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OS BRASIS AUSENTES NO CATATAU, DE LEMINSKI

 
Saulo de Araújo Lemos (professor de Literatura de Língua Portuguesa da Uece e doutorando em
Literatura Comparada pela UFC)

Resumo: 
Em Catatau, Paulo Leminski narra (não narrando) uma hipotética estadia de René Descartes no
Brasil durante o domínio de Maurício de Nassau. Publicado em 1975, o romance é escrito em um
fluxo textual contínuo, mas imprevisível, heterogêneo, pêndulo entre fala e ruído. Essa obra pode
ser relacionada à leitura habitual sobre a literatura brasileira dos anos 1970 como crítica alegórica
ao Brasil pós-1964 e como lamento de dependência cultural; esse olhar, todavia, será contraposto a
outra formulação: conforme os conceitos de imagem e solidão da obra, propostos por Maurice
Blanchot em O espaço literário, surge a possibilidade de que o Brasil colonial e o Brasil ditatorial
sejam imagens distanciadas (faces de uma moeda mediada pelo vácuo) que a tessitura literária do
Catatau autoproduz em relação àquelas duas referências-símbolo: espécie geminada de signos
opacos que, se apontam o dedo em riste para aqueles dois Brasis, é porque os transformam em algo
não-Brasil, pressionando-os ao limiar do abismo da linguagem (ponto central da experiência, palco
da origem irresistível e impossível). Haveria algo como uma trégua entre essas duas leituras
inconciliáveis?
 
Palavras-chave: literatura contemporânea, ausência, imagem, solidão da obra.
 
Abstract:
In Paulo Leminski’s Catatau [“Chitchat”], his author narrates (but not doing so) a hypothetical visit
of René Descartes to Brazil, during the period of the Dutch invasion led by Maurício de Nassau.
Published in1975, that novel contains a continuous but impredictable, heterogeneous textual stream,
a pendulum between speech and noise. That work could be easily related to an ordinary reading on
1970’s Brazilian literature as an critical allegory of Brazilian situation after the military coup d’état
in 1964 and also as a lament on cultural dependence on other countries since colonial times. Such
view, however, will be here opposed to another one: according to Maurice Blanchot’s concepts of
image and artistical work’s solitude at his The literary space, it is possible to understand both
Brazils, the colonial and the dictatorial one, as images aparted one from the other (like if there was
vacuum between the faces of a coin); both, images built in Catatau and with some relation to that
two symbolic Brazils; images like a kind of non-transparent, opaque double signs, that refer to that
two Brazils as transform them into a non-Brazil feature, bringing them to the edge of language
(centre of experience, stage where belongs the irresistible and impossible return to origin). Would
there be anything like a truce between such inconciliable readings?

Keywords: contemporary literature, absence, image, solitude of artistic work.

1. Introdução

Um algo poético, um alguém poético às vezes capturado pela crítica, em intermitências, livrando-
se depois, fugindo livre dela. 23 anos após o falecimento de seu autor, a obra de Paulo Leminski
(1944-1989) continua sendo estudada nos meios acadêmicos brasileiros. A figura de Leminski
quando vivo, em parte vai se transformando em coleção de anedotas provérbiais – todo bom
personagem, inclusive real, rende seu folclore, modo corriqueiro pelo qual a narrativa celebra a
existência; a figura empírica de um dia, o leminski anedótico, desaparecerá lentamente, junto com a
memória de seus contemporâneos, alguns também já falecidos; em seu lugar, uma obra certamente
mais lida, embora mantendo novidade. Se Paulo ainda é, já tendo sido mais, o “bandido que sabia
latim” de uma recente biografia (Vaz, 2009), é também o nome que remete a uma obra diversa e,
sem ênfase, genial. Poesia, prosa, letra musical, tradução: movimentos que se interseccionam;
interseções cujo nome é a obra de Paulo Leminski.
Catatau (1975), livro de estreia, é começo em amplitude de vertigem: trânsito da imobilidade à
alta velocidade. O subtítulo de “romance-ideia” encobre o encontro de poesia, prosa narrativa e
verso extremamente livre que o livro é. Pela estreia resoluta, como obra madura e radical, lembra
em algo e a seu modo a poesia do precoce francês Arthur Rimbaud (1854-1891). O termo
“composição”, usado para descrever esse livro, faz-lhe jus extenso: como exercício de linguagem,
ele se funda no conhecimento de diversos idiomas; e justapõe, à técnica verbal do ex-seminarista e
aluno esforçado, uma biblioteca vasta, tornada um eu, um dentro: uma daquelas obras que no
mínimo aludem ao conjunto do saber humanístico ocidental. No horizonte remoto de uma produção
nacional já secular, Catatau se demarcou instantaneamente com sua publicação; na atualidade
daquele meio de década, também. Publicado em edição paga pelo autor, não fugia a seu presente,
embora por sua fisionomia não mostrasse depender dele para significar.
No romande-ideia, prosa-poema, que aqui será alvo de fala, surge René Descartes (1596-1650)
como personagem. Trata-se em parte do personagem histórico, um dos pensadores-símbolo da razão
no Ocidente, mas também de outro Descartes: um que pode ser abordado como alter ego duplo: de
Leminski, e do próprio Decartes, aquele que é por hábito trazido por seus discursos filosóficos e
suas referências biográficas.
Um esboço biográfico de Descartes, a propósito, é bastante oportuno para esclarecer o quanto a
criação de Leminski dele se afasta. Nascido em La Haye, na região francesa de Touraine, René era
filho de burgueses que ascenderam socialmente. Órfão de mãe com um ano de idade, foi criado na
infância pela avó e tinha saúde incerta. Cursou os estudos básicos no colégio jesuíta La Flèche,
criado poucos anos antes. Interessado e aplicado, em La Flèche e depois em Poitiers, onde estudou
Direito, gradualmente se desinteressou pelas Humanidades que tão detidamente estudara. A
impressão de que elas não serviam para nada foi responsável por esse afastamento, bem como o
caráter ritualístico como eram abordadas, com o peso da autoridade inverificável dos Antigos. A
aptidão para as ciências empíricas e exatas, das quais seria um dos fundadores, já se revelava
sutilmente: o jovem apreciava a matemática e suas regularidades.
Descartes, então, busca consolo intelectual na iniciativa de ler o mundo. De 1616 a 1619, viaja a
vários países da Europa. Primeiramente, se instala nos Países Baixos, ingressando em exército sob o
comando de Maurício de Nassau (mote do Catatau, como se sabe e aqui será lembrado). Com o
amparo de sua herança, larga a carreira militar em 1620, passando a se dedicar em definitivo à
filosofia e, no ritmo daquele tempo, à construção da ciência moderna. Escreveu em quantidade
razoavel, publicou pouco; recebeu gradual e crescente reconhecimento entre a intelectualidade
europeia. Em 1649, celebrado, lvo de polêmicas, aceita convite da rainha Cristina da Suécia e e se
assoma ao time de intelectuais que ela reunia em torno de si. O inverno nórdico se confirma fatal
para sua sempre frágil saúde, e a pneumonia o mata em 11 de fevereiro do ano seguinte1.
O romance-ideia ou romance-poema de Paulo Leminski, pelo sinuoso de sua forma, mostra
disposição artística para boas conversas com a filosofia e a crítica literária mais ou menos
contemporâneas a ele. Disponíveis, há estudos que ligam o livro ao discurso de Jean-François
Lyotard, Edgar Morin, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e mais nomes2. Casualmente, a leitura de
Maurice Blanchot (1907-2003) chamou a atenção para predisposições de seus conceitos para
diálogo com o Catatau. Blanchot e Leminski são pouco associados; foi encontrado apenas um
pequeno ensaio, de Maria Esther Maciel (cf. Dick; Calisto, 2004, p. 177-178), aproximando ambos
os autores. De modo casual, ela emprega uma citação indireta de uma noção do autor francês.
Romancista, filósofo e, com maior fama, crítico e teórico de literatura, Blanchot, publicou vários
livros, entre obras literárias, crítica e filosofia. Sua produção crítica é considerada severa ao leitor:
textos alegóricos, beirando o poético, evitando a compreensão reduzida ao racional, mas
extremamente refinados no aspecto intelectual. Os pontos de contato e diálogo entre esse Blanchot e
Leminski são possíveis e até urgentes: como repercussão crítica de uma alta poesia, como aumento

