de todas as gerações,
entregando-se a seu amado (o que provoca certo distanciamento em relação ao ideal
católico), aproximando-se de Eva. Não só a figura de Iracema, mas a da mulher em geral,
durante o Segundo Império, está entre essas duas representações: ou é a mulher, mãe e
esposa dócil e submissa; ou é a portadora do pecado e da perdição do mundo.

A festa do líquido da jurema é descrito logo depois, é a oportunidade que Martim


possui para escapar da aldeia, é o momento em que os homens da tribo entram em transe:
“Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm de encontro às suas flechas
para se traspassarem nelas; fatigado por fim de ferir, cava a terra o bucã, e assa tamanha
quatidade de caça, que mil guerreiros em um ano não acabariam.” (pág. 48) Fugindo,
Martim percebe que a índia não pode mais segui-lo no caminho para a terra dos pitiguaras.
É o momento de utilizar mais uma comparação e colocá-la no campo das flores: “Quanto
mais afunda a raiz da planta na terra, mais custa arrancá-la. Cada passo de Iracema no
caminho da partida é uma raiz que lança no coração de seu hóspede.” (pág. 49) A
imagem de Iracema entra na alma do estrangeiro como a raiz que invade o solo e se infiltra
indomável. É uma raiz agradável, no caso a presença de Iracema, mas que deve ser
retirada. É importante perceber que Iracema é a raiz, portanto ligada ao vegetal, ao mesmo
tempo em que Martim é o solo, sendo assim o sustento e o alimento da heroína.
Mas essa raiz já não pode mais ser retirada, pois já vai dar frutos, como explicou a
própria Iracema e poetizou o narrador: “Assim o róseo cacto, que já desabrochou em linda
flor, cerra em botão o seio perfumado” (pág. 50). A imagem foi bem escolhida, pois a
planta desabrochando em linda flor ilustra fielmente a perda da virgindade de Iracema, que
já era a dona dos segredos de Tupã. O desabrochar representa essa primeira coita da

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heroína. Além disso, a utilização do róseo cacto para índia reforça a fusão de delicadeza e
doçura (“róseo”) com aquilo que é nocivo, que causa a dor (“cacto”).
Demora um pouco para que Iracema seja novamente usada como comparação com
itens da flora. Isso voltará a acontecer, quando ela e Martim estão aproveitando seus
primeiros tempos na aldeia dos pitiguaras. Diante de um galanteio do europeu, “A formosa
selvagem desfez-se em risos, como se desfaz a flor do fruto que desponta” (pág. 60). Ela se
abre mais uma vez, indicando que está apta ao amor do guerreiro, aos seus sentimentos,
suas palavras. A índia é comparada à flor do fruto e não podemos ignorar que a flor que
desponta é exatamente o receptáculo, tanto do pólen, por exemplo, como do novo fruto, no
caso, predizendo o filho que nascerá da união dos dois.
Até o momento, são só carícias. O branco e a índia estavam ligados um ao outro
perfeitamente. Mas o tempo fez com que as coisas mudassem, e mesmo estando a esposa
grávida, Martim já ficava mais nos atributos de guerra do que nos braços de Iracema, que
sentiu a falta do amado: “Ai da esposa !... Sentiu já o golpe no coração e como a copaíba
ferida no âmago, destila as lágrimas em fio.” (pág. 75). Iracema agora não é mais a flor, a
folha ou raiz, ela agora é tronco, mas tronco que chora, “destila as lágrimas em fio”.
Normalmente, as árvores, quando feridas, deixam escapar em fio parte de sua seiva, o que
gera a expressão de que a planta chora. Assim, da mesma forma que a chuva, vista há
pouco, tem aproximação com as lágrimas, o líquido que escorre pelo tronco também se
relaciona com o fio de lágrimas de Iracema entristecida. Além disso, o líquido que desce
pelo tronco da árvore machucada é sua seiva, e como o nosso sangue, ela é sua vida. Sem a
seiva a planta não pode viver, e é a partir daí, nesse momento, que começa Iracema a perder
a vida, não só metaforicamente, pela distância de seu amado, mas de verdade. Iracema
começa a falecer aos poucos, começa a perder sua seiva.
A tristeza não para aí, ela se estende por outros capítulos e em outras comparações.
Algumas linhas após, há um parágrafo inteiro sobre a decepção de Iracema, resumida à
seguinte frase: “Assim caem as folhas da árvore viçosa antes que amadureça o fruto”
(pág. 75). As folhas caíram, toda a alegria se foi da árvore que era forte, majestosa,
enquanto tinha a companhia de seu amado, quando estava a seu lado, e isso logo quando
está para amadurecer o fruto, está para vir o filho de Iracema. O fato de as folhas caírem é
relacionado à morte, pois são as folhas que não geraram frutos. É quase um processo de

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envelhecimento. Como vimos no passo anterior, Iracema se encaminha para a morte, ápice
de seu sacrifício; vai perder sua vida como a planta que perde suas folhas. O narrador,
ligando a tristeza de Iracema ao cair das folhas “antes que amadureça o fruto”, já deixa
ilustrado o sacrifício que a índia terá de sofrer sem alguém que a acuda, ao lado apenas de
seu filho recém-nascido. Será necessário o seu sofrimento para que o seu filho, a próxima
geração, venha.
Ela mesma retrata sua melancolia, quando inquirida por Martim: “Chora o cajueiro
quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua felicidade, depois que te separaste
dela” (pág. 75). Sem a felicidade, que vem de Martim, a índia fica seca e triste como o
cajueiro. Como aconteceu com a carnaúba, ela é comparada novamente a um tronco, mas
não um tronco forte e firme, um tronco seco, frágil, pois a água necessária para que o
tronco sobreviva, no caso Martim, está distante e, quanto maior a distância de sua fonte de
vida, mais ela vai-se aproximar de sua morte, sendo assim a distância de Martim
equivalente à aproximação da morte.
O desentendimento entre Martim e Iracema se prolonga, gerando outras comparações.
Agora é Martim que tenta convencer a esposa de seus sentimentos: “A tristeza escurece a
vista de Iracema, e amarga seu lábio. Mas a alegria há de voltar à alma da esposa, como
volta à árvore a verde rama” (pág. 76). Neste ponto, temos observações importantes, pois
a tristeza amarga o lábio de Iracema. Precisamos lembrar, agora, que a amargura vem do
líquido da jurema, ou do mel que carrega o veneno. É o aspecto negativo, é o gosto da
morte, que, agora, não prova nem os índios nem Martim (quando sentem desfalecer e, em
transe, encostar no Absoluto), mas a própria Iracema, que provará certamente o maior gole,
sem direito ao prazer posterior. Logo depois, vemos que, com a alegria, a árvore-Iracema
voltará a oferecer verde rama, ou seja, ocorre o processo inverso do envelhecimento que
vimos há pouco, e a planta, cujas folhas caíam, decretando sua depressão (como a palma da
carnaúba “cabisbaixa”), voltará a dar folhas, por consequência vida e frutos. Mas, então, a
índia discorda, respondendo: “Quando teu filho deixar o seio de Iracema, ela morrerá,
como o abati depois que deu seu fruto” (pág. 76). Não parece exagero notar que o abati,
este vegetal do sacrifício, que morre para gerar seu filho, é o “milho” conhecido por nós e
que era usado largamente para a fabricação do cauim, bebida que entorpecia os guerreiros e
os levava ao transe, como o elixir da jurema. Como faz o milho, de onde vem o líquido

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alucinógeno, Iracema, portadora do elixir, deverá se sacrificar, dando a própria vida por
seu filho nascido da dor.
O sacrifício é necessário ? Quem reflete é a própria Iracema, algumas linhas depois:
“Iracema é folha escura que faz sombra em tua alma; deve cair, para que a alegria alumie
teu seio” (pág. 77). Iracema é aquela que atrapalha os sonhos do guerreiro, que é
representado como jacarandá – do qual trataremos depois - enquanto Iracema é a folha
escura, menor, e que faz sombra ao outro, aquela que não lhe deixa bater a luz do sol. Esse
trecho representa muito bem em que nível se submete Iracema a seu amado, quanto ela
aceita seu sacrifício. Da mesma forma que o indígena morreu diante do colonizador, a
mulher se submete aos desígnios do homem, tornando seu sacrifício natural.
O sacrifício maior de Iracema está no final do romance, quando ela, mesmo quase
sem vida, quer dar o pouco de alimento que ainda tem e, num grande esforço, quer
amamentar seu filho recém-nascido, mesmo que seja necessário extrair, antes mesmo do
leite, seu sangue: “Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também
nutrido” (pág. 83). Ela doa até mesmo seu próprio sangue para o alimento de seu filho, o
primeiro brasileiro, gerado a partir do pai português e da mãe índia. Assim, o brasileiro
nasce não só do sacrifício da mãe aborígine, mas se alimenta, se sustenta, a partir de tudo o
que é alimento dela, e que está ao seu redor, é o tormento da mãe e, ao mesmo tempo, as
promessas de esperança do filho. Sendo assim, Iracema efetua um duplo sacrifício: na sua
submissão a Martim, pois se volta contra suas origens, família e costumes; e para o produto
da ligação entre a índia e o branco, o primeiro cearense, Moacir, pois aquilo que morre com
ela deve ser fonte para a sua vida, o leite da mãe cujas forças vão definhando será seu
sustento, como a seiva da planta, como o sol da selva. Portanto, Iracema doa a seu filho
tanto o seu leite, que serve de alimento, como seu sangue, que representa a vida; Moacir é
fruto do sangue e do leite da índia, é produto da entrega de sua vida, a partir do sacrifício.
E as flores e plantas estão junto com Iracema até mesmo na hora de sua morte, não se
desgruda dela o seu caráter de vegetal: “Pousando a criança nos braços paternos, a
desventurada mãe desfaleceu, como a jetica, se lhe arrancam o bulbo” (pág. 85). O bulbo é
uma espécie de raiz, é a parte que comunica o corpo da planta com os nutrientes do solo,
como acontece com a cebola, por exemplo, que é um bulbo. O corte do bulbo é o fim da
vida para a jetica, da mesma forma como ocorreu com Iracema.

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Mesmo no final do romance, ainda há outras comparações em relação à Iracema e às


plantas. Logo em seguida, Iracema é comparada à flor do manacá, por uma característica
especial: mostrar sua beleza, mesmo após o sofrimento, mesmo após o abandono, a solidão,
mesmo após a morte. Comparada com as figuras pálidas do Romantismo de Azevedo ou
Varela, Iracema resplandece até mesmo na morte, com a diferença de que a formosura nas
figuras moribundas dos chamados ultra-românticos está em seu aspecto lúgubre, rosto
macilento; mas Iracema, ao contrário, mesmo no momento de sua morte, não apresenta
essas características físicas, fazendo supor que mantivesse muita da beleza que a transforma
em referência: “mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do
manacá” (pág. 85). Da mesma forma que o perfume do manacá continua, mesmo após
terem-lhe quebrado o caule, Iracema mantém sua formosura mesmo após perder a vida.
Logo depois, ocorre mais uma relação entre Iracema e a flor: “O terno esposo, em
quem o amor renascera com o júbilo paterno, a cercou de carícias que encheram sua alma
de alegria, mas não a puderam tornar à vida: o estame de sua flor se rompera” (pág. 85).
As carícias do esposo parecem ter devolvido parte da alegria de Iracema, porém não foram
capazes de devolver a vida, pois foram tardias, não conseguiram atingir o seu fim, pois
essas mesmas carícias, que eram para a esposa o sopro de vida, chegaram quando já estava
tudo definido. E quando o autor decreta o falecimento da heroína, faz de forma poética, a
comparação entre a índia e uma flor: o estame da flor se rompera, Iracema acabara de
morrer. A índia não poderia mais mostrar sua graciosidade, sua beleza, como o faria uma
simples flor nos campos da tribo.

Analisando, a partir de agora, quais são as plantas, flores, árvores usadas para
representar Iracema, obtemos uma lista considerável: carnaúba, acácia, açucena, cacto,
jurema, palma. Observamos que não são vegetais marcados pela sua dureza, rígidos,
majestosos. O caso da açucena é ainda mais interessante, pois possui, ao mesmo tempo, a
beleza, a noção de fragilidade e o espinho, aquilo que provoca um trauma, aquilo que
machuca quem se aproximar dela, o que resume tudo o que acontece depois que Iracema e
Martim se encontram. O português se encanta pela pureza da índia, mas recebe junto com
ela as consequências do relacionamento (aliás piores para ela do que para ele). Tudo isso é
reforçado pelo licor da jurema, que leva ao êxtase, mas, ao mesmo tempo, amarga.

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A doce Iracema

Sabemos que a utilização do nome “Iracema” para a heroína da história não é


aleatória. Precisamos, agora, retomar a origem do nome. Obviamente, sua origem está no
idioma indígena mais conhecido, o tupi, significando “a saída do mel” (“e’ira” = mel;
“sema” = saída) e não “lábios de mel”, como o próprio autor coloca. Vemos novamente
subentendida a questão da sensualidade e do ambiente tropical, a utilização do mel para
caracterizar Iracema.
Devemos lembrar, também, que o mel é utilizado como ponto de comparação ou
simples metáfora em vários pontos do texto, todos eles envolvendo Iracema. Dentre essas
partes, a que mais interessa é a comparação que Iracema faz de si mesma com o mel da
andiroba: tem na doçura o próprio veneno. Ou seja, Iracema é doce, é meiga, como um favo
de mel, porém esconde, dentro de si, o veneno, a perdição, os momentos de desagrado para
quem o bebe. Essa comparação ocorre quando Iracema estava entre o amor do guerreiro
(sua doçura) branco e o segredo da filha de Tupã (seu veneno). Não sabia se deveria se
guardar ou se liberar para o amor. A filha de Tupã é a virgem, linda e carinhosa, mas, se ela
se entregar ao amor, as consequências serão desastrosas (como o foram, principalmente
para a própria Iracema).
A mistura de beleza e perdição não é exclusiva de Iracema, mas pode ser vista
também em outra personagem de nossa literatura, conforme Dantas , em Rita Baiana, de “O
cortiço”, representando uma função bem diferente. Enquanto Iracema é a mulher brasileira
por excelência e, por isso, pende à inocência para os românticos, na personagem realista, o
fato de representar a mulher americana liga Rita Baiana à perdição. Porém, na base, ambas
possuem a atração e o veneno: “O jogo cerrado das comparações e das imagens termina
por transformá-la numa espécie de mulher-flora, mulher-flor, mulher-mata.(...) Por trás da
beleza exuberante, espreitam veneno e dissolução.” (DANTAS, in NOVAES, [s.d.], pág.
460). Mas, como nós vimos, o que diferencia Iracema da personagem de Aluísio é o caráter
desproposital, tanto de sua sensualidade, como de sua morbidez: o mel que é doce, mas
envenena. Iracema não usa a sua beleza de forma oportunista, não seduz para chegar a
objetivos. Ela é bela (dando ao lago em que se banha o nome de “Porangaba”)

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naturalmente, sem qualquer intenção, muito menos a de gerar a morte de seus


companheiros de tribo e de si mesma. Por ser uma personagem romântica, por fazer parte
da visão romântica de nosso país, Iracema possui, mais do que o doce ou o mortal, a
inocência. “Iracema, que Martim, o fidalgo português, surpreende em sua nudez
esplêndida e ensolarada, ao contrário de Rita Baiana, se acha protegida e dignificada por
sua inocência, um dos traços valorizadores dessa natureza romântica, mundo de bondade e
beleza edênicas. Não há aí pecado, nem culpa: estamos em plena infância ou virgindade
do mundo.” (DANTAS, in NOVAES, [s.d.], pág. 463). Afinal, nada mais correto, pois, por
ser uma índia, não possui qualquer noção de que sua nudez provocasse sua sensualidade,
tão relacionada ao mel e ao veneno ao mesmo tempo, já que é a beleza, mas também, na
doutrina cristã, é pecado, a morte da alma.
Várias outras vezes, Iracema é comparada ao mel. Quando seu amado está prestes a
sair da aldeia dos tabajaras, com a ajuda de seu irmão Caubi, a virgem destila seu
sofrimento: “a virgem destilava sua alma como o mel de um favo nos crebros soluços que
lhe estalavam entre os lábios trêmulos” (pág. 37). Sendo assim, Iracema destila a alma
como o mel, purificando-o, tornando-o aprazível. Isso vai ao encontro do trecho que vimos
acima, em que o mel da andiroba traz a doçura e o veneno, como Iracema, que traz, ao
mesmo tempo, as carícias e o sofrimento. E ela destila através da lágrima, do sacrifício, ela
se sacrifica, ela sofre para purificar sua alma, ela é capaz de jogar sua família, seus
costumes, sua tribo (como realmente o faz) para conseguir a purificação, como se purifica o
mel. Isso resume boa parte do que acontece no romance: ela está pronta para se sacrificar e
obter a purificação. É bom lembrarmos que a destilação é processo muito usado para
purificar as bebidas alcoólicas, como o cauim usado pelos homens na cerimônia da Terra
Sem-Mal. É a purificação que leva ao êxtase, como deseja fazer Iracema com o amado
Martim, e o que faz, por exemplo, quando lhe apresenta o licor verde na selva, licor que
amarga, mas leva à satisfação dos desejos, como o mel de Iracema.
O sacrifício de Iracema por meio da destilação do mel é retratado logo na próxima
comparação com o grosso líquido. Quando o casal já está fora do domínio dos tabajaras, a
virgem declara sua servidão ao marido: “Iracema tudo sofre por seu guerreiro e senhor. A
ata é doce e saborosa; mas quando a machucam, azeda. Tua esposa quer que seu amor
encha teu coração das doçuras do mel” (pág. 56). Em relação a esse trecho, podemos fazer

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várias observações. Primeiramente, como já foi dito, o caráter servil de Iracema, chamando
Martim de “guerreiro e senhor”, aquele que detém posse, numa situação de submissão em
relação ao estrangeiro. Não é a única vez em que Martim é representado como senhor de
Iracema. Um pouco antes, Iracema já havia se dirigido, algumas vezes, submissa ao esposo,
como podemos ver quando os dois começam a viver juntos, na tribo potiguara: “- Esposo
de Iracema, tua rede te espera.” (pág. 51) Para dar mais um exemplo, quando Iracema está
prestes a morrer, ela pensa no discurso do narrador (“ir ao encontro de seu guerreiro
senhor...”), quer desesperadamente se dirigir a ele, mesmo em condições tão adversas. Se
encararmos Iracema como representação da América indígena e Martim como o
colonizador europeu, é o continente americano que se abre servilmente para o branco,
pronto para o sacrifício e o processo civilizatório, não sendo mais um índio, mas um índio
europeizado. Além disso, vemos que a ata é doce e saborosa, mas azeda, quando
machucada, ou seja, ela é dócil (ligação com a palavra doce) por natureza, mas quando ela
é atingida, é prejudicada, é machucada, ela azeda, deixa um gosto acre nos lábios. Assim,
Iracema carrega, ao mesmo tempo, o prazer e a dor, o doce e o azedo, que provoca, por
analogia, a vinculação com a vida e a morte (salvação e perdição), que são carregadas por
ela mesma por todo o romance. Além disso, nada mais ligado ao estigma do povo
americano, como vemos em Rousseau: um povo naturalmente humilde e solidário, mas se
enfurece, se vinga, apenas quando é atingido, podendo sair, assim, da amabilidade mais
forte para a vingança mais extrema, graças a seu caráter emotivo. Não é à toa que o
principal personagem americano é uma mulher, pois a mulher possui, por convenção, o
caráter emotivo, como o indígena, enquanto Martim, o homem, é dotado de razão, como
um europeu. Tem-se a impressão de que existe, até mesmo, mais do que um respeito por
Martim, ou seja, pelo colonizador europeu, mas uma espécie de culto, como se o branco
fosse uma espécie de santidade. Isso pode ser percebido muito mais fortemente em outro
romance indígena de Alencar, O Guarani, onde vemos Peri e sua servilidade religiosa em
relação a Ceci, que é mais do que uma simples menina, mas uma figura irrepreensível. Não
é à toa que Peri possui certa feminilidade. Peri se submete à sua Nossa Senhora, da mesma
forma que Iracema se submete ao seu senhor Martim, pois ambos demonstram
incondicionalmente seus sentimentos. Peri não tinha a menor idéia de deixar de seguir Ceci,
mesmo sabendo que uma relação concreta seria quase impossível e ele inclusive queria que

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fosse assim; Iracema se lança a seu amado, demonstra tudo o que sente, entrega-se de corpo
e alma ao português, mesmo sabendo que haveria consequências drásticas, pois ambos são
heróis, símbolos indígenas. É a América que se mostra, é o filho das florestas, da selva, da
natureza, onde o homem não se veste de máscaras e onde tudo é espontâneo. Lembramos
aí, então, a figura do karaíba, nome dado ao homem branco pelo índio tupi e que, ao
mesmo tempo, significava “santidade”, tanto que o anjo, figura trazida pelos missionários,
era chamado pelos indígenas de Karaíbebé. A noção de servilidade aparece novamente no
trecho seguinte, junto com o sacrifício, pois Iracema quer encher o coração do guerreiro
com a doçura do mel, ou seja, ela vive para ele, ou melhor, ela vive e morre para ele, para
oferecer o que possui de melhor, a doçura do mel, o mel já sem veneno, o mel purificado, o
mel destilado, se usarmos a comparação do trecho anterior.
Assim, o índio é

“o homem em estado natural, ainda expressão pura e, portanto, autêntica do ser


humano, capaz de toda a perfectividade afetiva, moral e espiritual, reduzido fatalmente a
vítima do homem da sociedade civilizada, ainda mesmo quando esse homem civilizado era
movido pelos melhores sentimentos.” (AMORA, 1966, pág. 138)

“O romance, assim, embora tenha por título o nome da virgem dos lábios de mel,
funda, no absoluto de seu amor, a invasão e a conquista da América. Desloca-se assim o
eixo da história de amor de dois jovens, para um quadro mais amplo: o que Martim Soares
Moreno efetua é, possuindo, desvirginando, engravidando e de certa forma levando à
morte a moça, possuir, desvirginar, engravidar e conquistar sua outra identidade, o
continente da América.” (RIBEIRO, in FREITAS, 2003).

Um pouco depois, quando Poti, Iracema e Martim visitam o guerreiro Batuireté,


vemos mais uma vez a forte ligação de Iracema com o mel. Enquanto Poti e Martim estão
juntos com o guerreiro ancião da tribo dos pitiguaras, “conversando coisas de homens”, ela
se banha na cachoeira: “Iracema, que se banhava na próxima cachoeira, veio-lhes ao
encontro, trazendo na folha da taioba favos de mel puríssimo” (pág. 63). A virgem,
enquanto eles faziam coisas de homens, como conversar sobre guerra, sobre os fatos da

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tribo, banhava-se na cachoeira, demonstrando como cada um deve estar em seu devido
lugar. Quando os dois desceram do encontro com o ancião, a virgem veio ao encontro
deles, trazendo o mel em folhas de taioba, para reforçar a sua ligação com esse alimento.
Ela é a portadora do mel, ela leva consigo o líquido que é, em várias passagens, a doçura e
o veneno.
O mesmo mel foi usado para ungir o corpo do ancião, logo após seu falecimento:
“Entanto Iracema colhia na floresta a andiroba, para ungir o corpo do velho que a mão
piedosa do neto encerrou no camucim” (pág. 73). Sendo assim, para conservar o corpo e
para a alma chegar mais facilmente ao Absoluto, o corpo é ungido com o mel puro, o mel é
o líquido que ajuda na ida para a Terra Sem-Mal, da mesma forma que o elixir da jurema,
amargo, leva ao êxtase na festa dos homens. E Iracema faz parte dos dois processos, tanto
da unção do velho guerrreiro que vai para a Terra Sem-Mal (o Absoluto), como da festa da
jurema, que faz os guerreiros verem, dentro de seu transe, o Paraíso, o Absoluto, mesmo
estando na Terra. Portanto, mais uma vez, é ela quem vai levar o outro para o caminho do
transcendental, sem saber que, grande ironia, ela será a última, nessa lenda, a encontrar os
céus, da forma mais dramática possível, a morte por sacrifício. Ela transporta os outros aos
céus para, no fim, deixar-se levar a si mesma, fazendo com que, de sua dor, nasça sua
continuação, seu filho.
Quase no final do romance, Iracema novamente se compara ao mel. Agora, numa
situação interessante: fraca e solitária, pois seu esposo tinha saído para combate junto com
Poti, e ela tenta sustentar seu filho Moacir, o primeiro cearense, aquele que saiu da dor: “A
jati fabrica o mel no tronco cheiroso do sassafrás; toda a lua das flores voa de ramo em
ramo, colhendo o suco para encher os favos; mas ela não prova sua doçura, porque a
irara devora em uma noite toda a colmeia. Tua mãe também, filho de minha angústia, não
beberá em teus lábios o mel de teu sorriso” (pág. 80). É o ponto culminante do sacrifício de
Iracema, ela gera o herdeiro, da fusão do índio com o português, através da dor e da
angústia, para chegar à morte. Nasce o brasileiro, gerado pela ligação entre o americano e o
europeu, mas é necessário que o fator europeu permaneça, enquanto o americano é
sacrificado; é necessário que a esposa se sacrifique para a permanência do senhor. E o
mesmo mel de Iracema é passado para o filho Moacir, mas a mãe não poderá aproveitar a
doçura do filho, pois conhece seu destino.

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“Alencar, por surpreendente que pareça, ainda está para ser lido em alguns de seus
aspectos mais importantes. No caso de “Iracema”, o tema é a tragédia da condição
humana: permanentemente resgatada pelas forças misteriosas e incompreensíveis do
renascimento e da perpetuação (das quais é, por paradoxo, a condição necessária).”
(MARTINS, 1992, pág. 217)

Como foi bem salientado por Pontieri (1988), o sacrifício da mulher não é exclusivo
de Iracema, mas existe em vários outros personagens femininos, é a submissão das
vontades da personagem para o “bem de todos”: “Não é casual que o tipo feminino oposto
que aparece no romance urbano é o da mulher – mãe, irmã ou filha – cujo emblema é a
abnegação: a negação de si mesma que faz dela um ser sem vontade própria, apêndice do
homem a quem se subordina.” (PONTIERI,1988, pág. 104). É muito comum também que,
nos romances de Alencar, mesmo que haja uma personagem feminina com certa autonomia,
ela ceda no final, como acontece no caso de Aurélia Camargo em “Senhora”, e o modelo da
mulher frágil para o ideal de amor romântico se reforça: “a mulher deve recuar de sua
atitude de enfrentamento (do mundo masculino, das pressões familiares, das regras da
sociedade, etc.) para “render-se” incondicionalmente ao amor, (...)” (MORAES, 2005,
pág. 19). Assim, não só nos romances indianistas, mas em outros romances do escritor
cearense, a figura feminina deve respeitar a regra inviolável de realizar suas funções
básicas, mostrar-se misericordiosa, omissa e carinhosa com seu amado, com o sério risco de
não fazer parte de uma estrutura conforme a convenção, e penda, assim, para o caótico, em
que as coisas estão fora do lugar.

Assim, na figura de Iracema, a virgem dos lábios de mel, o mesmo mel é largamente
usado como ponto de comparação. É ele o líquido que sai da andiroba e possui, ao mesmo
tempo, a doçura e o amargor, o refrescante e o azedo, que condensam os dois lados do amor
da virgem tabajara, as suas carícias, o seu amor e, ao mesmo tempo, as trágicas
consequências de seu relacionamento, já que ela, filha do pajé Araquém, guarda o segredo
de Tupã e possui determinado status em sua tribo. Nem podemos esquecer o caráter sensual
que existe no mel, esse grosso líquido tão característico dos trópicos. O mel, viscoso,

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inclusive, pode também ser relacionado ao líquido vaginal, que é a fertilidade e a


sensualidade por si mesma, sem vulgaridades, pois a vulgaridade é a malícia que, ao menos
por convenção, existe nos homens chamados civilizados, mas o que temos aqui é, ao
contrário, algo espontâneo, sem pretensões de o ser e até mesmo sem o perceber.
Sensualidade totalmente relacionada a Iracema, mas não é uma sensualidade provocadora, é
algo natural. A índia é bela e formosa por si mesma, sem forçar isso, como prova o
momento em que se banha no lago, ao lado de garças e jaçanãs, e as testemunhas do banho,
por causa dela, batizam o lugar com o nome de Porangaba, o “lugar da beleza”. É uma
sensualidade quase mítica, digna de uma deusa da floresta, aquela que chega até mesmo a
estar acima dos fatores naturais, como pode-se perceber no início do romance.
Porém, para o bem de seu amado Martim, o gosto azedo deve ser cortado, seu amado
deve ficar apenas com a doçura de sua alma, destilando o mel que tem dentro de si. Para
isso, a índia se oferece em sacrifício, submete-se aos desejos de seu senhor europeu; a
esposa se coloca em situação servil diante do homem, sendo absorvida pelo caráter
civilizado, trazido pelo português, e a fusão completa e necessária ocorre no momento em
que o filho Moacir é gerado.
Sendo assim,

“She is the New World of the Indian; Martim is white Europe; their child, born of
Iracema’s suffering and the fruit of her defiance of her god, is a new creation, Brazil itself,
both a fusion of Indian and European and product of the suffering and final destruction of
the native world.”15 (HABERLY, 1983, pág. 48)

Portanto, da mesma forma que Iracema se sacrifica pelo amor de Martim, gerando o
herdeiro Moacir, e a mulher se sacrifica para o homem no sistema social patriarcal, não
apenas o Brasil, mas a América Latina como um todo se sacrifica para a Europa. Ela dispõe
ao colonizador a fertilidade de sua terra, a diversidade de seus recursos, para que o europeu
“sobreviva”, ao mesmo tempo que, a partir desse contato, é formada uma nova civilização,
de características especiais, juntando parte das duas culturas. Assim, mais ainda do que

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Trad.: “Ela é o Novo Mundo do índio; Martim é a Europa branca; seu filho, nascido do sofrimento de
Iracema e o fruto de seu desafio a seu deus, é uma nova criação, o próprio Brasil, uma fusão do índio com o
europeu e produto do sofrimento e da destruição final do mundo nativo.”

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louvar a simplicidade do indígena, Alencar representou a fusão dos elementos branco e


índio na formação de nossas particularidades.

Iracema e a jandaia fiel

A natureza, até mesmo para as pessoas que nasceram junto a ela, guarda várias
surpresas, vários segredos, que nem sempre são os mais agradáveis. Animais ferozes,
armadilhas, vegetais venenosos, tudo isso desperta uma boa dose de receio, até para o
aborígine mais experiente. Porém, Iracema não possui o mínimo receio em relação a ela,
está sempre na mais perfeita harmonia, a personagem e o ambiente se entendem totalmente.
Um dos momentos do romance que simbolizam isso está logo no início, quando há uma
pequena descrição da heroína. Ela “concerta com o sabiá do mato, pousado no galho
próximo, o canto agreste” (pág. 15). Iracema possui o controle da natureza, tudo está
conforme com sua autoridade, pois ela em si já é a natureza e é tão majestosa, tão sublime
quanto ela.
Iracema e o sabiá estão em harmonia. A comunicação entre eles se dá exatamente
pelo canto, pela linguagem do sabiá, linguagem esta da qual o próprio pássaro “permite”
que Iracema faça parte. Assim, Iracema se junta à linguagem da natureza, une-se a ela.

Podemos dizer, até mesmo, que Iracema, em alguns pontos, não só se une, não só se
iguala aos elementos da natureza, como chega até a superá-los, como podemos perceber no
mesmo trecho: “Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que
a asa da graúna, e mais longos que um talhe de palmeira.” (pág. 14). Vejamos agora como
a posição da personagem não é apenas de conformidade, mas de superioridade. Ela possui
algo mais, ela vai além da natureza. Isso é reforçado inclusive em outras partes do romance.
Por exemplo: “Escondidos nas folhagens, os pássaros ameigavam o canto” (pág. 14). Por
que eles faziam isso ? Por que ameigar o canto ? Não seria demais imaginar que os pássaros
não queriam acordar a heroína ou (mais ainda) faziam isso para acalentar Iracema.
Portanto, Iracema uma rainha da selva, que está acima de tudo o que a cerca, mas, ao
mesmo tempo, não se faz uma monarca autoritária, mas uma pessoa dócil com as plantas,

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flores e animais do seu reino tabajara, e mais do que isso, uma chefe que não usa a força
mas o consentimento dos demais da tribo, como faziam, pela descrição dos cronistas, os
morubixabas das aldeias, que eram respeitados não por força, mas por autoridade moral.
Iracema não é superior simplesmente por ser humana, por ser da espécie que está
acima das demais (conforme ensina a própria Bíblia), porém por ser, algumas vezes, mais
dócil e graciosa do que as flores que a cercam, mais espontânea que a natureza ao seu
redor, o que é simbolizado na imagem em que ela obtém cabelos mais negros que a asa da
graúna e mais longos que o talhe da palmeira. Ela se torna acima, uma deusa das florestas,
algumas vezes, por ser mais natural inclusive do que os elementos da própria natureza.

Já vimos que, quando Iracema é comparada a algum elemento da natureza, as aves


estão entre os principais pontos de comparação por causas que já explanamos. Do mesmo
modo, quando Iracema se comunica com algum elemento natural, com algum animal, ela o
faz com uma ave. Um exemplo disso é o que vimos, há pouco, na sintonia perfeita entre
Iracema e seu sabiá.
Porém, nessa comunicação, há uma ave especial, que é mais do que parte da natureza
com que Iracema entra em contato, e é praticamente sua confidente: é a ará ou a jandaia. A
ará é citada, muitas vezes, como a “graciosa ará”, é a ave que brinca com a heroína, está ao
seu lado inclusive no sofrido nascimento de Moacir, tanto que, ao lado do canto de Iracema,
começa a cantar o nome de seu filho Moacir. A jandaia voa longe, voa alto, praticamente
rasga o horizonte, mas está sempre presente para a heroína, como se fosse um aviso, ou até
mesmo um consolo. Durante todo o romance, a única coisa que faz é cantar de forma triste:
“Iracema ! Iracema !”. Parece pouco, mas não é, pois por causa do seu canto, a jandaia
espalha o nome de Iracema para todos os cantos do ambiente selvagem, tanto que não se
esquece dela mesmo após sua morte. Quando a heroína já está sem vida e enterrada, a
jandaia continua cantando “Iracema !”, para que não caísse sua história no puro
esquecimento.

Vamos verificar agora os momentos em que a ará e Iracema estão juntas, e como se
forma a relação entre elas durante o romance. Logo nas primeiras páginas, Alencar resume

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a amizade entre o pássaro e a índia: “A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca
junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; (...)”
(pág. 15). É como uma amizade adolescente, com a alegria e o ar descontraído que possui
muitas vezes o jovem. A intimidade da jandaia com Iracema é grande o suficiente para que
o pássaro a chame pelo nome. O caráter sobre-humano, que vimos muitas vezes na
agilidade e na força de Iracema, ocorre também aqui, mas de uma forma diferente. Afinal,
temos uma ave que chama uma pessoa, o que não é coisa comum. Apenas aves muito
treinadas e com certa tendência a repetir sons, como o papagaio, conseguem realizar isso,
em condições normais, mas não é o caso da jandaia. Além disso, temos aí a explicação,
lendária, do som, do canto da jandaia, quando começa a trinar. Portanto, o som da jandaia é
o som de Iracema. Segundo a origem apontada pelo próprio autor, o nome da região
(província do Ceará) está relacionada diretamente a essa ave, significando, o “lugar da
jandaia”. Assim, a ave símbolo da região, que deu origem a seu nome, é quem canta,
eternamente, o nome de Iracema, fazendo da índia heroína representante de sua região,
como se estivesse arraigada a ela.
Porém, as coisas mudaram rapidamente, depois que Iracema conheceu o estrangeiro.
A índia, agora, só se voltava para Martim, nada mais lhe importava. Por consequência, a
pobre jandaia ficou renegada, esquecida, mas como fiel companheira, a ave que não
abandona Iracema, tentando chamá-la várias vezes, sem resultado, como ilustra o próprio
narrador: “Os róseos lábios da virgem não se abriram mais para que ela colhesse entre
eles a polpa da fruta ou a papa do milho verde; nem a doce mão a afagara uma só vez,
alisando a dourada penugem da cabeça.” (pág. 32).
Chegou, porém, um ponto em que a ave companheira não tinha mais nada a fazer.
Quando Martim, entorpecido, e Iracema se deitam juntos na rede, a jandaia desiste de
qualquer tentativa: “A jandaia fugira ao romper d’alva e para não voltar mais à cabana”
(pág. 46). Fugiu para não voltar mais, pois sabia que estava tudo irreversivelmente perdido.
Quando Iracema se entregou ao estrangeiro, ela não entregou somente seu corpo, mas tudo
o que havia até então, o brincar com as flores, animais, outros pássaros, abandonando-os
para se deixar levar pelo europeu. Assim, na escolha entre a jandaia, sua amiga da natureza,
e Martim, seu amado europeu, a índia decide pelo último, sabendo que poderia prejudicar a
si mesma, o que realmente ocorre.

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Mas a jandaia ainda estava presente na própria Iracema, como se percebe inclusive
no confronto entre potiguaras e tabajaras, em que Iracema estava separada de sua amiga
jandaia, a graciosa ará, mas ela mesma era a jandaia: “Fugindo, os tabajaras arrebataram
seu chefe ao ódio da filha de Araquém que o podia abater, como a jandaia abate o prócero
coqueiro roendo-lhe o cerne” (pág. 53). Nesse momento, graças à comparação, a Iracema
é a própria jandaia e a coragem, astúcia, força, habilidade que vemos em Iracema em
algumas partes do romance podem ser vistos aqui na própria jandaia, capaz de romper o
cerne de um coqueiro, árvore enorme, viçosa, forte, capaz de resistir a várias intempéries,
da mesma forma que Iracema pode vencer o chefe tabajara, terrível Irapuã, mesmo sabendo
que ele também é forte, valente e astuto, tanto que ele é comparado ao coqueiro, pois não
poderia ser diferente. A jandaia, ave colorida, alegre, não teme o gigantesco coqueiro, da
mesma forma que a grácil tabajara não teme o terrível líder, pois ela se transforma em
adversária impiedosa.

Mas não demoraria muito para que as duas voltassem a se encontrar. No momento de
dúvida, de solidão, quando Iracema já morava entre os pitiguaras e seu esposo Martim
acompanhou Poti num combate, deixando-a só, a jandaia voltou. Parecia que estava apenas
aguardando uma situação para voltar à índia: “Ergueu ela os olhos e viu entre as folhas da
palmeira sua linda jandaia, que batia as asas, e arrufava as penas com o prazer de vê-
la.(...) Iracema lembrou-se que tinha sido ingrata para a jandaia, esquecendo-a no tempo
da felicidade; mas a jandaia vinha para consolar agora no tempo da desventura” (pág.
72). Percebendo o descaso, Iracema se arrepende e volta a conversar com a amiga,
refazendo a ligação.
Quando nasceu, de forma tão sofrida, o primeiro cearense, era a jandaia que estava ao
seu lado. A dor e a alegria que Iracema sentiu no nascimento de Moacir foram
compartilhadas pela ave, que agora não repetia apenas o nome de Iracema. “ A ará,
pousada no olho do coqueiro, repetiu Moacir; e desde então a ave amiga unia em seu
canto ao nome da mãe, o nome do filho” (pág. 80).
Quando Iracema, apesar do nascimento do seu filho, estava triste e juntava o sangue
de sua dor com suas lágrimas de tristeza, Martim não estava lá, muito menos seus antigos
companheiros e familiares tabajaras. Quem estava lá era a jandaia, que mesmo sendo

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abandonada pela amiga (que também foi abandonada, mas pelo seu amado branco), durante
o tempo em que era feliz com o português, jamais pensou em abandoná-la, mostrando a
sua fidelidade de ave como a arara. A jandaia possui, como Iracema, o abandono e, já
conhecendo essa dor, não quis que sua amiga passasse por isso, mesmo sabendo que ela
tinha sido a fonte de sua tristeza. Logo, a jandaia possui uma característica, a fidelidade,
que a torna superior, que a deixa acima dos seres humanos. É o elemento da natureza que se
coloca acima dos homens. Iracema, enquanto estava harmonicamente ao lado de seu amado
Martim, desdenhava a ará companheira. Martim e até mesmo os amigos e familiares
tabajaras não acompanharam o sofrimento da índia cearense, enquanto a jandaia foi a única
que, apesar de todo o desdém da amiga, não a abandonou. Não é apenas a ará, ou a natureza
que se coloca acima dos homens, mas também o homem que absorve as mensagens da
natureza se coloca acima do homem comum, por um motivo muito simples: essa natureza
não é uma natureza qualquer, mas a que representa os sentimentos nobres, leais, elevados, a
inocência e o desprendimento do indígena, é o lado civilizado do emotivo selvagem.

A solidariedade da ave foi notada também no momento da morte da heroína. Quando


Martim e seu amigo Poti voltaram do combate, Iracema desfalecia: “ouviram o latir do cão,
a chamá-los e o grito da ará, que se lamentava” (pág. 84). Facilmente, perceberam que os
motivos do cão Japi, fiel amigo de Martim, e da jandaia eram totalmente diferentes: “- O
latido de Japi é de alegria: disse o chefe. – Porque chegou; mas a voz da jandaia é de
tristeza” (pág. 85).
Mesmo depois da morte, Iracema teve a companhia da graciosa ará, que mesmo
sendo rejeitada por certo tempo, ficou ao seu lado, principalmente nos momentos mais
austeros. Sobre a palmeira que mostrava o lugar do túmulo de Iracema, a jandaia ainda
cantava. “A jandaia pousada no olho da palmeira repetia tristemente: - Iracema !” (pág.
86). Como se não bastasse, a jandaia se recusou a sair do lugar onde estava enterrada sua
amiga Iracema. Somente o longo tempo foi capaz de corroer tudo isso, e quando Martim
retornou para as terras de Iracema, a jandaia não cantava mais sobre a palmeira: “A jandaia
cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema” (pág.
87). Isso porque, como diz o narrador com certa melancolia, tudo passa sobre a terra, até
mesmo o canto fiel da amiga jandaia.

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Portanto, a jandaia era realmente a amiga de Iracema, aquela que acompanhava o seu
canto, brincava com ela, e quando Iracema estava triste, era ela quem tentava animá-la, e
mesmo depois do desdém que sofreu com a chegada do estrangeiro, ela estava pronta para
ficar ao seu lado ao menor sinal da virgem tabajara. A jandaia tinha com Iracema o mesmo
grau de amizade que existia entre Poti e Martim. E elas se entendiam tão bem, pelo simples
fato de ambas serem filhas das selvas, estarem ligadas à natureza que as gerou e criou.
Compreendiam plenamente a natureza, porque eram parte dela e, assim, facilmente
compreendiam uma à outra, mesmo com a impossibilidade de uma verdadeiro diálogo. Os
sentimentos e expressões, os cantos eram suficientes para a comunicação entre elas.

A utilização da jandaia como ave companheira de Iracema não é simples


coincidência. Como nós já dissemos, as aves refletem a liberdade, a espontaneidade,
característica dos indígenas, como Iracema. A sensação de desligamento em relação às
normas e sistemas que tanto oprimem, muitas vezes, o homem dito “civilizado”, urbano,
incorporado a grandes sociedades, é tentadora para todos nós e é representada há muito
tempo pelo silvícola. Assim, Iracema, como as aves, é a liberdade, é o espontâneo, é a
emoção. Mas por que especialmente a jandaia ? Suas penas longas e coloridas, cores
intensas, fortes, representam todo o clima do ambiente tropical, selvagem, o colorido, o
aberto. Parece que a jandaia espelha a variação e a intensidade de formas que existem na
natureza dos trópicos. A jandaia é uma ave muito presente em nossa fauna e usá-la na
relação entre pessoas e natureza seria como reforçar nosso caráter nacional, o indígena que
existe dentro de cada brasileiro. É um culto à natureza, um culto à inocência do indígena.
Iracema não é apenas a amiga da jandaia, é propriamente a jandaia, pois, verificando suas
características, elas se unem numa coisa só: a graça, o colorido, a natureza em sua mais
intensa expressão, a liberdade. Iracema e a jandaia são tão próximas por representarem
exatamente as mesmas características da beleza, da leveza, a liberdade, a sensibilidade, a
agilidade e a emotividade própria do selvagem. Essas características que vimos em Iracema
por todo o romance, tanto físicas, como a beleza e a força, como humanas, como a honra e
a lealdade, certamente realizam uma representação do índio, mas será que não deixam
passar, em alguns dos elementos, uma ligação com o elemento europeu ?

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Outros pontos de comparação de Iracema

Não foram apenas os pássaros e as flores, dentro de sua fragilidade e graça, os pontos
de referência para a caracterização de Iracema. Há outros elementos presentes, como no
começo do romance, quando a heroína não quer a partida do estrangeiro: “Se a lembrança
de Iracema estivesse n’alma do estrangeiro, ela não o deixaria partir. O vento não leva a
areia da várzea, quando a areia bebe a água da chuva” (pág. 20). Logo, Iracema,
claramente, é a água da chuva, aquela que sacia a sede, que dá vida, enquanto Martim é a
areia, o que pode ser relacionado também à cor de sua pele e ao fato de a praia estar
próxima do mar, de onde o branco veio e que serve de caminho entre o Novo Mundo (de
Iracema) e o Velho Mundo (o seu). É interessante observar, aqui, o caráter erótico que está
implícito, pois a areia bebe ou suga a água da chuva, como se fosse um beijo e esse
encontro já físico está decodificando as palavras de Iracema. Além disso, Iracema é a água,
parte líquida, que vai facilmente de um ponto a outro (por três aspectos: por ser a selvagem,
por ser mulher e, em suma, por ser emoção, que está ligada convencionalmente aos dados
anteriores), enquanto Martim é mais que sólido, é o próprio solo, aquilo que está firme,
serve de base para o outro (também por três aspectos: por ser europeu, por ser homem e por
ser a razão, ligada várias vezes à figura masculina e civilizada). Nesse ponto de vista, o
homem pensa; a mulher sente. O selvagem tem sentidos treinados; o civilizado tem o
raciocínio apurado.
Algum tempo depois, Iracema tenta iniciar uma conversa com o guerreiro, que aceita
a companhia da índia: “Não, filha de Araquém: tua presença alegra, como a luz da manhã”
(pág. 23). Assim, Iracema é para o guerreiro a luz da manhã, ou seja, aquilo que dá vida,
como a água da chuva, que vimos há pouco, é fonte de energia para os vegetais,
principalmente e, fazendo uma ligação, para eles mesmos, pois Iracema é flor, planta frágil,
ao mesmo tempo que (como veremos em momento oportuno) Martim é o tronco. Vamos
voltar a esse ponto, mas é muito importante perceber que é a primeira comparação feita por
Martim, pois até o momento, suas palavras eram objetivas, exatas, sem qualquer rastro de
linguagem poética. Esse aspecto ficará em suspenso por enquanto.

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Percebendo já a perseguição de Irapuã como o início das consequências de seu


relacionamento, Iracema já se declara vento dos areais: “O amor de Iracema é como o
vento dos areais; mata a flor das árvores” (pág. 27). Nesse ponto, a heroína se humilha,
dando a si o aspecto de assassina; ela mata a flor das árvores, como o vento dos areais, isto
é, ela é o vento que alivia, mas possui dentro de si (mais uma vez) a morte e a perdição,
como no caso do mel.
No mesmo trecho em que Iracema é comparada à acácia, ela é comparada também à
noite: “não tem azul, nem estrelas, a noite que enlutam os ventos”. Ela é a noite, mas já não
tem azul ou estrelas, ou seja, não possui a beleza maior que lhe é inerente, pois ela está
coberta pela tristeza, pelos ventos que a enlutam.
Quando os dois estão juntos, na página 29, tanto Iracema como Martim são
comparados aos cervos: “Eles caminhar par a par, como dois jovens cervos que ao pôr-
do-sol atravessam a capoeira.” (pág. 29).
A tristeza de Iracema se tornava cada vez maior, conforme se aproximava o momento
da chegada de Caubi e, por consequência, a partida de Martim. No momento de despedida,
ela expressa sua melancolia: “A tarde é a tristeza do sol. Os dias de Iracema vão ser longas
tardes sem manhã, até que venha para ela a grande noite” (pág. 31). A partir daquele
momento, para Iracema, a vida seria uma sequência de tristezas do sol, sem perspectiva de
manhã, até que viesse a grande noite, a escuridão, a morte, sem mais qualquer esperança de
luz nesta terra. Pelo contrário, cada vez mais Iracema estará se afastando da manhã, do sol e
da vida. Cada dia não seria mais um dia qualquer, mas a tarde, que se não é a morte (noite),
é o prenúncio da morte, da mesma forma que as folhas caídas também o eram. Do mesmo
jeito que Iracema é a luz do sol para Martim, é ele que faz Iracema enxergar as manhãs.
Caubi e Martim são cercados pelos revoltosos, liderados por Irapuã. Iracema corre
desesperadamente para tentar salvar o estrangeiro: “Quando o segundo pio da inhuma
ressoou, Iracema corria a mata como a corça perseguida pelo caçador” (pág. 33).
Portanto, querendo salvar o português, Iracema corre tanto quanto uma corça perseguida,
animal extremamente veloz. Sua destreza, força e velocidade só são comparáveis nesse
momento à corça correndo pela própria sobrevivência. Essa é uma das poucas comparações
de Iracema com um ser animal, além dos casos das aves.

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Depois que Irapuã e os demais guerreiros se afastaram, graças ao poder sobrenatural


de Araquém, pajé da tribo, ligação entre o terreno e o Absoluto, Iracema comemora ao lado
de seu futuro esposo: “O coração de Iracema está como o abati n’água do rio. Ninguém
fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araquém” (pág. 36). O coração de Iracema,
portanto, é o abati, o milho, que incha na água do rio, o que os índios faziam
frequentemente para criar vários pratos típicos e também o cauim, bebida alcoólica. O abati
(milho), que já foi usado como fonte de comparação negativa, possui agora o aspecto
positivo, está inchado, cheio de felicidade, representando o coração. Iracema possui o
coração inchado de felicidade, diante do salvamento de Martim. O estranho é que, para os
tupis, os sentimentos e as emoções eram relacionados ao py’a (originalmente o fígado), e
não ao coração. Sua alegria, seu medo, sua raiva se concentram metaforicamente no fígado.
É o momento da relação entre Martim e Iracema ficar implícita nos motivos astro-
nômicos. É a relação entre o sol e a lua, que estão sempre ligados um ao outro, mas sempre
distantes: “A luz brilhante do sol empalideceu a virgem do céu, como o amor do guerreiro
desmaia as faces da esposa” (pág. 47). A descrição acima, que não é apenas uma simples
descrição do entardecer, demonstra a ligação entre o português Martim e sua amada
Iracema. Primeiramente, é o guerreiro branco quem ilumina, ele é o agente, aquele que faz,
é a fonte da luz e da ação, enquanto Iracema se encontra no papel de paciente, objeto,
aquela que sofre a ação do outro. A luz do sol é comparada ao amor do guerreiro (ligação
com Martim) e a virgem do céu são as faces da esposa (ligação com Iracema,
principalmente por ser a virgem do céu). Portanto, o guerreiro é o Sol, é aquele que
ilumina, dá vida, clareia os caminhos, enquanto a índia, a virgem do céu, a lua, romântica,
misteriosa, com ar tristonho. Importante notar como, frequentemente, tanto Martim como
Iracema são relacionados ao sol e, quando essa comparação acontece, é para um iluminar o
outro, um é o sol da vida do outro, um está para o outro para dar luz e, por consequência,
vida. Não podemos esquecer também que há várias lendas, entre vários povos, orientais,
europeus e também entre indígenas, em relação à origem do sol e da lua. Em várias lendas
indígenas, por exemplo, existe, inclusive, essa ligação entre o sol como elemento masculino
e a lua como elemento feminino. Conforme nos adiantamos no romance, percebemos
quanto Martim se afasta de sua amada e quanto o amor entre eles é impossível, da mesma
forma que o contato entre sol e lua era impossível, condenando os dois amantes. Será que

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Alencar conhecia essas lendas ? E será que ele estava pensando nisso, para construir esse
trecho do romance ?
Ainda em relação à lua, logo depois, quando começa a cerimônia da jurema, os
guerreiros homenageiam o astro. Eles erguem suas mãos aos céus, em direção à lua, e
fazem canções em homenagem a ela, que é chamada de “mãe dos guerreiros”: “Veio no
céu a mãe dos guerreiros; já volta o rosto para ver seus filhos. Ela traz as águas, que
enchem os rios e a polpa do caju. / “Já veio a esposa do sol; já sorri às virgens da terra,
filhas suas. A doce luz acende o amor no coração dos guerreiros e fecunda o seio da jovem
mãe” (pág. 47). O trecho foi estrategicamente dividido em dois parágrafos, cada um com
uma perífrase diferente em relação à lua: no primeiro parágrafo como mãe dos guerreiros
(relação do astro com os seres humanos) e, no outro parágrafo, como esposa do sol
(dimensão mítica). Na primeira parte, é difícil desprezar um paralelismo entre Iracema e a
lua, como uma figura lendária, a lua como “mãe dos guerreiros”, ao mesmo tempo que
Iracema, segundo a lenda, seria a “mãe dos cearenses”. No segundo parágrafo, podemos
verificar também comparações tanto com a figura de Martim (o sol), como com a figura de
Iracema (a esposa do sol). A lua sorri para as “virgens da terra” (papel que era imputado
principalmente a ela, considerando-se o status que possuía em sua tribo), e com sua luz
“acende o amor no coração dos guerreiros”, faz com que eles se apaixonem, como
Martim, o guerreiro português se apaixonou, enquanto “fecunda o seio da jovem mãe”, que
será ela no decorrer do romance, cujo seio tanto sofrimento trará a Iracema para que ela
possa alimentar seu filho recém-nascido. Essas várias ligações reforçam ainda mais o que
podemos chamar de “caráter mítico”, tanto de Martim, no papel de sol, como (e
principalmente) de Iracema, no papel de lua.
Afinal, o romance “Iracema” é classificado, pelo próprio autor, não como um simples
romance, mas como uma lenda, e as lendas possuem o seu caráter de teogonia, possuem
sua potencialidade mítica e mística, como a lenda do guaraná, a lenda da vitória-régia, que
fazem com que seus personagens não sejam pessoas comuns, mas muito pelo contrário
(bem ao gosto do Romantismo brasileiro), transforma personagens numa espécie de
semideuses, portadores de certos valores.

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Martim tenta se encontrar com seu amigo Poti, mas é desaconselhado pela índia. O
português retruca, utilizando uma comparação: “ - Fuja deles [olhos de Iracema] o
estrangeiro, como o oitibó da estrela da manhã” (pág. 41). Então, Martim é o oitibó,
enquanto Iracema é a estrela da manhã, é o sol mais uma vez, como já havíamos visto mais
acima.
A relação entre Iracema e o sol aparece algumas páginas mais tarde, quando ela acorda
nos braços do guerreiro: “ Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como
entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio de sol, em suas faces incendiadas
rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor” (pág. 46). Percebamos a
relação entre o “sorriso da esposa” e os “raios de sol”. Este parágrafo é importante pois
representa também, com a aurora, a perda da virgindade, quando ela se abre para a
fertilidade, reforçada pelas isotopias do calor e do fogo, como nas palavras “acendia”,
“rubores” e “incendiadas”. É também aquilo que dá vida, energia, o que aquece, o que faz
as coisas se movimentarem, o que entra em conjunção com a noção de vida, que um
acarreta para o outro.
Iracema, que já havia sido comparada com a corça, no próximo exemplo será
comparada com a cutia, outro animal conhecido pela sua destreza e rapidez. Quando ela
declara que não pode mais viver sem o guerreiro, pois, a partir de então, ele era seu esposo,
segue junto com Poti e Martim para a terra dos potiguaras, com toda a rapidez para que não
fossem seguidos pelos tabajaras: “Martim seguiu silencioso a virgem, que fugia entre as
árvores como a selvagem cutia” (pág. 50). Portanto, quando está em jogo sua sobrevivência
ou a de seu amado (o que seria basicamente a mesma coisa para a heroína, pois a vida do
amado é como se fosse sua, pois ele é o sol, a água que dá vida à frágil flor), Iracema
possui reflexos de uma corça ou cutia, uma rapidez que vai além do humano, fazendo assim
com que a índia, tanto física como moralmente, tenha características que extrapolam a
condição humana, atinja pontos que somos incapazes de atingir: sua beleza, sua habilidade,
sua força moral, colocando a heroína indígena no lugar dos semideuses. E o que faz com
que ela reforce essa destreza que extrapola as características humanas é o seu sentimento
com o estrangeiro. Ela quer se oferecer completamente para o estrangeiro, dando, se
necessário, sua própria vida, sem medo de qualquer adversário, seja Irapuã, seja o desdém
de seus novos vizinhos potiguaras, seja a repulsa de seus familiares tabajaras.

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Receosa em relação aos sentimentos do português depois de tudo o que havia


ocorrido, Iracema fica um pouco de lado: “A filha de Araquém foi sentar-se longe, na raiz
de uma árvore, como a cerva solitária, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco”
(pág. 51),
Logo depois, os guerreiros tabajaras chegam à nova tribo de Iracema e Martim,
tentando a vingança. A índia se transforma em animal selvagem mais uma vez: “saltando
da rede como a rápida zabelê, travou das armas do esposo e levou-o através da mata”
(pág. 51). Iracema pulou tão rápido como uma zabelê e se aprontou para defender o esposo,
diante do ataque de seus antigos colegas. Mais uma vez, Iracema não possui medida diante
da possibilidade do sofrimento de Martim.
Quando tabajaras e potiguaras começam a se enfrentar, surge a comparação mais
surpreendente em relação a Iracema. Agora ela não é mais pássaro, nem flor, nem mesmo
quadrúpede; ela agora é a temida serpente boicininga: “Iracema silvou como a boicininga;
e arrojou-se contra a fúria do guerreiro tabajara” (pág. 53). A comparação nos causa
estranhamento por se tratar de uma serpente, animal peçonhento, representante, na maioria
dos casos, de aspectos negativos, como a traição, a hipocrisia, a falsidade, etc. Mas não se
deve esquecer de que a boicininga, como qualquer serpente, ataca sem medo algum nos
momentos em que é necessário, arma-se e joga-se contra o inimigo. Ela ataca apenas
quando se sente ameaçada. Como o seu amado Martim está sendo atacado, é o momento
em que Iracema, como boicininga, reage, pois uma agressão a seu amado é até mesmo pior
que uma agressão a ela mesma. Assim, a sua relação com Martim faz com que a índia
obtenha a agressividade das serpentes, que tantas vezes são colocadas em grupos de
isotopias negativas. Essa é a única hipótese em que Iracema se torna feroz como uma
serpente: ao sentir-se ameaçada, pois Martim está ameaçado. Seu objetivo é a proteção do
amado, comportando-se como uma verdadeira “Diana das selvas”, conforme já foi expresso
pelo então crítico literário Machado de Assis: “A pena do cantor do Guarani é feliz nas
criações femininas; as mulheres dos seus livros trazem sempre um cunho de originalidade,
de delicadeza e de graça, que se nos gravam logo na memória e no coração. Iracema é da
mesma família. Em poucas palavras descreve o poeta a beleza física daquela Diana
selvagem.” (MACHADO DE ASSIS, 1986)

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Na página 68 ocorre uma das comparações mais importante em relação a Iracema,


ilustrando sua relação com Martim de forma quase profética: quando este é batizado e
torna-se um elemento indígena, ela se compara a ostra, molusco que tem, entre as
principais moradias, os rochedos, que são, como veremos adiante, figura tão representativa
do guerreiro português durante o romance: “Como a ostra que não deixa o rochedo, ainda
depois de morta, assim é Iracema junto a seu esposo.” Mesmo após a morte, Iracema estará
com Martim, seja na memória, seja no sentimento, parecendo antever sua morte próxima e
as cenas que acontecem logo no início do romance, com a volta de Martim para a terra de
Iracema.
Alguns capítulos depois, começava o desdém de Martim por Iracema, que já não
possuía mais a alegria de quando resolveu juntar-se ao português. Ele já não se abalava
mais com as palavras da esposa: “as palavras de Iracema passaram por ele, como a brisa
pela face lisa da rocha, sem eco nem rumores” (pág. 70). Iracema – que novamente guarda
em si a vida e a morte, pois é a brisa que oferece suavidade e prazer, ao mesmo tempo que
remete ao mortal vento dos areais - era como a brisa sobre a rocha lisa, que era Martim,
passava despercebida, sem causar qualquer erosão. Não apenas não causava a erosão, mas
também não causava o som que o vento forte gera em contato com a rocha, nem mesmo a
transformação, moldando a pedra conforme a corrente de ar num serviço paciente, pois leva
muito tempo. Ou seja, era como se o vento não passasse, ou no caso, é a indiferença por
Iracema. Tristeza de Iracema que era também tristeza de Martim, por outros motivos, como
veremos na parte em que trataremos do guerreiro português.
Num diálogo entre Poti e Martim, diante da probabilidade de deixar Iracema mais
uma vez sozinha, Poti resume a função que Iracema possui para Martim, a saber, a de
orvalho que amolece a terra: “As lágrimas da mulher amolecem o coração do guerreiro,
como o orvalho da manhã amolece a terra” (pág. 71). Sabemos que a expressão acima
possui um tom de dubiedade, pois para que a terra consiga fertilizar melhor, gerar frutos, é
necessário que ela esteja amolecida, para que as sementes vinguem no solo, porém, ao
mesmo tempo, se a terra ficar muito úmida, é certo que, em vez de ajudar, a água do
orvalho atrapalhará. Neste ponto, a água, que foi descrita até o momento com algo que dá

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vida, é o que prejudica por seu excesso. Agora, a água que significava salvação é a água
que sufoca e mata. Portanto, há uma relação da esposa como algo necessário, mas que se
deve evitar o excesso, ficar condicionado apenas à sua umidade, pois ela pode até mesmo
amolecer o coração do guerreiro, o que lhe dá sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, retira a
sua virilidade. É interessante percebermos como, neste trecho, o amor, o sentimentalismo
próprio do elemento feminino é dado como prejudicial; a mulher nesse aspecto é negativa.
O caráter negativo do sentimento (ou do amor, mais exatamente) não é muito comum, mas
pode ser visto, por exemplo em novelas de cavalaria da literatura medieval, como a
Demanda do Santo Graal. Nesse pequeno trecho, percebemos ainda o caráter da flor em
Iracema, pois suas lágrimas, caindo gota a gota, lembram o cair silencioso das gotas de
orvalho nas flores e folhas, reforçando o seu caráter vegetal, ao mesmo tempo que Martim é
novamente a terra, o solo, o chão, algo duro, imóvel, e que serve de base, sustento para
aqueles que estão ao seu redor.
A qualquer sinal de volta de seu esposo, Iracema já mudava completamente, voltava
a ter vida: “Como a seca várzea, com a vinda do inverno reverdece e se matiza de flores, a
formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se” (pág. 74). Com a volta de
Martim, ela possui as flores e folhas, volta a ter a vida, a alegria que tanto lhe faltava e lhe
dava o título de “filha das florestas”. Parece até difícil não ler este trecho e perceber o tom
de empatia que se revela como nas descrições das mais belas paisagens dos romances de
Alencar, quando veem no ambiente uma espécie de manifestação de Deus, o sublime, da
mesma forma como um sentimento parecido com o sublime parece ter empolgado Iracema
com a (ilusória) volta do amado. É o sentimento do inefável. Mais exatamente, percebemos
uma transformação, e o novo ambiente usado na comparação é bem próximo do ambiente
sertanejo após a triste seca, mudança tão bem descrita, por exemplo, em Os sertões de
Euclides da Cunha e em O sertanejo do próprio Alencar. É a mudança repentina de um
extremo a outro, da maior miséria e desolação ao maior colorido e exuberância. Fazendo
uma relação direta, o ambiente sertanejo representa, assim, a própria Iracema, pois ela é sua
fiel representante.
Já na pág. 77 do romance, quando Iracema, prevendo sua tragédia, avisa que morrerá
para que Martim viva, as palavras da índia são repelidas pelo português: “- Quando teu
filho deixar o seio de Iracema, ela morrerá, como o abati depois que deu o fruto. Então o

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guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra estrangeira. / - Tua voz queima,
filha de Araquém, como o sopro que vem dos sertões do Icó, no tempo dos grandes calores.
Queres tu abandonar teu esposo ?” (pág. 76). O importante a ser notado nesse trecho é a
relação entre as palavras de Iracema e o sopro dos sertões, o sopro que queima, o sopro de
grandes calores, que faz com que aquilo que não está vivo não nasça, e o que já nasceu não
cresça mais. Em tupi, existe a expressão rama junto ao substantivo para designar que
ocorrerá para o futuro e existe a expressão rambuera para indicar que algo planejado não
vingou, gerando a decepção. Assim, é o caso em que se transforma o rama (o que será) em
rambuera (o que seria). É a passagem de uma estado de ação para a decepção, é a quebra
de um projeto. Ainda no começo do romance, Iracema também é comparada ao sopro
quente que esteriliza, no caso, o vento dos areais: “O amor de Iracema é como o vento dos
areais, mata a flor das árvores.” Se observarmos também que o sopro, o vento em si são
relacionados, ao contrário do que acontece nesse trecho, ao frescor, então fundem-se duas
coisas opostas em Iracema: o sopro que queima, o vento que mata. Se o relacionarmos com
a questão do mel da andiroba, por exemplo, que tem na doçura o veneno, como já vimos,
ou com as flores que possuem o espinho, percebemos que Iracema é portadora tanto do
prazer como da morte, prazer advindo de seus sentimentos, sua beleza, seu amor, ao mesmo
tempo que possui a morte, por prejudicar, mesmo sem intenção, aqueles que estão ao seu
lado, quando o mel é descoberto. Por grande ironia do destino, a maior vítima desse
paradoxo é a própria Iracema, que possui a doçura do amor, mas (por causa dele) seu
resultado é a morte; ela carrega em si mesma o seu sacrifício, da mesma forma que vários
povos americanos morreram, da mesma forma que a América foi sacrificada para o
colonizador, dito civilizado, sobreviver.

A sequência de perdas e ganhos entre Iracema e Martim fica resumida, já no final do


romance, a uma frase da própria heroína, desanimada com o abandono do amado: “Como a
estrela que só brilha de noite, vive Iracema em sua tristeza. Só os olhos do esposo podem
apagar a sombra em seu rosto” (pág. 82). Antes de conhecer Martim, sua alegria estava
resumida à conjunção com os animais, plantas e a família ao seu redor, era a conjunção
com a natureza como um todo. Depois que o português chegou à tribo dos tabajaras, ele, o
homem civilizado, era a única causa de sua alegria, e sua ausência era um decreto de morte.

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A heroína se uniu ao civilizado, mas, na verdade, jamais se esqueceu de sua pátria, da


natureza que a cerca, que sempre a tratou com os braços abertos e a quem ela sempre pôde
retribuir sem temor. A heroína, mesmo ao lado de Martim, é uma selvagem, que está em
comunhão completa com a natureza, como no momento em que ela amamenta os animais,
numa espécie de reencontro: “ Põe no regaço um por um os filhos da irara; e lhes
abandona os seios mimosos, cuja teta rubra como a pitanga ungiu do mel da abelha. Os
cachorrinhos famintos sugam os peitos avaros de leite” (pág. 83). Os elementos da
natureza possuem uma relação de amizade com Iracema – como no caso da jandaia - ou
até mesmo de maternidade – amamentando as iraras. A comunhão entre eles é completa.
Iracema está completamente fundida ao cenário, não é a índia que se aproxima da natureza,
ela é a própria natureza. Iracema é o sentimento, é a emoção, é a representação da América
exótica que encantou os românticos.
Todos nós sabemos que a descrição dos ambientes está (nas boas obras) relacionada
às características psicológicas dos personagens. Mas, durante o Romantismo, a relação
entre ambiente e personagem recebeu um novo contexto. Até então, era a descrição do
ambiente que provocava determinadas sensações nos personagens, em ligações,
casamentos, muito bem definidos, como entre noite e morte, por exemplo, gerando até
certos clichês. A partir de agora, não é mais o ambiente que gera uma reação no
personagem, mas o personagem, por meio de sua sensações, é que vai gerar o ambiente.
Sendo assim, o mesmo ambiente pode ser descrito de forma entusiasmada ou melancólica,
triste ou alegre, vencedora ou fatal, dependendo do ânimo do personagem relacionado
àquele cenário.
Esse fenômeno acontece várias vezes em “Iracema”. Quando a virgem está triste,
desolada por causa da distância do amado, gera uma paisagem que, se vista com frieza,
muitas vezes não possui melancolia alguma, pelo contrário, é bela, luminosa, gera certa
satisfação, mas como o ânimo da personagem está longe da satisfação, esse ambiente se
torna completamente triste, e somos levados pela tristeza de Iracema, graças à intervenção
do narrador. Não por coincidência, o ritmo das palavras nessas descrições e os termos
utilizados nelas lembra certa lentidão, algo lânguido, que se move a passos lerdos, ou sem
nunca chegar a lugar algum, como uma marcha fúnebre. Assim, um mesmo ambiente

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poderia ser representado por formas completamente diferentes, pois é a alegria ou tristeza
de Iracema que dão o aspecto ao lugar que a cerca e é descrito pelo narrador.