1 A biografia do filósofo francês foi consultada em Descartes, 1983, p. VII-XIII e p. 25-71.


2 Dick e Calisto (2004) além de Salvino (2000), que embasaram esta pesquisa, são alguns deles, além de alusões
explícitas ou implícitas contidas em material crítico que acompanha a edição de Catatau utilizada.
de leitura de uma crítica que é pilar da crítica no século XX. O plano de ação, aqui, traz L’espace
littéraire [O espaço literário] (1955), um dos volumes mais importantes da crítica literária
blanchotiana, para perto do Catatau. Suficientes (acredita-se) aos limites de um artigo, serão
colhidos e apresentados alguns conceitos do primeiro capítulo do livro mencionado de Blanchot (A
solidão essencial): a solidão da obra e a imagem. São formulações que, segundo seu autor,
acompanham a obra literária; o Catatau as confirma, como aqui será defendido.
A narrativa da presença verossímil de Descartes em terras do Brasil Colônia, a priori, ambienta o
livro de Leminski no que se chama literatura nacional; a maneira como essa ambientação ocorre, no
entanto, sugere uma complexidade além dos rótulos. O problema da representação nacional na
literatura é alvo do olhar deste trabalho e base das perguntas que se pretende responder adiante.
Antes, muito antes disso, seguem-se as informações e o pensar sobre o poeta e prosador curitibano
que lhes servirão de estrada. Em contrapartida, a vinda do estrangeiro Blanchot à base de método
para esta discussão pressupõe uma hipótese, parte de uma experiência de método, aliás: o Catatau
não cabe na mera aplicação à uma generalidade blanchotiana; ambos, confrontados, acrescentam-se
e se propõem intervir um no outro. Assim pressupondo, a feição solecista do título deste trabalho, o
remeter a uma ausência que está em um lugar, poderá ser o destinatário e o catalisador de um
modelo de crítica literária a ser defendido aqui. O resultado qualquer dessa experiência será, como
sempre, o saldo ou o débito de uma aposta: ler e falar de literatura.

2. Breve retrato falado

O título de uma obra literária é, frequentemente, uma sinalização rumo a ela. No caso de
Catatau, essa escolha é oportuna: tal palavra é bem uma encruzilhada de caminhos de sentidos.
Estes ajudam a prenunciar o texto, a entendê-lo, mas também podem lhe dificultar o acesso,
conferindo maior beleza, no entanto. “Catatau” pode ser coisas díspares: castigo, físico, pancada;
pequena espada curva; falatório, discurso leviano e desconexo; objeto volumoso, especialmente
livro ou outras publicações; indivíduo de baixa estatura; indivíduo alto e magro; quantidade
qualquer de algo; pênis (cf. Houaiss, 1999, p. 651). A disparidade de acepções, como se vê, toca a
contradição. O dado relevante desse título é o fato de estabelecer formulações de sentido prévias (ou
finais, caso se queira ver assim) pela disparidade e pelo paradoxo. Um pormenor acrescenta ou
arremata (a velha questão do ponto de vista) o centrifugismo semântico do termo “catatau”: a
palavra não possui significado etimológico; provavelmente, nasceu de uma onomatopeia ou de
brincadeira fonológica anterior a um significado, configurando-a como possível “palavra
expressiva” (Houaiss, 1999, p. 651). A disparidade, o lúdico, o verbo guiando a razão em frenesi,
mas ameaçando ultrapassá-la: o título é, metafóricamente, a primeira alusão do texto a si próprio.
O subtítulo, já mencionado, “romance-ideia”, sugestão imaterial e signo efetivo, é afim a outros
sintagmas que a leitura da obra sugere como intepretação: romance-hipótese, romance-
possibilidade, romance-proposta, romance-experiência, romance-percepção, romance-fala,
romance-diálogo, romance-oferta. A propósito, o texto de Catatau não elimina certas possibilidades:
trata-se de um monólogo escrito ao sabor de seu fluir, ou meramente pensado? O texto, sem
especificar, fala por si ambas as versões. Também como o subtítulo, as quatro epígrafes dizem algo
ao próprio texto do livro, embora, ao contrário daquele, de modo mais explicativo, sutilmente. Uma
delas, de Georg Marcgraf (1610-1644) pintor, astrônomo, cartógrafo e naturalista alemão, descreve
uma ave tropical, talvez o extinto dodô; outra, de Nicolas d’Autrecourt, propõe a indistinção entre
sujeito e objeto; depois, da Histoire des philosophes, Vergez e Huisman comentam como Descartes
foi mais expectador que ator no exército de Nassau, quando já usava o lema larvatus prodeo
(mascarado, sigo adiante) e cuja palavra larvatus, além do anterior, apresentado pelos autores
daquela Histoire, também significa “endemoninhado”, “apodrecido” ou “delirante”; como última
epígrafe, uma citação do Discurso do método sobre aqueles que, atentando contra a razão, tentam
trazer outros para sua situação de “cego” (cf. Leminski, 2010, p. 13).
Em quase duzentas páginas3, o leitor (obstinado, talvez hipnotizado) acompanha um enredo