Sendo assim, Iracema possui, reforçados por vários de seus pontos de comparação, o
dom da gracilidade e docilidade, próprios da convenção da mulher, ao mesmo tempo que
possui a habilidade especial, que vai além da destreza própria dos indígenas, mas supera os
limites do ser humano. Ela está fundida à natureza, seus sentimentos e sua força fazem dela
uma ilustre representante da América pura, tendo ela e a natureza que a cerca uma mesma
essência. A submissão de Iracema a seu amado e, por consequência, a seu marido e
colonizador, pode ser percebida em vários passos e terá vários desdobramentos para ela
mesma, conotando várias visões de mundo no romance, em que nos aprofundaremos
adiante.

Capítulo III - Martim e seu processo de indianização

Em relação a Martim, o guerreiro português, o elemento branco da narrativa,


precisaremos de outro itinerário para a sua análise. Enquanto Iracema sempre é, do começo
ao fim do romance, a mesma virgem dos lábios de mel, sempre possui a ligação com sua
origem, sendo aquela que possui a harmonia perfeita com a natureza ao seu redor,
verificamos em Martim um processo, uma transformação. É melhor não usarmos aqui o
termo “evolução”, que denotaria a passagem de um estágio inferior para um estágio
superior, pois não é bem isso o que acontece. Usaremos, então, o termo “transformação”, a
passagem de uma condição a outra, de uma ponto de vista a outro. Assim, durante o
romance, Martim passa da situação de intruso europeu para a de um novo integrante da
nação pitiguara.

Para termos uma idéia do que acontece, o início da história é um momento em que
Iracema, a heroína, é largamente comparada e descrita, retratando sua beleza física e
nobreza. Não só ela como o próprio narrador não se cansam de usar a natureza como

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metáfora, como comparação. Iracema é descrita e comparada como um ambiente, uma


parte da natureza, pois ela é a natureza. Enquanto isso, Martim está longe de ser poético,
chegando até mesmo a ser seco, sem vida. De forma alguma Martim é utilizado como
elemento de comparação em relação aos elementos naturais. Martim é a sombra, o escuro,
que oculta a visão de Iracema, é o intruso, é aquele que invade sem ser percebido e tapa os
olhares para as belezas naturais que estão por toda a parte. A flechada súbita de Iracema é
uma consequência e Martim, num caso de explícito discurso indireto livre, é descrito
poeticamente apenas sob o olhar de Iracema: “branco como a areia; olhos azuis das águas
profundas”. (pág. 15)
É com o tempo apenas, paulatinamente, que percebemos uma mudança no português.
A presença e a proteção de Iracema como que vão catequizar o explorador, e aquele que
veio para colonizar acaba se rendendo ao modo de vida do indígena. É o português que, ao
chegar ao Brasil, não é mais o português, mas está apto a se formar um brasileiro.

A primeira vez que ele usa comparações com a natureza já estamos perto do primeiro
terço do romance, o que é fundamental, pois demonstra quanto Martim demorou para se
unir à ideologia do indígena. “Não, filha de Araquém: tua presença alegra, como a luz da
manhã” (pág. 23), ou então, ainda mais para frente: “ele fica para ver abrir em tuas faces a
cor da alegria, e para sorver, como o colibri, o mel de teus lábios.” (pág. 28), que é a
primeira comparação do herói utilizando a isotopia do aborígine. A partir daqui, Martim
usa outras vezes esse tipo de comparação, não se sente mais tão distante dos elementos que
fazem parte da natureza, já está mais inserido na ideologia indígena, no tratamento que se
dá em relação a vegetais e animais.

Não são poucas, no romance, as comparações feitas de Martim com o mar, as águas,
as ondas, em suma, os elementos marítimos, e principalmente no final do romance. É nesse
momento que Martim está indeciso em relação a seu caminho, o que deveria seguir: ficar
com sua amada Iracema ou voltar aos deleites da Europa. E isso não é à-toa, pois é o mar
que separa Martim de sua origem, é depois do mar que estão seus amigos, companheiros, é
pelas ondas que ele chegou em sua embarcação. É o mar que possui esse caráter ambíguo,
pois é o caminho que liga o Velho e o Novo Mundo, porém, ao mesmo tempo, é o que os

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separa, deixando-os tão distantes e, durante vários séculos, intransponíveis. É o mar que,
assim, serve de ligação e separação entre o mundo de Martim, civilizado, e o mundo de
Iracema, selvagem. Essa angústia entre o voltar e o ficar, entre o civilizado e o selvagem,
vai ser representada várias vezes pelas ondas , que se afastam e voltam ininterruptamente.
Para darmos um pequeno exemplo, já no final do romance, vejamos como o narrador
compara Martim, utilizando o ponto de vista de seu amigo Poti: “o amigo respeita este
silêncio, que ele bem entende. É o silêncio do rio quando passa por lugares profundos e
sombrios.” (pág. 84) Os lugares sombrios fazem relação com a morte de Iracema e lembra
muito um dos salmos bíblicos mais conhecidos: “Mesmo que eu passe pelo vale das
sombras da morte”. Lugares profundos e sombrios podem ser comparados a vales e a morte
já está explícita em Iracema. Martim se utiliza do silêncio, o mesmo silêncio do pajé
Araquém, por exemplo. É o silêncio da reflexão, do pensamento, que tanto será seu
companheiro durante o romance. E, claramente, Martim é, como em outras vezes no
romance, o rio, a água, o meio pelo qual saiu de sua terra natal e chegou ao Novo Mundo, é
o meio de ligação entre o europeu e o selvagem, para formar um novo povo.

Não por coincidência, as vagas retratam exatamente o estado de espírito do guerreiro


português: ele vem e vai, parecendo não ter endereço certo, entre um embalo e outro, entre
Iracema e a pátria.
Assim, mesmo com o “batismo”, momento simbólico da passagem de Martim do
caráter europeu para o caráter pitiguara, que ocorrera momentos antes, Martim não se
esquece de sua terra natal. Logo, Martim não é mais completamente um português, pois
adquiriu até mesmo um nome entre os índios (Coatiabo), vive a par dos costumes
indígenas, graças ao seu amor por Iracema, mas, ao mesmo tempo, não é completamente
um indígena, pois não pode desprezar toda a sua vida do outro lado do oceano. Aí está,
então, ao mesmo tempo, sua “evolução” e seu grande dilema: sua identificação com a
amada Iracema, seus amigos potiguaras e sua terra, mas, ao mesmo tempo, a
impossibilidade de desprezar suas origens. Assim, Martim é uma espécie de híbrido, ele é
uma síntese, divide-se entre o europeu e o índio, entre a “civilização” e a “barbárie”. Essa
síntese, porém, não é ainda totalmente harmoniosa, pois provoca o conflito e a saudade, a
falta em Martim.

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No processo de transformação, que culmina com o batismo, Martim passa ao estágio


de junção entre o elemento português e o elemento indígena; é a miscigenação, que forma o
elemento brasileiro. Depois que Martim e Iracema fogem da tribo tabajara e depois que
pedem licença a Jacaúna para se afastarem da tribo potiguara, o casal, ao lado de Poti,
forma uma espécie de terceira taba, nem tabajara, mais próxima de Iracema, a índia, nem
potiguara, mais próxima de Martim, o branco. É a geração da “raça brasileira”, que se faz
com o batismo, em Martim, e em Iracema, durante todo o doloroso processo de gravidez. É
a consolidação de uma fusão brasílica, a partir dos costumes e características do índio e do
português, geração essa que se completa com a chegada de Moacir.

Martim duro como uma rocha

Martim, algumas vezes, é comparado com pedras, rochedos, minerais ou, até mesmo,
com algumas árvores, mas essas são de tronco grande e duro. É perfeitamente a
masculinidade expressa nas comparações. Martim não pode ser uma ave frágil, tampouco
uma flor, como Iracema, pois ela é a inocência, a delicadeza. Numa sociedade em que os
papéis dos homens e mulheres na sociedade são muito bem definidos, Martim deve ser a
rocha, aquilo que protege, que serve de base, um guerreiro, com sua força, sua flecha e seu
arco, mas, antes de tudo, com sua honra. Essa diferença entre o papel masculino e o
feminino não está, obviamente, apenas em Iracema, mas se espalha por toda a obra de
Alencar.

“É verdade que de “As asas de um anjo” até “Senhora” (...) o peso relativo da voz
da moral masculina dominante se abranda sensivelmente. Mas o corretivo está sempre lá,
ao final.” (PONTIERI, 1988, pág. 84)

Assim, utilizando parâmetros da mitologia clássica, Martim une a figura de Marte,


deus guerreiro, por causa de sua virilidade, as demonstrações de força e coragem que lhe
são inerentes, e de Vênus, por causa de sua educação e civilidade, o que vai aproximá-lo,
algumas vezes, das ações e ideologias de Peri, mas, nesse caso, não é mais o exemplo de

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um “índio com o caráter de um português”, mas um português que se funde às


características do índio.
Iniciaremos falando sobre as comparações com as rochas, aquilo que está firme, que
não sai do lugar e que serve como base para tudo o que lhe está em cima.
Logo no início do romance, Martim é comparado à areia da praia: “Se a lembrança
de Iracema estivesse n´alma do estrangeiro, ela não o deixaria partir. O vento não leva a
areia da várzea, quando a areia bebe a água da chuva.” (pág. 20) A lembrança de Iracema
grudaria no estrangeiro, da mesma forma que a água na areia da praia. Iracema é a água,
líquida, algo móvel, que transita de um ponto a outro com facilidade. Areia que é branca,
como Martim, e é a parte mais próxima do oceano, caminho para a terra natal do português.
Não será essa a única vez que Martim será comparado ou relacionado à areia da praia, da
mesma forma que ele é comparado várias vezes às ondas do mar, seja pelo fato de serem o
portal para a volta para casa, seja por representarem o estado do herói.

“Martim not only represents war (Mars), but the ocean from which he comes (mar,
“sea”); he is repeatdly described as “the warrior of the sea””16 (HABERLY, 1983, pág.
48)

A praia, inclusive, é cenário usado muitas vezes pelo personagem. Mesmo quando
está longe dela, o português tenta chegar pelo olhar, como num momento em que está ainda
na tribo dos tabajaras. “O cristão contempla o ocaso do sol. A sombra, que desce dos
montes e cobre o vale, penetra sua alma. Lembra-se do lugar onde nasceu, dos entes
queridos que ali deixou. Sabe ele se tornará a vê-los algum dia ?”. (pág. 23) O sentimento
de saudade é reforçado pela tristeza da sombra, do ocaso do sol, afinal, como já vimos em
outra parte, o entardecer é a tristeza da alma.
Bem mais à frente, já no meio do romance, a areia da praia serve novamente como
justificativa para as lembranças da amada branca, no outro lado do oceano. A amada é
branca como a areia, último ponto antes do mar, que separa o continente europeu, de onde
ele veio, do americano, onde ele está. Aliás, o mar, que está exatamente entre os dois
pontos, faz parte, coincidentemente, do nome deste personagem histórico: MARtim, como

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se o mar, o estar sempre entre um lado e outro, nunca num ponto de terra firme, já fizesse
parte de sua própria identidade. É claro que o nome do personagem está baseado em
fatores históricos, na figura de Martim Afonso, mas não deixa de gerar uma
correspondência entre o mar e o nome do colonizador.

A partir daqui, começam as primeiras comparações feitas pelo próprio português.


Aliás, a própria descrição dele é muito mais objetiva, com poucas metáforas por parte do
narrador. A comparação e a metáfora são muito frequentes na linguagem indígena, na
expressão do selvagem. Conforme o estrangeiro deixa-se absorver pelo indígena, ele utiliza
e é utilizado pelas metáforas. Absorver a linguagem da metáfora é absorver o elemento
indígena, pois a linguagem conotativa, tão comum nos idiomas de civilizações primitivas,
se faz a nova visão de mundo do guerreiro português.
Logo após sua primeira comparação, que nós já vimos, Martim faz outra, no dia em
que Caubi chega, para ajudá-lo a voltar para a tribo dos potiguaras. “ – As flores da mata já
abriram aos raios de sol; as aves já cantaram: disse o guerreiro. Por que só Iracema curva
a fronte e emudece ?” (pág. 27) Enquanto toda a natureza está acordada e alegre, por que
Iracema está triste ? É interessante notar também que são usadas, como referências, as
flores, que “já abriram aos raios de sol”, e as aves, que “já cantaram”. Conforme vimos,
esses são temas recorrentes na comparação de Iracema com os elementos da natureza.
Assim, a natureza, principalmente os grupos que estão mais relacionados à heroína,
demonstram toda a sua vitalidade. Enquanto isso, ao contrário, Iracema, representante do
estado natural, está em tristeza profunda.
Voltando para as comparações com as rochas, observamos o seguinte trecho no
momento de despedida entre Martim e Iracema: “Uma lágrima correu pela face guerreira,
como as umidades que durante os ardores do estio transudam da escarpa dos rochedos.”
(pág. 31) Martim é o rochedo, que sofre com os ardores do estio, a separação em relação a
Iracema. A idéia de Iracema é novamente relacionada ao calor, ao sol, neste caso ao calor
excessivo, o estio, enquanto Martim é novamente a rocha.
Alguns capítulos depois, quando Martim se encontra com seu amigo Poti, para
voltarem ao campo dos potiguaras, Iracema os acompanha, o que causa desconforto,

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Trad.: “Martim não representa apenas a guerra (Marte), mas também o oceano de onde ele veio (mar, sea)

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principalmente por parte do guerreiro Poti. O guerreiro português interpela sua amada:
“Quanto mais afunda a raiz na terra, mais custa arrancá-la. Cada passo de Iracema no
caminho da partida é uma raiz que lança no coração de seu hóspede.” (pág. 49) Neste
momento, há a junção de duas das principais comparações feitas aos dois heróis: Iracema é
a planta, reprodutora, enquanto Martim é o solo, a base inflexível, aquilo que serve de
sustento e alimento para o vegetal. É ele que serve de base para quem estiver sobre ele,
como uma planta, e dali sai sua fonte de vida. Neste aspecto, Iracema é duplamente
dependente em relação ao português, pois lhe serve de chão e de alimentação.
Quando já sabe que não pode mais ficar sem a virgem dos tabajaras, Martim a leva e
fica atônito diante da nova situação: “Martim ficou mudo e triste, semelhante ao tronco
d´árvore a que o vento arrancou o lindo cipó que o entrelaçava”. (pág. 51)
Para reforçar a “geologia” de Martim, a própria Iracema se comparou com uma ostra
fixa no rochedo, durante o batismo do amado, em tom profético: “Como a ostra que não
deixa o rochedo, ainda depois de morta, assim é Iracema junto a seus esposo” (pág. 68). O
rochedo é o ambiente natural de algumas ostras, local onde elas passam toda a sua vida,
fazem sua alimentação, reprodução, e sem o qual ela a sobrevivência é seguramente
prejudicada.
Mais uma vez, é feita uma relação entre Martim e as areias da praia. Agora, não é
mais o mesmo Martim eufórico do início do relacionamento com Iracema. É o Martim
invadido pela saudade, o guerreiro português que se distanciou da valente tabajara. Para
refletir um pouco e dissipar sua tristeza, ia até o morro de Jacarecanga, resumidamente
descrito pelo narrador: “Do seio das brancas areias escaldadas pelo ardente sol, manava
uma água fresca e pura; assim destila a alma do seio da dor lágrimas doces de alívio e
consolo.” (pág. 74) O cenário possui relação direta com o estado do personagem. Como já
vimos, o guerreiro português é a areia branca, o mineral, a pequena rocha, o solo, escaldada
pelo ardente sol dos trópicos, da terra dos indígenas, enquanto passava por ela (a areia) a
água fresca e pura, comparada às lágrimas, que talvez estivessem reprimidas na alma do
guerreiro.

ele é frequentemente descrito como “guerreiro do mar”.”

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É patente a razão da relação entre Martim e a areia tantas vezes no romance.


Primeiramente, é um mineral, duro, resistente, que forma o chão, a base, aquilo que
sustenta o que lhe está em cima. Não podemos esquecer também que a praia, onde fica a
areia, é o último ponto antes do oceano, meio de ligação e separação entre o mundo
europeu, de sua origem, e o mundo americano, onde encontrou sua amada. A areia também
é branca, mesma cor do colonizador português e local onde fica a praia, ligação com o mar,
de onde ele veio e por onde ele vai, e não podemos esquecer que a praia, lugar da areia, o
litoral, é a região que coube aos potiguaras, os amigos do mesmo Martim, o que é motivo
de provocação dos tabajaras dentro do próprio romance e motivo do próprio nome da tribo,
como o próprio autor, em suas notas, determina: os potiguaras são os “comedores de
camarão” (poty = camarão; guara = comedor). Assim, a praia, tão usada para representar
Martir é o lugar da habitação dos potiguaras, seus amigos, reforçando a ligação entre os
dois elementos: Martim e Poti. Da mesma forma, os potiguaras são um grupo indígena,
pertencente, assim, à natureza do Novo Mundo, mas são os índios mais próximos do litoral,
eles moram na praia, têm contato direto com o mar, que é de onde vem o estrangeiro. Sendo
assim, os índios mais próximos da civilização trazida pelo europeu estão voltados para o
mar.

Porém, Martim não deve ser apenas forte como a rocha, inflexível, aquele que serve
de base, em vários aspectos, para os que estão ao redor (principalmente para a esposa),
como poderemos resumir, no momento em que Martim é batizado. É aquele que não é
levado nem se deforma por qualquer ventania. Ele deve também ser duro como um tronco,
uma árvore imensa, que se impõe em seu ambiente. É isso o que será visto nas próximas
comparações e metáforas feitas em relação ao português.

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O rijo tronco Martim

Logo no começo do romance, Iracema demonstra seus sentimentos para Martim e o


compara a um tronco, em trecho que nós já verificamos no capítulo sobre Iracema: “A flor
da mata é formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco onde se enlace. Iracema não
vive n´alma de um guerreiro” (pág. 23). Algumas flores só conseguem sobreviver se estão
presas a um tronco, que lhe oferece moradia e até mesmo alimentação. É a relação entre
Martim e Iracema, pois, enquanto o guerreiro branco serve para remanso da amada, ela é a
beleza e a simplicidade da flor, como já havíamos identificado no capítulo sobre Iracema.
Temos, assim, a prática, nessa linha de pensamento, do parasitismo, conforme foi explicado
no capítulo sobre Iracema. A índia se coloca nessa situação.
Depois, quando os dois já estavam bem mais próximos, Martim é a palmeira, árvore
grande, majestosa, que serve até mesmo para gerar sombra e refúgio para o que está ao
redor. “As falas da virgem ressoaram docemente no coração de Martim. Assim ressoam os
murmúrios da aragem nas frondes da palmeira.” (pág. 37) Martim é a enorme palmeira,
enquanto Iracema é a aragem, o vento que sopra. O que pode nos parecer um pouco
estranho é o fato de utilizar a palmeira, uma árvore própria dos trópicos, não da Europa. A
palmeira não é uma árvore muito típica dos locais temperados, mas apenas dos trópicos, o
que representa já a maior aproximação de Martim com o elemento selvagem, graças
claramente a Iracema.
Para reforçar as idéias de resistência e força, Martim é o jatobá, onde se apoiam o
amigo e sua esposa: “Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatiabo entre o
irmão e a esposa: seus ramos abraçam os ramos do ubiratã, e sua sombra protege a relva
humilde.” (pág. 68) O jatobá é uma árvore pujante, majestosa, entre o ubiratã (Poti) e a
relva humilde (Iracema). É importante perceber o fato de Poti também ser representado por
uma árvore grande, o ubiratã, cuja força está no próprio nome (em tupi, ybyrá = árvore; atã
= dura), ao mesmo tempo que Iracema é a relva humilde, ou seja, aquilo que está abaixo e é
mais frágil. Demonstra-se, assim, um modelo social com divisões bem definidas entre os
sexos, bem ao gosto da ideologia monárquica e patriarcal do século XIX, tomando como
base o costume indígena, que serve de fundo para o romance. Iracema é apenas a relva

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humilde, que se submete e sobrevive do que lhe sobra de sol e água das grandes árvores,
que é o caso de Martim, alta árvore e tronco, que se anuncia majestosa pela própria altura,
pela resistência e força de seu tronco.
Para exemplificar a distinção entre sexos e idades em relação à função dos
componentes familiares para a sociedade ideal para Alencar, vejamos a discordância do
então senador com uma viagem do imperador por problemas de saúde: “A substituição do
imperador por sua filha, a Princesa Isabel, então com 25 anos, provocava a maior
resistência ao temperamento e às convicções conservadoras de Alencar.” (MAGALHÃES,
1977, pág. 275)
Um pouco antes, o jatobá já havia sido utilizado como ponto de referência para o
lugar de nascimento de Poti. “Poti levou o cristão aonde crescia um frondoso jatobá, que
afrontava as árvores do mais alto píncaro da serrania, e quando batido pela rajada,
parecia varrer o céu com a imensa copa. / -Neste lugar nasceu seu irmão: disse o
pitiguara. / Martim estreitou ao peito o tronco amigo. / - Jatobá, que viste nascer meu
irmão Poti, o estrangeiro te abraça.” (pág. 55) Assim, por ser o lugar de nascimento de seu
colega, Martim trata o jatobá com um caráter especial. É mais que uma árvore, é a árvore
do guerreiro Poti. É interessante a escolha do jatobá como árvore do local de nascimento de
Poti, pois como deve ser um homem, um guerreiro, o jatobá “quando batido pela rajada,
parecia varrer o céu com a imensa copa.” Ou seja, a rajada forte, o vendaval que poderia
destruir é exatamente o que dá força ao jatobá, ou seja, ao guerreiro, ao homem, aquele que
não teme adversidades, enfrenta-as. Em vez de se quebrar com a tempestade, ele se reforça
e parece varrer o céu, pois deve-se contrapor à fragilidade, que seria, nesse ponto de vista,
típica da mulher, que é a ave colorida, leve como o colibri e flor de caule fino e frágil.
Alguns episódios depois, Poti tenta convencer o branco português a ficar na taba,
enquanto o amigo parte para um combate: “Meu irmão, disse o chefe, teu pé criou raiz na
terra do amor; fica. Poti voltará breve.” (pág. 71) O líder potiguara se refere claramente à
solidão que Iracema sentiria se o guerreiro fosse junto com Poti. Ele não é mais apenas um
homem, ele criou raiz, da mesma forma que Iracema havia criado raiz no coração
estrangeiro, como se fosse uma árvore, que não pode mais sair do lugar.

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Mas agora Martim está triste. Amou a índia Iracema, fez amigos como Poti, mas não
esquece sua terra natal, tem saudades dela. A tristeza invadiu sua alma e ele nem pode mais
demonstrar o mesmo sentimento para sua esposa. : “O imbu, filho da serra, se nasce na
várzea, porque o vento ou as aves trouxeram a semente, vinga, achando boa terra e fresca
sombra; talvez um dia cope a verde folhagem e enflore. Mas basta um sopro do mar, para
tudo murchar.” (pág. 74) Como o imbu, ao chegar a estas terras, Martim se entusiasmou,
teve esposa, colegas e filhos, porém, com a simples lembrança de sua origem, ele murchou,
ele desanimou, bastou um “sopro do mar”, sopro que é algo vago, como uma nuvem, um
pensamento, uma lembrança; e o “mar” é o lugar por onde ele veio, da Europa para as
terras brasileiras. O “sopro do mar”, portanto, faz perfeitamente a relação com as
lembranças de outras terras, da Europa, do outro lado do oceano; foi o que fez Martim
“murchar”, como se fosse uma flor, relação que não é comum com o guerreiro português.
Porém, nesse trecho, Martim mostra sua tristeza, sua sensibilidade, o que é, pelo romance e
pela convenção, mais próximo de Iracema, que é várias vezes comparada às flores no
romance, como nós já vimos.

A relação entre os dois amantes já está completamente prejudicada quando, neste


longo trecho, a própria Iracema compara seu amado com o jacarandá, outra árvore
conhecida pela robustez: “Não vêem teus olhos lá o formoso jacarandá, que vai subindo às
nuvens ? A seus pés ainda está a seca raiz da murta frondosa, que todos os invernos se
cobria de rama e bagos vermelhos, para abraçar o tronco irmão. Se ela não morresse, o
jacarandá não teria sol para crescer tão alto. Iracema é a folha escura que faz sombra em
tua alma; deve cair, para que a alegria alumie teu seio.” (pág. 77) No exemplo, o formoso
jacarandá (ou Martim) se eleva às nuvens, enquanto a verde rama (ou Iracema) se humilha
e deve se humilhar por ele, mas não para por aí, pois além de humilhar-se, a raiz da murta
deve se sacrificar para o desenvolvimento do jacarandá. Aliás, a murta foi exatamente a
planta utilizada por Martim para prestar homenagem à esposa em seu enterro. Além de
humilhar-se, a mulher se sacrifica pelo amado, bem ao gosto da divisão na sociedade
patriarcal, em que o elemento feminino se encontra, muitas vezes com o seu próprio
consentimento, em posição dependente e submissa, da mesma forma que a selvagem (a

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índia simbolizada pela raiz) deve ser sacrificada para o civilizado (formoso jacarandá),
insinuando aquilo que ocorrerá no final do romance e o que aconteceu durante a nossa
História: o sacrifício do selvagem para a conquista do europeu. Esse sacrifício em favor do
civilizado não ocorre apenas em Alencar, obviamente, mas em grande parte dos autores da
época, pois quase todos estão relacionados à ideologia imperial e patriarcal, desde os
primeiros teóricos do romantismo brasileiro.

“A função da poesia como fator de afirmação de classe evidencia-se no momento em


que Magalhães lamenta, nas poesias de Souza Caldas, a glorificação do homem selvagem
em detrimento do civilizado.” (CUNHA (tese de doutoramento), 2000, pág. 50)

Já no final do romance, Martim é novamente comparado a uma árvore forte, o


ubiratã, quando sua esposa falece. Porém, temos agora a imagem do ubiratã que está
vulnerável, cuja força parece titubear diante da mágoa que aflige sua alma e Poti se torna
fonte de consolo. “Martim sentiu quanto um amigo verdadeiro é precioso na desventura; é
como o outeiro que abriga do vendaval o tronco forte e robusto do ubiratã, quando o
cupim lhe broca o âmago.” (pág. 85) A comparação remete um pouco ao conjunto de
comparações usado após o batismo de Martim (Coatiabo). Poti é o amigo, que está sempre
ao lado do português. Assim, para reforçar traços de lealdade e humildade já expostos, o
narrador retoma a relação entre os amigos como fundamental para a vida de um honrado
varão. Poti é o outeiro que protege Martim do cupim da tristeza, do luto, enquanto ele, é
claro, é o tronco rígido, que não se verga, mesmo sob a intensa tempestade do vale da
morte. Não se deve esquecer também de que o ubiratã é também usado como árvore
símbolo de Poti, reforçando assim a relação entre os dois amigos.
Martim, sendo um tronco, não se entrega, porém isso não quer dizer que não saiba
chorar, pois os fortes também são capazes de chorar, em silêncio, compenetrado, quando a
saudade, os sentimentos invadem. Quando volta ao Ceará, ao mesmo ambiente em que sua
amada havia falecido, “nesse instante seu coração transmudou, como o tronco do jataí nos
ardentes calores, e orvalha sua tristeza de lágrimas abundantes.” (pág. 86) Porém, mesmo
mostrando suas lágrimas, elas não são esparramadas pateticamente, mas ele chora quase em
silêncio, tanto que as lágrimas caem em forma de orvalho, gota a gota, escorrendo

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caprichosamente, mesmo que seu coração esteja transtornado: “orvalha sua tristeza de
lágrimas abundantes.” Desse modo, o controle das emoções é traço fundamental do
guerreiro. Escancarar seus sentimentos é impróprio; ele deve colocar em preponderância o
elemento racional. Ele pode sentir, de fato, como um ser humano, mas deve ter controle
sobre as emoções, não manifestá-las de forma espalhafatosa.

Portanto, em todo o desenvolvimento do romance, percebemos que Martim deve ser


o tronco forte, aquele que não se verga diante dos mais forte vendaval. É forte, é majestoso
e viril, sua presença impõe respeito, como deve ser a posição do homem na sociedade
patriarcal do Brasil Império. Ele sente, sofre e até mesmo chora, mas jamais sua emoção
deve ser render à razão, pois esta é a nobreza do homem. É a serenidade e a razão que
acompanham a liberdade, a beleza, a docilidade e o encantamento da mulher, mais
relacionada ao elemento selvagem. É o homem que apóia a mulher, em posição inferior na
convenção; da mesma forma que é o civilizado que controla a selvagem, para formar depois
o híbrido, na figura de Moacir.

Outras relações de Martim

É interessante verificar, a partir de agora, algumas relações que não fazem parte do
grupo dos minerais ou das árvores grandes. Começaremos por um caso interessante, em que
o português é diretamente comparado ao colibri, pássaro leve que flutua no ar, que foi
usado também como ponto de comparação com Iracema. E a comparação não acontece
apenas uma vez no romance. Na primeira ocasião, Martim propõe ficar ao lado de Iracema
na aldeia dos tabajaras: “ele fica para ver abrir em tuas faces a flor da alegria, e para
sorver, como o colibri, o mel de teus lábios.” (pág. 28) É óbvio que o ato de sorver o mel,
por parte do colibri (ou Martim), possui certo conteúdo erótico, relacionado ao beijo. Ao
mesmo tempo, Iracema une também a face e a flor, aspecto que foi usado várias vezes para
representá-la. Ao mesmo tempo, temos um dos vários casos em que Iracema é aquela que
possui o mel, possui a doçura, como nós já vimos no capítulo anterior. Aliás, mais do que
isso, ele fica para sorver o mel dos lábios de Iracema, cujo nome, pela explicação do autor,
significa “lábios de mel”. Esse trocadilho faz com que Martim não sorva apenas seus

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lábios, mas a própria Iracema, a heroína indígena, pois em seus lábios está seu próprio
nome. Na segunda ocasião, quando os dois estão já distantes um do outro, a tristeza de
Martim é comparada à tristeza do colibri: “O colibri sacia-se de mel e perfume; depois
adormece em seu branco ninho de cotão, até que volta no outro ano a lua das flores.
Como o colibri, a alma do guerreiro também satura-se de felicidade, e carece de sono e
repouso.” (pág. 68)
Há também diferenciações nas relações de Martim com a natureza, como no
momento em que ele se nega a levar Iracema consigo para a tribo potiguara: “O
estrangeiro partindo-se de teus campos, virgem tabajara, não deixará neles rasto de
sangue, como o tigre esfaimado” (pág. 38). O português se distancia da idéia de sangue,
nocividade, existente no tigre esfaimado, deixando claro que seu caráter não aceita o
confronto desnecessário, conforme as regras cristãs que determinam sua vida. Ao mesmo
tempo, é interessante notar que o guerreiro rechaça o tigre, animal tão comparado a Irapuã,
chefe tabajara pretendente de Iracema, que possui total aversão ao branco e cuja
comparação com o tigre verificaremos no desenvolvimento do trabalho.
No meio do romance, ocorre um fato importantíssimo no processo de indianização de
Martim, pois ele adquire um raciocínio, uma estrutura de pensamento que o aproxima de
seus companheiros aborígines. Na pág. 50, enquanto Martim fugia para a companhia dos
potiguaras, Iracema insistia em que ele já não podia mais se separar dela, pois não era mais
a virgem de Tupã. Pensando ser um momento de insensatez da índia, o guerreiro branco se
utiliza de uma expressão tipicamente relacionada aos povos primitivos: “-Iracema te
acompanhará, guerreiro branco, porque ela já é tua esposa. / Martim empalideceu. / - Os
maus espíritos da noite turbaram o espírito de Iracema.” (grifos meus) A frase em
destaque foi feita pelo próprio Martim. Diante do possível devaneio da índia, o português
tenta explicar o que disse a partir de uma confusão feita por um espírito da floresta no juízo
de Iracema. São os espíritos da floresta influenciando diretamente no desenvolvimento dos
fatos. É quase como o pajé Araquém explicando qualquer fato inexplicável. É Martim, o
português, utilizando uma linguagem mítica, lendária que não possuía, de jeito algum, no
início do romance; é sinal inegável dessa modificação, dessa transformação que ocorre em
Martim no decorrer do romance. Martim se indianiza. Não só Martim como, por
consequência, todo o elemento europeu, que se funde para formar o “brasileiro original”.

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Para demonstrar essa interação entre o colonizador e o selvagem, agora é o momento


em que Martim é comparado ao gavião branco, quando ele, Iracema e Poti visitam o velho
Batuireté. Quando o português chega à cabana do ancião, fica em frente a ele, que solta
suas últimas palavras: “Tupã quis que estes olhos vissem antes de se apagarem, o gavião
branco junto da narceja.” (pág. 63) Numa premonição, Batuireté percebe que a vinda do
branco (aliás, “gavião branco”) mudaria radicalmente a vida de seus colegas. Martim é o
gavião, ave imponente, de rapina, que voa alto, que se protege e protege aqueles que estão
ao lado. Por outro lado, o gavião também é exímio predador, está no topo de grande parte
das cadeias alimentares das quais faz parte. Sua função primordial é se apoderar dos
outros, da mesma forma que o elemento colonizador se apodera de outras terras. Martim,
mesmo “sem querer”, faz parte desse grupo de predadores.
Algumas páginas depois, após o batismo de Martim, o guerreiro português e sua
amada tabajara não possuem mais a mesma relação; o europeu distanciou-se da índia. Esse
afastamento possui relação direta com a saudade do português em relação à sua terra e a
tristeza lhe invadia a alma: “nem a luz que vinha do céu, nem a luz que refletia da terra,
espancaram a sombra n’alma do cristão. Cada vez o crepúsculo era maior em sua fronte.”
(pág. 70) A luz que vinha do céu são os astros, principalmente o Sol, e a luz que reflete na
terra é Iracema, formando, assim, um paralelismo entre a índia e o astro-rei (no caso, astro-
rainha), em que Iracema é responsável por dar vida ao português, dar luz, dar orientação
(lembremos que a posição do Sol, dos astros em geral, era largamente utilizada,
principalmente nessa época, para orientação de exploradores ultramarinos, como o próprio
Martim). Porém, toda a luminosidade, o esplendor do Sol-Iracema era suficiente para tirar a
tristeza do guerreiro português, que tinha em sua alma o crepúsculo, o pôr do Sol, a morte.
Logo, a luz que incide no europeu segue de fora para dentro, não vinga, ao contrário da
sombra do europeu, seu crepúsculo, que segue de dentro para fora, que prevalece, e isso
ocorre pois a tristeza de Martim é mais forte que a beleza, o esplendor do ambiente e de
Iracema, que não conseguem convencer o português a desprezar sua angústia. É importante
percebermos que uma característica da natureza, o crepúsculo, serve de metáfora das
condições psicológicas do personagem, da mesma forma que, como já vimos, em outra
parte do romance, a tarde é “a tristeza da alma”, ou seja, aqui ocorre exatamente o processo
inverso, isto é, um aspecto psicológico humano, a tristeza, atribuído a um fenômeno da

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natureza, o entardecer. Sendo assim, ocorre novo paralelismo entre o elemento humano e o
elemento da natureza, em que os dois se interpenetram, formando uma coisa só. A tristeza,
que é um aspecto humano, pode perfeitamente fazer parte do elemento natural, e o
crepúsculo, fenômeno da natureza, que também, por sua vez, pode fazer parte dos aspectos
psicológicos, colocando natureza e cultura em pé de igualdade, no mesmo nível.