3 Na edição mais recente, de 2010, consultada para este artigo.


nanico: A hipotética estadia de Renatus Cartesius4 no Brasil, acompanhando Maurício de Nassau em
seu governo holandês na Mauristaadt recifense. Na cena da narrativa, Cartesius espera o retorno de
seu amigo Artyczewski5, aristocrata militar polonês, enquanto observa espécimes da fauna brasileira
instalados em um parque zoológico feito a mando de Nassau. O estranhamento em relação à
natureza tropical é aguçado pelo consumo da maconha presenteada por Artyczewski como inocente
passatempo. A mídia e a literatura médica vulgarizada são recorrentes sobre os efeitos da cannabis
sativa: calma, relaxamento, vontade de rir, apetite descontrolado, alterações na percepção sensorial,
no raciocínio lógico e na memória recente. Esse conjunto de circunstâncias, entre o trivial e o
jocoso, bastam para que o fictício personagem sofra uma momentânea ampliação perceptiva,
contraponto a uma crise (definitiva? A ficção não o nega) de suas concepções racionais.
O cenário sintetizado no parágrafo acima já é delineado nas primeiras páginas. O texto começa
assim: “ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente, este labirinto de
enganos deleitáveis, - vejo o mar, vejo as baías e vejo as naus” (Leminski, 2010, p. 15). Esse
começo de fala traz de súbito a perspectiva do fragmento, do texto que alega pertencer a algo
anterior, mas está decisivamente apartado dele. O sutil lamento pela distância da Europa, com
direito a uma alusão ao exílio compulsório do poeta romano Públio Ovídio Nasu (43 a.C.-17 d.C.) e
a uma depreciação indireta da terra bárbara, em poucas linha, se dissipam no discurso, sem dele
sumir; o foco, agora, são “O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE
BRASÍLIA” (Leminski, 2010, p. 15). O mal estar do estrangeiro é contaminado pelo fascínio
atônito de uma espécie peculiar de turista: o viajante europeu nos trópicos da época das grandes
navegações. A maneira como o discurso cartesiano passa a acompanhar essa percepção implicará,
então, demarcações próprias sobre o que a figura de Descartes simboliza e o que a literatura pode
gerar com ela.
O pensamento cartesiano, hoje, ainda possui uma influência que não pode ser negada. Tal
prestígio, como visto, formou-se ainda durante a vida do filósofo. Sua obra conecta teologia,
metafísica, óptica, medicina e, especialmente, doutrina racionalista; sua filosofia, além de salto para
a revolução científica que se infiltrava pela Europa, também mostra uma curiosa continuidade entre
o dogma e o cogito científico; o pensar indutivo e dubitativo tratava a fé cristã como assunto
inquestionável; esse detalhe explica em parte um certo teor idealista de duas das acepções mais
apreciadas da obra cartesiana nos séculos posteriores: 1) a sugestão de que o mundo pode ser
plenamente explicado por modelos lógicos; 2) uma confiança quase idealizada na razão humana
como potencial de transformação do homem e do mundo. O trecho seguinte do Discurso do método
contém alguns fios desse pensamento:

essas longas cadeias de razões [ou seja, de proporções de aspecto matemático]


todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas
mais difíceis demonstrações, haviam-me dado ocasião de imaginar que todas as
coisas possíveis de cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras
da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por
verdadeira qualquer que não o seja, e que guardemos sempre a ordem necessária
para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer tão afastadas a que não
se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram (Descartes, 1983, p. 38-
39).

Um aspecto biográfico meio encoberto pela repercussão da teoria cartesiana é a busca do saber
nas viagens. Descartes foi exímio viajante por princípio filosófico, e disso vem a face empírica,
experimental, além de certa conotação antropológica avant la lèttre, que seu pensamento alcança. É
“no grande livro do mundo” (Descartes, 1983, p. 33) que ele vai “frequentar gente de diversos
humores e condições”, “recolher diversas experiências” e “provar” a si mesmo nos “reencontros que
a fortuna lhe propunha”, refletindo sobres as coisa ao redor e disso obtendo “algum proveito”

4 A forma latina, bem como as passagens nesse idioma em todo o romance, é bastante significativa.
5 O nome do personagem é gravado de diversas maneiras, com alteração de poucas letras. Aqui, duas serão
mencionadas: Articzewski e Artyschewsky.
(Descartes, 1983, p. 33). Embora os relatos do autor não o afirmem, é nesse ponto, do prazer da
viagem, que se poderia abrir uma investigação que unisse a constituição filosófica ao ludismo do
trânsito. Conhecer povos e lugares exercita o intelecto, mas também o recreia. No Catatau, essa
possibilidade lúdica desencadeia a escrita do curitibano naquilo em que ela é sinuosa, no que chama
de fluido à mente. Nas primeiras páginas do Catatau, agita-se ostensivo o espanto lúdico do
Descartes brasileiro de Leminski.
Segue-se, então, o resultado textual do que é, desde o começo, texto, pretexto e pressuposto. A
progressão discursiva cartesiana se faz tanto pela descrição como pela narração (cf. Descartes,
1983); o Discurso do método o exemplifica. A prosa leminskeia capta esses usos para se por
andando: o Descartes em Pernambuco, primeiro, enuncia um belíssimo espanto-súmula: “Estar,
mister de deuses, na atual circunstância, presença no estanque dessa Vrijburg6, gaza de mapas, taba
rasa de humores, orto e zoo, oca de feras e casa de flores” (Leminski, 2010, p. 15). Depois, ainda na
primeira página, passa à descrição do zoo onde está: “Animais anormais engendra o equinócio,
desleixo no eixo da terra, desvio das linhas de fato” (Leminski, 2010, p. 15). E, portanto, poesia.
Em geral, o hábito da pluralidade de gêneros textuais na literatura ecoou por todo o século XX e
ainda rende. Nos autores mais destacados, fundadores de direção, essa prática tende a apresentar
significações particulares; no Ulysses (1922) e no Finnegans Wake (1939) de James Joyce, esse
recurso remetia a um mundo em que o caos urbano midiático apontava um Ocidente que a si narra
em suas crises; em The waste land (1922), de T.S. Eliot, a poetização do resíduo cotidiano, como
em Flaubert e Baudelaire, é radicalizada como proposta de arte humanista. Essas tendências,
naturalmente, não se excluem; cada autor, como esses, por projeto ou consecução, trilhou técnicas
de politexto semelhantes e sutis na diferença. O Catatau é parente dessas obras; sua especificidade
estaria em seu modelo próprio de sugerir a coesão dos fragmentos que lhe compõem – Muitas obras
de caráter fragmentado, desde o romantismo, distinguem-se pela maneira como estimulam o leitor a
montar uma estrutura significativa: o funcionamento de sua leitura. Aqui, esse modo de usar
literário é desencadeado por um fato principal: Cartesius fala.
Fala, aparte o português predominante, em várias línguas. Segundo Leminski, “seu polilinguismo
é o reflexo do polilinguismo do Brasil de então onde se praticavam as línguas mais desencontradas:
o tupinambá da Costa e centenas de idiomas gês/tapuias, dialetos afros, português, espanhol e, em
Vrijburg, cosmopolita, holandês, alemão, flamengo, francês, iídiche e até hebraico” (“Quinze pontos
nos iis”, In: Leminski, 2010, p. 217). Não esquecendo o latim, segundo em ordem de frequência.
Cultural e linguística, a colônia sugere falares babélicos em contato e conflito: mútua contaminação.
A opção de Descartes em publicar suas obras em língua vernácula suscita, como viabilidade, a
autoentrega do europeu a seus outros.
Toma parte nessa entrega a receptividade ao humor, à quebra de registros de linguagem
circunspectos; a razão deslocada obtida aqui, transformada em nova razão, no estigma do tropical e
no amplo do barroco7, se poetiza em glossolalia; o êxtase instalado entre o eu e o mundo, vasto
mundo, exponencia a língua, que se fala em línguas. Assim, estas, na prosa poética barroco-
cartesiana, podem ultrapassar seus limites habituais: “Rerum novarum dictatoribus decet
inadvertantur ut tacerent!8 Tanta razão ninguém tem que seu oponente nenhuma a
tenha…”(Leminski, 2010, p. 165); “Tussis, canabica, febris brasilica, prolaborenobiscum!”
(Leminski, 2010, p. 206).
O fato narrativo seguinte ao longo discurso de Cartesius acontece nas duas últimas páginas: o
esperado Artyzewski é visto chegando. Termina o momento de solidão que atordoa e faz falar. A
presença do amigo e seu vir de interlocutor bloqueiam o leak verbal, restabelecem pouco a pouco o
anterior saber de si e do fora: termina a vertigem, a fala louca; a poesia ameaça se interromper
indefinidamente, já que o estado que a emana é inquietante demais para ser explicitamente
celebrado:

6 Designação da Olinda batava.


7 Cf., dentre outros, Haroldo de Campos, em “Uma leminskíada barrocodélica” (In: Leminski, 2010, p. 235-239).
8 “Aos ditadores convém que as novidades não sejam notadas, afim de que sejam silenciadas” (idem).
A onda está parindo Artischewsky? Este pensamento sem bússola é meu tormento.
Quando verei meu pensar e meu entender voltarem das cinzas deste fio de ervas?
Ocaso do sol do meu pensar. Novamente: a maré dos desvairados pensamentos me
sobe vômito ao pomo adâmico. Estes não. É esta terra: é um descuido, um acerca,
um engano de altura, um desvario, um desvio que só não vendo. Doença do
mundo! E a doença doendo, eu aqui com lentes, esperando e aspirando. Vai me ver
com outros olhos, ou com os olhos dos outros? AUMENTO o telescópio: na
subida, lá vem ARTYSCHEWSKY. E como! Sãojoãobatavista! Vem bêbado,
Artyschewsky bêbado… bêbado como polaco que é. Bêbado, quem me
compreenderá? (Leminski, 2010, p. 208).

As últimas frases do Cartesius tropical, registradas acima, resumem-se a repetir uma constatação:
o perder-se no próprio delírio é limitado pela vista do delírio alheio9.