O mar, de onde o português veio, imensidão que o separa de sua terra natal, é usado
várias vezes para representar seu estado de espírito, como já pudemos perceber. No fim do
romance, Martim é comparado pelo próprio Poti ao mar e ao céu: “Tu és grande como o
mar e bom como o céu.” (pág. 70) Poucas páginas depois, Martim fica perdido, observando
o mar: “Agora, só busca as praias ardentes, porque o mar que lá murmura vem dos
campos em que nasceste; e o morro das areias, porque do alto se avista a igara que
passa.” (pág. 76). A sua indecisão, que se arrasta por boa parte do romance lembra os
momentos em que o português está pensativo, deitado na rede, balançando entre um lado e
outro, da mesma forma que as ondas que vão e voltam, aproximando-se e afastando-se da
areia da praia, como se pulasse entre a terra natal e a índia. A indecisão está longe de ser
uma característica previsível num herói representado pelo jacarandá, pelo tronco, pela
rocha, que deveria ser firme em suas convicções, representante da força e da razão.
Além de tronco forte e vigoroso, Martim é reprsentado também pela cana, tipo
especial de tronco, muito mais frágil e com menor densidade, capaz de vergar sem se
quebrar, ou seja, possuidor de elasticidade, consegue se adaptar facilmente às intempéries
que o afligem, porém aqui ele não é usado como símbolo de força e resistência, mas
significa doçura, simplicidade. Vejamos o trecho referido: “Teu lábio secou para a esposa;
assim a cana, quando ardem os grandes sóis, perde o mel e as folhas murchas não podem
mais cantar quando passa a brisa.” (pág. 76). É interessante notar como o mel, usado
várias vezes para representar a delicadeza de Iracema, é usado para ilustrar o estrangeiro.
Mas essa doçura que está tão relacionada a Iracema não falta em Martim, mas ocorre
apenas de outra forma, isto é, em forma masculinizada. Martim é (ou pelo menos era)
carinhoso com sua esposa, mas não deve nunca perder sua fortaleza. Ao mesmo tempo,
Martim perde mais do que sua voz, perde seu canto, mais um item relacionado à heroína
selvagem. Canto mavioso como da jandaia, amiga e companheira da esposa, e que tanto

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representa a relação dela com a fauna e os movimentos da natureza. É esse canto que se
cala para a amada, da mesma forma que o canto da jandaia se calou por alguns momentos; é
o canto que demonstra a relação de Iracema com alguém, e que não existe mais entre
Martim e sua amada. A relação entre os dois, na verdade, já não existe mais, ou melhor,
existe, mas já não possui a harmonia do canto, a harmonia da música. Assim, a música e o
canto fazem a ligação entre o português e a selvagem, da mesma forma o mel, que ilustra a
doçura de Iracema (e às vezes é venenoso) e está em seu próprio nome, já não se apresenta
mais, não há mais a sensibilidade do canto nem do mel entre os dois.

Voltando para a sua aldeia, enquanto Iracema sofria praticamente sozinha ao lado do
recém-nascido Moacir, o guerreiro Martim percebeu, com uma mistura de saudade e
apreensão, de quem deveria chegar rápido. Os sinais da natureza lhe indicavam a
proximidade do caminho: “Quando Martim viu o que desejava, tornou aos campos da
Porangaba, que ele agora trilha. Já ouve o ronco do mar nas praias do Mocoripe; já lhe
bafeja o rosto o sopro vivo das vagas do oceano.” (pág. 84) O ronco do mar e o sopro das
vagas mostram a ele que está chegando ao encontro de sua esposa. A utilização desses dois
fatores naturais parecem aumentar a curiosidade de Martim e, propositalmente, o suspense
do leitor. O interessante é como o ronco do mar e o sopro das vagas - o mar e as vagas
sempre estiveram relacionadas a Martim durante o romance - comuniquem a distância em
relação à aldeia, mais uma vez ligados à figura de Martim. Pudera, ele retorna ao campo
dos potiguaras, seus colegas, que são os habitantes da praia, mas essa nova relação entre o
guerreiro português e o mar não deve ser desprezada, pois o mar e suas ondas, mais uma
vez, ligam-se a Martim, formando uma comunicação.
Depois do falecimento de sua amada, Martim sente seu coração saltar, está sofrendo,
emocionado, mas não dá a si o direito de qualquer reação desesperada, sabe racionalizar a
dor, controlá-la, seu pranto é silencioso, e ele tenta acalmar os saltos de seu coração, que
salta como o poraquê: “O cristão parou calcando a mão no peito para sofrear o coração,
que saltava como o poraquê.” (pág. 84) O guerreiro Martim quer controlar o bater feroz do
coração no peito, como o poraquê, que pula insistente e desesperadamente, quer demonstrar
a razão sobre a emoção, mesmo nos instantes mais difíceis, mantendo o seu status de
homem civilizado e racional. O português pode demonstrar que está emocionado, que está

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sofrendo, pode até mesmo deixar aparecer uma ou duas lágrimas sobre o rosto, mas deve
sempre permanecer no controle dessas emoções, nunca pode demonstrar desespero, jamais
se exacerbar, obedecendo ao código civilizado, conforme reforça Moraes (Entre Eros e
Narciso, pág. 164)
Martim não deixa de demonstrar sua tristeza, não esconde sua saudade, mas sempre o
faz da maneira equilibrada. Quando o guerreiro português retorna ao litoral do Ceará, junto
com seu filho Moacir, é visível seu sentimento: “Era sempre com emoção que o esposo de
Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a
formosa tabajara.” (pág. 87) O local, as folhas verdes - elemento da natureza, como
Iracema - serviam agora como fator de lembrança, eram elas que faziam a ligação entre o
guerreiro português e a índia já falecida. Da mesma forma, fez a murta quando o guerreiro
depositou suas folhas sobre o jazigo da virgem: “Martim quebrou um ramo de murta, a
folha da tristeza, e deitou-a no jazigo de sua esposa.” (pág. 86) Assim, a murta fazia a
ligação entre a índia e o guerreiro português, a partir do símbolo, reforçando sua lembrança.
Não foi a única vez que a murta foi utilizada no romance, mas já foi vista a referência à
mesma planta em outro trecho, quando a índia se humilha diante do guerreiro, justificando
e antecipando o seu sacrifício: “A seus pés ainda está a seca raiz da murta frondosa, que
todos os invernos se cobria de rama e bagos vermelhos, para abraçar o tronco irmão. Se
ela não morresse, o jacarandá não teria sol para crescer tão alto.” (pág. 77) Claramente, o
jacarandá é Martim, árvore enorme, imponente, enquanto Iracema é a murta, o ramo, planta
rasteira; como se isso não bastasse, a própria Iracema diz que é preciso que a murta morra,
para que o jacarandá fique ainda mais forte. Assim, a mesma planta que Martim deposita
sobre a cova de Iracema é aquela com a qual a própria Iracema se compara, colocando-se
em situação de sacrifício, como se a planta depositada sobre a cova de Iracema refletisse
seu sofrimento e sua humilhação. Aliás, a murta não é uma planta exclusiva do
conhecimento indígena, mas os poetas gregos a usavam para ofertar a seus mortos, sendo
usado assim, na morte de Iracema, um vegetal de conhecimento tanto do europeu civilizado
como dos indígenas de terras tropicais.
Devemos nos aprofundar nesse momento em relação à transição existente em Martim
durante todo o romance. Se, no começo, ele era o estrangeiro que se distancia inteiramente
do ambiente americano, chegando até mesmo a realizar a quebra da harmonia, aos poucos

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ele vai se juntando a ele. Aquela que se dedica a mostrar o caminho para que essa
conjunção aconteça é claramente Iracema, que, em contrapartida, recebe traços de
civilização durante o romance.
A comparação e a metáfora não foram escolhidas à toa para a análise do romance.
Sabemos todos nós que são fatores características dos idiomas indígenas. Os selvagens
absorvem o ambiente que os cerca, no caso, a natureza, ou seja, pássaros, animais terrestres,
vegetais e, a partir desses dados, constroem boa parte de seu vocabulário, suas fontes de
comparação. Sabemos também que a linguagem demonstra um bom conteúdo de visão de
mundo de determinada sociedade, e aprender uma língua é indiretamente aprender e
compreender um conjunto de ideologias desse povo. Portanto, quando são usadas as
comparações tão próprias das linguagens indígenas, é da visão de mundo do selvagem de
que estamos nos aproximando. Por exemplo, a natureza não é mais um cenário frio, mas
uma personagem com vida própria, em que cada fator complementa a experiência de vida:

“A língua dos índios alencarianos é rude e simples, mas guarda no seu léxico e na sua
pronúncia uma poesia, essa ligada aos elementos de motivação linguística, que, no
romance, é inspirada nos próprios elementos da natureza exuberante com a qual pinta o
Brasil.” (MARTINS (tese de doutoramento), 2005, pág. 125)

Pois bem, é esse o processo que acontece com Martim. No início do romance, o
estrangeiro usa uma linguagem direta, objetiva, sem espaço para sentido figurado. A
primeira comparação demora a ser feita - apenas na página 23 - , quando ele já possui certa
intimidade com Iracema, que demonstrava seu desagrado com a futura partida do
português: “Não, filha de Araquém: tua presença alegra, como a luz da manhã” (pág. 23).
A partir daí, o conjunto de metáforas usadas por ele começa a aumentar, da mesma
forma que ele começa a se fundir, cada vez mais, com as ideias e costumes selvagens, tanto
com a ajuda de sua amada Iracema, quanto com a ajuda de seu amigo Poti. Quando Martim
foge com Iracema para o campo dos potiguaras, as comparações de Martim aumentam
consideravelmente. Ele não é mais o europeu “plano”, mas já está mesclado com os

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aborígines, já forma um híbrido, determina o que seria a raça brasileira, a fusão do branco
com o indígena.
O auge dessa fusão se dá em três momentos: o batismo de Martim, o nascimento de
Moacir e o batismo de Poti.
Primeiro, no “batismo” de Martim: a partir de então, ele é Coatiabo, integrante da
sociedade selvagem, ao mesmo tempo que não deixa de ser português. Aliás, como retrata o
próprio autor, “coatiabo” significa exatamente “aquele que foi pintado”, ou seja, aquela
folha que estava em branco, lisa e que recebeu o desenho, o sacramento dos indígenas.
Como o próprio narrador expressa no parágrafo anterior ao começo do batismo: “O
estrangeiro, tendo adotado a pátria da esposa e do amigo, devia passar por aquela
cerimônia, para tornar-se um guerreiro vermelho, filho de Tupã.” (pág. 67) Sendo assim, a
partir daquele momento, Martim não seria mais simplesmente o elemento branco, cristão,
mas teria também o estigma do americano, filho de Tupã, pois fundia as virtudes e
grandezas das duas nações. Durante a cerimônia, Martim recebe vários desenhos em seu
corpo, cada um deles simbolizando um aspecto da natureza: no rosto pintou-se uma flecha,
objeto relacionado à guerra e ao guerreiro; no braço foi pintado o gavião, ave forte e
imponente, como já vimos durante o texto, possuidora da força com a qual o estrangeiro cai
sobre o inimigo; no pé esquerdo, a raiz de um coqueiro, árvore alta, que não cede sequer
aos maiores vendavais; no pé direito, uma asa, relacionada à velocidade, sagacidade do
guerreiro selvagem. É importante perceber que um dos aspectos de comparação é a abelha,
pintada por Iracema: “Assim como a abelha fabrica o mel no coração negro do jacarandá,
a doçura está no peito do mais valente guerreiro”, juntando assim a força, já citada muitas
vezes em Martim, por meio do jacarandá, e a doçura, o que o aproxima ainda mais de sua
amada Iracema, que possui a doçura até no próprio nome. E assim prosseguem as
homenagens: a cobra de duas cabeças é como a amizade entre Poti e Coatiabo; a ostra no
rochedo é a esposa unida ao marido; o jatobá na floresta é o guerreiro entre o amigo e a
esposa. Assim, depois do cerimonial, o guerreiro português está pintado com vários
elementos da natureza, que fazem parte do cotidiano de uma tribo (e que já foram vistos
durante o romance, em diversas comparações), ao mesmo tempo em que são glorificadas
qualidades próprias da sociedade patriarcal, como a família. Para reforçar o último aspecto,
segue o discurso feito por Poti antes de iniciar o cerimonial: “O guerrreiro sem a esposa é

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como a árvore sem folhas nem flores: nunca ela verá o fruto. O guerreiro sem amigo é
como a árvore solitária que o vento açouta no meio do campo: o fruto dela nunca
amadurece. A felicidade do varão é a prole, que nasce dele e faz seu orgulho; cada
guerreiro que sai de suas veias é mais um galho que leva seu nome às nuvens, como a
grimpa do cedro”. (pág. 66) Da mesma forma, com o “batismo”, Martim já faz parte da
tribo indígena, mas não deixa de ser bom varão português, pois recebe um nome de origem
selvagem, mas suas virtudes reforçadas são exatamente as que mais o ligam ao caráter e ao
conjunto de ideias trazidas pelo civilizado. Essa fusão vai gerar a euforia e a disforia do
branco, pois começa a fazer parte do grupo do índigena (onde se encontram Iracema e Poti,
por exemplo), mas não pode desprezar de onde vem, o que gera a saudade. Assim, mesmo
parte do grupo dos indígenas, não deixa de ser um branco, e, mesmo ao lado dos brancos,
tem uma identidade indígena, estando e não estando ao mesmo tempo nos dois conjuntos, o
que gera certo desconforto.
Esse processo de desarmonia, porém, é específico não só em Martim como também
em Iracema, pois são aqueles que se fundiram para gerar essa nova taba: a interação
protuguês-americano, o brasileiro.
É o processo de miscigenação, de formação de uma raça híbrida, meio indígena, meio
européia, que chega a um dos momentos mais importantes. O outro momento que
representa essa fusão é o nascimento de Martim, o primeiro cearense, vindo a partir do
casamento entre uma mulher (convenção da emoção) índia e um homem (convenção da
razão) português. É a junção fundamental para as características do verdadeiro brasileiro, é
a junção de elementos americanos, selvagens, com a civilização trazida pelo europeu.
No final do romance, ocorre a última fusão entre o elemento europeu e o indígena. É
mais um batismo, mas agora não é o europeu que se modifica para o aborígine, mas o
selvagem que adere ao civilizado, no caso de Poti. Ele é batizado segundo o procedimento
cristão, tornando-se um índio cristianizado, como Martim se transformara em europeu
“indianizado”. Essas fusões serão analisadas nas próximas partes do texto.

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O fiel cão Japi

Uma figura importante nesse processo de transformação de Martim é seu


companheiro Japi. Depois de sua volta à companhia do guerreiro pitiguara Poti, o branco é
seguido com uma fidelidade própria dos cães. Ele será seu guia, vai alertá-lo em relação a
qualquer perigo. Logo no primeiro encontro, Japi demonstra sua preocupação com o
português, salvando sua vida, servindo de aviso para o perigo que correria. “O chefe
tabajara e seu povo iam precipitar-se sobre os fugitivos, como a vaga encapelada que
arrebenta no Mocoripe. Eis que late o cão selvagem. O amigo de Martim solta um grito de
alegria: - O cão de Poti guia os guerreiros de sua taba em socorro teu.” (pág. 52)
A partir daí, a relação entre Martim e Japi é de inteira união. Logo após o combate
contra os tabajaras, o cão demonstra sua fidelidade:
“-(...) O cão te seguirá daqui em diante, para que mesmo de longe Poti acuda a teu
chamado.
- Mas o cão é teu amigo e companheiro fiel.
- Mais amigo e companheiro fiel será de Poti, servindo a seu irmão que a ele.”
(pág. 54)

O cão Japi, portanto, será mais um elo entre os dois amigos, o português e o
indígena, será mais uma forma de comunicação entre um e outro, mesmo estando distantes,
num caso parecido da gaivota, que só canta no litoral. Para complementar, devemos
lembrar que Japi é um animal, portanto representante da natureza (mais ligada aos
selvagens, às tribos, como a de que Poti faz parte), mas foi trazido pelos colonizadores
(mais ligados a Martim), tanto que os cães não tinham um nome específico no idioma tupi,
sendo chamados de “iaguara”, em comparação com as onças, que possuíam originalmente
este nome, reforçando, por outro lado, o caráter comparativo e descritivo dos idiomas dos
aborígines. Mais do que isso, o cão é, por excelência, animal domesticável, controlado
facilmente pelo homem, civilizável, ganhando até o apelido de “amigo do homem”.
Japi possui um companheirismo admirável, encontrado apenas em um cão. Ele
nunca deixa de estar perto de Martim, demonstrando a mesma amizade que possui Poti, que

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aliás, em sinal dessa mesma amizade, concede seu cão ao estrangeiro. Japi se afeiçoou ao
português logo na primeira vez em que eles se encontraram, como se diz em relação aos
sentimentos dos cães, que percebem logo no primeiro encontro a bondade ou a maldade da
pessoa. Portanto, o fato de o cão fiel logo se afeiçoar a seu novo dono reforça o caráter
heróico do personagem branco.

Os dois ficaram simplesmente juntos, como já estavam Poti e Martim. O sentimento


do cão ilustrava o sentimento do seu dono. Mesmo na morte heróica de Iracema, o que mais
importava ao mascote Japi era a volta do português e ele saltava para seu dono. O latido de
Japi era de alegria, mas o canto da jandaia era de tristeza, pois Martim voltava, enquanto
Iracema falecia.
Quando o cão percebeu que seu dono voltava, não se importou com a tristeza de
Iracema. Foi até o mato e, contente, correu até a porta da cabana: “Japi sai do mato e corre
para a porta da cabana” (pág. 83).
Por que um cão como mascote de Martim ? Da mesma forma que a jandaia
representava o caráter selvagem de Iracema, o cão Japi tem relação com os sentimentos do
estrangeiro. Afinal, o cão é um animal cuja origem está no Velho Mundo, mas foi logo
absorvido pelos indígenas, que imediatamente criaram simpatia por ele, da mesma forma
como ocorreu com Martim, de origem européia e que logo se incorporou na sociedade
selvagem, a ponto de ser batizado como pitiguara, criando até um novo nome. Além disso,
não devemos nos esquecer de sentimentos próximos até mesmo de um caráter
cavalheiresco, como a fidelidade, a lealdade.

Assim, a escolha do cão Japi como mascote de Martim não foi qualquer coincidência,
mas reforça a fusão de seu caráter dito europeu (do animal trazido pelo colonizador) com o
caráter dito selvagem, o que formaria, pelo menos teoricamente, o caráter brasileiro. Seria a
ligação com as nossas origens, mantendo a estrutura social que veio junto com o
colonizador, o europeu indianizado:

“A temática da identidade dos brasileiros, recorrente nas obras alencarianas, é


descrita do mesmo modo em diversos romances: integração de “povos” diferentes, quer

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do ponto de vista biológico, quer do ponto de vista cultural.” (MARTINS, (tese de


doutoramento), 2005, pág. 50)

Capítulo IV - Ações e avisos: comunicação com outros personagens do romance

Como não poderia deixar de ser, as relações conotativas (comparações e metáforas)


com os elementos da natureza, que serve de cenário para o romance “Iracema”, não são
exclusivas dos seus principais personagens, Martim e Iracema, mas se espraia por todos os
que estão ao redor. É claro que a quantidade de comparações nesses personagens se dá em
quantidade bem menor, mas seria desleixo desprezá-las, ainda mais porque algumas das
relações encontradas em outros personagens reforçam o que já foi visto como cerne da
obra.
Sendo assim, o próximo passo é observar como essas relações ocorrem com os outros
personagens e o que elas ilustram em relação à importância de cada um deles no romance e
sobre o romance em geral.

O ambiente e o místico Araquém

Durante toda a fase do Romantismo, uma das características mais fortes das obras,
ao lado da exaltação da natureza, era a religiosidade. Desiludido com o mundo que o cerca
e com as perspectivas que se observam na era pós-Revolução, o poeta se distancia desse
mundo, banhando-se muitas vezes nas águas da Religião, seja o catolicismo mais
conservador, como observamos na literatura portuguesa (em Alexandre Herculano, por
exemplo), ou no misticismo mais distante do nosso cotidiano.

A utilização do religioso não está, de forma alguma, afastada da exaltação da


natureza, que acompanhamos até agora. Pelo contrário, está ligada a ela. Afinal, como
constata Guinsburg (1978), a exaltação da natureza em si já é praticamente religiosa, pois é
lá, nessa natureza majestosa e misteriosa, em que se encontra, segundo o ponto de vista
romântico, o caminho para o Absoluto.

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É preciso fazer essa pequena explicação para pontuar situações em que o espaço
natural é utilizado como comunicação entre o mundo e o absoluto, afinal a origem da
palavra religião é exatamente a questão do “religar”, “fazer uma nova ligação entre os
homens e Deus”.
É o que observamos, por exemplo, num dos momentos em que Iracema oferece ao
guerreiro português o amargo licor, para que pudesse rever, pelo menos em seu transe,
aquilo de que tem saudade no outro lado do oceano. A descrição do ambiente é
completamente mítica.
“Era de jurema o bosque sagrado (...); dos galhos pendiam ocultos pela rama escura
os vasos do sacrifício”. (pág. 24) A representação das árvores, dos galhos, nos dá a
impressão de que nós adentramos uma espécie de altar verde, espaço específico para o
contato do homem com o Absoluto. Não é demais imaginar o espaço entre as árvores como
abóbadas de uma catedral. Essa mesma relação será usada em outro romance, “O
sertanejo”, reforçando o caráter místico do ambiente selvagem, como percebemos na
descrição da mata que serve de abrigo a Arnaldo: “E buscou no recôndito da floresta a sua
malhada favorita. Era este o jacarandá colossal, cuja copa majestosa bojava sobre a
cúpula da selva como a abóbada de um zimbrório. / Ali costumava o sertanejo passar a
noite ao relento, conversando com as estrelas, e a alma a correr por esses sertões das
nuvens, como durante o dia vagava ele pelos sertões da terra.” (in O sertanejo, cap. V).
Aliás, a própria questão do sacrifício, que se vê tanto na religião cristã como nos rituais
indígenas, reforça o caráter religioso do evento.

“O itinerário para atingi-lo [o Todo] e cujo sentido nos é revelado pela nostalgia,
processa-se através de dois caminhos básicos: a natureza e o Absoluto.” (GUINSBURG,
1978, pág. 96)

A propósito disso, precisamos retratar um personagem especial no romance: a figura


do pajé, aquele que faz, na tribo, a ligação dos seus habitantes com os espíritos, com o mito,
é ele o “embaixador de Tupã”. As comparações não lhe escapam, aparecendo logo no
começo do romance, quando Iracema apresenta a ele o guerreiro branco. Diz o trecho

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“quando os viajantes entraram na densa penumbra do bosque, então seu olhar, como o do
tigre, afeito às trevas, conheceu Iracema”. (pág. 16)
Aqui, como percebemos, o pajé é comparado ao tigre. Normalmente, o tigre é usado
como metáfora para indicar algo feroz, implacável, aquele que se alimenta sem piedade,
tanto que até mesmo os índios, exímios caçadores, temem esses grandes felinos, como
podemos observar em Gândavo, Claude D’Abbeville e outros cronistas do século XVI, que
retratam o tigre ou a onça como os animais mais temidos pelos selvagens. Porém, não é
esse o sentido na comparação. É mais complexo do que aparenta analisar uma comparação
ou metáfora, pois ela pode ter significados completamente diferentes do significado mais
comum, sendo importante não apenas observar o termo comparante, mas os que estão ao
seu redor, para identificar mais facilmente o seu valor É o que acontece aqui. O pajé não é
comparado ao tigre por causa de sua braveza ou ferocidade, mas por outro aspecto. O pajé
consegue observar, compreender por entre as trevas; é um ser arisco, experiente, como o
tigre. Por isso mesmo ele é o pajé, por sua esperteza, pela sua capacidade de observar o que
apenas é subentendido, de adivinhar reações, causas e consequências. Não é por nada que o
tigre possui importância considerável nas lendas e histórias dos indígenas, pois, ao mesmo
tempo em que provoca temor, causa admiração. É um animal que possui autoridade na
floresta, como deve ser o pajé para a sua tribo.
Não é difícil também encontrar metáforas ou comparações do pajé em relação a seu
caráter religioso e as razões para isso são claras. Como já discutimos, ele é o porta-voz do
mistério, faz a ligação entre seus homens e o Absoluto. No primeiro exemplo, temos a
seguinte passagem: “O sono da manhã pousava nos olhos do pajé como névoas de bonança
pairam ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha”. (pág. 29)
No trecho, as névoas de bonança se referem obviamente ao sonho, sonhos que não
poderiam deixar de ser névoas, pois é algo vago, algo que nossa razão não consegue tocar.
Tanto é que, quando nos referimos a algo que não é muito claro (como o sonho), podemos
dizer que é algo nebuloso, que não nos deixa ver a realidade. Porém, a parte mais
importante desse trecho é a relação do pajé com as profundas cavernas da montanha. Como
se percebe, temos novamente a relação com a natureza, e não é uma natureza qualquer. A
montanha é, essencialmente, algo inacessível, lugar difícil de se atingir, o ponto mais
distante do litoral, da planície, onde fica normalmente a população. Como se não bastasse,

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ele não está somente na montanha, porém na caverna da montanha, ou seja, a


inacessibilidade aumenta ainda mais. A caverna, como todos nós sabemos, é um lugar
desconhecido, cheio de perigos, lugares estreitos e misteriosos, em que normalmente
apenas as pessoas que as conhecem muito bem podem adentrar. A caverna reforça também
a questão religiosa, mística, pois indica a questão do mistério, algo que está escondido, que
não é percebido com facilidade. Além disso, as cavernas são profundas, aumentando ainda
mais a dificuldade do acesso. É o isolamento por natureza. Quanto mais próximo das
cavernas, mais afastado se está da chamada “civilização”. Os personagens que usam a
caverna para se isolarem do mundo são vários em toda a literatura, incluindo a escola
romântica. O qualificativo “profundas” dado às cavernas reforça ainda mais o isolamento,
fazendo com que ele fique ainda maior do que a própria ideia de caverna oferecia. O
próprio formato da caverna leva a algo misterioso, religioso. Não seria demais imaginar
também o poder religioso que possui a montanha. Foi na montanha que, segundo a tradição
cristã, Jesus fez muitas de suas parábolas. A montanha é lugar de reflexão e sabedoria para
várias culturas orientais. Até mesmo Nietzsche, com o enigmático Zaratustra, misto de
figura filosófica e messiânica, utilizou-se da montanha. Não é improvável que a montanha
possua também valor religioso para os povos indígenas.

Aliás, não é apenas em “Iracema” que o espaço profundo, isolado, é utilizado como
ambiente para moradia do mistério. Em “As minas de Prata”, por exemplo, acontece a
mesma coisa com o personagem Abaré, que habita uma escondida caverna. Reforçando
ainda mais o caráter religioso, “abaré” significa “padre”, em tupi, aquele que se encarrega
da relação entre os homens e o divino.
O poder religioso do pajé se percebe não apenas nas comparações, porém está bem
expresso na sua capacidade profética. Foi ele que percebeu, digamos assim, o destino que
se desenrolava por detrás da amizade entre Iracema e Martim. Quando o português dormiu
na rede, com a assistência de Iracema, no meio de seu sono deixa uma espécie de grunhido,
como se estivesse delirando, ou vendo de olhos fechados (como faz sentido a um
representante religioso de uma tribo) o que havia entre ele e a virgem. Não era um simples
caso amoroso, era o sofrimento da virgem de Tupã, o começo do declínio de um povo, a
supressão do tabajara pela colonização, o “gavião branco junto da narceja”, como se veem

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representados, por exemplo, em vários poemas de Gonçalves Dias, como o “Canto do


Piaga”.
Assim se percebe também na hospitalidade, quando o guerreiro branco chegou a sua
cabana. Se a hospitalidade é um dos traços marcantes da cultura indígena, o pajé a
desempenha ainda mais, pois ele é um dos exemplos, um dos líderes de sua tribo. Logo,
recebe Martim com todo o respeito, mesmo sabendo que ele estava unido aos pitiguaras,
seus maiores inimigos. Como pede a ideologia indianista, o índio só vai levantar sua
pocema se outro o fizer. Para demonstrar isso, vejamos o trecho abaixo, quando o
guerrreiro branco entra pela primeira vez na cabana do pajé: “o sol traga luz a teus olhos;
alegria à tua alma.” (pág. 19) O pajé possui dentro de seu povo a autoridade, suficiente até
para interceder entre o visitante e o elemento da natureza que o protege (trazer luz aos olhos
e alegria à alma), e como a natureza tem um componente místico nessas sociedades, é mais
do que um pedido: chega a ser uma evocação sacerdotal pela proteção do estrangeiro, cuja
visita é causa de agradecimento. É interessante também notar como o pajé evocou o sol, a
luz, alegria, elementos com os quais Iracema é normalmente comparada no romance, e que
vai ser a função dela para o estrangeiro, a função de iluminar, dar vida, da mesma forma
que o português será para ela e, quando o português se afasta, Iracema perde tudo isso: o
sol, a luz, a alegria, por consequência, a própria vida.

“Esse caráter sagrado da hospitalidade vem da crença dos índios, em ser Tupã que
envia o hóspede; quem o ofendesse, ofenderia a Tupã !” (FERREIRA, 1949, pág. 201)

No momento em que Irapuã, revoltado com a chegada do estrangeiro à tribo dos


tabajaras e com a sua recepção pelos principais, praticamente invade a oca do pajé,
querendo capturar Martim, Araquém o protege, evita de todas as formas o avanço contra o
estrangeiro, usando tanto as forças da razão (que reforçam sua posição de pajé, pois seu
poder sobrenatural é causa e consequência de sua sabedoria), como sua força mítica
(relacionada à sua razão como um círculo vicioso), como veremos a partir de agora.
Inicialmente, o velho pajé se coloca exatamente à frente do guerreiro tabajara, em sinal de
desafio, mesmo tendo força física menor, porém o que dá ânimo e vantagem ao ancião é o
que veremos durante o enfrentamento. “O pajé desenvolvera a alta e magra estatura, como

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a caninana assanhada, que se enrista sobre a cauda, para afrontar a vítima em face.” (pág.
35) A caninana, cobra desafiadora, sabendo de seu caráter rasteiro, para desafiar o
adversário, se levanta totalmente, ficando da mesma altura, da mesma forma que faz a naja,
por exemplo, mas a naja não é utilizada por não fazer parte de nossa fauna. Além disso,
algumas cobras, além de desafiarem o adversário, mostrando que possuem um poder dentro
de si, são capazes de hipnotizar a vítima. Assim, ela desafia e hipnotiza o adversário, da
mesma forma que o pajé tenta fazer com Irapuã. A hipnose, não custa lembrar, é também
relacionada a um fator místico, um poder sobrenatural, que em alguns casos parece
comprovar a ligação do sacerdote de um povo ou religião com o Absoluto. Parece estranho
relacionar o velho pajé com uma cobra, animal muito mais relacionado à vileza, à traição
(aliás, o que acontece inclusive dentro do próprio romance), mas devemos observar que a
característica da cobra relacionada ao pajé não é a vilania, mas sua ousadia, a capacidade de
não tremer diante de qualquer adversário, pois sabe que esconde um enorme poder em suas
mãos:

“A calma, a serenidade que irradia do ministro de Tupã no início do romance não o


abandona jamais,” (FERREIRA, 1949, pág. 135)

Assim, quando o guerreiro Irapuã desafia diretamente o pajé, indicando que Tupã não
estava ao seu lado, a reação é de extrema superioridade, a de quem possui certeza absoluta
do que está fazendo. “O pajé riu; e seu riso sinistro reboou pelo espaço como regougo da
ariranha.” (pág. 35) Diante do desafio do jovem guerreiro, o pajé se enrista e ri, aliás, um
riso sinistro, que parece avisar ao desafiador o enorme equívoco que cometeu e que as
consequências da afronta podem ser irreversíveis. E seriam. O pajé demonstrou a origem de
sua segurança e, ao mesmo tempo, mostrou que tinha o apoio de Tupã (que aliás, é o
trovão, no tupi antigo, a demonstração de Deus que, do alto, mostra sua ira). “-Ouve seu
trovão, e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua profundeza. / Araquém
proferindo essa palavra terrível, avançou até o meio da cabana; ali ergueu a grande pedra
e calcou o pé com força ao chão; súbito, abriu-se a terra. Do antro profundo saiu um
medonho gemido, que parecia arrancado das entranhas do rochedo.” (pág. 36) O pajé,
fazendo ouvir a ira de Tupã, demonstra o seu poder absoluto. Ele tem força sobre os

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poderes da natureza, apoiado na autoridade de Tupã. Portanto, quem o desafia não presta
conta apenas a ele, mas ao trovão. Até mesmo o audaz guerreiro Irapuã se retrai diante de
tão poderosa represália: “Irapuã não tremeu, nem enfiou de susto; mas sentiu estremecer a
luz nos olhos, e a voz nos lábios.” (pág. 36) Portanto, Araquém, pai de Iracema, é o ancião
dotado de sabedoria e razão dignas de um líder religioso de sua tribo. Por causa disso, ele
possui o poder de controle sobre forças da natureza e está amparado pelo contato imediato
com o grande deus Tupã. A partir daí, ele retira sua autoridade, e qualquer desafio a ele é,
na verdade, um desafio a Tupã, pois ele se torna representante do poder absoluto dentro de
sua tribo.
Portanto, como o pajé de sua tribo, Araquém tem o poder de se relacionar com o
Absoluto, recluso, afastado dos homens, sábio isolado como na solidão de montanhas e
cavernas ou até no canto escuro de sua oca, e essa capacidade lhe traz a autoridade para
definir que ninguém deve ferir o estrangeiro, pois foi levado à terra dos tabajaras por Tupã
e a hospitalidade dos índios a quem os visita, que já havia sido descrita inclusive pelos
cronistas, não deve ser abandonada, e quem ousar desafiar o pajé estará desafiando também
o poder de Tupã, pois, como personificação do poder do trovão, quem agredisse o pajé,
sofreria sua ira.

O sábio Batuireté

Falando em poder místico-religioso, não podemos ignorar a influência de Batuireté,


líder dos potiguaras, que possui a mesma importância de Araquém, pai de Iracema, mas por
outros motivos: Batuireté é o ancião guerreiro, que graças a sua destreza e coragem, é
respeitado pela sua tribo, servindo como exemplo para todas as guerras.
Quando Iracema e Martim já fazem parte da tribo dos potiguaras, Poti apresenta o
líder Batuireté para o estrangeiro. O ancião mora isolado, distante dos homens, passando o
tempo em cismar, como se conversasse com as forças de Tupã.
Poti conta ao estrangeiro a história do herói de sua gente, comparando a rigidez de
seu corpo e seu sono ao inabalável Ubiratã: “o corpo vergou para a terra, o braço

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endureceu como o galho do Ubiratã que não verga; a luz dos olhos escureceu.” (pág. 61)
Por causa de sua velhice, a mão que sustentava as armas e era ágil agora está dura, imóvel
como o galho de Ubiratã. E se o braço é o galho, o ancião é o próprio Ubiratã, que não se
move de jeito algum, honrando seu nome que, conforme já vimos, significa “tronco duro”,
“madeira dura”. Além disso, o nome do filho já continua a tradição de se tomarem nomes
de árvores duras, resistentes, representando força: o majestoso jatobá dá nome ao filho de
Batuireté. A isso relaciona-se o fato de Martim, o estrangeiro, ser o tronco rijo, a árvore
dura, como já vimos em capítulos anteriores. Portanto, da mesma forma que Poti e seus
parentes (Jatobá, Batuireté) são fortes, são também aqueles que não se abalam, pois
possuem a função masculina de servir de base para sua família e sua tribo. Assim acontece
com Martim no percurso do romance: ele se transforma em árvore que não verga, aquele
que não teme e resiste a qualquer vendaval impassível, pois sua família e sua tribo confiam
na sua força para resistir, já que ele é homem e, por consequência, a voz da razão, a base
que não se altera. O estereótipo do homem como ser que não se abala, nem se abate, ser
racional, que não se contamina pelas emoções é um traço que chega até os nossos dias e era
bem forte no século XIX, como vemos neste comentário de Costa (1979): “Ser homem,
segundo os médicos, importava em ser mais sensual e menos amoroso; mais racional e
menos sentimental; mais inteligente e menos afetivo, etc.” (pág. 251)
Voltando à questão do sábio Batuireté, ele está descansando em seu isolamento. “Lá
no píncaro, o velho guerreiro fez seu ninho alto como o gavião, para encher o resto de seus
dias, conversando com Tupã” (pág. 62). Assim, como já foi adiantado, o guerreiro ancião
se isola dos homens, com sua sabedoria, entrando em diálogo com o Absoluto, no lugar
mais alto, na montanha, sendo uma espécie de monge aborígine. Além disso, Batuireté é
como o gavião, ave que, reforçando a sua união com Tupã, voa alto e é admirada pela sua
força e destreza, da mesma forma que sua força e destreza eram consideradas na sua
juventude e servem como exemplo até as gerações atuais, pois, para uma verdadeira tribo
indígena, os mais velhos são aqueles que viram mais coisas, fizeram mais caçadas, lutaram
em mais guerras, e possuem, portanto, sabedoria, entendimento muito maior das coisas da
vida. Aliás, o fato de se isolar na velhice não é exclusivo de Batuireté, mas acontece em
muitas espécies animais e muitas sociedades indígenas possuem essa característica:
percebendo que é chegado o momento de se unir a Tupã e aos ancestrais, o ancião se

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exclui, numa situação intermediária, pois ainda faz parte da vida na terra, mas já dialoga
com o infinito.
Continuando a análise do sono profundo do líder Batuireté, verifiquemos melhor o
ambiente em que ele se encontra: “A cabana do velho guerreiro estava junto das formosas
cascatas, onde salta o peixe no meio dos borbotões de espuma. As águas ali são frescas e
macias, como a brisa do mar, que passa entre as palmas dos coqueiros, nas horas da
calma.” (pág. 62) Percebemos melhor que não se trata simplesmente de um píncaro, uma
elevada montanha, mas é um ambiente belamente descrito de natureza majestosa. Formosas
cascatas, borbotões de espuma, saltos de peixes, águas frescas como a brisa do mar. Isso é
um pequeno resumo das características desse ambiente em que a natureza se apresenta
maravilhosa. Não é um lugar qualquer, mas é um lugar onde tudo está organizado e
funciona harmoniosamente, por fazer parte da mais pura natureza, onde tudo é elevado.
Pode-se dizer até, de certa forma, que o ambiente espetacular onde o ancião se encontra,
esse local de natureza fantástica, é uma representação desse paraíso potiguara. É a
representação do paraíso potiguara, são as portas da Terra-Sem-Mal, de que o ancião, já
pressentindo extinguirem-se suas forças, quer se aproximar.

O encontro de Batuireté com a natureza fica ainda mais digno de nota quando
lembramos que, como Poti explicava, o guerreiro ancião já não podia mais ter o mesmo
contato com a natureza que o cercava, por causa de sua fragilidade, como podemos ver
neste excerto da página anterior do romance: “Quando o velho guerreiro arrastava o passo
pelas margens, e a sombra de seus olhos não lhe deixava que visse mais os frutos nas
árvores ou os pássaros no ar, ele dizia em sua tristeza: - Ah ! meus tempos passados !”
(pág. 61) Então, sabemos que o sábio Batuireté não pode mais ter a relação com a natureza
majestosa, absoluta, o que reforça sua tristeza. Porém, ele se dirige ao píncaro da montanha
exatamente para refazer esse contato com a natureza, que tem uma essência além do
humano, um território do Absoluto. O que entristece o ancião é exatamente o fato de, por
causa de suas condições, não poder aproveitar tanto, pelo menos com os olhos do mundo, a
natureza que o cerca, justamente o lugar que seria mais próximo desse Absoluto, sendo

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necessário esse contato exclusivamente com um outro ponto de vista, pertencente ao


espírito.
Logo depois, as consequências físicas de sua velhice são descritas e ele é comparado
à ave jaburu e ao jenipapo: “o sol ardente caía sobre sua cabeça, nua de cabelos e cheia de
rugas como o jenipapo. Assim dorme o jaburu na borda do lago.” (pág. 63)
Os anos lhe deram a sabedoria, que lhe deu o poder de perceber coisas que os
comuns jamais perceberiam, uma espécie de dom profético. As únicas e últimas palavras
que o guerreiro Batuireté consegue dizer aos seus visitantes aludem ao momento específico
da visita, tudo o que está acontecendo, e as consequências disso para seu povo: “Depois o
peito arquejou e os lábios murmuraram: / - Tupã quis que estes olhos vissem antes de se
apagarem, o gavião branco junto da narceja.” (pág. 63) Numa óbvia referência a Martim
(gavião branco) e a Poti (narceja), parecia já saber o sábio potiguara que teria um momento
como esse: o índio ao lado de um branco estrangeiro, uma espécie de premonição, da
mesma forma que a frase sugere uma outra visão, a supressão dos indígenas pelo elemento
europeu.
Portanto, os vários anos de vida e guerra (uma coisa leva à outra) deram a Batuireté a
sabedoria e, por consequência, o respeito por parte de sua tribo. Percebendo que já não
possuía interesses no mundo dos homens, bem ao gosto de um vate indígena (o que pode
aproximá-lo, por que não dizer, com um poeta: reserva e inspiração ?), isola-se, tentando
encontrar-se com Tupã, num lugar alto, a montanha, tantas vezes usada nas diferentes
religiões como lugar de elevação espiritual, e numa natureza majestosa, dando aos homens
que conseguem ouvi-la, como Batuireté, a compreensão do passado, presente e futuro.

Andirá e Irapuã: a audácia e a prudência

Nesta parte da análise, veremos um pouco mais sobre dois personagens que possuem
um objetivo em comum: o bem-estar da aldeia tabajara e a conservação de sua identidade,
porém por meios completamente diferentes. Enquanto Andirá, irmão do pajé, é a voz da
moderação, não quer brandir o tacape à toa, o jovem Irapuã é aquele que considera a visita

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do português uma afronta, uma invasão, tornando obrigatória a pocema da guerra. Por
causa disso, existe um enorme ódio entre eles durante o romance, e verificaremos como
esse ódio é representado nas comparações que estão sendo analisadas.
O irmão do pajé, o também respeitadíssimo Andirá, é um dos personages do
romance que merecem destaque. Ele possui uma função próxima da do conselheiro,
moderador nos momentos de conflito. Ao mesmo tempo, é exímio lutador, participou de
vários combates, de várias guerras, porém não faz a mínima questão de desafiar o europeu.
Pelo contrário, protege-o, respeitando, assim, os desejos de seu irmão. Esse fato gera
enorme insatisfação no chefe da tribo, Irapuã, mais sedento (literalmente) de sangue do
colonizador do que qualquer outro. E é da boca dele que saem algumas das metáforas
sobre Andirá:
“Fica tu, escondido entre as igaçabas de vinho, fica, velho morcego, porque tu temes
a luz do dia e só bebes o sangue da vítima que dorme” (pág. 22). Obviamente, a
comparação que Irapuã faz entre Andirá e um morcego se deve basicamente ao seu nome.
Afinal, “andirá” significa morcego em tupi antigo. Deve-se verificar com qual conotação a
metáfora foi usada e facilmente percebemos que foi depreciativa. Por que comparou Andirá
ao morcego ? Porque ele teme a luz do dia e só bebe o sangue da vítima que dorme, o que
pode ser visto em vários cronistas, como Gabriel Soares de Sousa. Em resumo, chamou o
irmão do pajé de covarde; acusa de ter fugido do combate contra o português. Isso para um
guerreiro experiente como Andirá é uma grande ofensa, enorme ofensa. Não devemos
esquecer que a covardia é o que há de mais aviltante para o índio, sempre orgulhoso de suas
guerras, dos combates que enfrentou e dos inimigos que matou. Sabemos, por exemplo, que
o prisioneiro, se chora no ato do sacrifício, é liberado da morte, não por compaixão, mas
por uma espécie de asco, e o antigo prisioneiro é condenado então a viver isolado e
humilhado, tanto pelos que o aprisionaram como pelos seus companheiros de aldeia. A
ofensa é reforçada, aliás, pelo adjetivo que o jovem lhe dá: velho (“velho andirá”). Disse
inicialmente que ele não gosta da luz do dia, que é sempre associada a algo claro, feito sem
falsidade, feito às claras. Portanto, age apenas no escuro, na calada da noite, que esconde,
muitas vezes, o obsceno, o vil; além disso, não enfrenta quem está acordado, mas apenas
aqueles que estão dormindo; chupa o sangue apenas da vítima que dorme.

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É curioso perceber como o guerreiro tão acostumado a lutas e batalhas, aquele que
tanto guerreou, que seria o mais disposto ao combate, fez cair o tacape. Tanto é assim que
seus próprios companheiros se surpreenderam e gerou-se a revolta do guerreiro Irapuã,
como vimos há pouco. Mas, logo depois de deixar tombar o tacape, o irmão do pajé explica
a sua posição: “E o velho Andirá nunca temeu que o inimigo pisasse a terra de seus pais;
mas alegrava-se quando ele vinha, e sentia com o faro da guerra a juventude renascer no
corpo decrépito, como a árvore seca renasce com o sopro do inverno. A nação tabajara é
prudente. Ela deve encostar o tacape da luta para tanger o membi da festa. Celebra,
Irapuã, a vinda dos emboabas e deixa que cheguem todos aos nossos campos.” (pág. 22)
Portanto, antes de qualquer colocação, o guerreiro Andirá demonstra que não é covarde,
que não teme a guerra, mas ela só deve ser declarada em determinadas ocasiões, como, por
exemplo, com a invasão do inimigo, o que não seria o caso, pois Andirá não teme a visita
do estrangeiro, mas recebe com satisfação aquele que vem de fora. Se Andirá não tivesse
deixado cair o tacape, se não aceitasse receber o estrangeiro, poderíamos até dizer que ele
perderia seu caráter heróico dentro do romance. Para demonstrar o ânimo que lhe provoca o
conflito, ele se utiliza da metáfora da árvore seca. O grito de guerra para Andirá é como o
vento do inverno para a árvore seca, que já está cansada, é aquilo que lhe dá vida, que lhe
reforça a alma. Consultando os cronistas, percebemos que, para o índio, a guerra, que para
nós é sinônimo de desgraça e morte, é significado de vida, aquilo que confere prestígio
dentro da tribo. Poderíamos até dizer que o índio possuía maior consciência de si dentro da
tribo nos momentos de conflito.

Voltando à provocação feita pelo guerreiro Irapuã, o irmão do pajé aceita a


provocação, o apelido de morcego, utilizando-o alguns capítulos depois, quando Irapuã
tenta invadir a cabana do pajé para capturar o estrangeiro. “O morcego vem te chupar o
sangue, Irapuã, se é que tens sangue e não lama nas veias, tu que ameaças em sua cabana
o velho pajé.” (pág. 35) Assim, Andirá recebe a provocação, querendo demonstrá-la na
ocasião correta, da mesma forma que pediu prudência à tribo em relação ao comportamento
diante do estrangeiro. Já que era um morcego, queria mostrar o que o morcego faz, isto é,
não ser traiçoeiro, mas sugar o sangue da vítima, no momento em que estivesse sedento, o
que remete claramente aos rituais de antropofagia que eram praticados com as vítimas

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aprisionadas. Beber o sangue do adversário era grande conquista. Aproveita, assim, Andirá
para refutar se seu adversário possui sangue mesmo ou lama nas veias, se não é algo podre,
já que se atrevia a desafiar o pajé em sua própria cabana.
Sendo assim, Andirá não possui o medo da guerra, pois provoca Irapuã, mas, muito
pelo contrário, sendo um guerreiro já experiente, venceu vários conflitos. O que, na
verdade, o diferencia de seu opositor é o fato de ouvir a chamada “voz da razão”, não se
deixando levar pelos anseios de vingança, pelos sentimentos, pois o tabajara não deve soltar
a inúbia da guerra antes que se anuncie o ataque, e se fizesse contrariamente, ele seria um
covarde. Desse modo, podemos até dizer que Andirá vai contra, em alguns aspectos, ao que
é descrito sobre os selvagens, pois nega o espírito da guerra e da vingança, próprios do
aborígine, eliminando a emoção e querendo fazer valer a voz da razão, o lado racional.

Não podemos esquecer também Irapuã, personagem que possui algumas


particularidades. Como nós já sabemos, Alencar possui, pelo menos em parte de seus
textos, grande devoção ao elemento indígena. Tanto que não se intimidava em oferecer ao
aborígine as melhores qualidades, questionando até mesmo algumas teorias que davam o
índio como sujeito repleto de defeitos, como o vício da guerra e a prática da antropofagia.
Alencar elogiava o índio não por pura convenção indianista, mas porque confiava
realmente no elemento indígena. Segundo Driver ([1943]), o índio de Alencar não é
perfectível, mas perfeito. Sendo assim, o índio está repleto de qualidades, sejam físicas ou
psicológicas.

“Figuras planas, encarnações duma idéia de beleza e não seres reais, com vida
própria.” (MOISÉS, 1968, pág. 28)

Por causa disso, alguns estudiosos chegam até mesmo a criticar a forma como o autor
cearense descrevia seus personagens indígenas, pois possuíam características muito mais
próximas de um civilizado ou de um personagem medieval do que de um aborígine. Seu
código de valores é muito estranho para os habitantes primitivos de nosso país. Essa não era
a única crítica em relação a Alencar, como também foram alvo delas os equívocos que

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cometeu em relação à flora, à fauna, à cultura e às língua indígenas, as suas mudanças em


relação à gramática da nossa língua, assim como a falta de originalidade em seus
personagens e os enredos de seus romances. Mas, por enquanto, deve-se perceber que os
personagens indígenas de Alencar possuem qualidades como lealdade, cortesia, educação,
bem próximos dos recomendados para o ser dito “civilizado”.
É nesse ponto que Irapuã é um personagem extremamente importante. De certa
forma, ao fazer o máximo possível para atrapalhar a vida do guerreiro branco, Martim,
atrapalhando, por consequência, a relação entre este e Iracema, Irapuã adquire o status de
vilão. É certo que não é, por exemplo, um vilão como Loredano, que é mal simplesmente
por causa de seu caráter, mas o é por defender o seu ponto de vista, suas idéias, indo assim
de encontro aos interesses de outras pessoas.
Irapuã pode até ser considerado um vilão, porém ninguém, de forma alguma lhe pode
tirar a honra, a lealdade com a qual defende seus ideais. E ele não os defende por serem
bons ideais para si, mas por serem bons para todo o seu grupo, inclusive para aqueles que o
combatem. Portanto, Irapuã interfere no trajeto de Martim, mas não simplesmente por
querer prejudicá-lo, mas para defender seus pontos de vista.
Para ilustrar a dedicação de Irapuã em proteger os interesses de seu povo, ainda que
seja daquele modo, vejamos uma das primeiras vezes em que ele aparece, tentando
convencer seus pares a enfrentar o elemento branco: “Faremos nós, senhores das aldeias,
como a pomba, que se encolhe em seu ninho, quando a serpente enrosca pelo galho ?”
(pág. 21) Para chamar seus colegas, Irapuã usa o termo “senhores da aldeia”. Tal vocativo
possui duas funções: primeiramente, reforça a origem da palavra “tabajara”, que serve de
nome para a tribo da qual fazem parte. Afinal , “tabajara” significa exatamente “senhores
da aldeia” (taba = aldeia; iara = senhor ou senhora); em segundo lugar, faz parte da
tentativa de conhecimento, já que chamar seus ouvintes de “senhores das aldeias” é uma
forma de seduzi-los, é uma forma de bajulação, de engrandecer o ouvinte para fazer que ele
aja conforme seus objetivos. Temos aí a comparação a dois animais significativos: pomba
e serpente. A pomba é ave que denota inocência, a paz, portanto ligada à virtude. Enquanto
isso, a serpente é o símbolo da traição; é a vileza, em nossa cultura inclusive é quem leva da
inocência ao pecado, tirando-nos do Jardim do Éden, portanto é o engano. Sendo assim, o
tabajara, deixando entrar o europeu e o potiguara, seria esmagado em sua própria casa,

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como a pomba é esmagada pela serpente, que invade o ninho e se alimenta dos seus
filhotes, sem qualquer dificuldade. A pomba, ou seja, a inocência é o tabajara, enquanto a
serpente, a perfídia, o predador, é o branco ou o potiguara (que não deixa de ter relação
com o elemento branco).
Analisemos, então, uma frase dita pelo próprio Irapuã, na pág. 26 do romance: “O
coração aqui no peito de Irapuã ficou tigre.” (pág. 25) Essa comparação foi usada para
ilustrar a raiva do tabajara ao saber que Iracema trazia Martim. Devemos nos lembrar, neste
momento, de que a simbologia do tigre já foi analisada, quando falávamos sobre o pajé
Araquém. Porém, o sentido é totalmente diferente. Afinal, como já foi dito, para
analisarmos uma metáfora, uma comparação, deve-se verificar o sentido que ela possui.
Assim, enquanto o tigre indicava força, poder, autoridade na figura de Araquém, no caso de
Irapuã demonstra toda a sua raiva, toda a sua ferocidade diante da situação que se
desdobrava: a chegada à sua tribo do guerreiro branco.
O animal feroz é substituído por outro, linhas depois. Desta vez, a comparação não
sai do próprio Irapuã, mas de Iracema, com quem conversa: “Nunca Iracema daria seu
seio, que o espírito de Tupã habita só, ao guerreiro mais vil dos guerreiros tabajaras !
Torpe é o morcego porque foge da luz e bebe o sangue da vítima adormecida !” (pág. 26)
Vimos como, novamente, Irapuã é comparado a um animal conhecido pela ferocidade,
porém em vez de ser usado para seu engrandecimento, foi usado para diminuí-lo. Ele é
torpe, é traiçoeiro, é covarde, porque bebe o sangue da vítima adormecida, que não pode se
proteger. Se, em nossa cultura, a pecha de “traiçoeiro” é deplorável, o que se dirá na cultura
indígena, onde a covardia é praticamente a pior das vilezas. A ofensa se torna ainda mais
forte quando se refere a um guerreiro que possui certo respeito em sua taba. Percebeu-se,
então, como não só o mesmo animal pode ser usado para referências completamente
diferentes (veja-se o caso do tigre), como animais que estão no mesmo grupo também. É
importante notar também que o mesmo animal foi usado tanto para Andirá como para
Irapuã, mantendo-se o motivo da comparação: a covardia. Sendo assim, a mesma ofensa é
trocada entre dois adversários, mantendo-se o elemento de comparação.
Aliás, a repulsa de Iracema pelo jovem guerreiro é outro fator que lhe causa revolta.
Ele quer provar à virgem tabajara que é digno de seus sentimentos, e quando sabe que ela
protege o emboaba, que seria para ele seu inimigo natural, isso o torna ainda mais

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insatisfeito, pois reúne suas duas maiores causas de ira: a chegada de Martim e o desdém de
Iracema. Para demonstrar como o guerreiro persegue a virgem, vejamos este trecho: “Não
foi Anhangá, mas a lembrança de Iracema, que turbou o sono do primeiro guerreiro
tabajara. Irapuã desceu do seu ninho de águia para seguir na várzea a garça do rio.” (pág.
25) Como já vimos no capítulo sobre Iracema, aí temos uma comparação sua em relação à
garça, o que acontece outras vezes no romance. Ave pernalta, bonita e graciosa como
Iracema, e que é de grande frequência em nossas florestas. Vamos falar mais sobre a parte
de Irapuã, o gavião. Este símbolo não foi usado apenas essa vez no romance, mas está
sempre relacionado a uma figura forte, imponente, temida por aqueles que estão ao redor, já
que é uma ave caçadora, um grande predador, extremamente resistente, que poderia estar
ligado apenas a pessoas que sejam ponto de referência, um exemplo em suas aldeias, como
é o caso de Irapuã (guerreiro tabajara), Martim (guerreiro português) e Batuireté (guerreiro
potiguara), que são grandes guerreadores, respeitadíssimos por sua coragem e força na
guerra. Irapuã obviamente dá a si mesmo esse epíteto por vaidade. Quer mostrar à virgem
quanto ele é digno, que é um guerreiro destemido, valente, sendo a melhor opção para a
virgem na tribo. Porém a tática não teve melhores resultados para Irapuã, o que aumenta
ainda mais sua revolta.
E a tentativa de convencer Iracema não para por aí. Querendo saber o paradeiro de
Martim e insultado pelas provocações de Iracema, o jovem guerreiro tenta novamente
mostrar sua força e capacidade: “Filha de Araquém, não assanha o jaguar. O nome de
Irapuã voa mais longe que o goaná do lago, quando sente a chuva além das serras.” (pág.
26) Ele é o tigre, é a onça, é o grande predador, é aquele que ataca sua vítima
impiedosamente e seu alvo não tem poder de reação, por causa de sua força e sua destreza.
Mais uma vez ele é o forte e valente predador e seu nome voa longe, ou seja, sua força, sua
coragem é conhecida não só entre os tabajaras, mas também entre os vizinhos. É a fama de
grande guerreiro que serve como justificativa para o amor de Iracema.
Para ilustrar suas características de predador, vejamos um desabafo que ele faz para
Iracema, demonstrando toda sua ira: “Quero beber-lhe o sangue todo !” (pág. 26) Essa
pequena frase tem muito a dizer sobre o caráter de Irapuã. O ato de beber o sangue da
vítima é muito comum entre os guerreiros indígenas em seus confrontos, e quanto mais
sangue o guerreiro beber, maior o seu status diante da tribo. É o canibalismo e a vingança.

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Fatos tão essenciais das guerras tribais, mas que foram desprezados nos personagens
indígenas de Alencar. Por quê ? São as características grosseiras, vis, que não possuem
ligação alguma com o índio virtuoso que o autor cearense quis enaltecer em seus romances.
Quando o guerreiro Irapuã anuncia que quer beber todo o sangue de seu inimigo, ele revela
sua característica mais selvagem, mais próxima do predador, em consonância com a
declaração do cacique que aprisionara Hans Staden: “Iaguara ixé !”17. Dessa forma, Irapuã
se afasta do chamado “índio virtuoso”, o bom e dócil selvagem, imbuído dos ideais de
heroísmo do elemento indígena e da formação nobre de nossa nacionalidade, apregoada
pela literatura da época, mas se aproxima do índio vil, indigno de fazer parte de nossa
ancestralidade cultural, pois não possui os elementos de nobreza do índio “cristão e
civilizado”, mas, ao mesmo tempo, aproximando-se do índio real, mesmo que muitos dos
autores da época o negassem.
Por falar nisso, a onça é usada mais uma vez como ponto de referência em relação a
Irapuã. É no momento em que o guerreiro exige, na oca do pajé, que o estrangeiro seja
entregue a eles e Iracema o protege: “A filha do pajé passara como uma flecha: ei-la diante
de Martim, opondo também seu corpo gentil aos golpes dos guerreiros. Irapuã soltou o
bramido da onça atacada na furna.” (pág. 33). Observemos que ele mostra tanto sua
ferocidade, que não solta um grito como o bramido de onça, mas é a própria onça a bramir:
o guerreiro e a onça estão no mesmo nível. E não é qualquer grito da onça, é o bramido da
onça atacada, é o grito de quem sente um ultraje, uma provocação e sente a mesma raiva da
fera encurralada.
Como Araquém e Iracema se negam a entregar o cristão, dispostos que estão ao
enfrentamento, sua ira aumenta ainda mais, e já não há mais o bramido da onça mas o silvo
da sucuri. “Bramiu Irapuã; o grito rouco troou nas arcas do peito, como o frêmito da
sucuri na profundeza do rio.” (pág. 35) Sabemos nós que a sucuri é uma cobra
extremamente perigosa, com grande capacidade de esmagar o inimigo, para se alimentar
dele. Aliás, utilizando a imagem da sucuri, não podemos esquecer que é um poderoso
predador, aquele que mata e come seus adversários, e que o processo de quebrar os ossos
remete, consideravelmente, ao sacrifício do prisioneiro, cujo crânio é quebrado no
momento em que é dado o golpe fatal. O fato de o grito de Irapuã ser comparado pelo

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STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. BH: Itatiaia, 1974.

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narrador ao frêmito da cobra está relacionado, também, ao fato de ser a cobra, em geral, um
animal traiçoeiro e venenoso, como Iracema já o havia chamado de jibóia também: “Tua
boca mente como o ronco da jibóia” (pág. 35), mas não podemos negar que outra função do
termo “frêmito da sucuri” é causar espanto, já que o grito da sucuri é digno de assustar a
todos que estão ao seu redor, sentem-se ameaçados como no caso do chocalho da cascavel
(aliás, outro ofídio). É importante notar neste momento como as comparações em relação a
Arapuã, quando feitas pelo narrador, podem ter tanto o aspecto positivo (a força, a coragem
da onça, do gavião), como o negativo (o aspecto traiçoeiro e hipócrita de uma cobra),
pendendo mais para o segundo.

Passemos para outra comparação feita com Irapuã. Um pouco mais à frente, temos o
seguinte trecho: “Como trota o guará pela orla da mata, quando vai seguindo o rasto da
presa escápula, assim estugava o passo o sanhudo guerreiro” (pág. 34). Tal passo refere-se
ao fato de Irapuã querer retirar Martim da cabana do pajé para realizar a vingança dos
tabajaras. Novamente, há referência a um animal feroz, um lobo, que também causa temor
e, como os demais, é um predador em condição privilegiada, sendo animal que está sempre
pronto para obter seu alimento, como está sempre pronto a se defender de possíveis
adversários. Além disso, ele é símbolo da astúcia, da esperteza, tão comuns à figura do lobo
em tantas histórias. Vejam, por exemplo, a expressão conhecida popularmente “lobo em
pele de cordeiro” relacionada à traição.
No mesmo capítulo, Iracema desmente a fala de Irapuã, que afirma a quebra da
virgindade da índia pelo guerreiro branco. “Tua boca mente como o ronco da jibóia” (pág.
35), essa foi a resposta de Iracema. Novamente, Iracema o compara com um animal feroz,
não de forma elevada, como fez o narrador, mas querendo vituperá-lo. Percebemos, então,
o desprezo da virgem pelo guerreiro tabajara, e como ele é relacionado, mais uma vez, à
traição, à mentira, à covardia. A mentira, aqui, é relacionada à jibóia (e, consequentemente,
também a Irapuã) como um animal peçonhento e covarde, rasteiro, que deve ser
desprezado.
Prosseguindo, percebemos que, novamente, Irapuã é comparado à figura do morcego.
É o momento em que Martim é levado por Iracema para a companhia dos pitiguaras,

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amigos do guerreiro branco: “A raiva de Irapuã é como a andira: foge da luz e voa nas
trevas.” (pág. 40) Vemos que há, então, um conjunto muito bem definido de seres com os
quais o índio tabajara é comparado pelos seus adversários: são os seres rechaçados, seres
execrados, principalmente pela sua peçonha e pela covardia, os répteis venenosos e o
traiçoeiro morcego. Tanto é que o caráter traiçoeiro se encontra nessa nova comparação:
foge da luz e voa nas trevas. Por outro lado, quando Irapuã faz comparação de si mesmo ou
até mesmo quando o próprio narrador o faz, percebemos a representação da destreza e da
força em imagens como a do tigre e a do gavião, grandes e temíveis predadores.
Um pouco depois, nova tentativa de capturar o estrangeiro; novo fracasso do
guerreiro tabajara. Ocorrem mais provocações, e Irapuã é novamente rebaixado pela sua
vileza, agora por Caubi: “Vis guerreiros são aqueles que atacam em bando como os
caititus. O jaguar, senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combaterão só o
inimigo.” (pág. 42) Irapuã é comparado agora ao caititu, pela sua covardia. É importante
perceber que Caubi fornece também o contraponto, o contrário de Irapuã, que seriam o
jaguar e o anajê (ou gavião), animais usados pelo próprio Irapuã para caracterizar a si
mesmo, ou seja, para Irapuã, ele é a onça, o tigre, o gavião, é ele quem possui a força e a
coragem. Da mesma forma que Irapuã chamou Andirá de “velho morcego”, aquele também
foi assim chamado. Queriam eles imputar um ao outro o caráter traiçoeiro do morcego, que
só caça à noite.

Um pouco depois, vemos uma nova comparação depreciativa feita em relação a ele.
“Irapuã é manhoso e traiçoeiro como a acauã”. Irapuã é, mais uma vez, o predador
traiçoeiro, como vimos nas imagens do morcego e das serpentes.
A força e a coragem que Irapuã imputa a si mesmo podem ser vistas no ataque dos
tabajaras à aldeia potiguara, logo após a fuga de Martim e Iracema: “Treme a selva com o
estrupido da carreira do povo tabajara. O grande Irapuã, primeiro, assoma entre as
árvores. Seu olhar rúbido viu o guerreiro branco entre as nuvens de sangue; o ronco
bravio do tigre rompe de seu peito cavernoso.” (pág. 52) Retornamos aí ao ponto em que
Irapuã, com extrema raiva, quer beber o sangue todo do português. Percebendo que seu
inimigo estava logo à frente, no meio do conflito, a raiva irrompe em forma de grito: “o
ronco bravio de tigre rompe de seu peito cavernoso.” Ele possui o ronco do tigre, o ronco

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de um grande predador bravio, quando mira sua presa, sedento por beber todo seu sangue,
capturar o prisioneiro, matá-lo e degluti-lo. Mais uma vez, Irapuã é o animal feroz,
portanto, é aquele que está em completa selvageria. É a natureza indômita, aquela que não
admite ser depurada, impossível de ser alterada pelo relacionamento com as virtudes nobres
do cristão. Seu código de honra (que existe) é bem diferente.

A rivalidade entre o índio que quer proteger afoitamente suas tradições e o branco
europeu que quer se tornar novo membro da tribo chega ao momento extremo em que a
consequência sugerida é a morte: “Renhiu-se o combate entre Irapuã e Martim. A espada
do cristão batendo na clava do selvagem, fez-se em pedaços.” (pág. 53) Eis a disputa entre
o elemento indígena e o elemento branco, que não geraria consequências positivas, pois era
necessária, do ponto de vista do autor, uma união entre as duas culturas, de forma pacífica,
como estava acontecendo entre Martim e Iracema, entre o europeu e os potiguaras. É
necessária a fusão harmônica entre os elementos branco e índio. O embate entre as duas
raças geraria apenas a desgraça, como sentia em sua profecia o velho Batuireté, antes de
baixar, de uma vez por todas, sua fronte. E a história nos conta como as consequências
foram trágicas no processo de colonização, principalmente para o aborígine, que foi
totalmente sugado, como teve Iracema suas forças sugadas e morreu ao fim do romance.

Sendo assim, percebemos as características dos seres usados como comparação com
Irapuã: quando outros o comparam, normalmente são seres execráveis, com o morcego e a
serpente; mas quando ele se compara a algo, chega a utilizar o tigre e o gavião, seres que
são lembrados, principalmente, pela coragem, destreza, em suma, pela sua posição
privilegiada como predadores. Afinal, denotam força e respeito, como deve possuir um
guerreiro. Podemos analisar os fatores “biológicos” para compreender o outro lado da
história. Irapuã é comparado a morcegos e cobras, animais tratados como nocivos para nós,
seres humanos. É necessário lembrar, porém, que esses animais nocivos não possuem a
mínima idéia da agressividade que possuem. Defendem-se com o instinto, com as armas
que possuem, seja com o veneno, seja com a mordida durante a noite, pois se não tivessem
qualquer proteção, jamais sobreviveriam. Portanto, os seres nocivos são assim considerados
não por serem maus, por sentirem prazer em destruir o outro ser (afinal, por serem animais,

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não possuem noção elaborada do bem e do mal), mas por obterem, para sua defesa,
métodos que, muitas vezes, estão além do nosso controle e, como nós sabemos, provoca-
nos temor por tudo aquilo que não nos é totalmente compreendido, ou seja, aquilo que não
podemos controlar de forma adequada.
Assim, da mesma forma que damos o caráter de nocivo a seres animais que possuem
apenas formas de proteção que fogem ao nosso alcance, consideramos muitas vezes Irapuã
um vilão por obstruir a felicidade de Iracema e de seu amado Martim, ou melhor, a fusão
das culturas índigena e européia. Irapuã não é um vilão convencional, que prejudica aqueles
que estão ao redor por estar em conflito com o mundo e com todos, mas tem “contas a
acertar” com Martim por querer proteger seu território, seus conhecimentos, sua cultura.
Isso tudo tem total relação com as características dos personagens indígenas de um
romance de Alencar. Afinal, para o escritor cearense, em suas obras, o elemento indígena é
perfeito, está longe de qualquer maldade e de qualquer ambição.