3. Catatau, solidão, imagem

O primeiro livro de Paulo Leminski traz um texto em monobloco. A margem direita não está em
alinhamento justificado, o que lembra uma página repleta de hexâmetros (embora aqui não os haja)
ou escrita à máquina datilográfica. Esse continuum é aparente, simulação de homogeneidade. Entre
os primeiros olhares sobre o zoológico batavo e o momento da chegada de Artyschewsky, nada
acontece senão a fala loucopoética do europeu momentaneamente pararracional. Essa fala, pelo que
foi dito, furta-se à narrativa ao passo que a devora. Nela, as frases se sucedem no espaço, mas,
quanto ao tempo, sua sucessão é relativa: o texto não mapeia uma coesão, e cabe ao leitor fazer isso.
Processo análogo envolve também as obra do grupo francês de literatura experimental Oulipo ou o
romance O jogo de amarelinha, do prosador argentino Júlio Cortazar (1914-1984); há, no entanto,
um caráter específico na montagem do texto em Catatau, como mencionado parágrafos acima. No
bloco unificado do contínuo textual, cada período é fragmento e peça solta para encaixe: voz do eu
cartesiano e daquilo que o enfeitiça e atormenta.
Sobre esse pormenor, Leminski comenta que, no livro que escreve, “existe literalmente um
abismo de frase para frase”, o que geraria “a informação absoluta, de frase para frase, de palavra
para palavra”; assim, ele opina: “se disserem que a expectativa permanente no Catatau acaba por se
tornar um estado ‘monótono’ (caógeno), digo que pretendi realizar um dos postulados básicos da
cibernética: a informação absoluta coincide com a redundância absoluta” (Leminski, 2010, p. 215).
Se alguns leitores poderão experimentar monotonia nessa leitura, outras sensações são igualmente
possíveis: a de que o transe do texto se estende ao leitor; a de que o livro, este livro, é infinito, como
uma espécie de efeito ilusório do “Livro de areia” de Jorge Luis Borges. Se há, nesse caso, o transe
e a vertigem, a poesia, como signo mais próximo dessas noções sem signo, estará junto. A ausência
de informação, em paradoxo, é a onipresença poética que lhe substitui: “A criação poética se inicia
como violência sobre a linguagem. O primeiro ato desta operação consiste no arrancamento das
palavras. O poeta as arranca de suas conexões e misteres habituais: separados do mundo informe da
fala, os vocábulos se tornam únicos”10 (Paz, 2005, p. 38). A poesia se gera ao degenerar a
informação: um tipo de informação, portanto, que não é do cotidiano, é outra coisa, não-
informação.
Nesses trilhos, a poesia do Catatau vai se afirmar à medida que o discurso de Cartesius se afasta
das falas habituais do cartesianismo; à medida que esse discurso se afasta dos relatos de viagens de
estrangeiros aos trópicos quinhento-seiscentistas; à medida que funda seu espaço de existência, e só
desse modo compreensão, no incompreensível. Esse desnível, essa assimetria, esse deslocamento

9 Podem ser somados, aos comentários dessa seção mais geral do trabalho, dois estudos sobre o Catatau e a poética de
Leminski: Salvino (2000) e Dick e Calixto (2004), além de Vaz (2009).
10 “La creación poética se inicia como violencia sobre el lenguaje. El primer acto de esta operación consiste em el
desarraigo de las palavras. El poeta las arranca de sus conexiones y menesteres habituales: separados del mundo
informe del habla, los vocablos se vuelven únicos” (idem). Ato seguinte, Paz defende que a palavra poética, após
arrancada das falas corriqueiras e transformada, é movida por certa gravidade que as pousa, monumentos (cf. idem).
em relação ao que a cerca11, afirma que a obra literária é, em um certo ponto de vista, descontínua
em relação ao que extrapola suas letras e sentidos:

A solidão da obra tem em primeiro plano essa ausência de exigência que jamais
permite dizê-la acabada ou inacabada. Ela é sem prova, assim como é sem uso. Ela
não se verifica, a verdade pode apreendê-la, a fama esclarecê-la: essa existência
não a concerne, essa evidência não a torna nem segura nem real, nem a torna
manifesta. A obra é solitária: isso não significa que ela permaneça incomunicável,
que o leitor a perde, mas quem a lê entra nessa afirmação da solidão da obra, como
aquele que a escreve pertence ao risco dessa solidão12 (Blanchot, 2012, p. 15).

O alto potencial da fala cartésia para surpreender, disse-se, pode sugerir a sensação de sua
infinitude. Nesse sentido, ela é inacabada: porque além de parecer não acabar, o seu término tem
algo de abrupto, naquilo que desencadeado por um fator externo à emanação da fala: a chegada do
outro, do silenciador, do silêncio. Essa fala, poesia plena de si13, prestativa primeiramente ao lúdico,
mas também ao horror (o absurdo de si), foge a todo uso, é instrumento apenas do próprio fluxo.
Assim é que ela não pertence ao real, ou a menos lhe pertence como um corpo estranho, que, em
seus principais aspectos, colide contra ele e o abala. Mas isso não é autossuficiência, não é o salvo
conduto de um eterno imperecível, mas é exatamente seu defeito, sua questão, sua solidão, seu estar
longe – o que é, no entanto, a marca positiva de sua evidência, de seu triunfo.
Cartesius, nessa senda, é a voz e a imagem de uma fala sobre a qual ele é “sem autoridade, que é
ela mesma sem consistência, que não afirma nada, que não é o repouso, a dignidade do silêncio,
pois ela é aquilo que ainda fala quando tudo já foi dito”14 […] (Blanchot, 2012, p. 20). O discurso
abrasileirado do europeu, ao se dar em sua complexidade, ao tangenciar o ruído, não é
incomunicável, com seu dizer que não informa nem termina: ele comunica seu teor poético, sua
solidão. Solitário, Renatus pode produzir sua obra15; esta, por sua vez, afirma-se ao se desnivelar, ao
se isolar de sua fonte, origem à qual ela não retornará, a qual não pode retornar: porque essa origem
a recusa, porque Cartesius renega sua poesia; nesse, ponto, entretanto, essa poesia já está feita, já
existe, já não pode, horror e delícia, ser calada:

Entre a lua e – a terra – o sol, aquela se reduz a apenas esta metade: nós – parte
desta sombra. É uma pegada, e ninguém à frente. Meninit nemo, nisi nonnuli!16
Uma atlântida faz das suas no fundo de cada palavra, não pode ser incomodado
quem está descobrindo a pólvora, paraíso na caixaforte, passaporte para o passado
(Leminski, 2010, p. 207).