Neste aspecto, Irapuã se aproxima de um personagem medieval, pois pode ficar


contra toda a sua tribo, contra sua amada, pode até mesmo morrer, porém jamais imagina
abandonar seus ideais, pois, mais importante do que tudo isso, está a sua honra de índio.
Ao contrário de outros personagens, como o pajé, por exemplo, que se baseia num
elemento mítico, Irapuã baseia-se na defesa de suas leis, de sua cultura para atingir um
estado positivo. Comprovamos isso também nos seres utilizados nas comparações dos
personagens, pois, enquanto o pajé e o sábio pitiguara são comparados a gaviões e a outras
aves (designando o alto, o céu, o espaço absoluto), Irapuã é comparado, não poucas vezes, a
répteis, cobras, seres rasteiros, que estão mais do que presos ao solo, à terra bruta. E a
razão de seu caráter de vilão, de sua comparação com répteis, seres venenosos, está
exatamente na proteção a valores tão próximos da cultura indígena, como a antropofagia e a
vingança na guerra, mas que estão tão afastados dos valores de dignidade de uma pessoa
civilizada e cristã.
Assim,

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“As tensões e fraturas internas do processo de colonização ou se encontram


acentuadas ou são, estrategicamente, deslocadas em favor de uma conciliação
(desnivelada) entre natureza e cultura. Neste sentido, o processo civilizatório apontado
pelos romances indianistas de Alencar conduz inevitavelmente à prevalência dos valores
do colonizador.” (PEREIRA, 2000, pág. 15)

Além disso,

“O que importa é ver como a figura do índio belo, forte e livre se modelou em um
regime de combinação com a franca apologia do colonizador.” (BOSI, 1994, pág. 179)

Como se vê,

“O indígena (assim: abstrato e genérico) era preenchido por caracteres, traços, que
mais o aproximavam dos ideais nobilizantes de nossa elite do que da crua descrição
etnográfica dos povos indígenas (diversos, heterogêneos) que, concretamente, ainda
habitavam no espaço (considerado) como nacional. Desse modo, este movimento original
aparecia como uma ideologia integradora de propostas de legitimação do Império.”
(PUNTONI, Pedro. O Sr. Varnhagen e o patriotismo (tese de doutoramento))

Finalmente,

“Conciliação e cordialidade tanto na política partidária como na racial, ao invés


das convulsões militares da América Espanhola, se tornaram os lemas na tradição
dominante da historiografia e da sociologia brasileiras.” (SUMMER, 2000, pág. 182)

É por isso que ele possui intenso confronto com Andirá. E é por isso que Andirá
desperta simpatia, já que ele é índio, mas guarda as características dos indígenas que mais
se parecem com as características do europeu civilizado, representando a soma da alma
indígena com o caráter cristão. Portanto, o índio admirado, transformado em herói, não é
um índio qualquer, mas aquele que consegue fundir as melhores características do

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selvagem e as melhores características da sociedade civilizada, cristã e patriarcal. Ou,


usando uma expressão de O guarani, é “um índio com alma de português”.
Assim, Alencar não pode ser tratado como um nacionalista puro, pois sua literatura
possui características irrecusáveis da literatura européia, ao mesmo tempo que não pode ser
tratado como um cultor dos modelos europeus, pois se preocupou em formar uma base
nacional a partir de nossa história, nosso espaço, nossos aspectos exclusivos. Da mesma
forma que, na linguagem, Alencar não é tratado nem como um antiquado, pois fazia
licenças à linguagem mais usada nos textos artísticos, querendo uma forma mais próxima
da popular, nem como um revolucionário, pois não queria desrespeitar regras gramaticais
em momento algum; da mesma forma que possui tendências abolicionistas (pois reconhece
que a escravidão é um mal para nosso país, formador de vícios), e escravocratas, pois
reconhece a escravidão como essencial para nossa economia e nossa sociedade.

Assim, em suas palavras,

“Não vamos entretanto com aqueles que desprezam por demais o estilo quinhentista,
e o têm em esquecimento profundo. Ele encerra muitas belezas, muitas elegâncias da nossa
língua portuguesa, que renascida com esmero e cuidado, dará ao estilo moderno um
encanto supremo.” (ALENCAR In: MAGALHÃES, 1977, pág. 39)

“É certo afirmar que ele buscou a nacionalidade da literatura brasileira nos temas
propostos nos romances indianistas, urbanos, históricos e regionalista. Ao fazer isso,
utilizou-se da língua portuguesa que circulava na fala do povo brasileiro, como afirma o
autor em vários momentos.” (MARTINS (tese de doutoramento), 2005, pág. 124)

Assim,

“Mas Alencar tinha juizo, e, mais monarchista que o Imperador, mais conservador
do Brasil que os patriotas liberaes, queria a libertação dos escravos com vagar,

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gradualmente, para não desorganizar o trabalho, e por meios indirectos, para não abalar
as instituições e evitar a revolução social.” (PEIXOTO, “Revista da Academia Brasileira
de Letras”, maio/1929, pág. 16)

Portanto, Irapuã é tratado como o vilão, o empecilho ao santo amor entre a índia e o
português, por ser exatamente o elemento indígena que não quer ser civilizado, não deseja
obedecer aos códigos de virtude e conduta traçados pela colonização e respeitados (como se
fossem deles mesmos) por Iracema e Araquém, por exemplo. É certo que os indígenas
possuíam e possuem regras de conduta, mas, observando-se os personagens indígenas de
Alencar (principalmente os heróis), temos uma sensação de estranhamento, pois se afastam
do que seria a cultura indígena, ao menos pelo que foi comentado pelos cronistas e o que é
reforçado pela convenção. E isso não acontece por desconhecimento por parte do autor,
mas está implícito num projeto de formação e civilização de nosso novo país. Assim,
devemos afastar o elemento totalmente selvagem e procedimentos como a vingança, a
luxúria, a guerra sem limites, ou seja, o guerreiro Irapuã. Não foi uma escolha inocente,
mas tem muito a ver com um objetivo bem definido, não só de Alencar, mas, obviamente,
de toda uma geração, tanto na literatura como na sociedade em geral.

O sempre alerta Caubi

Caubi, irmão de Iracema, um dos mais importantes guerreiros da tribo tabajara, tem
uma função auspiciosa na trama. É ele um coadjuvante, quem vai levar o guerreiro branco
ao território dos potiguaras, seus inimigos; é ele que será a salvação e a perdição: a
salvação de Martim e a perdição de Iracema, que não teria mais o amor do português. Mas,
ao mesmo tempo, é a salvação de Iracema (ficará contente com a salvação do amado) e a
perdição de Martim (ficará triste por não poder amar Iracema), daí a maior angústia de
ambos, daí o sentimento de querer e não-querer, ao mesmo tempo, que o irmão de Iracema
volte. Por consequência, em várias ocasiões em que é citado, ele não está “in praesentia”,
ele é apenas o assunto, alguém que está por vir, alguém pelo qual se espera. Mas isso não
evita que ele seja objeto de comparação, principalmente pela sua bravura, já que ele é um

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grande guerreiro, possuindo, então, características próximas de vários outros guerreiros do


romance.
A primeira comparação em relação a Caubi ocorre logo no início do romance,
quando Martim deve esperar o irmão de Iracema para chegar aos potiguaras. Meio
entristecida, a virgem pede cautela ao português: “Guerreiro branco, espera que Caubi
volte da caça. O irmão de Iracema tem o ouvido sutil que pressente a boicininga entre os
rumores da mata; e o olhar do oitibó que vê melhor nas trevas.” (pág. 20) Como já se
havia referido no parágrafo anterior, Caubi é um bravo guerreiro e, portanto, possui a
coragem e a destreza dignas de tal condição. Sua audição vai além da normal, suficiente
para livrar a ele e a quem estiver ao seu lado de qualquer obstáculo, como a perigosa cobra
boicininga, além de ter uma visão acima da comum, já que, como o poderoso oitibó, é
capaz de ver perfeitamente na mais densa bruma.
Algumas páginas depois, é o momento em que Caubi, que esteve quase sempre como
uma terceira pessoa, um distante, faz sua comparação, tem sua palavra, protegendo o pajé
Araquém e desafiando Irapuã: “Vis guerreiros são aqueles que atacam em bando como os
caititus. O jaguar, senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combatem só o
inimigo.” (pág. 42) Assim, Caubi está sempre ao lado de seus companheiros e familiares, é
o guerreiro que protege aqueles que ama, mesmo que seja necessária a hostilidade de outras
pessoas da tribo. Caubi não mede obstáculos ou consequências para auxiliar os que estão ao
seu lado, até mesmo quando fazem algo que pode ser (e normalmente é) interpretado como
traição, como no caso de Iracema: seu irmão Caubi fez questão de visitá-la, mesmo sabendo
que estaria em território inimigo, sabendo que ela fugira com o hóspede português, sabendo
que deixara a tristeza no coração de seu pai Araquém. Na condição de um guerreiro cortês e
honrado, o irmão de Iracema não julga as atitudes daqueles que ama, nem é capaz de medir
esforços para ajudar aqueles de que realmente gosta.

O líder Poti Felipe Camarão

Outro personagem de importância na história é Poti, chefe potiguara. Depois que


Martim e Iracema chegam à sua aldeia, Poti faz questão de acompanhá-los. No pequeno
ensaio “Iracema e a Crítica”, Amora (1963) cita a amizade e a fidelidade entre Poti e

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Martim como um exemplo, da mesma forma que cita Iracema e Martim como exemplo de
relação amorosa e de miscigenação, o que provoca também, por consequência, a
valorização dos personagens e do processo de fusão europeu-americano que ocorre no
romance. Assim, Poti é o guerreiro que, da mesma forma que é solidário com seus amigos,
é impiedoso para com seus inimigos (e, por consequência, com os inimigos daqueles que o
acompanham). Percebemos isso mais intensamente no próprio enredo do texto, pois,
mesmo sabendo que Iracema faz parte da tribo tabajara, maior adversária do seu povo, ele
não se opõe à idéia de ela fazer parte de sua tribo. E isso por quê ? Porque ela está junto de
Martim, amigo do líder potiguara. E se ela é a esposa do amigo branco, ela é amiga
também, deve ser assim considerada. É um código de lealdade muito simples: o amigo do
meu amigo é meu amigo, e o amigo do meu inimigo também é meu inimigo.

“Todavia a afeição de Poti difere da de Martim, como o estado selvagem do estado


civilizado; sem deixarem de ser igualmente amigos, há em cada um deles, um traço
característico que corresponde à origem de ambos; a afeição de Poti tem a expressão
ingênua, franca, decidida; Martim não sabe ter aquela simplicidade selvagem.”
(MACHADO DE ASSIS, 1986, In: Obras completas – crítica)

Vejamos agora uma das primeiras vezes em que Poti é apresentado no texto: “O
canto da gaivota é o grito de guerra do guerreiro Poti” (pág. 38) Aparentemente, esse
pequeno trecho não nos mostra grande coisa. Mas façamos um paralelismo com o que é
escrito algumas páginas depois em relação a Martim: “Saltou Martim o grito da gaivota”
(pág. 48). Tanto Poti como Martim são comparados à gaivota, é o mesmo animal servindo
como referência para ambos. Além disso, ambos são comparáveis à gaivota pelo mesmo
aspecto: o grito. Ambos possuem o grito relacionado à gaivota, logo ambos possuem o grito
comparável entre si, ou seja, há o paralelismo. Ambos conhecem o grito da gaivota como se
fossem de uma mesma tribo, ou então, de uma mesma família (sabendo que a tribo é uma
espécie de grande família). Não podemos nos esquecer também de que Iracema desconhece
o grito da gaivota, exatamente por fazer parte da aldeia tabajara, que está mais distante da
praia, inimiga dos potiguaras (“Iracema escutou o grito de uma ave que ela não conhece”,

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pág. 38). No primeiro trecho, o aspecto é ainda mais interessante, pois não é o grito de Poti
que leva ao canto da gaivota, porém, ao contrário, é o canto da gaivota que leva ao grito do
guerreiro potiguara, ou seja, é a passagem da natureza para o elemento humano. O animal é
um informante, é ele quem vai sinalizar a ira, a guerra de Poti. O grito, nos costumes
indígenas, possui várias funções e uma das principais (e pelo que parece, é o que temos
aqui) é o grito de guerra, aquele que anuncia a outra tribo e a quem quiser ouvir que há
disposição para o combate. Afinal, para os indígenas, é simplesmente impensável iniciar
um combate sem fazer seu anúncio. Fazer isso seria completamente vergonhoso.

Logo em seguida, após o curto diálogo entre Poti e seu amigo Martim, o chefe
potiguara é comparada às águas: “O chefe não carece de ti: ele é filho das águas; as águas
o protegem.” (pág. 41) Não devemos desprezar a conjunção entre o chefe Poti e as águas, e
não é uma conjunção qualquer, pois Poti é o filho das águas, as águas o protegem porque há
uma relação praticamente materna nesse caso. Ele não é simplesmente companheiro, amigo
das águas, mas é o filho das águas. Afinal, “poti” significa “camarão” em tupi, crustáceo
que não só possui aptidão para vida na água, como de fato vive nela. As águas não lhe são
segredo, são sua morada, seu lar. Ele possui maior controle sobre elas do que um homem,
por exemplo. Isso fornece a Poti um caráter próximo do semideus (já que os elementos da
natureza possuem certo valor mítico) e reforça sua autoridade como chefe de uma tribo,
pois ninguém melhor do que um filho das águas para possuir o controle de sua sociedade.
Como se trata de potiguaras (ou “comedores de camarão”, que é a explicação para o nome),
nada melhor do que essa conjunção com as águas, pois os potiguaras são os “comedores de
camarão” exatamente por não possuírem campos férteis. São habitantes da praia, do litoral
e sua relação com as águas do oceano é muito maior, tanto que eles possuem o canto da
gaivota, que é, por exemplo, ave desconhecida por Iracema, que nasceu em campos
tabajaras, mais afastados da praia. Vale recordar, também, que Martim é várias vezes
relacionado às águas, havendo, portanto, mais um ponto de conexão entre Martim, o
guerreiro português, e Poti, o guerreiro potiguara. Da mesma forma que a gaivota é a ave de
Martim e Poti, as águas são próximas dos dois guerreiros também, reforçando a ligação
entre eles.

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Agora falaremos um pouco sobre o papel de Poti em sua tribo. Como todo guerreiro
que se preze, ele deve possuir características físicas para sua função, porém, como já
sabemos, isso não basta. É necessário ter também todo um conjunto de características
psicológicas, é necessário ser tão guerreiro quanto sábio. Percebemos que, a partir de agora,
além das comparações inevitáveis com espécies animais que indicam força e impõem
respeito, haverá várias comparações com outros tipos de animais, como o tamanduá: “O
chefe pitiguara, prudente como o tamanduá, pensou e respondeu” (pág. 44). Percebe-se que
a característica que o aproxima do tamanduá não é qualquer aspecto físico, sendo que o
tamanduá não está entre os animais mais recomendáveis para tal tipo de comparação, mas o
aspecto da prudência. Como já dissemos, além de guerreiro, ele deve ser um sábio, e a
prudência, a capacidade de não se precipitar em algumas situações, evitando, assim,
maiores prejuízos para si e para os demais ao redor é uma característica própria de Poti.
Da mesma forma, a sapiência não é nada para o líder de uma tribo, se ele não possuir
a agilidade, a força, se ele não for sagaz como um animal no meio da floresta, para
perseguir as caça e se proteger de seus inimigos. Assim Poti fez quando se distanciou do
rancoroso Irapuã: “O valente Poti, resvalando pela relva, como o ligeiro camarão, de que
ele tomara o nome e a viveza, desapareceu no lago profundo.” (pág. 40) Assim, Poti é
comparado ao camarão pela sua viveza, sua agilidade. Nesse trecho, temos, porém, outro
aspecto importante. O nome Poti significa exatamente “camarão”, como já vimos, e isso
não acontece à toa: ele é chamado de camarão por possuir alguma característica que o
aproxime dos camarões. Assim, ao contrário da nossa civilização, por exemplo, onde os
critérios de nomeação chegam a ser muito vagos, desde uma homenagem a personagens
históricos ou religiosos até mesmo pela mais subjetiva estética, na civilização indígena o
nome não é uma simples identificação, mas é, supostamente, parte da própria pessoa que a
possui. Os índios oferecem nomes em comparação com fatos encontrados na natureza, são
extremamente metafóricos. Daí, a quantidade de nomes indígenas com origem em seres da
fauna e flora, por exemplo.
Existem várias outras comparações em relação ao personagem Poti. Podemos vê-lo
comparado a tronco na pág. 50: “Poti, de pé, mudo e quedo, como um tronco decepado,
esperou que seu irmão quisesse partir.” Não devemos esquecer que o tronco e as grandes
árvores estão entre os principais pontos de comparação de seu amigo Martim. Portanto, a

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comparação de Poti com um tronco reforça sua ligação com o português, e por
consequência, a ligação entre as características, habilidade e virtudes dos dois, pois ambos
são grandes guerreiros, sendo um português e o outro índio, diferença que, aliás, vai se
dissipando aos poucos. Comparou-se Poti também com uma nuvem, logo na página
seguinte: “sua cabeça movia-se pesada de um a outro lado, como a nuvem que se balança
no cocuruto do rochedo.” (pág. 51) As comparações de Poti proliferam nos trechos que
reforçam a ligação de amizade deste com Martim.
Antes de citar as várias comparações que existem nesse caso, preferimos deixar aqui
a comparação que serve como síntese da relação entre os dois guerreiros e que será apenas
reforçada nas próximas comparações. Chegando ao final do romance, Martim é batizado
por Poti a partir de instrumentos da cultura indígena. No final da “cerimônia”, há o que
podemos chamar de conclusão, com Martim, já luso-indígena, entre Iracema (sua esposa) e
Poti (seu amigo): “Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatiabo entre o irmão
e a esposa: seus ramos abraçam os ramos do ubiratã, e sua sombra protege a relva
humilde.” (pág. 68) Essa comparação resume tudo: Martim está ao lado de sua esposa da
mesma forma que está ao lado de seu irmão pitiguara, amor e proteção à sua esposa,
lealdade para com o guerreiro irmão, indo ao encontro da ideologia de Alencar e de sua
época. O escritor cearense utiliza a temática indígena, personagens indígenas e até mesmo
alguns aspectos da ideologia dos indígenas, mas sua idéia não é a de que todos devem se
ausentar da cidade, abandonar os costumes ocidentais, trazidos pela colonização e andar
nus dentro de pequenas tribos da floresta. Pelo contrário, o índio é uma figura utilizada até
mesmo para reforçar o que há de mais conservador na sociedade, é a classe média
abençoada pela cultura católica e pelo poder do Império (que agradece, aliás, a esse
processo de nacionalização, utilizada como propaganda pós-Independência). Não por acaso,
como já vimos, o índio parece, algumas vezes, mais um cavalheiro do que um indígena, e
não há relação direta com o caráter medieval. Há, na verdade, mesmo que
automaticamente, um objetivo bem definido, o de fundir os dois elementos, o indígena,
com as nossas origens e nossos costumes, e o europeu, com suas estruturas e idéias de
Estado, religião e família, para realizarmos uma nação exemplar, sendo brasileiros,
obedecendo às regras de educação e conduta, para o progresso da sociedade e do Império.
Percebamos também o parâmetro da comparação. Martim, ou melhor Coatiabo, pois já está

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batizado, é o jatobá; Poti é o ubiratã; Iracema é a relva humilde. Ora, o jatobá é uma árvore
de altura e resistência respeitáveis, da mesma forma que o ubiratã (afinal “ubiratã”
significa “madeira dura” (ybyrá + atã)), reforçando a resistência, a coragem, características
dos personagens masculinos, enquanto Iracema é a relva humilde, é a leveza, a beleza, a
suavidade feminina, é a feminilidade. Coloca-se assim, de um lado, Martim e Poti, o
elemento masculino como tronco forte e resistente, e, de outro, Iracema, como relva
humilde, o elemento feminino, indígena, singelo e frágil.
Outros trechos reforçam a ligação entre os dois guerreiros: “Poti levou o cristão
aonde crescia o frondoso jatobá”. O jatobá, como já vimos, é uma árvore respeitável por
seu tamanho e resistência, além de ser a árvore com a qual, algumas páginas depois,
Martim seria comparado em seu batismo potiguara. O momento em que o índio leva o
estrangeiro para ver a árvore é um momento de simbologia, que representa a união de
Martim com os potiguaras e, principalmente, com seu amigo Poti. Tanto que, poucas linhas
depois, Martim abraça o jatobá, lugar de nascimento de Poti. “Jatobá, que viste nascer meu
irmão Poti, o estrangeiro te abraça.” É um abraço não só no jatobá, mas é também no
lugar em que Poti nasceu, no próprio Poti e até mesmo em todo o ambiente que os cerca e
serve como testemunha. O abraço simboliza essa união entre dois seres, como se ambos
formassem apenas um, como ocorre entre Martim e Poti, ou entre Martim e o ambiente
indígena.
Outro exemplo ocorre quando Iracema informa que espera um filho de Martim. A
alegria do momento provoca mais uma rede de comparações de Poti:
“O guerreiro sem a esposa é como a árvore sem folhas nem flores: nunca ela verá o
fruto. O guerreiro sem amigo é como a árvore solitária que o vento açouta no meio do
campo: o fruto dela nunca amadurece. A felicidade do varão é a prole, que nasce dele e faz
seu orgulho; cada guerreiro que sai de suas veias é mais um galho que leva seu nome às
nuvens, como a grimpa do cedro.” (pág. 66)
Aqui aparece, de forma muito óbvia a tríade, as três coisas fundamentais na vida de
um varão, na vida de um verdadeiro guerreiro: a esposa, o amigo e a prole. A esposa dará
flores e frutos; o amigo é a base, que impede que o vento açoite a árvore, usada novamente
para comparação com Martim. Para que servem a esposa e o amigo ? Para que a árvore, ou
seja, o varão dê seus frutos, e os frutos possuem, então, o mesmo sentido que existe nos

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dias atuais: um futuro, aquilo que comprova que a “árvore” realizou alguma coisa em solo;
é quase sua identidade. E qual é um desses frutos ? A prole, o galho que leva seu nome às
nuvens. Assim, o amigo é o solo rígido, que serve de base para aqueles que estão ao seu
lado, da mesma forma como Martim também foi comparado ao aspecto de solo durante o
romance, o que reforça o paralelismo entre os dois personagens. São ambos varões, que
devem fazer jus a sua função na sociedade, o aspecto racional, forte, resistente, que não se
quebra; enquanto isso, Iracema é a flor, o que reforça o aspecto da procriação, como
função primordial da esposa nesse mesmo esquema social. Como havíamos visto algumas
linhas atrás, isso vem ao encontro do modelo social do Brasil Império: a família baseada na
razão e na sapiência da figura masculina, enquanto a mulher tem a função principal de gerar
os filhos e cuidar deles.

Logo depois, no batismo de Martim, ocorre uma comparação interessante feita pelo
mesmo Poti: “Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é a amizade do
Coatiabo e Poti.” (pág. 68) Ou seja, os dois amigos não são mais corpos separados, porém
são uma coisa só. Isso vem ao encontro do cumprimento entre eles. Os dois encostam os
seus peitos um no outro, como se estivessem grudados. A comparação de dois corpos em
apenas um pode até parecer estranho para nossa cultura ocidental, quando nos referimos à
amizade, mas, entre os índios, isso era muito comum. A mesma relação ocorre, por
exemplo, entre Martim e Iracema quando, na página 31, os dois amantes são descritos
como “frutos gêmeos do araçá”, estando um ligado ao outro natural e originalmente. Como
disse Poti, num lado está a esposa, no outro, o amigo, ou seja, estão os dois no mesmo grau
de importância. A relação de que, entre duas pessoas se fez uma só, não se refere apenas à
questão do amor ou do matrimônio, mas também ao estado de verdadeira amizade.
Um pouco depois, o potiguara observa o trabalho compenetrado – por que não dizer
preocupado - de Iracema, perto de gerar seu filho. O trabalho lhe causa admiração, que é
respondida pela virgem tabajara: “Meu irmão fala como a rã quando anuncia a chuva; mas
a sabiá que faz seu ninho, não sabe se dormirá nele.” (pág. 69)

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Sendo assim, mais do que um representante de sua tribo, mais do que agilidade,
coragem, força, Poti possui a prudência e a sabedoria dignas de um grande varão. É por isso
que consegue ter uma grande amizade com Martim: possuem características comuns. Não
basta ter o poder da guerra, deve-se ter também o poder do pensamento. São ambos da
mesma tribo, a tribo dos híbridos. Da mesma forma que Martim é batizado como novo
integrante dos potiguaras, recebendo o nome de Coatiabo, Poti é batizado na fé cristã,
recebendo o nome de Felipe Camarão. E Poti recebe a benção cristã exatamente por já
possuir características de nobreza, humildade, lealdade, imputados ao elemento ocidental. É
ele um exemplo do que era o esperado por esse projeto civilizatório: a manutenção de nossa
origem selvagem, mas absorvida pelo crivo do colonizador; é a catequese, a “evolução” de
nosso povo primitivo, como podemos ver na última página do romance, representado de
forma bem simpática: “A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará,
medrou. Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado
ressoou nos vales onde rugia o maracá.” Irapuã, por exemplo, jamais receberia o batismo,
primeiramente por não fazer a mínima questão disso e, em segundo lugar, por não ser
(digamos) digno de tal inclusão, pois, a partir deste momento, ele não seria mais um índio
tabajara, mas seria basicamente um índio cristão, como foi Poti, não somente a partir de seu
batismo, mas por todo o romance, pois era um índio com sangue nobre como Peri. Não é à
toa que tanto o índio como o europeu possuem tanto a destreza natural de um aborígine,
como a prudência e o sangue frio dignos de um civilizado. Ambos são o amálgama
desejado para a nossa sociedade. Portanto, Poti é mais que um índio de uma tribo, é o
reforço para o esquema social esperado, ao lado do papel de Martim e Iracema. Se tanto
Poti como Iracema são tabajaras que se adaptam ao código europeu, por que Iracema morre
e Poti não ? Isso porque Iracema deve morrer em sacrifício, pois é a América, a índia, a
figura feminina mais próxima dos elementos da natureza, mesmo tendo recebido, em
grande parte, as características do chamado “civilizado”, enquanto Poti já está mais
próximo do elemento europeu, é o homem que se fundiu ao ponto de vista do colonizador, a
ponto de ser levado para a Europa, tanto no romance, como na História. Enquanto Martim
sofre a saudade, por estar, mesmo após sua cerimônia, levemente mais próximo do branco
europeu, e Iracema perde a própria vida, por estar, mesmo unida ao branco, mais ligada ao
elemento indígena, Poti recebe cândida e placidamente seu nome cristão, pois está mais

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próximo da fusão almejada, é o índio (e o elemento masculino não deve ser desprezado,
pois é, convencionalmente, o racional) que aceita o civilizado. Logo, conforme ao que
pregaram jesuítas e viajantes no início da colonização, era necessário catequizar o índio,
civilizá-lo, fazer com que nossas origens obedecessem às determinações da Cruz e da
Coroa, ou seja, é preciso mostrar o que temos, mas tão necessário quanto encontrar e
mostrar nosso país, é educá-lo, conforme o projeto do Império.

A guerra: brios e emoções no limite extremo

Resta-nos falar agora sobre alguns dos momentos de maior plasticidade no romance,
em que se podem imaginar imensos quadros cheios de detalhes e cores: são os combates
entre potiguaras e tabajaras. Nesses momentos, há uma enxurrada de comparações,
principalmente com animais e o mais interessante é que os animais não servem muitas
vezes para se referir a um personagem específico, mas se referem a um povo todo ou a todo
um conjunto de guerreiros.
A guerra, não só entre os índios brasileiros, mas em várias outras culturas, é um
processo em que se dispensa quase que completamente o elemento racional, é o momento
em que a pessoa se resume a coração e alma; as forças que estão mais ocultas dentro da
pessoa são expelidas e não há quem se reconheça. Muitas vezes, não há qualquer tipo de
ponderação e o objetivo básico é vencer o inimigo. Logo, a ligação com o instinto que
existe em cada ser humano é quase total. Enquanto no dia-a-dia a razão pondera várias de
nossas atitudes, no combate, sentimentos como paixão, ódio, ira são elevados à enésima
potência. Desprezando completamente a razão, o ser humano age de forma completamente
selvagem, é a fera em momento de caça e o que lhe dirige é o instinto. Na opinião de
outros18, a guerra funciona como uma espécie de filtro, separando o mais forte, dominador
e sobrevivente, do mais fraco, derrotado, numa espécie de “seleção natural”, fundamental
para o desenvolvimento da humanidade e da vida, sendo, portanto, a guerra um sinônimo
de ação, não de morte.

18
- ver o caso de VARNHAGEN, Francisco Adolfo. “Florilégio da Literatura Brasileira”.

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Para os indígenas, a guerra possui algumas particularidades. Na descrição de alguns


cronistas e até mesmo romancistas, a tensão e o conflito entre tribos adversárias são típicos
de seu modo de vida. A guerra é algo para o qual o índio está naturalmente preparado e
onde ele tenta obter suas maiores demonstrações de honra e glória. Dessa forma, é enorme
contentamento saber que um parente morreu, sem resistir, nas mãos de um inimigo, mas é
vergonhoso o pranto de um colega ou parente, como percebemos no “I-Juca Pirama” de
Gonçalves Dias, pois esse pranto traz desgraça para toda uma tribo e até mesmo para toda a
sua raça.

As armas dos guerreiros são comparadas logo no início do romance ao anajê. É o


momento em que Martim, mesmo com o perigo de ser desafiado pelos seus adversários
tabajaras, quer sair da cabana de Arakén, porém é impedido por Iracema, que não quer que
seu amado morra: “Tuas armas só chegam até onde mede a sombra de teu corpo; as armas
deles voam alto e direito como o anajê.” (pág. 39) Sabemos que as armas, os
instrumentos dos guerreiros são uma espécie de extensão de seu corpo, fazer com que eles
alcancem e consigam o que não conseguiriam apenas com o seu corpo. Usar um
instrumento, máquina ou uma arma serve para potencializar as forças que o corpo já possui.
Por consequência, quando se diz que as armas dos guerreiros voam como o anajê (águia),
por ser uma extensão do próprio guerreiro, o anajê também está ligado a ele, existe de
forma indireta uma relação entre o guerreiro e o anajê. Afinal, a potência das armas,
demonstrada aqui pela comparação, se deve à destreza de quem a conduz. Os guerreiros,
portanto, possuem a rapidez, a força do anajê, passando isso para as suas armas.

Vamos verificar o primeiro confronto entre tabajaras e potiguaras, desde os


momentos que antecedem o combate, quando Martim foge para a tribo dos potiguaras,
seguido por Iracema. Num diálogo entre Poti e Iracema, já ocorre uma comparação entre os
guerreiros das duas tribos: “-Escuta o passo veloz do povo tabajara. Ele vem como tapir
rompendo a floresta. / - O guerreiro pitiguara é a ema que voa sobre a terra; nós os
seguiremos com suas asas.” (pág. 51). O guerreiro Poti, prudente, tem certo receio em
relação ao ataque dos tabajaras, mas recebe o apoio, de certa forma inesperado, de Iracema,
filha original da tribo tabajara. Assim, enquanto os tabajaras são a tapir, a anta, aquela que

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se move com habilidade pelos campos, os potiguaras são a ema, que voa sobre a terra, e
vai perseguir o inimigo.
O que ocorrerá com o embate entre a tapir e a ema ? O que sabemos até o momento é
que ambos vão combater com o máximo afinco, como percebemos logo no momento em
que a luta começa, e o que era tensão se transforma em explosão: “O chefe tabajara e seu
povo iam precipitar-se sobre os fugitivos, como a vaga encapelada que arrebenta no
Mocoripe.” (pág. 52). Assim, o exército tabajara avança sobre o território do adversário,
como uma onda imponente, querendo arrasar o que vier pela frente, em nome de sua honra.
É interessante a utilização de um termo relacionado ao mar (vaga encapelada) para os
guerreiros tabajaras, mesmo sabendo que quem vive no litoral e, portanto, está mais
acostumado aos fatos que ocorrem no mar, é o povo potiguara, mas isso não é sem lógica,
pois usando uma comparação com as ondas, percebe-se do ponto de vista dos potiguaras,
tribo à qual se uniram Martim e Iracema, com que força veio o inimigo.
Os habitantes da praia não podem ficar parados, esperando que os inimigos os
estraçalhem ou os aprisionem. Eles precisavam reagir, era questão urgente de vida ou
morte. E se os habitantes do interior invadiram com o ímpeto das ondas avassaladoras, os
habitantes da praia tiveram de reagir com a precisão dos cuandus para superar seus
adversários, e assim, os potiguaras lançam suas flechas, comparadas a espinhos (pág. 52).
Sabemos que o cuandu, nome indígena para o que é mais conhecido por nós como porco-
espinho, é uma animal inocente, até mesmo dócil, porém, quando se sente ameaçado, joga
sobre o possível predador os espinhos que cobrem o seu corpo e que até mesmo em seres
humanos podem provocar grandes ferimentos. Sendo assim, como o cuandu, os potiguaras
estão quietos, tranquilos, mas quando se sentem ameaçados, utilizam suas armas.
Durante o conflito, é importante destacar também o momento em que se enfrentam
Martim e Irapuã, o branco europeu contra o indígena, que se nega terminantemente a se
aproximar do estrangeiro. É o combate da espada do cristão contra a clava do silvícola: “A
espada do cristão, batendo na clava do selvagem, fez-se em pedaços.” (pág. 53) No
momento do combate entre o europeu e o índio, a espada se quebra completamente. É um
momento que representa obviamente o choque desarmônico entre os elementos português e
indígena, com profunda desvantagem para o europeu.

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Mas, logo em seguida, como não poderia ser diferente, no combate entre o branco
puro e o índio puro, aparece Iracema, a índia que vai se unir ao português, para formar o
primeiro brasileiro, aquela que, mesmo antes de sua relação com Martim, já possui
fortíssimos traços de alma européia. A esposa de Martim afugenta o guerrreiro tabajara: “a
boiciniga arrojou-se contra a fúria do guerreiro tabajara” (pág. 53). É interessante como
o conflito, a guerra, modificam completamente a pessoa, a inocente, a delicada Iracema,
próxima das flores e dos pássaros, pressentindo o perigo contra seu amado – e apenas
nesses momentos – torna-se completamente rude, ameaçadora, e logo contra aqueles que
pertencem à tribo da qual fazia parte, o que parece até mesmo paradoxal, mas se explica
pela sua dedicação em relação ao seu marido forasteiro. Assim, no conflito entre o
guerreiro português e o guerreiro tabajara, quem define a situação é exatamente a
personagem que une em si as duas forças: a simplicidade e o sentimento do autêntico
americano com a honra e a fidelidade do branco. A fusão se sobrepõe em relação à
“pureza” de Martim e Irapuã.