O caminho até Atlântida é toda uma profundidade oceânica, a palavra, oceano sem fundo; a
descoberta da pólvora se torna o dom explosivo de transformar e desconstruir; o passaporte para o
passado leva a ele: produz tal deslocamento como verdade, crença, ilusão. O que Renatus (Re-natus,
Re-né, “ renascido”, ou ressuscitado, cristo de linguagem) alcançou, foi algo que efetivamente lhe
afastou do real, se o nome do real for razão, que como foi dito lhe fascinou e lhe castrou, deixou-lhe

11 E que aprofunda en abîme o deslocamento peculiar a uma voz que é Cartesius/Leminski porque dele,
simultaneamente, afasta-se – efeito próprio da imagem, como será visto a seguir.
12 “La solitude de l’oeuvre a pour premier cadre cette absence d’exigence qui ne permet jamais de la dire ni achevée ni
inachevée. Elle est sans preuve, de même qu’elle est sans usage. Elle ne se vérifie pas, la vérité peut la saisir, la
renomée l’éclaire : cette existence ne la concerne pas, cette évidence ne la rend ni sûre ni réelle, ne la rend pas
manifeste. L’oeuvre est solitaire : cela ne signifie pas qu’elle reste incommunicable, que le lecteur lui manque. Mais
qui la lit entre dans cette affirmation de la solitude de l’oeuvre, comme celui qui l’écrit appartient au risque de cette
solitude” (idem).
13 Mesmo o leitor que não a aprecie reconhecerá sua polissemia, sua vertigem, seu caráter inesperado, e que isso nela
brota tanto dos registros cultos como dos mais coloquiais e ruidosos.
14 “[…] il est sans autorité, qui est elle-même sans consistance, qui n’affirme rien, qui n’est pas le repos, la dignité du
silence, car elle est ce qui parle encore quand tout a été dit […]” (idem).
15 Cartesius é, portanto, a metáfora do “écrivain”, como o concebe Blanchot (2012).
16 Algo como: “ninguém persuade ardilosamente, exceto alguns” (idem).
sem saber, deslocou-o geográfica e existencialmente; renascido, mas para uma existência outra,
estranha e afinal, insuportável. O personagem se faz, portanto, no compasso de quem experimenta o
novo e sua ambiguidade.
O desnível entre Cartesius e sua obra, entre esta e o real de que seu criador participa, marca a
solidão essencial desta última – essencial na proporção em que é uma circunstância experimentada.
Aquela solidão qualifica tal obra como uma imagem, espaço artístico emoldurado, à distância do si
(do mim), mas paisagem que se vê, sem tomar parte no aqui, no real. Blanchot observa na imagem
comum, numa pictura qualquer, duas propriedades: a) ela menciona aquilo que está ausente; ela,
partindo dessa ausência, intensifica a experiência de observar o ser retratado. A imagem artística,
especialmente a partir do romantismo, amplifica essas tendências: aumenta o desnível da literatura
frente ao real aguçando sua percepção pelo constatar de sua ausência. A imagem não leva ao real e o
aguça especificamente porque ele não está, embora seja; nisso consiste a ambiguidade que Blanchot
identifica nela, ambiguidade inconciliável que sugere o errático e aventuroso processo pelo qual o
signo tangencia a experiência e sua percepção. Em outras palavras:

a imagem pode certamente nos ajudar a retomar idealmente a coisa, que ela é então
sua negação vitalizante, mas que, ao nível em que nos injeta o pesadume que lhe é
próprio, ela também se arrisca constantemente a nos remeter, não mais à coisa
ausente, mas à ausência como presença, ao duplo neutro do objeto em que o
pertencimento ao mundo é dissipado: essa duplicidade não é tal que se possa
pacificá-la por um “ou isso, ou aquilo”, capaz de autorizar uma escolha e de apagar
da escolha a ambiguidade que a torna possível. Essa duplicidade remete ela mesma
a um duplo sentido cada vez mais inicial (Blanchot, 2012, p. 353)17.

A imagem no Catatau se constrói sob o estranho e inusitado de seu texto; ela não apenas afasta o
real, mas o torna impossível, tendente ao insuportável e que se assume como imagem, signo
artístico18. Duplo sentido sempre inicial, sempre novo, fundador de si. Essa imagem, o que ela
tangencia do real é exatamente a crise vivida pelo personagem. Explicando essa crise, mas também
opondo-se a ela, está o ato de esperar alguém, um certo alguém, Artyschewski, aquele que
ludicamente traz a arte embutida em seu nome, no signo de seu (assim como, de modo mais latente,
o próprio Descartes). Esperar por Artyczewski é semelhante a esperar Godot; a arte é uma espécie
de Godot o qual o artista rigorosamente não sabe se afinal chegou e se consumou. Quando
Artyschewski chega, a arte havia se completado e se delimitado logo antes, com o discurso recém-
ocorrido. O polonês era o pretexto; quando apareceu, aquilo que seu nome conduzia já havia
chegado.
Vista assim, a consumação da arte, aquela que não se cala nem se fecha, chega e ocupa um lugar
alheio aos dois interlocutores. De modo similar, Catatau, escapando a seus personagens
mutuamente complementares e englobando-os, possibilita movimento análogo na fronteira da
prática com o mundo: a crítica não o captura, embora ganhe sentido ao buscá-lo. É por esse motivo
que nem as explicações do próprio Leminski para sua obra explicam-no, a rigor, no sentido de um
esgotamento ou submissão da obra, que se obra, não é explicável nem mesmo por seu autor; em um
sentido marcante, “o autor jamais lê sua obra. Ela é, para ele, o ilegível, um segredo, em face do
qual ele não permanece. Um segredo, porque ele está separado dela” (Blanchot, 2012, p. 17).
Quando chega aquele que, em alguns sentidos herméticos, é o portador da arte, mas não é a arte,
o estrago (poema, torção de linguagem, movimento circular que se quebrou em espiral) está feito.
No longo, infinitamente enovelado discurso que medeia Cartesius e Artyschewsky, pontua em
17 “[…] l’image peut certes nous aider à ressaisir idéalement la chose, qu’elle est alors sa négation vivifiante, mais que,
au niveau où nous entraîne la pesanteur qui lui est propre, elle risque aussi constamment de nous renvoyer, non plus
à la chose absente, mais à la absence comme présence, au double neutre de l’objet en qui l’apparttenance au monde
s’est dissipé; cette duplicité n’est pas telle qu’on puisse la pacifier par un ou bien ou bien, capable d’autoriser un
choix et d’ôter du choix l’ambiguïté qui le rend possible. Cette duplicité renvoie elle-même à un double sens
toujours plus inicial” (idem).
18 “[…] l’écrivain ne lit jamais son oeuvre. Elle est, pour lui, l’ilisible, un secret, em face de quoi il ne demeure pas.
Un secret, parce qu’il en est separé” (idem).
vários momentos Occam, ser misterioso, “o bruxo” (Leminski, 2010, p. 22) ou fada do discurso,
aquele que “virá a seu tempo ser (Leminski, 2010, p. 67); provável alusão ao teólogo Wilhelm de
Ockham (c. 1285-1349), um dos ministros do nominalismo medieval e antepassado dos empiristas
ingleses, Occam, possivelmente “ócio” (Leminski, 2010, p. 62), “Oxum, Ogum” (segundo
Leminski, idem, 2010, p. 212), isso e nada, signo torto em sua retidão. Se não fosse um personagem
disperso, caracterizado na referência esparsa, evasiva, seria uma síntese do espanto e do deleite
experimentados por Cartesius. No entanto, entre o espantar e deleitar, esses dois pilares da
experiência, parece não haver síntese; ele é, por isso, Occam.