Ainda haveria um conflito entre os franceses e os potiguaras, já perto do final do


romance. Nesse momento, ocorre um grande esquema de comparações. Inicialmente, os
tiros são comparados abertamente a trovões, cuja plasticidade analisaremos um pouco
mais à frente: “Rugem os trovões na destra dos guerreiros brancos; mas os raios que
desferem mergulham-se na areia, ou se perdem nos ares.” (pág. 79)

Na confusão, no caos do conflito, a imagem de vários guerreiros que são atingidos


pelas flechas: “cada guerreiro tomba crivado de muitas flechas, como a presa que as
piranhas disputam nas águas do lago.” (pág. 79) Notemos a dramaticidade da imagem;
podemos até mesmo imaginar o quadro de uma batalha. Da mesma forma que as piranhas
cercam e traspassam o corpo da vítima com seus dentes afiados (pirá = peixe; ãia =
dentado, com dentes), as flechas atravessam os guerreiros por vários lados.
Mas o momento de comparação mais importante neste conflito está logo depois,
quando os guerreiros voltam para as canoas a fim de pegar mais munição, diante da
resistência de seus adversários: “Os inimigos embarcam outra vez nas pirogas, e voltam ao

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maracatim em busca de grandes e pesados trovões.” (pág. 79) É claro que o narrador sabe
que era a munição que estava sendo carregada, não eram trovões. Porém, unindo-se ao
ponto de vista do indígena, que interpretaria o som de explosão do projétil como o barulho
de trovão, ele não se recusa a chamá-lo assim. Podemos perceber um tom de espanto por
parte dele, até mesmo próxima do que deveria ter sido o susto dos aborígines diante da
supremacia do Caramuru. É mais um exemplo claro do que tínhamos já comentado, isto é,
a proximidade maior de Alencar com seus personagens indígenas em “Iracema” em relação
a “O guarani”. É por isso que o narrador utiliza uma organização gramatical mais próxima
das línguas indígenas durante todo o romance, mesmo quando está descrevendo um
ambiente ou uma situação. É por isso, também, que utiliza tantas vezes as metáforas em
sua lenda do Ceará.
As guerras, assim, são momentos de grande plasticidade do romance, intensas
imagens, que representam as ações praticamente superpostas no combate e o conflito entre
o elemento nacional e o elemento estrangeiro. Mas quando os dois se esbatem, na figura da
Martim e Irapuã, quem predomina é Iracema, a “boa selvagem”, a índia que possui as
características próprias de uma heroína européia e, por isso, digna do amor do português, da
mesma forma que Poti é digno de sua amizade e do batismo cristão. E, para ilustrar a
simpatia do narrador diante do índio (civilizado, é claro), percebamos como a forma de ele
representar a realidade ao seu redor é igual à forma com que os indígenas representam. Ele
toma o ponto de vista do aborígine, chamando os tiros de “trovão”. Aproximação que pode
ser percebida em outros aspectos, principalmente a utilização gramatical da língua indígena
em vários passos do romance, como veremos adiante.

A linguagem de Alencar e gramática tupi

As comparações e as metáforas, como já vimos, são de grande importância nos


idiomas indígenas. Os habitantes da floresta eram hábeis em usar termos já conhecidos do
mundo que os cercava, para se referir a fatos novos, até mesmo para criar alcunhas. Vamos
nos lembrar no caso de “tapira”, palavra que designa a anta, mas que foi usada pelos povos
falantes do tupi para designar a vaca, por acharem semelhança física com ela. O mesmo
acontece com “jaguara”, originalmente “onça”, mas que foi palavra usada para o cão

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doméstico, trazido pelo europeu, desconhecido até então pelos habitantes do Brasil. Não
podemos nos esquecer também do caso do viajante Jean de Léry, que veio ao Brasil e teve
contato direto com os índios. Como a letra L não existe no tupi, os indígenas foram
obrigados a chamá-lo “reri”, de forma um pouco maldosa, pois “reri” significa “ostra” em
tupi, e provavelmente o apelido não foi dado sem certo tom de jocosidade. E as
comparações e metáforas usadas pelos indígenas tinham, claramente, como base a natureza,
seus fenômenos, seus seres, animais e vegetais que os cercavam, pois ela era o mundo que
eles conheciam com maior profundidade. As comparações, para eles, não faziam parte
apenas da língua falada, mas também da dança e da música presentes em seus rituais.

“O improvisador, ou improvisadora, garganteava a cantiga, e os mais respondiam


com o fim do mote, bailando ao mesmo tempo, e no mesmo lugar, em roda, ao som de
tambores e maracás. O assunto das cantigas era em geral, as façanhas de seus
antepassados, e arremedavam pássaros, cobras e outros animais, trovando tudo por
comparações, etc...” (WOLF, In CÉSAR, 1978, pág. 148)

Como este trabalho possui como base as comparações, tão caras aos antigos
indígenas, o aspecto gramatical não poderia ser esquecido. Veremos como várias outras
características gramaticais do tupi (idioma que serviu de base para Alencar) tiveram
influência no romance. Em sua análise, Pinto (1995) informa que, em seus romances
indianistas, Alencar tem um processo de aproximação em relação aos personagens
indígenas e, em várias partes do romance, percebemos como o elemento gramatical é
importante para isso, pois o autor utiliza estruturas, pensamentos e palavras muito próximos
da visão de mundo compreendida como visão de mundo indígena.
Um exemplo de como o autor utiliza elementos da estrutura gramatical indígena está
na pág. 21 do romance, quando Irapuã tenta convencer seus irmãos da tribo a enfrentarem o
branco, para ele, o perigo que vem para sua tribo. O jovem guerreiro encerra suas palavras
com uma frase curta, mas de efeito: “Irapuã falou: disse.” (pág. 21). A frase indica que
Irapuã não volta uma palavra sequer no que disse e está totalmente decidido a defender seus
ideais. O próprio Irapuã se nomeia, usa como uma terceira pessoa.

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Mas o fato que nos chama mais a atenção neste momento é outro. Após a curta frase,
o narrador usa o termo “disse”, seco, exato, sem expressões como “Irapuã disse” ou “disse
o jovem guerreiro” e sem acrescentar coisa alguma. Deixou pura e simplesmente o verbo,
por si só. O impacto do verbo aumenta ainda mais quando percebemos um fator lingüístico
importante: na língua tupi, não existe o conhecido discurso indireto, o que obriga um
falante a dizer exatamente tudo o que o outro disse acrescido do termo E’I, ou seja, “diz”
ou “disse”, numa estrutura que se aproxima muito da utilizado pelo narrador na passagem
descrita acima, mas utilizando já a língua portuguesa.
Sabemos todos como, na falta de marcações como horas e minutos, os indígenas
utilizavam a posição dos astros, ou até mesmo fatos da natureza como o canto de uma ave,
o ciclo de uma planta, para definir o tempo. Vejamos o exemplo do caju, cujo ciclo demora
aproximadamente um ano, o que servia de base, entre outras coisas, para definir
aniversários, datas festivas. Um pouco antes do trecho acima, quando Iracema comunica a
Martim que ele poderá sair da aldeia, quando voltar seu irmão Caubi, ela avisa que ele
chegará assim que vier o sol, de forma bem poética: “O sol que vai nascer, tornará com o
guerreiro Caubi aos campos do Ipu.” (pág. 20) Essa quase prosopopéia é bem comum nas
línguas indígenas para determinar o tempo. O sol parece não só se mostrar no céu,
decretando o dia, mas leva consigo (“erasó” = termo específico do tupi para levar, “fazer ir
consigo”) o guerreiro Caubi.
Esses mesmos fenômenos da natureza que são fatos elementares para os chamados
“civilizados”, são explicados ao gosto da lenda pelo indígena, como já vimos inclusive na
festa do cauim, na figura da lua “mãe dos guerreiros”, tão aguardada pelos homens da tribo.
Na pág. 44, a lenda como explicação dos fatos da natureza, uma certa mitologia, é
encontrada novamente: “Nasceu o dia e expirou. / Já brilha na cabana de Araquém o fogo,
companheiro da noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céu, as estrelas, filhas da
lua, que esperam a volta da mãe ausente.” O autor faz questão de deixar no romance o
ponto de vista do aborígine para o que acontece no céu estrelado das noites da aldeia.
Poderia descrever o fato com o pincel do civilizado, mas, como disse Alencar na polêmica
da “Confederação dos Tamoios”, livrou-se das idéias de civilizado e quis entrar nu na
floresta dos indígenas.

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Na página 30 do romance, quando Caubi retorna de sua expedição, possibilitando a


saída de Martim, ele mesmo se apresenta ao pajé Araquém: “Caubi voltou: disse o
guerreiro tabajara.” Ou seja, o próprio Caubi diz que Caubi voltou em vez de usar
simplesmente “Eu voltei”, por exemplo. Há a convenção de que a utilização da terceira
pessoa é muito comum nas línguas indígenas, mesmo quando o falante se refere a si
mesmo, como nesse caso, em substituição à primeira pessoa. Embora isso não tenha
fundamento no caso do Tupi, tal procedimento confere maior concretude à expressão,
menos subjetividade, o que é característica dessa língua indígena.
Um outro exemplo ocorre na pág. 60, quando Poti e Martim estão conversando.
Primeiramente, temos a fala de Poti, logo depois a fala de Martim: “- O guerreiro branco
pensa; o seio do irmão está aberto para receber seu pensamento.” “- Teu irmão pensa que
este lugar é melhor do que as margens do Jaguaribe para a taba dos guerreiros de sua
raça.” É importante observar também, neste ponto do romance, que Martim se utiliza do
processo da 3. pessoa, ao qual já havíamos referido no parágrafo anterior, o que vai ao
encontro do processo de indianização que pudemos observar em Martim, indo do
colonizador seco e metódico ao amante pronto para entrar em contato com as metáforas e
lendas indígenas: a transformação do explorador cristão para o habitante “batizado”, o
Coatiabo das terras dos potiguaras.
Assim, também não é raro na sua convenção das línguas indígenas a utilização da
parte pelo todo, muitas vezes com referência a partes do corpo humano, como se elas
tivessem autonomia, como no exemplo da mesma página 30: “Os olhos de seu pai gostam
de vê-lo.” Ou, também, em trecho da pág. 60: “O guerreiro branco pensa; o seio do irmão
está aberto para receber seu pensamento.”. Na pág. 51, quando Martim e Iracema
começam a morar na tribo potiguara, há outro exemplo: “- O que escuta o ouvido do
guerreiro Poti ?”. Assim, não só o uso das metáforas seria frequente entre as populações
indígenas, como também as metonímias que acabamos de apresentar.

Um dos costumes das tribos falantes do tupi antigo era o cumprimento de chegada:
“Ereiupe ?” (Vieste ?) / “Pá, aiur.” (Sim, eu vim.). Eis o diálogo que ocorria
invariavelmente entre esses povos, com a chegada de um conhecido e que ocorre quando
Martim se encontra pela primeira vez com o pajé Araquém, logo no início do romance.

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Perto do final do romance, na pág. 84, para simbolizar a relação harmônica entre os
brancos (entre eles Martim) e os tupinambás, temos um caso interessante de utilização do
ponto-de-vista indígena: “A raça dos cabelos de sol cada vez ganhava mais a amizade dos
tupinambás; crescia o número dos guerreiros brancos, que já tinham levantado na ilha a
grande itaoca, para despedir o raio.” O trecho mais importante do parágrafo está no final,
quando o narrador fala da grande itaoca que despede o raio. Itaoca (ou “casa de pedra”, do
tupi, de “itá” = pedra; “oca” = casa) era a forma como os indígenas representavam as
fortalezas, enquanto os raios claramente são os tiros dos canhões. O autor poderia muito
bem usar os termos “fortaleza” ou “canhão”, mas preferiu os termos utilizados pelos
indígenas na época, preferiu se aproximar do ponto de vista do aborígine, como ele já havia
feito em outros pontos do texto.
A aproximação entre o ponto de vista do narrador e da visão de mundo indígena
poderia ser observada também em outros pontos do texto, outros detalhes, como ocorre na
página 63, com o falecimento de Batuireté, durante a visita de Martim e Poti: “Então o
chefe potiguara entoou o canto da morte; e foi à cabana buscar o camucim, que
transbordava com as castanhas de caju [usadas para representar a idade]. Martim contou
cinco vezes cinco mãos.” A última frase é a parte mais importante desse trecho,
aproximando não só o narrador, como também Martim, da visão de mundo indígena, e
tentando aproximar também, por reflexão, o próprio leitor dessa visão de mundo. Sabendo
que cada mão possui, convencionalmente, cinco dedos e Martim contou cinco mãos (25)
cinco vezes (5 X 25 = 125), percebemos que Batuireté já era um guerreiro mais que
centenário. Os índios, porém, não tinham números específicos para ilustrar grandes
quantidades (como cento e vinte e cinco), usando inclusive os dedos das mãos e dos pés nas
raras ocasiões em que expressavam tais quantidades. Por exemplo, o tupi antigo
simplesmente desconhecia vocábulos específicos para valores acima de quatro, ou seja, os
números cardinais em tupi não passam do “quatro”, pois não era necessário para eles. A
partir do “cinco”, eles eram obrigados a usar termos como “xe py” (meu pé) ou “xe pó”
(minha mão) em múltiplos de “cinco” ou simplesmente “nã” (assim), mostrando a
quantidade com os dedos da mão. Assim, quando o narrador (e Martim) resolve demonstrar
a quantidade não pelo nosso mais conhecido numeral “cento e vinte e cinco”, mas pela

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quantidade de mãos, como ocorria na língua tupi, o faz como mais uma forma de tentar se
incorporar ao mundo do aborígine.
Um exemplo que pode demonstrar a aproximação entre o ponto de vista do branco e
o ponto de vista do indígena está no final do romance, na descrição do padre, que chega na
mesma embarcação em que estão Martim e Moacir: “um sacerdote de sua religião, de
negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.” (pág. 87) A linguagem utilizada
nesse trecho aproxima-se da visão dos indígenas, numa perspectiva de estranhamento, que
podemos ver numa descrição um pouco mais atenta da figura do abaré (padre). Ela se
parece uma pouco, também, com a linguagem utilizada pelos viajantes na descrição de
pessoas, vestimentas, existentes apenas no ambiente do índio. Graças a essa descrição mais
cuidada, própria de quem quer ilustrar o ponto de vista do estranhamento, daquilo que é
diferente, exclusivo, é que o autor consegue aquele resultado estético.

Assim, quando Alencar se utiliza de uma estrutura mais próxima da gramática e da


semântica indígena, percebemos quanto ele quis se aproximar do índio, de seus
personagens, quanto ele queria lhe dar valor, porém, ao mesmo tempo, podemos perceber
também outro aspecto importante da obra, pois o escritor cearense consegue fazer, com
isso, no campo da linguagem, o que seria o seu intuito de civilização, a saber, juntar os
elementos indígena e europeu, a exclusividade de nossos costumes, nossa fauna, flora, com
a base social trazida pelo português civilizador, utilizando várias vezes a estrutura sintática
próxima das línguas indígenas com o léxico próprio da língua portuguesa. Portanto, além
de demonstrar a proximidade do autor com os silvícolas – ele não é mesmo imparcial -,
vemos nesse aspecto que existe já implícita a busca da fusão a que nos referimos tantas
vezes, lembrando que o índio que Alencar quer justificar e proteger é, obviamente, o índio
civilizado.

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Parte V - Conclusão

Alencar buscou representar, principalmente no nascimento de Moacir, a ideia do


nascimento do Brasil, nossa história e nossa identidade, por meio da junção dos elementos
indígena e português. Na verdade, esse processo já se inicia bem antes do nascimento de
Moacir. Quando, a partir do contato com Iracema, Martim começa a se indianizar, ele vai
fundindo seus aspectos de europeu civilizado com os do aborígine, formando já uma mescla
cujo produto é o elemento brasileiro. O auge desse processo é o batismo, em que ele é
homenageado a partir de elementos trazidos da natureza, sendo agora um novo homem,
nem português, nem indígena, mas um amálgama destes.
Um dos principais problemas é que as características desse índio são bastante
discutíveis. Possui características de amizade, lealdade e honra muito mais próximas das do
europeu civilizado do que das dos índios descritos, por exemplo, nas leituras de viagem do
século XVI (obras que, como já vimos, Alencar contesta em grande parte). Portanto,
quando se une ao índio, Martim está se unindo a uma européia dos trópicos ou, como já
comentara Machado (1986), uma “Diana das selvas”. Seria, assim, um índio de mentira,
com certificado de civilização européia.
Mas de onde viria esse índio de mentira ? Qual é o motivo de sua criação? Para
muitos críticos, é o desdobramento de um romancista que se baseou no olhar estrangeiro, na
literatura estrangeira, tomando como ponto de partida autores europeus e americanos e suas
relações com o elemento selvagem. É bem provável que estejam corretos. Porém, onde
mais ele poderia se basear para fazer seu romance indígena, de onde tiraria seu “bom
selvagem”, o índio que, sem deixar seus costumes, teria características tão civilizadas,
aquele personagem que demonstraria com toda as suas virtudes a “perfeição do povo
brasileiro” ? Ele não tinha como não se apoiar em elementos europeus. Não possuíamos
ainda, infelizmente, uma tradição e deveríamos tentar construir uma e sabemos muito bem
que nada se constrói do nada.
Assim, temos uma síntese do brasileiro, ou seja, a figura do índio, com suas vestes,
suas cerimônias, seus costumes, suas características físicas, mas, ao mesmo tempo, com os
sentimentos e valores próximos do perfeito civilizado; temos também a figura do português

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indianizado que se vai fundindo aos costumes dos potiguaras e, finalmente, a figura de
Moacir, gerado a partir da dor, do sofrimento, da extinção da mãe índia.
Os dois batismos, o de Moacir e o de Poti, são circunstanciais para representar essa
fusão. Já vimos que o batismo de Martim é o auge do processo de indianização do
colonizador branco, da mesma forma que o batismo de Poti é o cume do processo de
europeização (e cristianização) do elemento indígena. Porém, na verdade, ambos as
cerimônias são, na verdade, uma só, que é o batismo do elemento brasileiro. Tanto o índio
que adquire o “status” de civilizado, como o europeu que adquire o caráter selvagem são
faces da formação do brasileiro: a ligação de nossas características nacionais, originais,
filtradas pelo padrão trazido pelo branco colonizador. Sabemos, porém, que tanto o
processo de indianização de Martim (pela cerimônia), como o processo de europeização de
Iracema (pelo amor) não são totalmente satisfatórios, já que ambos ainda possuem um
estigma, uma ligação considerável com suas origens, o que gera a perda, na forma de
saudade, angústia (que não deixa de ser uma morte) em um e na forma da morte em outro.
Por outro lado, em Poti e Moacir essa fusão tão desejada tem consequências mais
harmoniosas, pois Poti está mais próximo dessa fusão entre o branco e o americano - por
ser um índio, não uma índia – e por Moacir ser uma nova vida, expressão do futuro.
Mas qual é a relação da comparação entre personagem e natureza dentro desse
processo ? Da mesma forma que os elementos indígena e europeu se unem, os personagens
e a natureza se fundem numa coisa só, ou seja, podemos verificar, depois de certo tempo,
que não há mais distinção entre as duas classes. Isso tudo por quê ? Porque a natureza é a
representação do selvagem e, quando essa fusão acontece, o personagem está
completamente inserido no ambiente indígena. Para demonstrar isso, basta lembrarmos que
Iracema, já meio civilizada, é utilizada como comparação, ligação com a natureza desde o
início do romance, enquanto Martim demora certo tempo para que isso comece a acontecer,
pois é ainda um europeu puro, incorporando aos poucos o veio selvagem. As metáforas e
comparações deste com a natureza só vão começar quando Martim já tiver esse processo de
indianização adiantado.
É o homem que se joga para a natureza ou a natureza que se transforma em elemento
humano ? Poder-se-ia dizer que não é nenhuma dessas duas coisas, mas é a natureza e o
homem que vão ao encontro um do outro para formarem um híbrido, algo novo, da mesma

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forma que o europeu e o indígena se unem para formar algo que não existia até então, o
brasileiro, que não deve abandonar sua origem (indígena), mas deve manter o lado “bom”
da sociedade já civilizada, católica (portuguesa).
Logo, como o próprio processo de metaforização indica, o objetivo é construir o
Brasil a partir de seus aspectos originais e as características civilizadas (bem ao gosto da
monarquia patriarcal), como informa Proença (1966): “respeitou reverentemente e fez seus
heróis respeitarem as convenções sociais” (pág. 101) Mas quais aspectos dos selvagens e
quais aspectos dos europeus deveriam ser considerados ?

São mantidos dos indígenas os seus costumes, sua gramática, seus rituais. Portanto, o
índio continua seu contato com a natureza, sua pesca, seu trato com raízes e plantas,
continua a colher o alimento nas árvores, na caça, em suma, o contato com o ambiente
natural tipicamente brasileiro. Devemos considerar também as palavras, a construção das
frases, a expressão, formando uma língua mais próxima do “brasileiro”; da mesma forma
que devemos considerar a festa do cauim, o batismo, etc. Já vimos como muitas
características, sentimentos dados ao selvagem pelo autor estão baseados em convenções de
empréstimo da sociedade dita civilizada. Não que os indígenas não possam ter ações de
fidelidade e amizade, muito pelo contrário, porém, quando o autor o faz nesse caso, está-se
baseando em características já fornecidas por nossa sociedade. Sendo assim, devemos
absorver principalmente as características culturais do aborígine e seu contato direto com o
ambiente.
Do branco europeu, o que podemos usar ? Basicamente, as regras sociais fixadas à
tradição cristã (trazida, aliás, pelo próprio português). São características como coragem, fé,
respeito, piedade e honra, que vieram ao encontro do selvagem, que logo aprovou o que o
português trazia, como podemos perceber pela figura de Poti. A estrutura familiar própria
dos civilizados, com a monogamia e a relação patriarcal também estão claros na obra. Não
que não haja sociedades indígenas baseadas no casamento com apenas uma esposa ou na
figura do homem como chefe, mas a forma como essas questões são apresentadas tem
como origem a cultura européia.
Portanto, se quisermos resumir, podemos dizer que, para formarmos o caráter
realmente brasileiro, a alma deste povo recém-independente, devemos absorver a interação

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do selvagem com o ambiente natural, seu respeito à natureza e aos costumes tradicionais,
ao mesmo tempo que absorvemos a organização sócio-política do conquistador. Assim, o
verdadeiro brasileiro será algo parecido com o que vemos no próprio prólogo de “Iracema”:
“Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses, que figuram a
boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não mui distante do
seu. A dona de casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso
creme do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio,
e agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede.” Ou seja, temos o contato com a
natureza, o buriti, a rede, o coco verde, a brincadeira de boiada com ossos, próprios do
nosso ambiente, mas baseados na estrutura patriarcal, com a esposa carinhosa, servindo ao
marido, que se embala na rede, alheio ao jogo dos filhos.
Aliás, nas próprias correspondências de Alencar, podemos perceber parte dessa fusão
entre natureza selvagem e cultura européia. Quando fala sobre sua casa na região da Tijuca,
enche de elogios o lugar. Sua casa de alvenaria situada no meio das árvores, no topo da
serra, é o encontro entre natureza e civilização que o autor tanto almeja: “Elevando-se a
estas eminências, o homem aproxima-se de Deus. A Tijuca é um escabêlo entre o pântano e
a nuvem, entre a terra e o céu. O coração que sobe por êste genuflexório, para se prostrar
aos pés do Onipotente, conta três degraus, em cada um dêles, uma contrição.”
(ALENCAR, pág. 52) Da mesma forma que no prólogo de Iracema, é o natural que se
civiliza, e o civilizado que se naturaliza, formando um ponto de encontro, que seria o
perfeito brasileiro, como os personagens do romance, que se jogam para a natureza e onde a
natureza se joga para os personagens, formando uma coisa só, sem diferenças. O
fundamental é manter aquilo que os índios já tinham e incorporar o que vem de fora, mas
apenas o que nos interessa. Assim, durante o romance, Iracema, Martim, Poti, apesar de
suas origens diversas, formavam uma coisa só, todos heróis, todos ideais, exemplares: a
natureza que se civiliza e a civilização que se lança ao elemento selvagem.
Assim,

“Alencar acredita na mestiçagem, pois esse fenômeno está na base de nossa


formação.” (PINTO, 1995, pág. 146)

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“Sendo assim, pode-se dizer que os traços da identidade nacional delineada a partir
das obras alencarianas analisadas podem ser recuperadas tanto na concepção da
natureza, que, mesmo culturalizada, é eufórica, como na construção do sujeito brasileiro e
na de sua língua.” (MARTINS (tese de doutoramento), 2005, pág. 153)

A estrutura patriarcal subentendida em “Iracema” é codificada, inclusive nas


comparações e metáforas utilizadas entre os personagens e a natureza, como já vimos.
Enquanto Martim é sempre o rochedo, o mineral, aquilo que não se move e não se quebra,
ou as árvores, como o jatobá, imponentes e fortes, Iracema é o pássaro, é a flor, é a
gracilidade envolta em fragilidade, é o que sobrevive amparado por algo mais forte, a
árvore ou o rochedo. Da mesma forma que a esposa serviria ao marido, Iracema na maioria
dos casos está submissa a Martim, desobedecendo-lhe apenas nos momentos em que a cega
obediência poderia custar a morte do português ou simplesmente seu afastamento.
Essa estrutura patriarcal não está presente apenas em “Iracema”, obviamente, mas
está em outras obras indianistas do autor, como em “O guarani”, como está em seus
romances urbanos, como “Senhora” e “Diva”, ou até mesmo em seus antigos folhetins,
cujo público-alvo, inclusive, eram as mulheres, as damas e senhoritas de classe mais
abastada, que aproveitavam o final de semana com o lazer e o entretenimento.
Logo, pensava-se uma ligação entre aquilo que Alencar pensava ser o índio e as
civilidades trazidas pelos europeus, tudo bem ao gosto do novo país independente:
conservando sua origem, ao mesmo tempo em que importa as características úteis,
superiores (ordem, moral e bons costumes, mesmo que apenas na teoria) dos europeus.
Uma pergunta talvez incomode: Alencar oferece virtudes de um cavalheiro a um índio com
segundas intenções ou crê que o índio realmente possua já essas características ? A resposta
exata é bem difícil, mas ambas as hipótese devem estar corretas, pois devemos nos lembrar
de que Alencar rechaça todas as opiniões dos cronistas que criticam algumas
características dadas ao indígena, acreditando no índio como ser inocente e de ações
elevadas, mas, ao mesmo tempo, imputa-lhes virtudes próximas do elemento cristão,
retirando o que poderia ser visto como horrendo, com o intuito de demonstrar o que o povo
brasileiro deveria ser. Ele tinha, na verdade, um projeto de identidade e futuro para a nossa
nação.

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Surge aqui, porém, uma nova dúvida: seriam os personagens indígenas de Alencar,
na verdade, seres já civilizados ? Essa é uma das principais críticas feitas ao autor cearense
durante sua vida literária. Franklin Távora, por exemplo, se exaspera diante das
características de cavalheiros medievais dadas aos personagens de “Iracema”.
Os personagens indígenas de Alencar realmente estão mais próximos dos europeus
do que dos índios reais. Valores como lealdade, humildade e monogamia são característicos
de uma sociedade dita branca, cristã e civilizada. São ações e sentimentos que tornam o
aborígine um nobre europeu, sendo baseados na ideologia do europeu.
Mas há exceções. Um exemplo fortíssimo é Irapuã, como vimos, pois ele é portador
da vingança e da força sem limites, que se revolta com a presença do colonizador. Já
percebemos também que é exatamente por isso que ele é tratado como um vilão do
romance, aquele que se nega a aceitar o relacionamento da tabajara Iracema com o
português Martim.
Logo, o personagem indígena deve ser portador de características próprias de um
nobre europeu, um brasileiro civilizado, e os índios que não pertencem a esse conjunto são
os índios maus, cujas idéias são deploráveis e devem ser afastados para que a paz e a
harmonia reine na fusão entre o indígena e o português, o colonizado e o colonizador.
Isso acontece também em “O guarani”, por exemplo, pois, nesse romance, os aimorés
são os índios cruéis, enquanto a tribo dos goitacazes, à qual pertencia Peri, é a dos índios
dóceis. Enquanto isso, em alguns escritos, ocorre exatamente o contrário, ou seja, os
aimorés são respeitados enquanto os goitacazes são discriminados, como ilustrou de Marco:
“Os cronistas davam notícia do caráter pálido e mediano dos nativos Goitacazes, nação de
Peri, e muito louvavam a coragem dos Aimorés. Estes, nômades e antropófagos, a
narrativa destrói, o índio que se submete à catequese ganha estatura de herói.” (MARCO,
In: “Anais do I Simpósio de José de Alencar”). Portanto, vemos mais uma vez como o
índio que possui características como a vingança, a antropofagia, a poligamia não eram
exaltados nos romances alencarianos, ao mesmo tempo que os índios submissos ao
cristianismo civilizatório possuem o status de herói, mesmo sendo desprezados pelos
historiadores, que aliás, como já vimos, possuem outros pontos de atrito com o escritor
cearense.

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Os índios de Alencar, portanto, já são civilizados. Já são o híbrido do elemento


nacional, o aborígine, com o elemento europeu, o colonizador; já temos a fusão da nossa
cor local com a civilização necessária para o progresso do país e que é trazida pelo
colonizador cristão.
Mas para Alencar, o elemento indígena é realmente um cavalheiro ou essa fusão de
características possui já um objetivo definido ? É claro que existe uma intenção civilizatória
na obra de Alencar, não só nos romances indígenas, como nas obras urbanas. O autor
cearense desejava tanto ilustrar a história de nosso país como todos os seus ambientes, tanto
a cidade como o campo, ao mesmo tempo em que projetava a ordem e a civilização, sob a
autoridade da Monarquia e da Igreja Católica, fundamentais para o progresso do novo país.
Desejava ver desenvolver-se o país a partir da ligação entre campo e cidade, presente e
passado, retendo o que, no seu modo de ver e de boa parte da sociedade letrada, era-nos
nocivo, e apreendendo o que é essencial para atingirmos aquele objetivo. Não podemos
desprezar também a frase de “Como e por que sou romancista ?”, em que o próprio autor
demonstra seus sentimentos em relação ao índio: o seu personagem indígena não é real,
mas um ideal, o que condensaria tanto o seu sentimento de inocência em relação aos nossos
primeiros habitantes, como o projeto, o ideal, uma identidade nacional que una aquilo que
nos é origem, que nos é exclusivo, às idéias de ordem do europeu colonizador.
Logo, tentando juntar todos esse pontos, podemos até mesmo dizer que o índio é
dotado naturalmente de inocência, porém ao mesmo tempo, todas as caraterísticas como
docilidade são reforçadas por um projeto civilizador de nosso país.
Aliás, a utilização do romance para demonstrar o ideal de Brasil civilizado,
patriarcal e cristão não é surpresa. Com efeito, segundo Machado19 (2001), praticamente
todos os românticos eram monarquistas. (“O povo mantinha mais ou menos crítico em
relação a esse paternalismo. Mas os intelectuais gostavam de proclamá-lo. Aliás, a
maioria esmagadora dos românticos era monarquista.”) As idéias de ordem e fé estão
automaticamente conectadas à monarquia de Pedro II. Estão presentes na revista
“Niterói”, nos ensaios de Gonçalves de Magalhães e Pereira da Silva, passando por artigo
de Torres-Homem na “Minerva Brasiliense”. A evolução artística e científica liga-se à idéia
da autonomia intelectual de nosso país, lançando luzes sobre o futuro da nação, conforme

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MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o Romantismo. RJ: EDUERJ, 2001.

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projetado pela monarquia cristã e patriarcal. Afinal, as próprias idéias, os projetos


difundidos pela literatura indianista tinham íntima relação com os designíos de nossa
monarquia, o que dava a esses escritores um determinado conjunto de privilégios diante do
poder. O escritor cearense, obviamente, não era exceção a isso, mas muito pelo contrário,
era convicto monarquista, imaginava inclusive que não havia regime possível em nosso
país a não ser o regime imperial. Portanto, mesmo com a discussão estética em relação à
Confederação dos Tamoios, Alencar e Magalhães possuíam ideologias bem próximas em
relação aos rumos que o país deveria seguir. Portanto, a polêmica entre eles não está
exatamente no objetivo, que era a formação de nossa “brasilidade” e da sociedade brasileira
ideal, mas em como era representado esse objetivo, esse Brasil perfeito, que absorvia as
regras de civilidade e progresso vindos do Velho Mundo, mas sem perder o que lhe é
exclusivo. Para demonstrar melhor os ideais políticos de Alencar, lembremo-nos das
Cartas de Erasmo, conjunto de protestos escritos pelo escritor cearense que demonstram
sua fé no imperador e na concentração de poderes para organizar nosso país.

Assim, segundo Brookshaw (1983, pág.27),

“Na verdade, a escravidão foi aceita por todos, inclusive a maior parte dos
escritores que, geralmente, surgiam pelo interesse dominante dos proprietários de
escravos, ou dependiam do amparo das instituições escravistas.”

Não podemos esquecer também que boa parte dos poetas e romancistas do
Romantismo brasileiro se embrenharam na política da época. Alencar, um dos exemplos
mais fortes, participou do Parlamento e foi Ministro da Justiça, e apenas não foi senador
pela província do Ceará (foi o primeiro colocado pelo voto popular) graças à interferência
de Pedro II, que tinha poder de veto e não o aceitou como senador, dizendo que ele era
muito jovem para tal cargo.
Existem vários outros exemplos e essa união dos literatos com a política irritava
profundamente o então crítico Machado de Assis. Para ele, era lamentável que grandes

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talentos da nossa literatura se vissem obrigados a deixar de lado a musa inspiradora, para
cair nos rudes braços do poder.
É interessante observar também que o imperador Pedro II foi uma espécie de
mecenas, apoiando e patrocinando vários poetas e artistas. Um importante exemplo foi
Gonçalves de Magalhães, cuja “Confederação dos Tamoios” foi editada sob os cuidados da
Casa Real, pois o imperador viu ali a grande epopéia da nação brasileira. Daí a (primeira)
grande polêmica do imperador com o escritor José de Alencar, que criticou duramente o
trabalho de Magalhães, e Pedro II, que assinou um texto como “Outro amigo do poeta”,
discordando publicamente de algumas observações do romancista.
Não podemos esquecer também o fato de Pedro II estar sempre presente nas reuniões
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), não faltando a uma reunião sequer
durante vários anos. Ele realizou também vários saraus, inclusive na própria Casa Real, o
que seria, na verdade, sua diversão, contra a dureza da vida de monarca, cercada de
interesses e politicagens.