4. Ausência e presença, um signo literário

No espaço brasileiro, como alusões históricas de base, Catatau remete à estadia dos holandeses
e, de modo mais geral, à presença de viajantes estrangeiros em terras locais, comum naquele tempo.
Os registros materiais dessas circunstâncias são a chamada literatura dos viajantes, que envolve
relatos sobre a natureza e os índios, com fim habitual de estimular a vinda do indivíduo
colonizador19; e a literatura barroca, que, em lugar do peso documental da anterior, traz o ágon do
barroco europeu (confronto, alternância, não síntese20) e o torna perplexidade (um tipo de
desconcerto) ante o novo mundo. A proximidade entre o Catatau e a estética barroca já foi apontada
por diversos autores (Campos apud Leminski, 2010, p. 235-239; Salvino, 2000; etc.). O barroco
confunde a informação, deixa opaco o documento, mas o aproxima do monumento. Como suposta
tentativa de uma literatura de viagens, a informação prevista para o romance de Leminski é
corrompida-irrompida pelo barroco. O relato histórico é vencido, mas possivelmente
redimensionado, pela abertura-ruptura do signo anterior.
Antes de comentar implicações do fato de linguagem apontado acima, pode-se considerar outra
aproximação do objeto deste artigo com a história, na feição de uma narrativa que é registro de
experiência e uso linguístico desta. Estudos sobre as obras literárias publicadas no Brasil na década
de 1970 apontam características que seriam repostas a questões sociopolíticas do período, o que
poderia ser visto em passagens de Catatau21; as ditas características pertenceriam, no dizer de
Renato Franco, a uma produção que

narrou preferencialmente as questões políticas oriundas da conjuntura histórica e os


diversos aspectos implicados nas violentas transformações (sociais, psicológicas,
etc.) suscitadas pelos vagalhões do processo modernizador – temas comuns a quase
toda a ficção do período – mas sem postular, como horizonte, a mera denúncia. Sua
ambição foi a de narrar a história recente, nos vários aspectos, verdadeiramente a
contrapelo. Ademais, esses romances foram freqüentemente forçados a tematizar
questões originais, como a concernente à sua própria natureza e constituição – ou
possibilidade (Franco, 1998, p. 132).

Se Catatau se associa a essa produção pelo aspecto textual da autorreflexão e do cuidado


(precaução, experimento) com o dizer, não tanto de forma explícita pela discussão política. Isso faz
pensar que se menções a esta não foram excluídas do livro, elas analogamente não cortejam nele o
panfleto; não lhe piscam o olho, como outras obras da época; ou piscam pouco. Menos ainda esse
romance é uma busca arqueológica da era dos descobrimentos; ele antes promove um claro
afastamento em relação a esta. Esse fato pode ser uma evidência de que o texto literário corrompe o
discurso histórico. É possível uma narrativa histórica tão aberta e figurativa quanto a literatura? Não
cabe a este artigo responder. O que se constata, aqui, é que a literatura (texto) transforma a história
(se texto), ela muda a noção de tempo dentro do texto apontado para a história.
Os dois Brasis em Catatau, o de seu presente e o de seu passado, são construções deslocadas de

19 Uma fonte sempre útil a uma visão de conjunto dessa produção, a partir dos próprios textos, está em Moisés (2005).
20 Para uma avaliação crítica do Barroco, ver Sarduy (1989); para uma amostragem da literatura barroca praticada no
Brasil, ver Moisés (2005).
21 Como a passagem em latim traduzida na nota 5 deste trabalho.
seus parâmetros habituais no discurso histórico e mesmo literário do período. Brasis fora do Brasil,
mas que o fitam e o chamam pelo nome. O distanciamento não recomenda um olhar crítico e
sociológico; ele o afirma possível, somente22. Então, a violência da linguagem, que se volta
principalmente contra si, atenua no texto a coesão dos discursos históricos sobre esses dos Brasis e
desmonta, em parte, a necessidade da conexão habitual entre passado e presente. Brasis
insuportáveis, mas belos quando borrados pela literatura cartésia de Leminski: a ligação natural,
necessária entre eles se torna absurda, impossível; o Descartes isolado de si, entregue ao seu
discurso quase suicida, é o oposto complementar da história que se fragmentou e cujos fragmentos
se desvincularam uns dos outros.
Tal fragmentação está na ordem do que Blanchot denomina “ausência de tempo” [l’absence de
temps], a qual seria a própria “essência da solidão” [l’essence de la solitude] (Blanchot, 2012, p. 25)
- da obra. A ausência de tempo, instaurada por exemplo no Catatau, não é a eternidade, a perfeição
infinita, a a-história. “É ao contrário um tempo sem negação, sem decisão, quando aqui também
está parte nenhuma, que cada coisa se retira em sua imagem” […]. É um tempo “sem presente, sem
presença. Este ‘sem presente’ não remete, entretanto, a um passado”23 (Blanchot, 2012, p. 26). Não
remete porque está dele deslocado, e só esse deslocamento poderá ser entendido como uma espécie
de denúncia ou funcionar como um lamento.
Dessas questões, resulta que aqueles dois Brasis se conotam no Catatau pelo signo da ausência,
que é afinal uma presença na obra24. A ausência desses Brasis na obra revela a presença do
indivíduo-texto que se abre a uma espécie de espaço: o espaço da literatura. Espaço que escapa à
experiência individual, mas que tende a confrontá-la de modo amplo. Comum, e no paradoxo,
incomum e comunicável. Os dois Brasis, ausentes em vários sentidos, presentificam-se como
presença sígnica que não diz “há um mundo.”; ela pergunta: “há um mundo?”:

Medito uma medida para as mudanças deste mundo, onças, pares, palmos e
quintais, a entrarem por um vidro saindo pelo outro. Bem-te-vi deveras me viste
mas não te vejo e te busco rolando lentes sem resultado por esses ramos. Ou é o
vocal da consciência gritando: deserto? Ver tudo é bom? É ver? Ver, é fazer alguma
coisa: ver tudo é coisíssima alguma. Por muito ver, cegaram mil, procurando-os na
memória, encontro outras vítimas do esquecimento. Me praz lente fiel em olho sem
libra, gasto pouco vasto faz grandes coisas. Ainda bem, porque vindo ver algumas,
uma de nada me viu, diminuindo-me. Há coisas que não são para ver. A ver,
vejamos. Não vou mais perto de medo, olho mais perto que o corpo chega mais
forte que eu. Não posso entrar assim. Onde estava com a cabeça, até me vir tudo
nela? (Leminski, 2010, p. 23).

E antes que a crítica inspire ar, a obra já terá dito tudo, e ainda dizendo.

5. Considerações finais, transitórias

Esboço de estudo comparativo, entre uma obra literária e uma obra crítica que toca o poético em
vários sentidos. Neste artigo, aspectos do texto de Catatau foram postos em diálogo com alguns
conceitos sobre literatura em O espaço literário, de Maurice Blanchot. Nesta obra, a relação da
literatura com o humano ocorre na perspectiva em que aquela ocupa o centro da discussão. Isso já
sugere que a obra literária pode ser fonte histórica, documento, fonte de conhecimento étnico;

22 Acepção crucial, considerando o grau crítico dos problemas sociais, políticos e econômicos do período.
23 “[…] sans présent, sans présence. Ce ‘sans présent’ ne renvoie cependant pas à un passé” (idem).
24 “A inversão que, na ausência de tempo, nos remete constantemente à presença da ausência, mas a essa presença
como ausência, à ausência como afirmação de si própria, afirmação em que nada se afirma, em que nada cessa de se
afirmar, na flagelação do infinito, esse movimento não é dialético” - não ruma a uma convergência salvadora, mas
torna a divergência um signo artístico (“Le renversement qui, dans l’absence de temps, nous renvoie constamment à
la présence de la absence, mais à cette présence comme absence, à l’absence comme affirmation d’elle-même,
affirmation où rien ne s’affirme, où rien ne cesse de s’affirmer, dans le harcèlement de l’indefini, ce mouvement
n’est pas dialetique”) (Blanchot, 2012, p. 26-27).
porém, como texto, nesses casos ela terá deixado de ser literatura; ela terá se tornado outra coisa.
Por suas próprias características, a literatura tangencia os vários saberes do texto e, assim, tangencia
o cotidiano e a história. Ao mesmo tempo, e dentro do paradoxo que se tentou enunciar neste
trabalho, ela é o coelho, que, enquanto tiver vigor, sempre escapará do caçador.
No primeiro livro de Leminski, há dois Brasis, no entanto ausentes: o Brasil colonial e o Brasil
contemporâneo. Sua ausência os une. Em termos de alusão referencial (paisagem, dados
mapeáveis), ambos estão quase ausentes do discurso desse livro. Essa rarefação sugere a
possibilidade de um Brasil como um conjunto de dizeres (muitos Brasis) aproximados pelo signo da
ausência. Essa é a presença, e não como linguagem isolada do tudo, em estado matemático,
digamos; trata-se, porém, de uma presença que não alude à experiência empírica de modo
corriqueiro (estimulando a crença de que as coisas estejam dentro das palavras). Há, contudo, uma
pergunta sobre certas experiências e sobre ter experiências: no jogo da cultura, do si, do outro, da
condição de estrangeiro, na circunstância da assimetria. Ou: experiência da fronteira, de ser parte de
uma fronteira, de ser estilhaçado e remontado nela.
Catatau é a maneira artística pela qual um eu de palavras simboliza um país ou, também, o
mundo. A ausência de um presentifica o outro, e a obra dá acesso a duas leituras que contêm essa
alternância. Ler o Catatau como um obstáculo para a historiografia é visualisar uma crise do estar-
no-mundo cuja discussão, aqui, se manteve sob a delimitação metodológica da linguagem. Ler o
Catatau como um obstáculo para a historiografia não é, portanto, demolir a história. A linguagem
diz o humano parecendo não fazê-lo ou ela desdiz o humano parecendo dizê-lo? Catatau, obra de
arte, enuncia a pergunta; não foi possível enxergar a resposta, se ela há. É possível, à propósito,
afirmar que, se a nacionalidade e o momento histórico são critérios válidos para entender a
literatura, a ausência do local e a perturbação do temporal, como signo, também o são.
A palavra poética (inclusive na prosa) se destaca do real (cotidiano, história, discursividade
anestésica), mesmo que o chame (e porque o chama): ela o interroga, ela o defronta ela o vê e, nesse
movimento, mimetiza-se nele. Ela faz o mesmo, aliás, em relação ao leitor. Nesse caminho, a crítica
literária não é poesia, mas a buscando, tangencia-a, reflete-a; a crítica é a imagem da imagem
literária, porque, investigando-a, ela mais ou menos se adorna com a plumas desta. Buscando, nesse
sentido, ser a poesia, a crítica não o consegue, e se conseguisse, não seria mais crítica – não, pelo
menos, o que se sabe dela. Essa limitação é, ainda, sua beleza. É o espaço em que tal crítica é
plenamente livre.

Referências bibliográficas

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DESCARTES, René. Discurso do método et al. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 3. ed.
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Rio de Janeiro: Lamparina, 2004 (O grão da voz).
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. São Paulo: Unesp, 1998.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio
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SALVINO, Romulo Valle. Catatau: as meditações da incerteza. São Paulo: Educ, 2000.
PAZ, Octavio. El arco y la lira: el poema. La revelación poética. Poesía y historia. 3. ed. México:
Fondo de Cultura Económica, 2005 (Lengua y Estudios Literarios).
SARDUY, Severo. O barroco. Trad. Maria de Lurdes Júdice e José Manuel de Vasconcelos.
Lisboa: Vega, 1989.
VAZ, Toninho. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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