Aliás, uma das funções básicas do IHGB, criado pelo Imperador, foi centralizar os
dados históricos, geográficos e culturais acerca de nosso país, fazendo que as informações
sobre todos os costumes que revelassem a nossa identidade nacional estivessem
concentrados, o que tinha tudo a ver com o projeto centralizador da nossa monarquia. O
intuito principal de estudar e analisar o Brasil era quase que inventariar suas
particularidades. Era um processo de centralização científica e cultural, aliada a um
processo de centralização política.
Um papel muito parecido tinham as missões científicas de viajantes que passaram
pelo nosso país, que tentavam ilustrar as características naturais e humanas do Brasil,
classificando-as, montando paradigmas, o que era não só uma coincidência política cultural
no Brasil Império, como a de todo um pensamento de uma época.
Esse desejo de formar um paradigma histórico e cultural de nosso país, tanto por
parte de viajantes, como do IHGB, vai ao encontro dos ideais do indianismo: ilustrar as

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origens de nosso país, porém filtrando, classificando e definindo, segundo um ponto de


vista europeizante, que deve ser aproveitado para a nossa História e o nosso
desenvolvimento.
Assim,

“Neste sentido, avultam três fatores: o frequente amparo oficial de D. Pedro II, o
Instituto Histórico e as Academias de Direito (Olinda-Recife e São Paulo)”. (CANDIDO,
1976, pág. 83)

Sendo assim, com tão grande aproximação entre os poetas e a Política, entre a
intelectualidade e a Monarquia, não surpreende que tivessem em mente os mesmos planos
para o nosso país: proteger nossas origens e nossas características, mas tudo sob a tutela de
um esquema social monárquico, cristão e paternalista, bem ao estilo do que foi trazido pelo
colonizador. Melhor dizendo, foi exatamente por terem os mesmos anseios e projetos que
se associaram tão bem.
Por causa disso, não surpreende também que o final do Romantismo em nosso país
tenha coincidido com a decadência do sistema monárquico. Muito mais do que o fato do
chamado “cansaço literário”, em que determinadas características de uma geração se
esgotam naturalmente e pedem uma nova estrutura literária, mesmo vinda de outros países,
- o que ocorre frequentemente com nosso país, por razões já mencionadas - o Romantismo
(em nosso país, que fique bem claro) supõe um conjunto de idéias que estavam
intimamente ligadas aos interesses do governo imperial e, assim, quando o sistema imperial
entra em pleno descrédito, é sintomática a decadência do movimento romântico no Brasil,
pois ele não responde mais aos anseios (dados como) nacionais. Ambas, com efeito, eram
parte de um mesmo fenômeno.
--- --- --- --- ---
Por outro lado, verificando a sua vida literária, Alencar sofreu várias críticas, sendo
algumas delas até muito duras, apesar do status que já possuía junto à chamada opinião
pública. Algumas dessas críticas tiveram razão de ser, outras foram completamente
exageradas. Serão analisadas as principais críticas a Alencar durante sua carreira, dando
ênfase às feitas por Franklin Távora e Joaquim Nabuco.

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Verificaremos inicialmente as críticas de Franklin Távora, a primeira vez em que


uma obra de Alencar sofreu uma ataque mais intenso. Após o lançamento de Iracema, que
aliás não teve repercussão na época, a obra foi atacada por todos os lados pelo iniciante
Franklin Távora, que analisou todos os pormenores do romance. Então, o romancista
cearense teve de sofrer o mesmo que o autor de Confederação dos Tamoios, Gonçalves de
Magalhães, quando o atacou. O crítico Távora se irritou profundamente com aquilo que
considerava como graves defeitos da obra de Alencar.
Um dos aspectos centrais da crítica era a suspeita de plágio. Para Távora, o romance
da virgem dos lábios de mel nada mais era do que uma cópia mal feita da obra “Atala”, de
Chateaubriand. O enredo da índia que deve permanecer virgem e que se sacrifica pelo amor
a um branco era, para o crítico, idêntico nos dois casos. Já vimos, inclusive, que Soares
Amora (op.cit.) faz uma comparação entre as duas obras, demonstrando não haver plágio e
provando que os dois autores, por motivos e objetivos diferentes, chegaram ao mesmo tema
do contato traumático entre o civilizador e o habitante aborígine. Além disso, o próprio
Alencar admitiu em “Como e por que sou romancista” a influência de Chateaubriand e
Walter Scott em sua obra, mas a verdadeira fonte de seus romances, como sabemos, é a
fantástica natureza de nosso país, que o cercava.
Távora critica Alencar também em outro ponto: a falsidade de seus personagens. Para
ele, os índios de Alencar, suas ações e sentimentos são inverossímeis. Não foi a única vez
que a obra de Alencar sofreu essa crítica, e até hoje muitos se revoltam com as
características de seus personagens indígenas: falam com o português de Coimbra, suas
ações estão muito mais próximas de um cavalheiro medieval e alguns fatos não possuem
qualquer nexo. Não apenas Távora, mas outros críticos, antigos e atuais, retratam os fatos
inverossímeis dos romances alencarianos, e há boa dose de razão em suas críticas, mas tais
“defeitos” possuem um motivo. As ações fantasiosas não ocorrem apenas em “Iracema”,
mas também em “O guarani”, por exemplo. A parte em que Peri, sozinho, consegue vencer
uma onça ou quando ele desce ao abismo, cercado por insetos, cobras e aranhas, para pegar
o mimo de Ceci nos deixam confusos até os dias atuais. Porém, devemos observar qual a
razão de tal inverossimilhança e perceberemos que não é gratuita.

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“Iracema e Peri – arguem os críticos da infidelidade artística de José de Alencar –


são expressões individuais humanas que, pelo porte, pelo falar, pelo requinte estético, pela
distinção das maneiras, pela conduta social, se apresentam, não como autênticos
espécimes da habitantes tribais, mas como verdadeiros símbolos de uma exigente
civilização convencional.” (ARRAIS, IN: “Revista da Academia Brasileira de Letras”,
1954)

Para o crítico, os vários equívocos cometidos pelo autor cearense se devem


basicamente ao fato de Alencar ter sido um autor de gabinete, que queria fazer romances
sobre lugares que jamais visitou, abandonando-se ao influxo da imaginação tão somente, e
diminuindo, assim, o valor de suas obras, já que não era totalmente fiel com a realidade.
Segundo Távora (1872),

“J. de Alencar dá poemas e romances de costumes, sem ter estudado a natureza nem
os povos, e condenando além disso o estudo dos mestres e os dicionários existentes, que
chama de “espúrios”. Essas obras, ele as dá do fundo do seu gabinete, assim a modo de
quem expede avisos para um império inteiro.”

Assim,

“No afã de complicar situações dramáticas e de acumular perigos mortais, Alencar


ultrapassa com grande frequência os limites do verossímil. O seu mundo não era lógico.
Era desmesuradamente mágico.” (MAGALHÃES, 1977, pág. 86)

“O eixo de argumentação de Franklin Távora reside na idéia de que Alencar era um


escritor de gabinete que, por não ter pautado seus romances pela observação direta das
regiões representadas, incorria numa série de erros e impropriedades.” (MARTINS, 2005,
pág. 168)

Mas o próprio Alencar, em relação a suas fantasias, a contar fatos que não têm
relação com a realidade, possui uma frase conhecida, resumindo o que imagina sobre o

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falso e o verossímil, dentro de seus romances. Para ele, a realidade é inverossímil, aliás a
coisa mais inverossímil do mundo. Assim, o não-parecer e o ser aparecem juntos na
realidade, e por consequência, nas suas obras. Mas muitos críticos, até hoje, não aceitam
essa justificativa.

Até mesmo a infelicidade de algumas ações e imagens perturbaram o crítico Franklin


Távora. Um exemplo é o momento em que Iracema se lava após o encontro com seu amado
Martim. Para Távora, a imagem é completamente vulgar e não cabe num romance:

“O estilo em geral peca por inchado, por alambicado. As imagens sucedem-se,


atropelam-se. Há um esbanjamento de imaginação que, desde a primeira vista, se nota que
está muito longe de aproximar-se da verdade, para que os personagens pudessem falar
assim, nessa perene figura, fôra preciso supor neles o talento, e talvez a cultura do próprio
autor, tão custoso e trabalhado se conhece ter sido aquele arranjo ostentoso.” (TÁVORA,
1872)

A crítica de Joaquim Nabuco aconteceu logo após a apresentação da peça “O


jesuíta”, que não teve grande êxito junto ao público. O jovem crítico parabenizou Alencar
por sua trajetória na literatura e no teatro brasileiro, porém não poupou sua discordância em
relação ao que ele chamou de infelicidade na imagem do jesuíta que combate pela
Independência do Brasil, além de discordar do desabafo do escritor cearense, que, após o
fraco público, comentou, entre outros fatos, que o público brasileiro dá muito mais valor às
obras do teatro francês ou italiano do que às dos autores nacionais. Para Nabuco, o escritor
não deveria deixar ao público a culpa que cabe exclusivamente ao dramaturgo, que não
conseguiu fazer uma obra inspirada.
A resposta de Alencar foi imediata e áspera. O escritor cearense esqueceu os elogios
do jovem Nabuco e enfrentou seu crítico nas páginas dos jornais. Com o tempo, as
provocações de lado a lado se acirraram e Alencar, com uma posição já formada, foi
cercado por Nabuco, jovem escritor, da mesma forma que Alencar criticara Gonçalves de

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Magalhães, no início de sua carreira. Vários anos depois, a própria filha de Joaquim
Nabuco admitiu que o pai se arrependera da polêmica. Havia sido, para o próprio Joaquim
Nabuco, um momento de orgulho, um atrevimento de jovem autor contra um monstro
sagrado de nossa cultura.

Verificando as críticas, tanto da época em que Alencar era vivo como as mais atuais,
podemos perceber que algumas são recorrentes: a falsidade dos caracteres indígenas, os
erros em relação a dados de fauna e flora, a influência dos estrangeiros. Verifiquemos mais
detidamente a razão de cada uma delas.
Primeiramente, em relação à falsidade dos caracteres indígenas, das atitudes muito
mais próximas de europeus civilizados do que de um habitante das selvas, já vimos que o
próprio Alencar crê que os indígenas possuem atitudes muito mais nobres do que dizem
alguns, movidos por preconceitos. Juntando-se a isso, o próprio romancista deixou claro,
em “Como e por que sou romancista”, que seu personagem indígena não é real, mas um
ideal. Sabe-se muito bem que havia por trás disso um projeto, um desejo, meio
inconsciente, de fazer do índio um civilizado, de conservar nossas particularidades,
utilizando a base civilizada, cristã e patriarcal. Até mesmo a crítica à linguagem usada pelos
personagens indígenas, evoluída demais para Távora, deve ser discutida. Na opinião de
outros críticos como Machado de Assis (1920), por exemplo, o índio de Alencar não possui
linguagem de um branco: “entendia elle, e entendia bem, que a poesia americana não
estava completamente achada; que era preciso prevenir-se contra um anachronismo
moral, que consiste em dar idéias modernas e civilizadas aos filhos incultos da floresta.”
ASSIS, In: “Revista da Academia Brasileira de Letras”, out/1920, pág. 48). Aliás, o próprio
Alencar descreveu, no final de Iracema, o desafio que significava para ele descrever com
palavras simples o pensamento rústico dos silvícolas, como já vimos: “Sem dúvida que o
poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as idéias, embora rudes e grosseiras, dos
índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade”.
Ligando-se todas essas características, vemos as razões pelas quais os índios das
obras alencarianas são realmente distantes dos índios reais, possuindo características
admiráveis, próximo da figura do “bom selvagem”, mas, ao mesmo tempo (e não por
coincidência), tão próximo do elemento europeu.

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Em relação ao desconhecimento de Alencar de questões de Botânica, que foi


verificado já por Taunay, estudioso desses assuntos, ao dizer que “Alencar comete vários
equívocos em relação às características de nossa flora”), já foi comentado também em
outros estudos, como de Vasconcelos (“Assim, os nomes Batuireté e Messejana, que são
apontados pelo autor como de origem indígena, não o são, muito bem. O que não podemos
contestar é a invenção poética das explicações,”), sabemos que, realmente, o escritor
cearense comete alguns disparates. Um exemplo é a questão do curare, mortal para Peri,
mas que, na realidade, possui apenas efeito sonífero. Pouco importante seria Alencar na
literatura brasileira se tivesse domínio absoluto da fauna e flora do nosso país e dos
costumes dos povos primitivos americanos, sem ter o domínio artístico que ele possuía.
Como já foi dito várias vezes, tudo o que ele criara não era um real, mas um ideal. O curare
que mata é muito mais interessante que o curare que adormece porque é o veneno que
possui a devida importância, o símbolo do sacrifício do aborígine, como fez Iracema.
Falando sobre Gonçalves Dias, Candido (1975) nos diz que “ele é prova de como a
grandeza de uma obra indianista não está exatamente no conjunto de conhecimentos em
relação a seus povos” (CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira). A
mesma coisa se aplica a Alencar. Se tivesse domínio dos dados, sem a técnica, seria mais
interessante que Alencar fosse historiador ou antropólogo. Isso não quer dizer, em hipótese
alguma, que não é necessária a pesquisa, a preocupação com a fidelidade quando se faz um
romance indianista, porém não é certo que uma pessoa com domínio total desses
conhecimentos realize uma obra literária melhor que uma pessoa que possui domínio bom,
porém menor das características dos povos indígenas. No início do trabalho, já havíamos
visto, na “Estética” de Hegel, como o teor artístico de uma obra não está relacionada à
cópia fiel da realidade. Para reforçar, podemos usar outra expressão de Hegel na “Estética”:
“Pensam os críticos e os entendidos que os valores históricos devem ser representados por
si mesmos, e denunciam com indignação o mau gosto do público quando dissimula o seu
aborrecimento. Todavia, não é para entendidos e críticos que a obra de arte existe, mas
sim para o prazer imediato do público,” (HEGEL, 2000, pág. 270) Isso não quer dizer, em
absoluto, que a qualidade estética não deva ser estimulada, mas o ponto de referência do
autor não precisa ser a cópia cega dos pontos históricos.

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Aliás, o fato de Alencar ter escrito seus romances indianistas e regionalistas na


comodidade de seu escritório, no alto da Tijuca, já foi apontado, muitas vezes, como causa
dos equívocos do escritor. Távora chama o escritor cearense de “romancista de gabinete”.
Alencar nunca foi ao Sul do país, por exemplo, para escrever “O gaúcho”. Precisamos
ilustrar que, realmente, em obras como “O gaúcho”, ocorrem erros tremendos, mas seria
apressado apontar que todas as suas idéias vieram apenas de sua imaginação, pois o autor
pesquisou, em vários momentos, para realizar suas obras. Do mesmo modo como fizemos
no parágrafo anterior, devemos verificar que a grandeza da obra literária não está
propriamente nos conhecimentos do escritor de determinado fato ou região, mas na forma
com a qual ele utiliza as peças que possui, e assim o cearense fez, tanto para as obras
indianistas, como as obras regionalistas. Aliás, não podemos nos esquecer de que Alencar
pesquisou a fundo antes de realizar as obras a que se propunha. Portanto, se o autor não
viajou, não esteve em lugares que descreveu em sua prosa regionalista, ele se utilizou de
vários dados, de forte pesquisa para escrever seus romances. Não podemos, muitas vezes,
substituir a experiência pela pesquisa, mas, ao mesmo tempo, não podemos dizer que
Alencar fez sua obra a esmo, colocando tudo a cargo de sua prolífica imaginação, pois a
mesma foi baseada nas intensas pesquisas que realizou. O autor cearense jamais teria
cometido tamanho desleixo. Tanto que, desde o tempo em que estudava na Faculdade de
Direito, conforme certificam algumas biografias (como, por exemplo, a de Cavalcânti
Proença), Alencar preocupou-se em ler os viajantes, os alfarrábios e, como pudemos
perceber na polêmica sobre a “Confederação dos Tamoios”, o escritor cearense também lia
autores latinos e gregos, que serviram de base para sua opinião. Sendo assim, não podemos
negar que alguns de seus erros possam ter sido provocados por exageros da imaginação do
autor, nem podemos nos esquecer dos objetivos do autor em relação às suas obras. Se
houve equívocos nas obras de Alencar, alguns podem ter ocorrido também graças a fontes
utilizadas pelo escritor.
Assim,

“Para registrar o cotidiano presente da capital do país procurou valer-se da câmera


realista, atenta à miudeza e ao mundo do plausível. Para recriar o passado, bem como a
vida rural presente, apoiou-se bastante na pesquisa paciente, mas expandiu largamente

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sua imaginação na narrativa romanesca.” (MARCO, IN: “Anais I Simpósio José de


Alencar”)

Fala-se também do fato de as obras de Alencar serem apenas versões de romances


estrangeiros, principalmente franceses, causado pela influência do elemento europeu sobre
nossa literatura. Porém, como já vimos, o que havia de se fazer num país recém-
independente, cuja literatura ainda não estava formada ? Para começar sua construção, era
imprescindível uma base, e isso infelizmente não possuíamos, já que os autores brasileiros
dos séculos XVI, XVII e XVIII, como Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga e
Santa Rita Durão eram muito mais criadores dispersos do que detentores de um projeto
definido de literatura. Essa base, infelizmente, teve de ser a literatura estrangeira, como já
vimos nos comentários de Schwarz (2000). Era certo que a nossa literatura era uma cópia
da literatura francesa, mas o que fazer para criar nossa literatura, se não tínhamos, em nosso
próprio país, uma espécie de guia ? Na primeira edição de “Niterói”, Gonçalves de
Magalhães já demonstra a importância da literatura francesa, substituindo a literatura
portuguesa, do colonizador, como nossa fonte de inspirações, para a criação de uma
literatura brasileira:

“Seria Tântalo a figura do romancista dilacerado entre o desejo da imagem perfeita


– Alencar era acusado de copiar modelos europeus – e a impossibilidade de agarrar a
matéria local com ela ? E se assim for, não seria essa também uma forma de expressar um
problema estético-literário mais geral – o dilema do romance tentando ser ele mesmo, mas
constituído como desejo do outro (de outros gêneros) e carência de auto-identidade ?”
(PONTIERI, 1988, pág. 65)

Afinal, o fato de nossas obras literárias usarem os franceses e ingleses como


inspiração é apenas um pequeno sintoma de algo muito mais profundo na sociedade do
Brasil Império:

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“O Rio de Janeiro traja à francesa, traz a barba à inglesa e usa de pince-nez, casaca
cor de lama de Paris, calças à Bassompierre e sapatos de couro-pano, por causa dos
calos.:” (ALENCAR, in FARIA, 1987, pág. 9)

Com efeito,

“Por essa época, meados do século, o Rio de Janeiro começava a se afrancesar.


Virávamos macacos de imitação da França, mas apenas na exterioridade: as modas, o
consumo de produtos fabricados em Paris, o uso da língua. No fundo, continuávamos
renitentemente brasileiros, desconfiados das novidades que abalassem a família,
melindrosos em relação a tudo o que se referisse ao país.” (MACHADO, 2001, pág. 191)

Percebe-se, pelos trechos acima, que não é apenas a literatura européia que tem
influências em nossa literatura, mas vários modismos, costumes de Paris, Londres etc. A
sociedade do Brasil Império queria se vestir como os europeus, queria falar como os
europeus, queria ser como os europeus. As moças aprendiam francês na tenra idade, o que
era sinal de superioridade; vários termos franceses e ingleses foram importados para nossa
fala do dia a dia. Até mesmo em detalhes como objetos utilizados em casa, nos costumes, a
nossa população da corte copiava o que franceses e ingleses faziam. Durante todo o Brasil
Colônia, quisemos copiar Portugal; o período do Império era o momento de copiar a
Inglaterra, a Alemanha, a França. Aquilo que vinha de Portugal, antigo colonizador e “fonte
de inspiração”, era exceção à regra. O que era de Portugal era objeto de certo desdém,
principalmente logo após a Independência, por motivos muito óbvios.
Parece até mesmo estranho o fato de importarmos tanto do Velho Mundo, logo num
período em que nossa literatura fazia questão de deixar-se demonstrar tão nacionalista, tão
voltada aos assuntos nacionais, e isso poucas décadas após a nossa independência política.
Os senhores e senhoras com modismos ingleses, falando em francês, destoavam tanto do
ideal de nacionalismo mencionado, que os autores românticos queriam consagrar, como das
sociedades européias, já que possuímos sempre costumes e características tão diferentes do
elemento europeu.

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Como já vimos, o nosso país recebia os ideais de liberdade vindos da Europa,


principalmente França, e abraçou o desejo de independência, orgulhou-se quando ela se
concretizou, além de, principalmente, ter absorvido termos linguísticos, produtos, roupas,
modismos vindos da Europa, mas, ao mesmo tempo, possuía ainda uma estrutura social
atrasada, centralizada na figura monárquica (para não dizer, o “grande patriarca”),
alimentada por um sistema escravocrata desumano e obsoleto, e tudo amparado pelo
patriarcalismo católico, em que o homem branco era o centro da ordem social, formando
assim, provavelmente, o grande paradoxo do Brasil Império: a vontade de ser europeu
civilizado e possuir estruturas tão arcaicas.
Essas estruturas tão arcaicas, aliás, estavam sustentadas pela política monárquica,
cujo principal representante, o próprio D. Pedro II, era provavelmente o primeiro de nossos
“europeizados”, “afrancesados”. Preocupado em desenvolver melhorias de infra-estrutura
nas grandes cidades, principalmente na corte, efetua um surto industrial, que privilegiava, e
muito, a elite patriarcal urbana, que se fortalecia no decorrer de seu reinado; ansioso por
criar estruturas artísticas e culturais como o próprio IHGB, as disciplinas do Colégio Pedro
II e até mesmo saraus artísticos em sua residência: ávido por requintes no desenvolvimento
de nossa cultura e nossas artes, o que, na verdade, nosso patriarca maior queria era ser um
“monsieur” em terras tropicais, como toda a corte que o cercava e adulava. Porém, não
abandonava, de forma alguma, as elites rurais (principalmente cafeicultoras, que davam ao
país maiores dividendos) e o sistema escravagista, dividindo-se entre as idéias civilizadas
e modernas da Europa e as ideias escravocratas e patriarcais, próprias de nosso país. Se o
imperador do Brasil agia dessa forma, o que se diria da corte que estava ao seu redor, que o
adulava, o retratava literalmente e o mantinha como exemplo ?

Portanto, a dependência literária à qual não só Alencar, como praticamente todos os


autores românticos brasileiros estavam ligados, era apenas um sintoma de algo mais
profundo que estava em nossa sociedade: a dependência em relação aos modos e costumes
vindos do continente europeu mensalmente nos paquetes, e tudo isso apenas demonstrava,
afinal, a submissão política e econômica à qual estávamos arraigados em relação ao Velho
Mundo, embora fôssemos já uma nação independente.

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Sendo assim, tanto Alencar como outros escritores do mesmo período tiveram como
fonte a literatura européia, porque a própria sociedade brasileira já copiava tudo o que era
europeu. Seus romances urbanos poderiam se passar na França, porque a sociedade da
Corte se comportava como a européia. Até mesmo os personagens indígenas e regionalistas
tinham um porte europeu, porque nosso país queria copiar o que havia na Europa,
recebendo tudo o que vinha do outro lado do oceano de braços abertos. Afinal, o próprio
Romantismo, movimento com o qual os autores brasileiros tanto se identificaram no século
XIX, não é brasileiro, mas tem origem européia e os brasileiros aproveitaram apenas aquilo
que mais os representava. Assim como acontecera com outros autores, já a partir da
crônica, Alencar começou a se preparar e a compreender essa nova sociedade, para melhor
descrevê-la, pois, conforme Arriguchi Jr., era “matéria nova e complicada, das novidades
burguesas trazidas pelo processo de modernização”. (apud SÜSSEKIND, 2005, pág. 247).

Assim,

“Não foi menos nacionalista Alencar nos seus romances da cidade, do que o havia
sido nos do campo, quer na phase indianista primitiva, quer na de plena estabilidade
brasileira.
“A sociedade carioca de seu tempo não teve melhor pintor. A sua galeria de typos
femininos patrícios é exemplar e inconfundível, até nos próprios romances em que se diz
ter Alencar tirado inspiração de escriptores franceses.” (LIMA, “Revista da Academia
Brasileira de Letras, maio/1929, pág. 53)

Basta lembrarmos as palavras de Candido (1989) em Literatura e


Subdesenvolvimento e de outros estudiosos sobre essa questão. Não é necessário ser um
grande especialista em Teoria Literária para entender que a submissão econômica e política
de uma nação forma um círculo vicioso com a submissão artística, ou seja, sua cultura
inevitavelmente ficará apenas recebendo a influência do que é criado em outros países:

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“Como o ambiente não os podia acolher intelectualmente senão em proporções


reduzidas, e como os seus valores radicavam na Europa, para lá se projetavam, tomando-a
inconscientemente como ponto de referência e escala de valores;” (CANDIDO, 1989, pág.
148)

“Para as compreendermos bem, é conveniente focalizar, à luz da reflexão sobre o


atraso e o subdesenvolvimento, o problema da dependência cultural. Este é um ponto por
assim dizer natural, dada a nossa situação de povos colonizados que, ou descendiam do
colonizador, ou sofreram a imposição de sua civilização, mas fato que se complica em
aspectos positivos e negativos.” (CANDIDO, 1989, pág. 148)

Mas tudo isso não é característica somente de nosso país, obviamente. Qualquer
literatura nacional, em sua formação, precisa se embeber em moldes estrangeiros e o
mesmo ocorre com a formação de sua sociedade. A formação social, política e cultural da
América Latina, como um todo, é também um ótimo exemplo disso. Procurar a identidade
de cada país usando como guia a experiência de franceses, ingleses e alemães foi um fato
comum em todo o continente no Século XIX.
Assim, Alencar fazia enorme sucesso junto ao público do Brasil Império por
representar esses caracteres europeus que o nosso país adquiriu e, mais do que isso, porque
encarnava os anseios da monarquia nacional e da nossa sociedade urbana alfabetizada, que
tinha a certeza de que o futuro grandioso de nosso país estava exatamente em manter uma
sociedade nos moldes da Europa, mas conservando nossas especificidades. Tudo aquilo que
fosse contrário ao fortalecimento de nossas riquezas e fosse contrário à ordem cristã,
monárquica e patriarcal vigente deveria ser desconsiderado. Podemos perceber isso não só
nos romances indianistas, como “Iracema”, ou nos romances urbanos, mas até mesmo em
obras como “O sertanejo”, em que o herói Arnaldo protege com unhas e dentes a ordem
estabelecida no meio do sertão cearense.
Afinal, se estudamos até hoje a obra de Alencar, se ele é considerado um autor do
nosso (digamos) cânon literário, é claro que ele foi extremamente difundido em sua época,
e isso não ocorreu apenas pelo seu valor artístico, que é inegável, pois o escritor cearense
fez seus romances com exímia competência, mas também porque havia um grande ponto de

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contato entre ele e seu público leitor, pelo menos nas obras em que teve melhor sucesso.
Alencar teve um público considerável, em parte por sua competência como escritor e em
parte por falar o que estava de acordo com os pensamentos de seu público. O fato de ele
procurar o elemento nacional no nosso país recém-independente e a preocupação com a
formação de nossa sociedade com base conservadora são algumas das chaves para seu bom
sucesso na época. Isso não quer dizer, em momento algum, que os autores atualmente
analisados só o são por causa de seu bom sucesso em vida. Seria uma enorme ingenuidade
se essa teoria fosse respeitada sem restrições. Basta verificarmos a história de vários poetas,
romancistas e dramaturgos para negarmos isso. Vários autores tiveram seu valor
reconhecido bem tardiamente, muitas vezes após seu falecimento ou até séculos depois.
Mas é inegável, também, que os autores que tiveram melhor sucesso numa determinada
época foram revistos depois, tanto por seu valor artístico como pelo seu valor social, o que
chegou até a aumentar, em alguns casos, sua importância na história literária. Não podemos
ignorar, contudo, que o ponto de vista do leitor é muito importante para observarmos o
valor de uma obra literária e de um autor. Foi isso o que aconteceu com Alencar entre
outros autores do século XIX: a grande competência literária somada a uma relação entre o
ponto de vista dele e o da sociedade urbana da corte que estava ao seu redor, que fazia parte
de seu dia-a-dia.

“Ele [Alencar] não surgiu, porém, sozinho, conquistando um sentimento instintivo


que o ligasse à nossa literatura. A atmosfera reinante, os estudos e pesquisas históricas,
marcando uma baliza de nosso itinerário, evidentemente que lhe favoreceram a tarefa a
que se tinha proposto.” (LINHARES, 1987, pág. 82)

Quando se diz que o romance regionalista ou indianista é o espaço na literatura de


Alencar em que todas as diferenças sociais desaparecem, criando o final feliz e, por
consequência, a simpatia dos leitores, isso está absolutamente correto. “O guarani” atraiu o
público dos folhetins graças à torcida pela união entre Peri e Cecília. Mas devemos
perceber que, nesse espaço abençoado, a natureza brasileira, não há qualquer vestígio de
diferença social e opressão, pois é o espaço em que se entra em conjunção com o Absoluto
e o espírito nacional ao mesmo tempo, um momento em que há a harmonia completa entre

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os apaixonados, pois não há mais branco ou índio, brasileiro ou estrangeiro, rico ou pobre,
mas há a ligação, que gera o brasileiro perfeito, ao qual tantas vezes nos referimos durante
este trabalho, e que vai levar ao final feliz (ou, ao menos, necessário, como no caso de
“Iracema”) no romance e, certamente, gerará o final feliz para nosso país também.
Ao mesmo tempo, não é à toa que o espaço urbano é tão desprezado em algumas
obras de Alencar, como em “Senhora”, em que, mesmo usando como cenário o Rio de
Janeiro do Segundo Reinado, o Brasil rural foi várias vezes elogiado, servindo como
exemplo, pois a Corte abraçou os modos europeus de forma tão intensa que absorveu
inclusive seus vícios na visão de Alencar: o consumismo, a malícia, a própria absorção
desmesurada dos hábitos estrangeiros, e o autor cearense viu, então, que o ambiente natural
era o único capaz de servir de cenário para amores felizes, finais felizes, sociedades felizes,
tudo regrado pela espírito conservador, organizado, que seria o lado bom da civilização,
indo, assim, ao encontro de seu público leitor. Portanto, não é exatamente a urbanização
que ele critica, mas a forma como ela foi vivida pela sociedade da Corte: em vez de captar
o que havia de melhor, como a razão, a educação, o controle nas atitudes, captou o
consumismo e o fetichismo pela aparência desenfreados.
Assim,

“encarnaram o passado na cultura indígena, não como essência irrecuperavelmente


perdida, mas como modelo de uma sociedade ideal,” (CUNHA (tese de doutoramento),
2000, pág. 5)

Por causa disso, Alencar teve tão bom sucesso na época em que escreveu. Seja por ter
um projeto de desenvolvimento que coincidia com os projetos da sociedade urbana e
patriarcal, que lia os seus romances, como por reproduzir esse nacionalismo sem perder a
influência dos autores europeus, bem ao gosto do público elitista, que usava termos em
francês ou inglês como se já fossem de nossa propriedade.
Não podemos desprezar o fato de que o próprio Alencar era parte, de certa forma, da
elite da sociedade da corte, possuindo, assim, o mesmo conjunto de idéias dela, tentando
construir uma nova identidade para a nossa literatura, voltada para o nosso país, ao mesmo

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tempo em que adotava os ideais de civilidade vindos da sociedade européia que colonizou o
nosso continente.
Portanto, da mesma forma que Balzac possuía um projeto, o de apresentar os vários
tipos humanos que faziam parte da sociedade francesa pós-Revolução, o escritor cearense
possuía um intuito: representar em seus romances o Brasil em seus vários tempos (presente
ou passado) e espaços, fosse o ambiente urbano, fosse o ambiente rural, sertanejo, silvícola
e, ao mesmo tempo, planejar seu futuro, com a base social fincada tanto nas origens
americanas como no esquema civilizado europeu. Portanto, quando percebemos que seus
romances abrangem tanto os tempos do Império como as primeiras épocas do Brasil
Colônia, tanto o espaço do gaúcho como a sociedade da corte, não significa de forma
alguma que Alencar não tivesse uma regularidade, uma linha-mestra, como quis indicar,
por exemplo, a crítica de Joaquim Nabuco. Muito pelo contrário, o escritor cearense tinha a
idéia muito bem definida de abranger nosso país no espaço, de abarcar várias ambientes,
tanto rurais como urbanos, e também no tempo, tanto o Brasil Colônia, como o Brasil
Império e (principalmente) no futuro do país.

Assim,

“Alencar não quisera ser o historiador da sociedade de seu tempo, como o criador
da “Comédia Humana”: chamara a si a pintura geral da vida brasileira, nos três períodos
que a compunham.” (ARRAIS, In: “Revista da Academia Brasileira de Letras”, 1954)

Sendo assim, devemos dizer que Alencar tinha as mesmas idéias dos demais autores
do início do Romantismo, a de uma literatura com uma função didática, fundamental para o
desenvolvimento do país, voltando nossos olhares para a nossa pátria, sem desprezar as
relações de ordem e razão que devem basear o futuro de qualquer nação, respeitando
sempre a regularidade e o bem-estar da família e a submissão ao governo monárquico e à
ideologia cristã. O “bom selvagem” criado por ele foi apenas um dos vários instrumentos.
Os eixos de comparação utilizados em “Iracema” apenas reforçam tal propósito, o de
elogiar o elemento americano, mas o restringindo ao filtro do europeu, e também
submetendo o feminino ao masculino. O índio digno de respeito é sempre o dócil, que

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aceita a visão de mundo européia e, por isso, digno de ser batizado, de ser chamado
“irmão”.
Assim, quando produziu não só “Iracema” como os seus demais romances,
Alencar tinha uma ideiaa precisa de como retratar o nosso país no passado e no presente, ao
mesmo tempo que estabelecia um projeto para o seu futuro, projeto centralizado na
valorização de nossas especificidades, daquilo que é nosso, daquilo que geraria a nossa
identidade, daí o retrato de nossos índios de nosso interior, de nossas paisagens, porém o
fazia, pensando em civilizar o nosso país, atrair ao mesmo tempo aspectos da sociedade
civilizada, trazida pelo europeu, bem ao gosto de nossa sociedade que lentamente se
urbanizava, com a família centralizada, patriarcal, a sociedade cristã e monárquica; é o
continente americano que se funde ao elemento europeu; assim como a mulher Iracema
mostra todo o seu encanto, mas se submete, apaixonadamente, ao seu esposo Martim, assim
como a natureza deve ser regulada pelas regras de civilização; e a emoção deve ser
equilibrada pela razão.

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